Acordei com a personagem gritando na minha cabeça. Deixa eu sair, ela esmurrava minha alma com os punhos. Em mim, a alma fica no cérebro e me parece que poderia viver se um dia tiver o destino de Maria Antonieta. A história está errada! Você não entendeu nada, ela gritava. Me aconcheguei ao travesseiro na tentativa de capturar o sono que escapava pela fronha. Mas ela continuava a berrar. Desisti de segurar o sono que agora saltava pela janela. Gritei de volta. Quem manda na história sou eu! E agora você vai ficar calada até o ponto final do último capítulo, entendeu? Senti a mordida e um gosto de sangue na boca.
Maldita. Por que resolvi escrever ficção? O sono já atravessava o portão e desaparecia na estrada. Me arrastei até o banheiro e lavei o rosto com água fria. Escovei os dentes com a pasta branqueadora. Agora minha boca tinha gosto de menta. Me olhei no espelho e vi a espinha bem no nariz. TPM. Estou com TPM. Me preparei para apertar a bola de pus. Acabaria com a espinha pela raiz.
Vi uma coisa que não era eu nem a espinha. O que era aquilo? Um pêlo encravado? Busquei os óculos de vista cansada. Meu Deus! Era uma perna. A personagem me chutava no nariz. E era forte apesar do pouco tamanho. Peguei as pernas compridas com a pinça e as enfiei para dentro com violência. Inspirei ruidosamente e pude ouvir um grito longínquo. Pronto.
Tentei me concentrar para escrever, mas ela continuava gritando parágrafos que eu me recusava a materializar na tela do computador. No final da manhã a enxaqueca me fazia enxergar as letras dobradas. E ela continuava falando e falando e falando. O Deus deste mundo sou eu!!!, comecei a berrar, e a faxineira correu para ver o que estava acontecendo. Desculpa, essa enxaqueca está me matando. A faxineira fez o sinal da cruz. Eu também fiz o sinal da cruz.
No meio da tarde senti a pontada no rim. Desgraçada. Ela não vai me deixar em paz nunca. E eu nem a tinha criado. Não sei de onde saiu aquela criatura dos infernos. Mas eu não me renderia, ah, não. Psst, ressoou na minha cabeça. Ahn? Psst, aqui. Estou escondida para que ela não me veja. Reconheci a garota magricela, com sardas e dentes tortos. Desta personagem eu gostava. Ela cochichou no meu ouvido. Sim, sim, era uma boa idéia. Menina esperta, esta era cria minha.
Peguei uma cerveja da geladeira e a tomei inteira sem parar. Cinco minutos depois estava doida para ir ao banheiro. Segurei até a bexiga latejar. E então urinei com gosto. Ouvi com prazer o grito de terror. Lá no fundo do vaso, entre urina e água sanitária, estava ela com suas pernas compridas e suas varizes. Pronto. Você não vai falar mais em lugar nenhum, sua megera. Quem manda aqui sou eu! Puxei a descarga sem dó.
Quando de novo aconcheguei minha cabeça no travesseiro aspirando a paz do silêncio, o garfo atravessou meu olho. De onde veio o golpe? Ela pulou no meu peito. A menina esperta que eu gostava. Sua estúpida! Agora eu vou reinar sozinha neste mundo. E cravou o garfo no meu outro olho, agora de fora para dentro. Era isso então que a outra tentara me avisar. E eu tinha confundido tudo.
Desde então, a cada dia a garota de sardas mastiga uma parte de mim com seus dentes tortos. Já não tenho olhos para enxergar nem pernas para fugir. Mas ainda tenho ouvidos para escutar o barulho que ela faz ao escrever meu romance no computador.