Quem precisa da Barbie, tenha o corpo que tiver?

O anúncio de que a Mattel rompeu com o padrão de sua boneca icônica foi celebrado como um triunfo da diversidade e do consumo consciente, mas vale a pena interrogar-se sobre essa “evolução”

Divulgação

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Demorou só 57 anos para a Mattel “descobrir” que as mulheres reais do planeta têm cores e formas variadas. A notícia de que a Barbie ganharia mais três tipos de corpos foi comemorada como uma vitória da diversidade. Por décadas movimentos denunciaram a imposição de um único padrão de beleza. Mas só nos últimos anos, quando as vendas começaram a cair, a Mattel “sensibilizou-se” e reconheceu a multiplicidade das mulheres do mundo. Em 2015, a empresa já tinha iniciado a conversão da Barbie, lançando sua criação com novas tonalidades de pele, penteados e estruturas faciais, sem deixar de manter a “clássica”. Com a inclusão de novas formas, a boneca é lançada agora com sete tons de pele, quatro tipos de corpos, 22 cores de olhos e 24 estilos de cabelos diferentes, na linha que chama de “Fashionistas”. Quando a mudança é anunciada, a Mattel já povoou a Terra com uma superpopulação de suas criaturas loiras, altas e magras. E a cabeça das crianças com um modelo que vai muito além de um padrão de beleza. Barbie é aquela que ensina as meninas que se nasce para consumir. Já foram produzidas mais de 1 bilhão dessas replicantes, há mais Barbies no mundo do que europeus na Europa. Nenhuma delas é “apenas” uma boneca.

Se a pressão dos protestos contra a Barbie e o crescente protagonismo das minorias na afirmação da diversidade conseguiram fazer as vendas do produto caírem a ponto de obrigar uma das maiores fabricantes de brinquedos a se mover, não é pequena essa conquista. Mas é também assustadoramente fascinante observar o capitalismo em ação.

Neste início de 2016, a Mattel conseguiu a façanha de estampar seus novos modelos na imprensa, além das redes sociais, sem pagar um centavo por isso. E com uma imagem positiva. Começou por uma capa da revista Time, com a foto da Barbie e o seguinte título: “Agora nós podemos parar de falar sobre o meu corpo?”. E seguiu em milhares de publicações mundo afora. É com assombrosa candidez que Evelyn Mazzocco, a vice-presidente sênior da Mattel, afirma sem ruborizar: “Acreditamos que temos uma responsabilidade para com as meninas e seus pais de refletir uma visão mais ampla da beleza”. Um detalhe que a descoberta da “responsabilidade” tenha ocorrido só depois de constatar que as vendas da boneca caíram 20%, entre 2012 e 2014, e seguiram caindo no ano passado. A estratégia da Mattel, que parece estar obtendo considerável sucesso, é fazer a liberação dos corpos barbísticos vendendo a imagem de uma empresa afinada com o seu tempo, defensora das “diferenças” e até mesmo inovadora. Se conseguir, se transformará num case obrigatório em livros de marketing, em mais uma prova de que o capitalismo sempre pode contar com a adesão pela fé quando as pessoas são reduzidas a consumidores.

A campanha que inclui vários vídeos mostrando a gênese da “nova” Barbie apresenta a Mattel como a intérprete do “mundo que vemos hoje”. A empresa que durante mais de meio século incutiu um modelo único – e nada inocente – na cabeça das crianças é convertida naquela que celebra as diferenças e ajuda as meninas a se identificar e a conviver num planeta multicultural. “O mundo da Barbie está evoluindo” – é o mote publicitário. Evoluindo para que o essencial possa continuar o mesmo: a lógica do mercado e o retorno das vendas ao mesmo patamar ou mais. Mas isso, obviamente, não é dito.

As cenas são interpretadas por crianças étnica e racialmente variadas – como as novas Barbies, nascidas paras as prateleiras de 150 países do mundo. “É importante que as Barbies sejam diferentes como as pessoas no mundo real”, diz uma das meninas. Executivos da empresa falam da importância da mudança “porque não há um só padrão de como é um corpo bonito”. Ou: “Temos que mostrar às meninas que, independentemente de sua aparência, tudo é possível”. O lema da Barbie, afinal, é #VocêPodeSerTudoQueQuiser. Talvez não exista nada pior para uma criança do que a mentira de que é possível alcançar a completude – ou de que é possível viver sem perdas. Ou ainda de que não haverá limites. Chega a ser criminoso, mas a publicidade varia esse mote em diferentes produtos – e as crianças mal acabaram de nascer e já tem a Barbie lhes sussurrando essa promessa nos ouvidos enquanto sacode os cabelos.

Ao final de um desses vídeos promocionais, uma menina diz: “Essas bonecas se parecem com as pessoas do meu mundo mágico”. É mesmo “mágico” o mundo em que o deus criador da Barbie se torna um avalizador da diversidade, quando não seu próprio inventor. De um certo ângulo, são sinistros os vídeos fofinhos e politicamente corretos do mundo das “Barbies da diversidade”, como já estão sendo chamadas. E um tanto perturbador o cinismo dos executivos da Mattel ao discorrer sobre a importância de respeitar as diferenças com a certeza de que o passado será de imediato esquecido, no átimo de tempo em que um coelho é sacado da cartola ou que um lenço vira pombas. Também na aparição do staff da Mattel há o cuidado com a variedade dos estilos, das cores e das formas, reforçando a mensagem e sendo legitimada por ela. Mas a sensação pode ficar mais esquisita quando se lê no Facebook as mensagens de mulheres e também homens, agradecendo à Mattel por tornar o mundo melhor, mais diverso, plural e tolerante. A maioria “muito feliz” e dizendo “dez vezes obrigada” pela “evolução” da Barbie.

Que modelo de mulher é a Barbie, que reinou por mais de meio século como um ideal feminino a ser atingido? Um que não existe. E não é que Barbie não exista por ser linda demais, inatingível para pobres mortais com seus genes imperfeitos, mas sim por ser bizarra demais, uma arquitetura que literalmente não para em pé. Segundo infográfico do Rehabs.com, graças a sua cinturinha, Barbie só teria espaço para acomodar metade de um rim e alguns centímetros de intestino. Como o pescoço é duas vezes maior do que o de uma mulher e 15 centímetros mais fino, ela não teria como manter a cabeça erguida. Andar, só de quatro. Se fosse uma mulher de carne e osso, Barbie seria uma anoréxica.

É apenas uma boneca, poderiam dizer alguns. Ou até muitos. Mas essa boneca não foi criada para ser “apenas” uma boneca. Barbie é vendida como uma amiga, uma mentora e um modelo a ser seguido, com influência sobre pelo menos duas gerações de mulheres. O que Barbie vende é um modo de vida e de se relacionar com os outros e com o mundo. Seu primeiro processo de “purificação” foi eliminar as origens de seu nascimento, já que ela foi inspirada na boneca alemã Lilli, personagem de quadrinhos eróticos e presente para homens vendido em tabacarias. Lilli seduzia homens ricos na Alemanha do pós-guerra para ter de volta a prosperidade perdida. Quando Barbie foi lançada em 1959 para ser a companheira de crianças, os traços de sua “mãe” devassa tinham sido suavizados, mas ainda assim a “boneca com seios” foi recebida com desconfiança pelas famílias americanas. Pouco a pouco, porém, Barbie foi “evoluindo” para se tornar uma educadora e um “bom exemplo”, uma mentora capaz de ensinar às meninas a serem as mais bem adaptadas e populares, segundo os valores da sociedade americana. Hoje, mais de 90% das garotas entre 3 e 12 anos, nos Estados Unidos, têm uma Barbie, essa boneca que não é uma criança.

A partir do seu corpo impossível é vendida uma série de roupas, sapatos e acessórios, assim como casas, móveis, salões de beleza, lojas, outros bonecos, um mundo inteiro. Mas não qualquer mundo, mas um mundo em que todos os valores são mediados pelo consumo, como se observa nos jogos, filmes e outros produtos do planeta-mercadoria da Barbie. Ser mulher, ensina ela, é ser uma consumidora. No lema #VocêPodeSerTudoQueQuiser, o “Ser” é habilmente usado para encobrir o “Ter”. Ser e Ter com o mesmo significado – ou Ser é Ter. Nisso está implicado que a medida do sucesso de alguém é eliminar qualquer interdição entre o consumidor e o produto. A única forma de “ser” tudo o que quiser é consumir e, assim que a sensação de completude desaparece, o que acontece muito rapidamente, consumir de novo. E de novo. É assim que o planeta que a Barbie difunde de forma tão competente gira.

Desde que a boneca surgiu, Barbie é alvo de protestos. Em 1970, adolescentes já levantavam cartazes em manifestações pela igualdade entre os gêneros: “Eu não sou uma Barbie”. Mas talvez a intervenção mais criativa tenha ocorrido nos anos 90, pela autoproclamada “Organização para a Libertação da Barbie”. O grupo reagia a uma série de falas da boneca e, em especial, a uma em que ela dizia: “Matemática é difícil”. A frase sofreu fortes críticas, por reforçar o estereótipo da mulher bonitinha e burra. Os ativistas trocaram então a voz da Barbie pela voz de outro boneco, este um estereótipo masculino, chamado GI Joe. Quando meninas abriram seus presentes de Natal, sua Barbie loirinha dizia: “Homem morto não conta mentira”.

Existe uma bibliografia em língua inglesa dissecando o corpinho da Barbie. No Brasil, pode ser lido Barbie na educação de meninas: do rosa ao choque (Annablume, 2012). Nele, Fernanda Roveri partiu de sua dissertação de mestrado na Faculdade de Educação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), na qual brinca nos capítulos com os tipos de Barbie: “Barbie Farsa”, “Barbie Lânguida”, “Barbie Tóxica” e “Barbie Tribunal”, para refletir sobre a criatura da Mattel.

Há muitas histórias emblemáticas sobre como são tomadas as decisões que vão interferir no imaginário das crianças. Mas a mais incrível delas talvez seja sobre Ken, o namorado da Barbie. De fato, sobre o pênis de Ken. Houve um dilema na Mattel sobre como contornar essa questão. Conta a autora do livro que acabou se optando por uma alternativa intermediária: Ken usaria uma roupa de banho permanente com “um pequeno volume”. O problema é que, quando a determinação chegou à fábrica no Japão, o engenheiro supervisor decidiu suspender a pintura do short, para facilitar o processo, e calculou que a eliminação da lombada genital reduziria o custo de produção do boneco em um centavo e meio de dólar. Foi para lucrar mais que Ken nasceu eunuco. Fernanda Roveri aponta para a questão de que os fabricantes jamais pensaram que as crianças poderiam ficar traumatizadas com uma Barbie sem vagina, como suspeitaram que poderia ocorrer com um Ken sem pênis. O fato é que os dois bonecos “realistas” com que brincam meninas do mundo inteiro são igualmente castrados.

Mas é nos dois últimos capítulos, “Barbie Tóxica” e “Barbie Tribunal”, que o truque oculto da mágica capitalista do fenômeno Barbie, ao longo das décadas, é revelado. Quem produz a criatura, em que condições de trabalho, de que material, com que efeitos. “Mulheres japonesas, donas de casa, chamadas de ‘pessoas da tarefa doméstica’, costuravam exaustivamente os primeiros trajes da boneca em suas residências. Essas mulheres ficavam cegas para que Barbie pudesse usar tafetá, espetavam seus dedos para que ela pudesse passar o feriado esquiando, curvavam-se e estragavam suas costas para que Barbie não dormisse nua”, escreve a autora, citando relatórios, documentos e livros. “Na Tailândia, centenas de mulheres e crianças enchiam, cortavam, vestiam e montavam a boneca Barbie, ganhando de quatro a sete dólares por um dia de 12 horas trabalhadas. Além do baixo salário, muitas dessas trabalhadoras ficavam com problemas respiratórios, perda de memória e de audição, dores musculares, vômitos, transtornos no sono, menstruações irregulares em razão da contaminação por chumbo, fumaça e outros produtos químicos”. Em 2013, a organização China Labor Watch denunciou as péssimas condições de trabalho e as jornadas exaustivas constatadas em fábricas chinesas ligadas à produção da boneca.

Qual é a linha de montagem planetária da Barbie e os reais bastidores que não viram vídeos publicitários? Esse é um caminho de investigação para quem pretende ser mais do que um mero consumidor abobalhado. O truque do “mágico” no mundo real, afinal, precisa de fartas doses de sangue humano e de destruição ambiental para produzir números superlativos: as vendas da Barbie são estimadas em mais de 1 bilhão de dólares por ano.

Agora, com quatro corpinhos, a roupa de uma Barbie não servirá na outra Barbie. E há também pelo menos dois tipos de pezinhos que pedirão sapatinhos de números diferentes. É um ganho da diversidade, para quem pensa que o mundo não pode prescindir de Barbies? É. Mas também é mais de tudo. Vale a pena ainda observar quais foram os corpos e alturas aceitos pelo mundo Barbie em nome da diversidade. A mais “curvy” está muito longe de ser gorda ou mesmo gordinha. “Espero que vocês não confundam curvilínea com Gorda, cada coisa é uma coisa, mas já é uma diferença enorme do padrão da boneca, e quem sabe um dia teremos uma Barbie GORDA”, postou o Coletivo Gordas Livres, comentando a mudança.

Se existia uma Barbie negra desde o final dos anos 60, período das lutas pelos direitos civis dos negros americanos, a “negritude” se limitava a trocar a cor do plástico da boneca. Agora há muitos mais tons de pele, tipos de cabelo e estruturas faciais, o que também tem sido interpretado como uma conquista. No Brasil não se via Barbies negras nas prateleiras e até hoje quem quer presentear uma criança com uma boneca negra precisa contar com espaços alternativos. Um dos mais conhecidos é a “Preta Pretinha”, uma loja na Vila Madalena, em São Paulo, que há 16 anos faz bonecos artesanais que não se vê no mercado porque fora do padrão estabelecido, por diferentes razões e circunstâncias. Há negros e indígenas. Há orientais. Há cadeirantes, cegos, crianças com membros amputados. Há também bebês carecas, com câncer, procurados por pais de crianças com leucemia. Na medida em que meninos e meninas vão recuperando os cabelos após o tratamento do câncer, podem também ir povoando a cabeça dos seus bonecos com fios. A loja, criada por três irmãs, está ligada a um instituto com o mesmo nome, que trabalha os temas do racismo, discriminação e inclusão. Inspiraram-se na avó, que ao não encontrar bonecas negras para presentear as netas, começou a costurá-las em casa. Como não há uma linha de montagem industrial e planetária, esse tipo de espaço alternativo tem preços mais elevados e jamais poderá competir em custo e escala com empresas do porte da Mattel.

Em janeiro, a foto de Matias, um menino de 4 anos, segurando o boneco do personagem Finn, do filme Star Wars – O Despertar da Força, viralizou na internet. Na legenda da foto, sua mãe escreveu: “Ele nem sabe o que é Star Wars, sabe que o boneco é igual a ele”. Entrevistado, Matias afirmou: “Ele é pretinho igual a mim”. Logo depois, uma fabricante de produtos infantis fez uma fantasia do mesmo boneco negro e colocou a foto de um garoto branco na embalagem. Fortaleceu-se então a campanha “Não me vejo, Não compro!”, exigindo representatividade nas prateleiras. Em 27 de janeiro, no Facebook, a empresa anunciou que convidou Matias para ser o novo modelo da embalagem do produto, “atenta ao movimento global e ouvindo as críticas sobre a falta de diversidade étnica nas peças publicitárias veiculadas no Brasil”.

“Não me vejo, Não compro!” é uma linguagem que os fabricantes de brinquedos entendem muito bem – e escutam. É o que aconteceu com a Mattel, diante da perda de popularidade da Barbie, traduzida em cifrões. E há mesmo o que se comemorar nisso. Afinal, não se reconhecer nos brinquedos oferecidos pelo mercado pode ter efeitos devastadores na vida de uma criança.

O que pode ser perturbador, porém, é a aceitação tácita de que precisamos de Barbies e outros produtos do gênero. De que não há brinquedos ou imaginação fora da indústria. De que é preciso consumir mercadorias do tipo – e de que a autonomia possível é influenciar aquilo que as corporações vendem, reduzindo toda intervenção ao papel de “consumidores conscientes”. Pode ser perturbador constatar que a insubordinação máxima seja não comprar porque não se reconhece. Mas, caso se reconheça no produto que chega às prateleiras, toda a cadeia simbólica e concreta implicada nesse ato está justificada? Será que se reconhecer num brinquedo é o suficiente para se sentir representado? É a naturalização que pode soar preocupante quando se testemunha ativistas comemorarem a “evolução” da Barbie, aceitando sua existência no quarto das meninas como fato consumado, presença imprescindível, já dada, sem questionar as engrenagens mais ocultas que levam a boneca até a vida das crianças.

Quem precisa da Barbie, afinal, tenha ela a forma, a cor e o cabelo que tiver? A pergunta parece ter silenciado.

Quanto mais realista a boneca, menos imaginação precisa a criança. Sem esquecer que “realista” dá conta de uma realidade determinada, planejada e autorizada por uma equipe de profissionais do marketing. E não da realidade como experiência e conflito. Uma boneca serve justamente para se pensar a vida enquanto se brinca. E brincar não é imitar. Para que, então, serve uma Barbie e o seu “mundo mágico” onde #VocêPodeSerTudoQueQuiser? Para que serve uma Barbie, mesmo que seja a “Barbie da diversidade”

Barbie não é mesmo qualquer boneca. Será interessante observar como seu novo esforço de purificação dos pecados, agora em nome do respeito às diferenças, vai “evoluir” nos próximos anos. Talvez seja importante pensar, para além do primeiro entusiasmo, os significados mais profundos de um produto com a carga simbólica de Barbie converter direitos em publicidade.

Barbie, vale a pena lembrar, ganhou uma réplica no museu de cera de Grévin, em Paris. Esta é uma cena perturbadora, porque as outras representações que lá estão são de pessoas que viveram, que tiveram ossos, carne, sangue e história. E lá se imortalizaram em cera. Quando a boneca vira boneca, completa-se a transmutação: Barbie vira gente. Torna-se viva.

Evolução, a palavra escolhida pela Mattel para nomear a mudança de sua criatura, é mais do que reveladora. Como provou Darwin, as espécies vivas, como os humanos, evoluem. Por milhões de anos, na seleção natural. Barbie, mais uma vez, invoca sua “naturalidade”, ainda que “no mundo mágico”. Barbie, a boneca, seja com um ou quatro corpos, segue inventando a vida de meninas de carne e osso.

 

(Publicado no El País em 1º de fevereiro de 2016)