Começou ao despertar da anestesia. Foi um sucesso, diziam. Ela não se sentia um sucesso. Mas tirou tudo? Tudo, tudinho. Não sobrou nada. Ela não sentia que tinha acabado. Ao contrário. Tinha um gosto metálico na boca. É da anestesia, o médico garantiu. Ao seu redor todos pareciam leves. Ela, ainda mais pesada. Tem algo errado. É natural que seja difícil para você acreditar que acabou, disse a psicóloga com voz de elevador. Terceiro andar, lingerie e roupa de banho. O tumor foi retirado do seu corpo, mas permanece no seu inconsciente. Você precisa se autorizar a viver. Vou lhe passar um antidepressivo leve. E os cochichos no corredor. Eu me sinto pior. Ela gritava. Putaquiopariu ninguém me ouve nesta merda!
Dormonid. Acordou em casa. No sofá azul, como ela gostava. Tudo parecia igual. Sua coleção de DVDs de animação da Pixar. Os livros amontoados sobre a mesinha, mais livros embaixo da mesinha. Seu louva-a-deus da sorte. A orquídea que não dava mais flores. Dentro dela não. Havia algo sólido dentro dela. Ela sentia. Urrava agora. Pelo amor de deus eu não sou louca. Me escutem. Tem algo dentro de mim. Algo diferente da outra coisa. Aumentaram a dose dos medicamentos. Quando acordou tirou a névoa dos olhos com a mão. Levantou da cama apoiando-se na cômoda. Caminhou trôpega até o banheiro. Lavou o rosto. A água estava fria. Enfiou o primeiro vestido. Espalhou o conteúdo das gavetas no chão em busca de dinheiro. Quatorze reais. Achou sua bolsa pendurada no cabide. Esgueirou-se até a porta sem que a empregada que passava roupa no quarto dos fundos a visse. Desceu pelo elevador de serviço e pegou um táxi na esquina aonde chegou apoiando-se nas paredes. Deu o nome de um hospital novo ao motorista. Desembarcou na emergência. Tenho dores, gritava. Estou morrendo. Carregaram-na para dentro depois de certificar-se do seu plano de saúde extra-plus-super-king. Quero fazer um ultrassom. Tem algo dentro de mim. Não, não vou tomar remédio nenhum. Sou alérgica. Se me doparem eu processo vocês. Carregaram-na de maca até a sala onde um técnico entediado a encarou com olhos mortos. Ar que entra ar que sai ar que entra ar que sai, ela concentrava-se para não sucumbir ao pânico. O grito. Agora não mais dela. Mas do técnico. A médica entra. Gritam. Ela tentando se levantar. Mais gente de branco. Gritam. Me tirem daqui. Gritos. Não dela. Dela. Ela engole golfadas de ar. Coloca todo o ar no abdômen como aprendeu no pilates e consegue se levantar. Silêncio. Todos olham para ela, para a TV onde passa ela, o que há dentro dela. Ela vira o aparelho. Está furiosa agora. Enxerga. O pequeno homenzinho nu comendo seu fígado de colher.