Memória e inquietações movem a segunda edição de Repórter. Criada em 2011, a série do Itaú Cultural foi idealizada pela jornalista Eliane Brum para documentar a experiência dos grandes repórteres brasileiros, registrando-a e tornando-a disponível na internet, assim como refletir sobre esse momento de mudanças profundas da imprensa. A reportagem é a narrativa da história em movimento. Seu percurso e suas contradições também revelam o seu tempo. Assim, Repórter tem a ambição de registrar a memória de quem conta a história do hoje, transformando-a em documento histórico para a consulta das gerações futuras. E, ao mesmo tempo, a ousadia de também construir memória, ao pensar sobre os desafios de fazer reportagem nesta época, na qual jovens jornalistas precisam encontrar um modo de fazer seu trabalho no contexto de um modelo de negócio em crise, assim como repórteres experientes confrontam-se com o imperativo de criar alternativas para continuar narrando o presente com toda a complexidade, as nuances e o respeito à alteridade que a reportagem exige.
José Hamilton Ribeiro: 60 anos de reportagem
Nesta segunda edição, que acontecerá em 2 de setembro, no auditório do Itaú Cultural, em São Paulo, o homenageado será o repórter José Hamilton Ribeiro. Aos 80 anos e ainda na ativa, ele é um dos maiores repórteres da história da imprensa brasileira. Em 60 anos de profissão, o paulista Zé Hamilton contou vários Brasis e vários momentos desses tantos países que convivem no mesmo território. Trabalhou em diversas publicações impressas, entre elas a lendária revista Realidade, e também na rádio e na TV. Tem 15 livros publicados e é vencedor de sete prêmios Esso.
Em 1968, Zé Hamilton testemunhou a Guerra do Vietnã. Nessa cobertura, perdeu a parte inferior da perna esquerda, na explosão de uma mina vietcong. Assim ele descreveu o momento: “De repente me senti no ar. Quando me dei conta, estava sentado no chão envolto em fumaça. Procurei meu intérprete, um americano de origem mexicana, e não o vi. Pensei que o rapaz tivesse morrido. Só aí senti que minha perna esquerda puxava. Olhei e não havia mais o pé. Só alguns minutos depois começou a doer”.
Tão logo voltou a si, depois da cirurgia de amputação, comentou, bem no seu estilo: “Este meu pé esquerdo sempre me deu problemas. Quando criança, tive nele uma tuberculose óssea. Não me fará muita falta. Pensando bem, tive sorte. No mesmo local em que fui e pisei a mina, pouco antes dois soldados morreram e um terceiro perdeu ambas as pernas e um braço”. Este é Zé Hamilton – ou “Zé Parmito”, como chamam os amigos reporteros mais íntimos. Ao ligar para ele para combinar essa homenagem, fomos encontrá-lo em campo, no Pantanal, reporteando para o programa Globo Rural, onde é repórter especial há mais de 30 anos.
Na década de 50, Zé Hamilton foi impedido de se formar no curso de jornalismo da Cásper Líbero, por ter liderado uma greve. Começou a trabalhar como estagiário na Rádio Bandeirantes. Nos corredores, encontrava-se com artistas da música caipira, com quem conversava, ainda sem perceber a sua importância para a arte e também para a sua vida de repórter. Ainda em 2015, Zé Hamilton vai lançar a reedição revista e ampliada de “Música Caipira: as 270 maiores modas” (Realejo), desta vez acompanhada de um DVD.
Em José Hamilton Ribeiro: 60 anos de reportagem, quatro grandes repórteres foram convidados para entrevistar o grande repórter: Clóvis Rossi, Ricardo Kotscho, Lúcio Flávio Pinto e Carlos Moraes. A entrevista encerrará o evento, a partir das 20 horas. A mediação será da repórter e curadora da série, Eliane Brum.
Lúcio Flávio Pinto: o repórter que inventou um Jornal Pessoal
A abertura de Repórter, às 15h, é também um encontro imperdível. Em O repórter que inventou um Jornal Pessoal, o entrevistado será Lúcio Flávio Pinto, jornalista paraense que se tornou a principal referência na cobertura da Amazônia. Depois de trabalhar em grandes veículos nacionais, incluindo 18 anos no jornal O Estado de S. Paulo, Lúcio Flávio criou, na década de 80, o seu Jornal Pessoal. Em setembro de 2015, o JP completará 28 anos de existência de forma totalmente independente: sem anunciantes publicitários. Com tiragem de 2 mil exemplares, o jornal tem 16 páginas, é quinzenal e vendido a R$ 5 em bancas e livrarias de Belém do Pará e região.
Nas palavras de Lúcio Flávio Pinto: “O objetivo é combater o ‘destino manifesto’ que se impõe à região, de ser colônia. Acredito com firmeza que a história não está escrita nas estrelas, restando-nos contemplá-las, à distância, como acidentes da natureza. Creio que podemos escrever também a história e, nessa escrita, sair da trilha dos colonizadores e da camisa de força em que nos colocaram os dominadores”.
Apenas parte do acervo do Jornal Pessoal está digitalizada na internet. Para Lúcio Flávio, o compromisso maior é manter o jornal vivo e materializado, arriscando-se ao contato íntimo do toque: “A versão impressa atesta o compromisso do jornal com o desafio de se manter visível, acessível no mundo real e exposto democraticamente nas ruas”.
Pela contundência de suas reportagens e pela independência de sua atuação, Lúcio Flávio ganhou vários prêmios nacionais e internacionais. Também escreveu 21 livros, todos sobre a Amazônia. As mesmas razões que o fizeram ser reconhecido no jornalismo, tornaram-no alvo de 33 processos judiciais e até de agressões físicas. O Jornal Pessoal já foi tema de matérias no Washington Post, Le Monde, The New York Times, Corriere della Sera, The Independent, entre outros. Para entrevistá-lo, foram convidados dois jornalistas com experiência reconhecida na cobertura amazônica e socioambiental: Leonêncio Nossa, do Estadão, e Paulina Chamorro, das rádios Eldorado e Estadão. A mediação será de Claudiney Ferreira e Eliane Brum.
Narrativas de Transição
Em seguida, a partir das 17h, será a vez do segundo encontro do dia: Narrativas de Transição. Neste painel, cinco jornalistas, com diferentes trajetórias, contarão como estão se inventando e reinventando de forma independente, neste momento de profunda transformação da imprensa. Bruno Paes Manso (Ponte), Laura Capriglione (Jornalistas Livres), Bruno Torturra (Fluxo), Kátia Brasil (Amazônia Real) e Rene Silva (Voz da Comunidade).
Qual é o lugar e a importância da reportagem nesta época histórica? Como continuar sendo repórter e contar o seu tempo no momento em que as redações da “grande imprensa” encolhem e, em alguns casos, a escolha é por demitir os repórteres mais experientes e bem pagos? Como manter a reportagem viva numa realidade em que as assessorias de imprensa são maiores do que a maioria das redações da “imprensa tradicional” e, muitas vezes, os releases são publicados como se notícia fossem? Como garantir financiamento para a reportagem sem comprometer a independência que assegura a credibilidade da história contada? Quais são os limites entre ativismo e reportagem? É possível construir alternativas para o jornalismo fora das redações convencionais?
Estas e várias outras são algumas das interrogações enfrentadas nestas narrativas de transição. Mas sempre contadas a partir do ponto de vista pessoal, que revela a singularidade de cada um dos repórteres em sua busca por se manter repórter. São depoimentos com duração de 15 minutos cada um, narrados de forma transparente, sem omitir nem as dúvidas nem as inseguranças nem o espanto, muito menos as contradições.
Na primeira edição, em 2011, a série Repórter homenageou o jornalista Audálio Dantas e teve a participação de Ricardo Kotscho, José Hamilton Ribeiro, Leonardo Sakamoto (Repórter Brasil), Natalia Viana (Agência Pública) e Rosângela Ramos (Boca de Rua). A íntegra das entrevistas pode ser assistida aqui.
Em 2016, já estão programados dois novos encontros para seguir registrando a memória dos grandes repórteres e debatendo os caminhos da reportagem neste novo mundo aberto pela internet e pela multiplicação das narrativas. A reportagem só é viva quando em movimento. É este movimento que a série Repórter busca documentar.
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Serviço: a segunda edição da série Repórter acontecerá em 2 de setembro, das 15 às 22 horas, no auditório do Itaú Cultural (Av. Paulista, 149 – Estação Brigadeiro do metrô), em São Paulo. O evento é aberto ao público. Basta retirar a senha, com 30 minutos de antecedência, antes de cada um dos três encontros. Haverá transmissão ao vivo pela internet. E tradução em LIBRAS.