Quando o trabalho massacra. E quando liberta
Em 13 de julho, a capa de Época apresentava a seguinte questão: “Dá para ser feliz no trabalho?”. A reportagem, baseada em dois livros sobre o tema, me fez pensar sobre a minha relação com o trabalho. Eu adoro trabalhar. Mas conheço mais gente que detesta do que gente que gosta do que faz. E o curioso é que muitos dos que não gostam falam mais de trabalho do que eu. Não do trabalho em si, mas do ambiente do emprego. Parecem presos às disputas de poder, às fofocas, a quem está sacaneando quem, ao que o fulano disse ou deixou de dizer, aos supostos privilégios de um em detrimento de outro. São alimentados pelas pequenezas do cotidiano que os massacra. E, mesmo que não admitam, também colaboram com sua cota de intrigas. Mesmo que não admitam, há um prazer nessa dinâmica do dia a dia, seja num escritório revestido de mármore, seja num chão de fábrica.
Fiquei pensando por que eu adoro trabalhar. Primeiro, para mim há uma diferença fundamental entre trabalho e emprego. Na minha divisão pessoal, o emprego é o lugar onde eu trabalho. Se meu emprego permite que eu trabalhe, é um bom emprego. Se não permite, é hora de sair em busca de um que me deixe trabalhar. Então, é uma relação de troca, para além do salário. Eu faço da melhor maneira aquilo que sei fazer de melhor, e o emprego me dá as condições e a autonomia para que eu possa fazer o melhor que sei fazer. Se essa relação está equilibrada, todos ganham. E eu posso trabalhar sossegada.
De tempos em tempos, eu faço uma análise dessa relação de equilíbrio. O resultado me mostra se algo precisa mudar. Na minha avaliação, interna e pessoal, entram não só as questões objetivas, mas também as subjetivas. Ou seja: o salário, os equipamentos, as condições, o espaço, o investimento é importante, mas ser tratada com respeito e educação é tão importante quanto. Se um dia eu tivesse um salário milionário, mas meu chefe cometesse o que hoje é chamado no Código Penal de assédio moral, tenho certeza de que não ficaria um minuto a mais.
Deixar-se maltratar arrebenta com a nossa autoestima, nos quebra a espinha. E ninguém trabalha bem de espinha quebrada. Trabalhador aniquilado nos seus desejos só serve a chefe incompetente. E nenhuma empresa, tenha o tamanho que tiver, pode ser bem-sucedida se tolerar gente assim em cargos de chefia. Se não for pelos outros cem motivos, basta um: chefe abusivo mata a iniciativa e a criatividade.
Eu aprendi sobre o valor do trabalho com meu pai, Argemiro. Meu pai foi o penúltimo dos 12 filhos de uma família de agricultores, descendentes de imigrantes italianos. Dos 12, os gêmeos sucumbiram no parto e outras duas, tia Lídia e tia Henriqueta, morreram ainda na infância, por acontecimentos tão absurdos que cada um deles rende uma outra história.
A família vivia no interior do município de Ijuí, no Rio Grande do Sul, num lugarejo chamado Barreiro, que sempre fez por merecer o nome que tem. Meu pai passou a primeira infância pisando a geada do inverno gaúcho com os pés nus, tomando banho de rio mesmo quando a água era quase gelo. Meu avô era fabricante de erva-mate e morreu depois de passar mal no soque, extenuado de tanto trabalhar. Minha avó se foi três anos depois. Aos 15 anos, meu pai e
Seus irmãos mais velhos cumpriram o desejo paterno, o de que o filho mais novo conhecesse as letras. Meu pai pagou os estudos no colégio interno da cidade fazendo limpeza e cuidando dos outros estudantes. Herdeiro de gerações de analfabetos, tornou-se um professor apaixonado e ajudou a fundar uma universidade. Até hoje, perto dos 80 anos, quando ele anda pelas ruas encontra ex-alunos já de cabelos brancos, que o olham com reverência e o chamam de “professor”. Muitas e muitas vezes ao longo da minha vida topei com gente que fazia questão de me dizer: “Seu pai mudou minha vida. Sou o que sou por causa dele”.
Eu, que sou a filha mais nova, e meus dois irmãos, nos criamos num mundo em que o trabalho não era apenas necessário para pagar as contas, adquirir casa própria, carro e bens de consumo. A gente tinha pouco disso tudo e ninguém ligava muito, porque tínhamos o suficiente para os livros e para a comida. Nosso pai nos ensinou com seu exemplo, mais do que com suas palavras, que o trabalho era a expressão de nosso ideal. Era a construção cotidiana de nossa marca singular na História.
Nosso trabalho era para nós. Mas só era para nós se, ao mesmo tempo, não fosse para nós. O trabalho de cada um só se cumpria se pudesse ser para o outro, se transformasse para melhor a comunidade, o mundo em que vivíamos. Não fosse isso, não seria um trabalho, seria um emprego. E, como empregados, não mais como trabalhadores, estaríamos alienados de nós mesmos, esvaziados de sentido e de propósito na vida, apartados de nossa criação no mundo.
Nunca fui filha, portanto, do individualismo, que vê no trabalho apenas uma forma de adquirir bens materiais e dinheiro para exercer seus próprios desejos. Meu desejo só se realiza se puder ser veículo do desejo do outro. Eu não “sou feliz e bem-sucedida” apenas realizando meus desejos. Sou feliz se o outro também puder realizar os seus. Minha vida não é apenas minha, ela está implicada com a do outro. E o outro não é a minha família, meus parentes de sangue, minha raça, meu grupo, os meus. O outro é a humanidade toda, que eu alcanço a partir da diversidade dos que estão mais perto de mim.
Lembro que, quando me tornei uma adolescente tão encantadora quanto insuportável, meu pai me pegou pelos ombros e disse, com aqueles olhos que refletem a alma da gente. “Você sabe quanto custa a um operário para você estudar?”. Eu não sabia, mas fiquei sabendo naquela hora que mesmo os trabalhadores que não conseguiam dar educação para seus filhos pagavam para que eu pudesse estudar. Ou não estudar, como eu fazia naquele momento. Muito diferente daqueles alunos de escola privada que, porque o pai paga a mensalidade, supõem ter o direito de desrespeitar o professor dizendo: “Você não pode fazer nada, porque sou eu que pago seu salário”.
Meu pai nos mostrava que nossa vida se ligava, de várias maneiras, à de todos os outros. Era ele que nos apontava os fios invisíveis que, querendo ou não, nos transformava em coletivo, plural. Num domingo foi me buscar num acampamento nativista, uma espécie de festa que durava vários dias enquanto se desenrolava um festival de música. Eu tinha 15 anos e meu maior projeto era conhecer todas as festas do mundo. (Em minha opinião, um projeto bem saudável naquela fase da vida). No carro me esperava a família toda. Meu pai nos levou a um acampamento um pouco diferente, de agricultores pobres e sem-terra, para que eu conhecesse a multiplicidade da vida e dos desejos humanos. Professor Argemiro era um pai severo, mas acreditava. E sonhava.
E me ensinou a acreditar e a sonhar. Os olhos dele sempre estavam – e estão – postos no horizonte. E sempre brilhando. Ele me mostrou que carregamos a largura do mundo dentro de nós. E não podemos esquecer disso. Quando as pequenezas do cotidiano ameaçam me engolir, eu olho para dentro. Não tenho tempo a perder com os ataques traiçoeiros dos pequenos poderes e grandes medos. Eu não pertenço à umbigolândia. Sou habitada, como todos que se sabem parte – não todo – pela vastidão do universo. Tenho em mim “a vertigem horizontal da planície”.
Todos nós já ouvimos um colega justificar sua infelicidade com o chefe que não permite que faça um bom trabalho, com a estrutura que não deixa espaço para ousar, com as sacanagens das quais é uma vítima recorrente. Se tivesse espaço, condições, tempo, ele faria um ótimo trabalho. Como não tem, só pode reclamar e buscar culpados. Se tudo fosse diferente, ele poderia ser diferente, poderia ser um profissional melhor, uma pessoa mais feliz.
Eu desconfio desse discurso. É sempre conveniente quando a responsabilidade é do outro, especialmente se esse outro tem um poder maior que o meu. A impotência esmaga, mas também justifica, nos exime de tomar uma atitude, de arriscar. É paradoxal, mas assim como a impotência arrasa, ela também tem seu lado de conforto. Se eu acredito que nada posso fazer, que sou um eterno injustiçado, então eu não preciso fazer nada nem explicar aos outros – e a mim mesmo – a razão e a tristeza da minha imobilidade.
Por outro lado, se tudo é verdade, se as condições são ruins, o chefe é um déspota e os colegas sabotadores, o que nos obriga a gastar a maior parte da nossa vida no inferno? Ou mesmo se não é totalmente insuportável, mas é o suficiente para nos impedir de criar, de nos expressar, de chegar mais perto de nós mesmos, qual é a razão para insistir? O salário, muitos dirão. Está difícil conseguir emprego, outros lembrarão. É verdade. Mas será que é toda a verdade? Tenho dúvidas.
Tento escapar dessas armadilhas. Assim como evito consumir meu tempo falando mal de um ou de outro. Às vezes, porém, caio nessas arapucas, me debato um pouco. Depois paro, encaro o silêncio, tento ouvir minha voz. Olho para dentro e lembro que sou aquilo que sonho. Minha expressão no mundo é determinada pela minha capacidade de sonhar – e de criar a partir dos meus sonhos. Espano as minhas dores e vou em busca de alguma fresta esquecida nas tantas portas fechadas.
Por isso sou feliz no trabalho. Não trabalho apenas para ter um salário que me permita adquirir bens, nem trabalho para agradar um chefe. Ter um bom salário e um chefe satisfeito é o melhor cenário. E é importante. Mas meu horizonte está além. Não é circunstancial, nem estou a serviço de um projeto corporativo ou do projeto individual de um outro. O que tenho é um projeto de vida que, naquele momento, coincide com o de um superior, de uma empresa. Coincide, mas não está preso a ele. Acredito que todos ganham quando um projeto coletivo é construído não por escravos modernos e corporativos, mas por gente livre.
Nosso olhar sobre o mundo muda o mundo. Mesmo que seja um não-olhar, mesmo que seja uma falta. Se o seu olhar é vazio não é só a sua vida que se torna opaca, mas o que você poderia criar no mundo que se apaga antes de existir. O que somos e o que fazemos não é apenas uma profissão, um emprego, um meio de pagar as contas. É a expressão da singularidade de cada um de nós. É o nosso jeito único, intransferível e irrepetível de estar no mundo. E, com nosso trabalho, mudar o mundo e ser mudado por ele.
Quando você dá sentido ao seu trabalho, você não se deixa alienar. Seu trabalho não se torna algo separado de você, um produto que não é seu. Ao contrário. Ele é você, contém você, tem nele o seu desejo. Como expressão de sua passagem pelo mundo, seu trabalho lembra a cada dia de quem você é e do que realmente importa. Se isso não acontece, talvez seja hora de mudar. Não apenas de emprego, não somente o que está fora de você, mas algo um pouco mais profundo, bem mais fundo, mas que pode condenar ou libertar a sua vida.
(Publicado na Revista Época em 27/07/2009)