Por acaso eu olho pela janela. Olho para o nada. Na verdade, olho para dentro. Estou distraída no meu dentro. Meu cérebro registra um movimento, mas eu não chego a ver. Só compreendo quando escuto o barulho. Mas nem sei se houve um barulho. Percebo que algo caiu da sacada do prédio diante de mim. Lembro de tirar o vaso da janela dos fundos. Sempre que chove — quase todo dia nesta época em São Paulo — penso que preciso tirar o vaso da beirada de janela antes que caia sobre alguém no térreo com o peso de um elefante. Não é um vaso lá embaixo na calçada. Busco meus óculos. Sou míope, mas como todo mundo não encontro os óculos quando preciso deles. Descubro-o largado no sofá azul. Enxergo. É um corpo. Uma pessoa. Algo no jeito do corpo me leva a intuir que é uma mulher.
Só percebo que desci os oito andares pelas escadas quando já estou lá embaixo. “Ela se atirou”, uma vizinha diz. Morreu? Ela morreu? Eu pergunto e fico repetindo a pergunta estúpida. “Seis andares”, diz o vizinho de chapéu. E agora? Eu pergunto. Estúpida. “Agora o quê?”. O velhinho que toma sol se aproxima. “Quem se mata é porque não tem foco na vida.” Eu me preparo para dizer que tem de ter muita coragem para se suicidar. Mas olho para ele quando estou abrindo a boca e vejo o quanto ele tem medo de morrer agora que a vida é contada em meses. O quanto aquela vida jovem estatelada no chão ofende o seu medo de morrer. E me calo. A vizinha do cachorro com focinho de tomada conta que aconteceu no nosso prédio também, antes de eu vir morar nele. “O rapaz não era muito certo, sabe. Problemático.” Sim, eu quero dizer. Você não é problemática e está salva. Mas apenas aquiesço com a cabeça porque sei que ela está fazendo o melhor possível enquanto finge carregar o cachorro que a carrega.
Espio com medo do sangue. Estremeço. A moça tinha um brinco de pérola na orelha. Em algum momento antes de saltar no vazio ela colocou um brinco de pérola. Em algum momento, como todos nós a cada dia, ela tentou. Me sento no banco do jardim enquanto os bombeiros chegam. Depois a polícia. As dezenas de janelas ao meu redor que meus olhos abarcam me enchem de medo. As vidas todas que não sei. Refaço meus passos naquele dia. Minhas horas povoadas de nada que é tudo ganham outro sentido agora que tenho a consciência de que logo ali uma mulher sentia uma dor maior que a vida. Será que enquanto eu cozinhava o arroz integral ela pensava em se atirar pela janela? Quando eu escrevi na lista do supermercado que era para comprar cebola média e não grande ela espiava para baixo? No momento em que eu discutia com a moça do cartão de crédito que repetia “Lamento, senhora, mas não posso fazer nada” ela já tinha um pé no ar?
Entre mim e ela apenas alguns passos que nunca foram dados. Podemos ter roçado o braço uma na outra quando eu descia para comprar sorvete no japonês da esquina. Talvez fosse dela a bicicleta na sacada. Quem sabe foi ela que gritou bêbada na madrugada do ano-novo. Eu sei que esses passos nunca serão dados. Que entre mim e todos os outros será sempre perto de mais e longe demais.
“Venha, suba com a gente no elevador. Essas coisas acontecem”, chama o vizinho do chapéu. Ela se foi levando com ela todos os cotidianos que também são nossos. E é só um soluço na cidade. Mas eu subo porque preciso continuar subindo para não saltar. A vizinha do cachorro com focinho de tomada e o cachorro com focinho de tomada também sobem. Ela pergunta se eu preciso de algum produto da Natura. Eu não preciso. O vizinho do chapéu pede que eu espie dentro da caixa que ele carrega. Eu espio. É um bolo de cenoura com cobertura de chocolate. “Você quer um pedaço de bolo?” Não, obrigada. O elevador para. É a minha vez de desembarcar. E em vez de saltar eu desembarco.
Me despeço e percebo que estou feliz com aqueles minutos banais compartilhados naquele retângulo de metal, enquanto viajamos rumo ao nosso destino determinado por um número na porta. Ela também tinha um número na porta. Entro no meu apartamento e corro para o vaso na janela. A orquídea está perto de florescer. A orquídea agora é um quase.
Por que ela saltou? Ela não tomou duas cartelas de comprimidos tarja preta nem deu um tiro na boca nem cortou os pulsos entre paredes que nos mantinham a salvo da dor dela. Não, ela escolheu romper a barreira entre ela e o resto de nós. Ela saltou. Será que saltar foi uma tentativa não de morrer, mas de viver? A dor do mundo de dentro era tão avassaladora que ela saltou para fora. Saltou de dentro de si.
Eu me abraço ao vaso. E fico um tempão assim. Salvei a orquídea.