Lá, eles respeitam o tempo de morrer. Lá, cuidar é mais importante que curar. Lá, todo dia eles respondem: prolongar a vida ou aceitar o fim?
Eliane Brum e Marcelo Min (fotos)
De repente, João Barbosa de Lima começou a rir às gargalhadas. Seu corpo devastado pelo câncer se sacudia todo na cama de hospital. Depois de meses sem um sorriso, o iceberg que comprimia seu riso se desprendia dele. “Essa doença me deixou de um jeito que filho me beijava, neto me beijava, mulher me beijava e eu não conseguia sorrir. Estava trancado por dentro”, diz. “Então, meu filho imitou o Costinha, vejam só, o Costinha, e destrancou meu riso.” Banal assim. Grande assim. Daquele dia em diante, João ria sozinho. Puxava um lenço encarnado para enxugar os olhos. E continuou rindo quando foi para casa. E nem queria rir tanto porque lhe doía por dentro. Mas não conseguia mais segurar. João sabia que morreria, mas tinha descoberto também o que o fazia viver. A família ao redor, esse riso à toa, a mulher de uma vida, a vida vivida.
Essa cena aconteceu numa manhã de sexta-feira na Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. No 12º andar, a Enfermaria é temida. Pelos corredores, sussurram que é “a enfermaria da morte”. Para lá só vão aqueles com escassas chances de cura. Mas quem entra na Enfermaria logo se surpreende. Num lugar onde pessoas morrem, há sempre alguém rindo, contando uma história, pequenas grandes cenas como a que abre esta reportagem. E a tristeza é amenizada pela convicção profunda de quem sofre de não estar sozinho, nem para enfrentar a dor física da doença nem para lidar com a dor psíquica da proximidade da morte.
A Enfermaria de Cuidados Paliativos é um centro de difusão de uma idéia ainda subversiva nos hospitais brasileiros. (Em parte, isso explica o preconceito.) O tratamento ali começa onde a maioria termina. Ao acolher pacientes com a vida abreviada pelo câncer ou por uma doença crônica, defende-se uma prática médica em que cuidar é mais do que curar. “Quando disseram que minha irmã iria para o 12º andar, me aconselharam a não permitir”, diz Tomie Taniyama. “Entrei na Enfermaria apreensiva. Então me encantei. A equipe deu dignidade à minha irmã e conforto para nós, da família.”
O grande embate travado naquele que, desde o século XX, é o altar da morte – o hospital – e pelos seus sacerdotes modernos – os médicos – trata dos limites da prática médica diante do fim da vida. Na visão hegemônica da medicina ocidental, se não existe chance de cura, não há mais o que fazer pelo doente. E, como é difícil aceitar limites, parte dos médicos apela para procedimentos invasivos e dolorosos na tentativa de prolongar a vida a qualquer preço. Em geral, um preço alto, tanto em recursos financeiros quanto em custo pessoal. Ou, algo mais freqüente em hospitais públicos, abandonam os pacientes com a justificativa de que nada mais podem fazer por ele.
Na ótica dos paliativistas – profissionais que acreditam no respeito à hora do fim como parte do respeito à totalidade da vida –, é nesse momento que a equipe de saúde pode fazer mais: garantir uma morte sem dor física, os sintomas controlados, o paciente consciente e rodeado por quem ama. Nem antecipar a morte nem esticar a vida, mas garantir que se viva até o fim com dignidade. Essa nova visão do exercício da medicina tem balançado os alicerces da bilionária indústria da saúde – e põe em xeque a visão contemporânea da morte.
O tratamento batizado de “cuidados paliativos” surgiu na década de 60 do século XX por iniciativa da médica inglesa Cicely Saunders. Em 1967, ela criou o St. Christopher’s Hospice, em Londres, para cuidar de doentes que não podiam ser curados. Cicely acreditava que “o sofrimento só é intolerável se ninguém cuida”. Dizia a seus pacientes: “Quero que você sinta que me importo pelo fato de você ser você, que me importo até o último momento de sua vida e que faremos tudo o que estiver ao nosso alcance, não somente para ajudá-lo a morrer em paz, mas também para você viver até o dia de sua morte”. Cuidados paliativos priorizam a qualidade da vida possível – e não o prolongamento da vida a qualquer preço.
No início dos anos 70, a psiquiatra Elizabeth Kübler-Ross, conhecida por descrever os estágios do processo de morte, levou Cicely e suas idéias para os Estados Unidos, onde o movimento ganhou força. Em 1990, a Organização Mundial da Saúde recomendou a prática dos cuidados paliativos. No Brasil, o Ministério da Saúde prepara-se para publicar uma portaria com diretrizes para esse modelo de assistência. Hoje, há um movimento internacional reivindicando a inclusão dos cuidados paliativos e do tratamento da dor à Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor foi criada em 2002 pela médica de família Maria Goretti Sales Maciel, presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Sexta-feira é o dia da semana em que a equipe completa – médicos, psicóloga, enfermeira, assistente social e, quando o hospital dispõe, um fisioterapeuta – visita os pacientes. É o que a médica Juliana Monteiro de Barros chama de “dia do visitão”. Para fazer esta reportagem, acompanhamos a rotina da Enfermaria nessas sextas-feiras. E os últimos 115 dias de uma paciente (leia a reportagem). O fotógrafo Marcelo Min, que se dedica a fotografar partos, logo constatou: “Nascer e morrer é a mesma coisa”.
Ao acolher doentes no fim da vida, defende-se uma
prática médica em que cuidar é mais do que curar
A MORTE ENVERGONHADA – A história humana pode ser contada pela forma como cada sociedade, em diferentes períodos, lidou com a morte. O historiador francês Philippe Ariès escreveu sobre o tema, primeiro num pequeno livro chamado História da Morte no Ocidente e depois em dois volumes intitulados O Homem Diante da Morte. “A morte no hospital, eriçado de tubos, está prestes a se tornar hoje uma imagem popular mais terrífica que o trespassado ou o esqueleto das retóricas macabras”, afirmou.
O psicanalista Rubem Alves deu um tom confessional à impotência do homem contemporâneo diante da medicalização da morte: “Tenho muito medo de morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte (…) Muitos dos chamados ‘recursos heróicos’ para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da ‘reverência pela vida’. Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: ‘Liberta-me’.”
Começamos a morrer no exato instante em que começamos a viver. E hoje estamos mais mortos do que estávamos ontem. Mas, atualmente, mais que em qualquer outro período histórico, vivemos a morte como uma experiência marginal. Ela se passa, de preferência, oculta dentro do hospital. Nossa dor, quando perdemos alguém, deve ser superada rapidamente, de forma asséptica como um procedimento cirúrgico, sem barulho e sem perturbar os amigos.
Pela lei, se perdemos um parente direto, temos direito a nos ausentar por três dias do trabalho. Quem casa, tem cinco. Quando nasce um filho, a mãe tem licença de 120 dias. Como se chegou à conclusão de que três dias de luto é suficiente? Por que dois é pouco e quatro é demais? Seria o primeiro dia para enterrar o morto, o segundo para limpar os armários e o terceiro para chorar? E depois, a vida continua?
“Hoje a morte e o luto são tratados com o mesmo pudor que os impulsos sexuais há um século”, escreveu o antropólogo britânico Geoffrey Gorer, em 1955, em Pornografia da Morte. A interdição do sexo na era vitoriana, segundo ele, fora substituída pela interdição da morte no século XX. A morte teria se tornado obscena e, portanto, deveria ser escondida. O luto, circunscrito ao âmbito privado, passara a ser tão secreto e individual como a masturbação.
Tornou-se deselegante sofrer em público. Com a desculpa – fornecida pelos outros – de que precisamos de solidão para lidar com a perda, nosso telefone pára de tocar. Se sofremos além do período socialmente aceitável, tornamo-nos um caso patológico. Os amigos nos dão o telefone de um psiquiatra: o que nos falta não é um ombro humano, mas antidepressivo. Se morrer é inevitável, o melhor a fazer é evitar qualquer um que nos obrigue a pensar no assunto. “De algum secreto lugar me vem a força para erguer a xícara, acender o cigarro, até sorrir quando alguém me diz: ‘Você hoje está com a cara ótima’, quando penso se não doeria menos jogar-me de um décimo primeiro andar”, escreveu Lya Luft sobre o luto pelo seu segundo marido, o psicanalista Helio Pellegrino.
A morte só é tema de mesa de bar quando se transforma em A Lição Final, título do livro do professor americano Randy Pausch, morto de câncer pancreático no final de julho. Para ele, morrer era um fracasso. Lutar contra o tumor e não vencê-lo o colocaria num lugar inaceitável para a sociedade americana e para si mesmo: o transformaria num loser (perdedor). Pausch superou esse impasse ao transformar o fim de sua vida num case de sucesso. Ele não pôde vencer o câncer, mas, naquilo que era essencial para ele e para a sociedade em que vive, vencera. Conseguira fazer de sua morte um best-seller internacional. É um sinal do espírito do nosso tempo que a morte comentada por todos seja justamente uma morte “bem-sucedida”, materializada num livro cujos rendimentos são estimados em US$ 6 milhões.
Pausch nos fala de superação, não de impotência. Mas morrer é lidar com dois fatos essenciais da vida humana: impotência e falta de controle. Por isso, talvez, a morte tenha se tornado tão envergonhada. Ela nos lembra daquilo que gostaríamos de esquecer. Em nossa época, vende-se a ilusão de que é possível controlar com pílulas sentimentos tão intangíveis como a melancolia ou a tristeza, prender a juventude à força de bisturis e cosméticos, prescindir da tradição e construir-se a si mesmo sem dever nada a ninguém. A morte nos lembra que há algo de errado nessa equação. Podemos transformar o corpo, mas não evitamos que ele morra. Podemos decidir entre marcas na prateleira, mas não decidimos deixar de morrer. Podemos fazer nossas próprias regras, mas entre elas não está viver para sempre. A morte nos confronta com a questão fundamental do nosso limite.
OS DEUSES DE JALECO – Diante da morte, nossa impotência pode ser mascarada pela onipotência da grande estrela destes tempos: não mais o padre, o pastor ou o xamã, como no passado, mas o médico. Não todos, mas muitos. Nas escolas de medicina, eles aprendem a curar. Não a cuidar. Nessa linha de pensamento, perder um paciente é um fracasso pessoal. “Eu achava que era um tipo de Deus”, diz Márcio Meireles, de 30 anos, que trabalhou na Enfermaria durante um mês. “Acreditava que, levando o paciente para a UTI, resolveria tudo. Descobri que havia coisas que não poderia resolver. Isso me deu uma enorme tranqüilidade para viver. Hoje sou um médico melhor do que era, porque entendo meus limites”.
Ser bom médico, para a maioria, é tentar todos os procedimentos, mesmo os mais invasivos e dolorosos, para prolongar a vida condenada pela doença. Não que médicos professem uma modalidade de sadismo, mas eles acreditam com sinceridade que “tentar tudo” é o que de melhor podem fazer. “Eu disse ao paciente que não se preocupasse, que vamos resolver todos os problemas dele”, disse um residente a Goretti Maciel, certo de que estava fazendo – e dizendo – a coisa certa. “Quanta onipotência. E como você pretende resolver todos os problemas dele?”, questionou a chefe da Enfermaria.
Em outro momento, um residente afirmou: “Acho que como médico não podemos fazer mais nada nesse caso. É só tratamento humanitário”. A médica Juliana Monteiro de Barros reagiu: “E o que é humanitário para você?”. O residente disse: “É garantir que ele vá embora com dignidade, sem dor, sem falta de ar, rodeado por quem ele gosta”. Ela então provocou: “E isso não é ser médico?”.
Juliana desejou ser médica aos 8 anos, quando o pai morreu de infarto. “Eu já era onipotente. Decidi que ninguém mais passaria por isso”, diz. Muitos anos depois, durante a residência, ela conta que perdeu uma paciente num atendimento de emergência. Transtornada pelo sentimento de impotência, jogou o carro contra uma coluna da garagem. O choque a curou da vontade de ser Deus. “Naquela hora acordei”, afirma hoje, aos 36 anos.
O bordão da prática médica tradicional é “lutar”. E lutar é ser potente. “Vamos lutar juntos”, alguns médicos dizem aos pacientes, especialmente aos que têm bons planos de saúde ou podem pagar por tratamentos caros. Nesse contrato, porém, apenas um morre. E apenas um perde a qualidade da vida possível em nome do impossível. Como dizer ao médico para parar no momento em que a morte é iminente e inevitável? Como dizer: “Se o caso do meu filho não tem cura, basta desse tratamento que o deixa sem forças para viver o que tem para viver” ou “Não vamos submeter minha mãe a essa cirurgia porque ela só vai sofrer à toa”. Como desafiar a autoridade médica, que insiste em “tentar tudo”? Como não “tentar tudo” diante da morte de quem amamos? Como resistir ao conforto de colocar todas as decisões entre as mãos do “doutor” numa hora em que a vida pesa sobre nossos ombros como nunca?
“Tentar tudo” pode se tornar sinônimo de tortura médica legalizada. O paciente morre porque não havia cura naquele estágio da doença. Talvez morra dias ou semanas depois do que morreria sem intervenções pesadas, de difícil recuperação. Mas perdeu semanas ou meses de vida com qualidade, em que poderia fazer uma viagem adiada há muito, comer no restaurante preferido, rever os filmes do coração ou apenas beijar quem se ama. Ou não fazer nada, cercado por aqueles de quem se gosta ou sozinho como gosta. Perdeu essa chance em nome de quê? Para quê? Por quê?
Uma frase é sempre repetida nos velórios: “Nunca deixou de lutar. Enfrentou a morte até o fim. Foi um vencedor”. Diante de uma doença incurável, porém, às vezes é preciso parar de lutar. Diante do inevitável, o mais corajoso talvez seja aceitar. Diante da iminência da morte, o que se pode decidir é como viver até o fim.
AS DUAS FACES DA ONIPOTÊNCIA – No início de agosto, o mundo se surpreendeu com a notícia de que o ator Paul Newman decidira morrer em casa. Aos 83 anos, ele estaria com câncer e foi fotografado deixando o hospital. Segundo amigos, passou os últimos dias botando a vida em ordem e distribuindo seus bens. O astro de Hollywood decidiu como vai viver sua morte.
A escritora Susan Sontag fez uma escolha oposta. Autora de livros sobre a doença e a morte, Susan morreu de câncer em 2004, aos 71 anos, sem conseguir aceitar sua condição. Seu médico foi claro: um transplante de medula significaria mais sofrimento e ínfimas chances de sucesso. Susan insistiu. Quando a avisaram que o transplante fracassara, ela estava presa a dezenas de tubos que a mantinham viva. E continuava perguntando o que mais os médicos podiam fazer por ela.
Susan morreu coberta de feridas e hematomas, sem se despedir de ninguém. Seus últimos meses foram descritos pelo filho, David Rieff, em Nadando em um Mar de Morte – Memórias de um Filho. “Eu não podia nem dizer que a amava, porque isso seria interpretado como uma despedida”, diz David. Susan escolheu morrer sem se reconciliar com a idéia de morrer. Mas essa foi sua escolha. Susan era a única que poderia fazê-la.
No quarto da Enfermaria de Cuidados Paliativos, uma mulher estava ali porque também defendera seu direito de escolha. Dona de casa, mãe de nove filhos, cometera duas loucuras em uma existência inteira: a primeira, ao fugir do Ceará aos 16 anos para se casar com o amor da sua vida. A segunda, na véspera, ao fugir de um hospital para proteger o amor de sua vida. Com metástase no cérebro, os médicos decidiram submetê-lo a uma cirurgia. Ela disse “não”. Ele já sofrera o suficiente. Não falava mais. Mas o doutor insistiu em dar a última palavra: “Sim”.
Ela planejou então uma fuga cinematográfica. Primeiro, o filho roubou o prontuário. Na madrugada, ela tirou o marido da cama e o empurrou pelos corredores. Na porta, o filho os esperava com o carro ligado. Saíram cantando pneus. “Eu ficava olhando pra trás, achando que a polícia estava perseguindo a gente”, contou. Encerraram a fuga na porta do hospital onde sua decisão seria respeitada.
A obstinação terapêutica pode ser cruel. Seu avesso é igualmente perverso. Os doentes sem chance de cura são reduzidos a uma sigla: “RHD” – “Regime Higiene-Dietético”. Ou, como se diz nos hospitais, “banho e comida”. Na maioria dos hospitais públicos, falta dinheiro para arcar com o custo – sempre alto – de procedimentos que envolvem tecnologia de ponta e medicamentos importados. Os recursos financeiros e humanos – invariavelmente escassos – são concentrados naqueles com possibilidade concreta de cura. Os outros são despachados de volta para casa, sem assistência, ou deixados num canto, sem que a equipe gaste tempo com eles. A lógica é a mesma: se não há como curar, então a medicina nada pode fazer.
Num quarto da Enfermaria, a garota conta que já esteve no inferno – condenada pelo sistema de saúde, pela ideologia da cura. Aos 51 anos, sua sogra tornou-se uma “RHD”. O hospital, ligado a uma renomada faculdade de medicina, concluiu que nada mais poderia ser feito por ela. Coube à nora cuidá-la em casa, sem apoio. Por três anos a garota viveu, hora após hora, diante do corpo da sogra. A mulher tinha uma fístula na axila. Na realidade, um buraco. Através dele, era possível ver as costelas, o pulmão e o reflexo da batida do coração. Todo dia ela assistia à sogra apodrecendo por dentro, viva.
À medida que o buraco aumentava, fazer os curativos ia se tornando mais difícil. “As moscas não a deixavam em paz, eu passava a noite abanando ela”, contou. “Quando lavava sua roupas, encontrava ovos e larvas de bicho.” Quando a água que a doente bebia começou a entrar pela boca e sair pelo buraco, ela e o marido a colocaram no carro e rodaram por vários hospitais. Só foram acolhidos na Enfermaria. A realidade do corpo da paciente era tão aterradora que Kathia Camargo, uma enfermeira experiente, sofria para fazer os curativos.
ESCOLHA ATÉ O FIM – Diante da impossibilidade de curar, o que um médico pode fazer é cuidar. E cuidar não é pouco. Nem é fácil. “É claro que os pacientes gostariam que fôssemos seus deuses particulares”, diz Goretti Maciel. “Ser paliativista é aprender a lidar com a impotência, com a certeza de que jamais seremos deuses ou capazes de aliviar todo o sofrimento. Podemos apenas ser humanos e compartilhar o sofrimento, o que é mais verdadeiro”.
Se há algo que desafina a voz de bossa nova de Goretti é achar que cuidados paliativos é “aquele povo que só pega na mão”. Ela começou a montar o serviço no Hospital do Servidor Público em 2000 e tornou-se uma cliente contumaz das companhias aéreas ao atravessar o país em sua cruzada pela causa. “Fazer cuidados paliativos não é só pegar na mão do paciente e conversar. Tem de estudar muito, o tempo todo, porque tratar da dor e dos sintomas é uma arquitetura delicada”, diz. “Olhamos para a pessoa inteira, e não para uma parte do seu corpo. Precisamos entender não só sua situação clínica, mas suas emoções, suas dificuldades. É preciso entender sua história para ajudá-la a viver a vida da melhor forma possível até o fim”.
Na Enfermaria não há espaço para frases como: “Me entrego em suas mãos, doutor”. Como viver a morte é uma decisão do paciente, é ele o responsável por sua vida até o fim – ou sua família, se já não puder decidir. Um engenheiro de 46 anos, pai de três filhos adolescentes, foi protagonista de um momento de grande dor e beleza. O câncer o levou à Enfermaria. E, lá, a equipe chegou a um impasse: ele morreria em alguns dias, com as pernas, ou teria pouco mais de um mês de vida sem elas. Toda a Enfermaria chorou por ele, com ele. Atravessaram a madrugada conversando, ele e a mulher. Na manhã seguinte, ele anunciou sua decisão: amputaria as pernas. “Toda minha vida, matei um leão por dia”, ele disse. “O de hoje são as minhas pernas. Depois vejo como resolvo o outro”. Dias depois da cirurgia, ele disputava uma corrida de cadeira de rodas com outro paciente no corredor. Morreu dois meses e uma semana mais tarde, feliz por cada dia vivido.
É preciso improvisar diante dos limites impostos pela doença. Por semanas, a psicóloga Luana Viscardi, de 30 anos, teve de “escutar” um paciente que já não podia falar, mas queria contar sua história. Luana leu seus lábios, acolheu sua torrente silenciosa e conseguiu ajudar uma pessoa sem voz, mas cheia de palavras. “Às vezes os pacientes imaginam que eu estou lá para convencê-los de que morrer é bom”, diz. “Meu trabalho é ouvir e atender à demanda da vida. É não tratar como morte o que é vida nem como coisa o que é gente.”
Depois de integrar a equipe, Luana decidiu propor aos pais e irmãos uma terapia de família. “Achei que havia questões que precisávamos resolver entre nós, e foi transformador”, afirma. “Na Enfermaria, a morte não pertence ao futuro. É agora. Em mim esse contato repercutiu como vontade de cuidar mais dos momentos cotidianos, construir relações mais positivas, ter um almoço de família gostoso”.
Para cuidar na morte, é preciso compreender a singularidade da vida de cada um. Não basta aplicar o manual. O que é alívio para um paciente pode ser uma tortura para outro. A falta de apetite quando a vida chega perto do fim é sempre um drama para o doente e para a família. Em geral, naquele momento comer não fará diferença. Mas não é fácil aceitar. “Meu marido quase não come mais”, disse a mulher a Juliana. “Não seria bom botar uma sonda nele? Eu entendo do meu marido, mas não entendo do organismo dele.” Sentada num banquinho, a médica responde, suave: “O organismo naquela cama é o seu marido. Nesse momento, uma sonda não vai trazer benefício, só sofrimento. Mas vamos decidir junto com a senhora. E vamos apoiá-la.” Ele morreu alguns dias depois. Sem sonda.
Para outra paciente, comer era o que fazia sentido na vida. Mas ela estava num estágio em que vomitava tudo o que ingeria. Mesmo assim, não queria ser alimentada por uma sonda. “Comer, para mim, é o sabor da vida”, disse à médica Veruska Hatanaka, de 34 anos. Mesmo vomitando, para ela valia a pena. A equipe respeitou sua vontade. Ela comeu e vomitou até morrer. Viveu.
Veruska engravidou duas vezes na Enfermaria. Tinha encontros quase diários com a morte enquanto a vida crescia dentro dela. Perdeu seu primeiro bebê. E também viveu seu luto ali. “Acho que esse luto me aproximou do sofrimento dos pacientes, me tornou mais sensível”, diz. Na segunda gestação, algumas vezes seu bebê moveu-se dentro dela enquanto um paciente exalava o último suspiro. “E isso também me tornou mais sensível. Para mim, o processo da morte é parte do processo da vida. São dois começos”, diz.
Na Enfermaria, a morte é um parto do lado avesso. E as médicas são parteiras que, em vez de esperar o tempo de nascer, respeitam o tempo de morrer. Yolanda Kovalke de Almeida compreendeu sua morte como um novo nascimento. Ela tinha metástases pelo corpo inteiro, passara a vida cuidando de todos, para ela era difícil deixar-se cuidar. Numa manhã sua revolta se foi. “Eu me transformei aqui na Enfermaria”, disse. “Estou doente, mas não sou a doença. Estou viva. Quero viver enquanto estiver viva. Essa é a minha cura. Me libertei.” Tira os óculos, enxuga as lágrimas, abre um sorriso lindo. E arrisca: “Você acha que eu posso tomar uma cervejinha?”.
UMA EQUIPE ESPECIAL – Quem entra num dos nove apartamentos da Enfermaria pode sentir um insólito cheiro de morango. Parece fora de lugar, ninguém pensa que o fim da vida combina com frutas tão exuberantes. O cheiro vem da cabeça do paciente. E é xampu de motel. A regra foi criada pelas enfermeiras e auxiliares: quem namorar tem de trazer o kit xampu, condicionador e pente para os pacientes. Assim, lá às vezes a morte tem um cheiro afrodisíaco.
Cada apartamento é individual e tem duas camas, para que o doente nunca fique sozinho e o acompanhante não precise se aboletar num daqueles sofazinhos que acabam com a coluna. Às 8h30 de uma manhã, pela janelinha da porta, era possível ver o casal dormindo na mesma cama – de conchinha. Uma paciente pergunta se pode fazer sexo usando oxigênio. Outra, sempre tão recatada em vida, agora deu para escandalizar a família arrancando toda a roupa de uma vez. E outra ainda ri de si mesma: apaixonara-se pelo residente. “Converso com ele e esqueço que estou sem dentadura. Lembro de mim como era antes. E, quando me vejo no espelho, até me assusto.”
As regras são mínimas. A principal é despachar o paciente para casa assim que for possível. As passagens pelo hospital devem ser rápidas, apenas para tratar crises que exigem maior estrutura. Para as demais intercorrências há uma equipe de visita domiciliar comandada por Rosângela Martins Conceição, de 45 anos, uma professora de História que ao cuidar do câncer da avó descobriu sua vocação de enfermeira. “Quando me tornei enfermeira, eu sabia que era o meu lugar no mundo. Mas somos ensinados a ver as pessoas por partes do corpo, por doenças. E acabamos achando que a sensibilidade é incompatível com a razão”, diz. “Recuperei minha sensibilidade aqui. E descobri que sem ela não dá para enxergar o paciente nem compreender o que ele precisa”.
Cada visita dura horas. Além dos procedimentos técnicos, Rosângela e a auxiliar ouvem as últimas histórias, suavizam angústias e provam um bolo feito para a ocasião. São tantas as comilanças que a equipe publicou um livro só com receitas dos pacientes. Esta é outra característica da Enfermaria: ela engorda.
Maria de Cleide, Regina, Zilda, Neucilene, Edineia, Mary… Elas são 18 auxiliares de enfermagem. Ficam dia e noite ao lado dos pacientes ajudando a urinar e defecar, dando banho, limpando sangue e vômito, escutando. Isso dá a elas um olhar muito particular sobre a vida e também sobre a morte. “Antes eu me preocupava se estava gorda, se minha mama estava caída”, diz Maria de Cleide Batista, de 44 anos. “Depois que vim pra cá, agradeço a Deus por fazer xixi e por respirar bem”.
As auxiliares formam uma pequena torcida organizada. Quando alguém vai buscar a razão de tanto barulho, a explicação é sempre ótima: “Seu fulano conseguiu fazer cocô! Foi tão bom pra ele”. No início, Tia Celeste parece ser uma paciente muito popular. “Tia Celeste passou por aqui”, se escuta de uma e outra. Depois que Tia Celeste foi e voltou tantas vezes sem apresentação formal, a pergunta torna-se inevitável. “Na Enfermaria as pessoas vão se purificando, enxergando coisas que não viam. Então acho que isso é um pouco celestial para elas”, diz Regina Célia de Jesus, de 30 anos. “Aí, para os outros setores do hospital é morte mesmo, mas aqui é Tia Celeste”.
Diante do diagnóstico, a paciente chorou muito. “O que faço da minha vida?”, pergunta a Regina. “Viva”, diz Regina. A paciente retruca: “Mas uma vida deste jeito?”. A auxiliar responde: “Enquanto há respiro, tem vida. Faça tudo o que tem vontade, vá a lugares que não pôde ir”. A paciente não se convence: “Mas aqui na cama?”. Regina gesticula: “Tem alguma coisa inesquecível que você deseje comer?”. A paciente nem pensa: “Pão com manteiga na chapa”. Regina dá um grito: “E eu que pensei que você ia querer jantar no Fasano!”. E desce 12 andares para buscar um pão com manteiga na chapa na lanchonete do hospital. A mulher come chorando.
“Estou com muito medo desse seu setor. Disseram que minha mãe veio pra cá para morrer”, diz a filha de uma paciente. Regina reage: “Não é assim”. A acompanhante é agressiva : “Ah, vai curar a minha mãe?”. A auxiliar responde: “Não, não vamos curar. Vamos dar qualidade de vida a ela”. A mulher insiste: “E o que é qualidade de vida?”. Regina diz: “Qualidade de vida é sua mãe conseguir respirar e falar bom dia sem precisar do cateter. É sua mãe não ter medo de falar porque vai ficar sem ar. É sua mãe poder abraçar você sem sentir dor”. A filha finalmente compreende: “Então minha mãe está no lugar certo. Quero muito um abraço”.
Cuidar é escutar a demanda da vida. É não tratar
como morte o que é vida e como coisa o que é gente
JANELAS DA ALMA – Cada leito é uma janela para o mundo de alguém. Perto da morte, a vida fica mais nua. E as contradições se explicitam. Morre-se como se vive, só que de modo mais radical. Reduzido ao essencial, um paciente tinha uma força que ninguém sabia explicar. Ergueu-se sobre si mesmo, levantou um braço esquálido e, sem poder falar, disse chega. O câncer tinha lhe roubado as cordas vocais, mas não conseguira lhe arrancar a raiva. Ele morreu sem um som, mas com fúria. Estava nu. Exceto por um detalhe. No dedo, um anel de doutor. Por toda a vida ele havia sido pedreiro. A presença do anel, mais do que a falta das roupas, era o que o deixava mais nu.
Apodrecer por dentro pode ser uma bênção. Uma doente tem um tumor na coxa esquerda. Apodrece por fora. Uma flor de carne que a cada dia engole um pouco mais dela. Seu rosto está em paz. Logo o paradoxo se desmancha. Pouco antes de descobrir o câncer, ela ficou cega. Foi o que a salvou da tragédia maior: a visão de si mesma. Por ter sido jogada no escuro, ela se manteve na claridade até o fim.
“Você viu o exame, doutora?” É o jeito que uma paciente encontra para perguntar se vai morrer. A médica pega sua mão, acaricia seus cabelos. Diz: “O que você tem está espalhado pelo seu corpo. Mas a gente vai estar aqui, com você. Tirando sua dor, ajudando você, cuidando de você”. Os olhos dela erram pelo quadrilátero do quarto, por um longo instante não se fixam em nada. Então ela encontra algo sólido. Ancora seu olhar nos olhos da médica. Aceita. Ela diz: “Muito obrigada”.
(Publicado na Revista Época em 14/08/2008)
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