No dia seguinte acordou com um pouco de febre, uma melancolia de inverno. Estava lá. E ela sabia. De algum modo, sempre soube. Desde o primeiro segundo, soube. Mas preferia não saber. Enquanto pudesse, faria de conta que não. Esconderia dentro dela o apocalipse.
Em suas entranhas, algo estava em curso. Algo que não era ela. Um algo que havia sido colocado ali, à sua revelia, pela violência que durante muitos anos ela esqueceria.
Quando as luzes da casa se apagavam, e deitada na cama ela era obrigada a suportar o silêncio do mundo, ouvia o barulho áspero da pele a se espichar sobre os ossos, seu corpo tão magro ganhar contornos que não pediu. E o ruído da coisa dentro dela. Que a fazia tremer inteira. E a coisa que não era ela tremia com ela.
Só dormia quando estava exausta demais para existir acordada. E ainda que dormisse, sua alma mais profunda sabia que dentro dela havia olhos abertos.
Primeiro, foi um movimento sutil. Como algo que quase poderia não ter acontecido. Algo que foi aumentando até tornar impossível o faz de conta. A coisa se mexia dentro dela. Comia sua comida, bebia sua bebida, sugava seu sangue. A coisa alimentava-se dela. Misturada aos fluidos dela, confundia-se com ela. E a golpeava.
A coisa pedia passagem.
E agora as noites eram mais escuras e aterrorizantes. Quando apagava a luz sabia que não estava só. Sua barriga monstruosa, cada vez maior, se movia com a coisa. Que respirava dentro dela. Até um curto esquecimento.
Acordava sobressaltada, ouvindo um coração que não era o seu.
Por mais que vomitasse, a coisa não estava lá, no meio da gosma no vaso do banheiro. Pensou em enfiar uma faca na barriga. Que atravessasse sua carne e alcançasse os confins de si. Da coisa. Que arrancasse o bicho dentro. Para que ela pudesse morrer estraçalhada, mas una de novo. Íntegra. Para que pudesse morrer possuída apenas por si mesma.
Por muitas noites guardou o facão de churrasco debaixo do colchão. Mas não ousava além dos pequenos cortes. Quando a primeira gota de sangue, seu sangue, aflorava, sentia-se fraca. E deixava para a noite seguinte. E para a seguinte. A seguinte.
Até que a coisa a puniu com uma dor tão oceânica que pensou no morrer como uma bênção. Agora era o algo dentro dela que queria sair. Seu corpo deformado já era pouco para o bicho que a habitava. Voraz, ele queria mais. E mais.
A coisa era uma voragem.
E agora a arrebentava de dentro para fora, seguindo apenas os desígnios de uma natureza indiferente, desamarrada de toda a moral. Para a coisa não importava se deixaria para trás sua carne dilacerada. Só importava seguir.
Ela não gritou. Era inominável demais para ser pronunciado. Ainda que como grito. No silêncio absoluto de seu terror, o monstro a afogou em dor e sangue. E a deixou para trás.
Antes de morrer, viu o bebê arrastar-se sobre seus seios em busca de sua última gota.