A lesma

Ela estava na parede do quintal do meu apartamento. Não um quintal exatamente. O meu é um quadradinho de cimento com uma listra de grama raquítica no térreo de um edifício decadente. O sol bate ali apenas uma vez por dia, no muro encardido. Eu me encosto ao cimento frio e o sol mal esbarra em mim. Foi assim que a vi na outra extremidade, nas sombras. Molenga, escura, com uma carapaça que eu perfuraria com a unha.

No dia seguinte, na mesma hora, eu corri atrás do sol e lá estava ela. Havia avançado apenas uns poucos centímetros. No dia seguinte, a mesma busca e ela apenas uns centímetros mais. Esqueci o sol. Estava obcecada por ela. Quanto tempo vive uma lesma? Pesquisei. Nove meses. Uma gestação humana. E a cada dia aquela andava apenas alguns centímetros. A vida toda e ela nunca sairia do meu quadrado de quintal. Senti a claustrofobia que ela não sentia. E naquele dia, ao sair, demorei mais a voltar para casa.

Agora eu a espiava à noite, arrastando-se sobre o próprio ventre. Deixando como marca no mundo apenas uma gosma. Que marca era eu? Quem me olhasse veria uma mulher de meia-idade, nem gorda nem magra, arrastando a barriga no chão. Como a lesma, eu queria me habitar. Ser minha própria casa. Mas tinha medo que me furassem com a unha. E mandei botar mais uma tranca na porta.

Fui possuída pela compulsão de jogar sal sobre o corpo dela. Queria ferir a lesma. Arrancá-la de si. De mim. Libertá-la. A mim. Apenas um pouquinho. Uma experiência só. Joguei uma pitadinha. E algo nela se desvaneceu. Não devo mentir. Apreciei a sensação. Mas naquela noite ela me apareceu gigante no teto do quarto, suas antenas acusando-me.
Convenci-me que era um sonho. Um pesadelo. Voltei a ela dois centímetros depois. Será que ela teria filhotes? As lesmas são hermafroditas, completas. Mesmo assim, desafiam o mito de Platão e copulam com a parte avessa de uma igual. Escolhem necessitar-se. E eu tão faltante, incompleta de todo, não encontro. Fiquei com raiva dos bebês dela que eu não teria. E naquele dia botei mais um naco de sal, um quase nada, sobre o que eu julgava ser seu perfeito órgão reprodutivo.

Chega. Era eu a banalidade do mal. Agora eu queria que ela vivesse. Passei a colocar plantas diferentes no seu caminho. Insetos que não a ameaçavam. Construí para ela uma existência marcada pela novidade do mundo. A cada dia eu lhe preparava uma surpresa. Uma cor, um gosto, um cheiro. E sons que eu não tinha certeza de que ela escutava. A lesma do meu quintal conheceu a obra completa de Ludwig Van Beethoven e moveu o ventre sobre o concreto no ritmo de João Gilberto. Eu achava que a Bossa Nova combinava com ela.

Numa manhã acordei e ela não estava lá. Desnorteada, pela primeira vez bati na porta da vizinha de muro. Da dona do outro apartamento térreo. Deixei cair uma camiseta no seu lado, menti. Vasculhei o quintal da mulher que já cogitava chamar o zelador, assustada ao me ver mergulhada em seus baldes à procura de uma roupa que não existia. Nada.

Ela não poderia voar. Será que algum gato a tinha devorado? Um passarinho? Mas não havia passarinhos. Apenas nós éramos vivas ali. Talvez eu a tivesse conhecido no nono mês e ela sucumbira de morte natural. Será que as lesmas desencarnavam? Lambi seu rastro no muro em busca de sua alma. Seu gosto em mim me pertencia.

Deitei para não dormir. E para não levantar da cama. Não mais comia nem tentava capturar o sol. Agora, era eu que andava por centímetros. Lúcida demais para ser, eu apenas estava. A lesma que havia sido toda a novidade do meu mundo partira. E agora, ao olhar meu quadrado de quintal, eu não sabia o que fazer com as décadas que me restavam. Ninguém soube, porque não escrevi nenhum bilhete. Mas este foi o meu último pensamento.