Quase ronronava, tão bom era o sonho. Estava ele numa sarça ardente, temperatura batendo os 100 °C, único macho entre uma dúzia de demônias gostosas, os rabos nus e lindos, cascos bem torneados, chifres graciosos. Huuuuuuuummmmmmmmmm. A eternidade era boa.
Puf. A diabinha ruiva tinha acabado de se encaixar, cascos contra cascos, quando… desapareceu. E com ela todo o séquito de canhestras deliciosas. Fechou bem os olhos, tentando resgatar o sonho. Nada. Quem ousara interromper um devaneio tão literalmente caliente?
Caiu em si. O barulho fora daquela alma era ensurdecedor. Basicamente um pesadelo. Tinha escolhido aquele sujeito pacato, do tipo do trabalho para casa, festas só as da firma e acompanhado da patroa (que tinha um cabelo horroroso, aliás), finais de semana em parquinhos com os rebentos remelentos, exatamente por causa do sossego. O cara era sem imaginação, é verdade. E tinha péssimo gosto para mulheres e para gravatas. Mas é necessário fazer algumas concessões em nome da qualidade de vida.
Ele era um belzebu já passado dos 5 mil anos de batente, chegando perto da aposentadoria. Tinha batido o ponto em almas demais. Em sua folha corrida de serviços prestados havia alguns momentos áureos, como Átila, o baixinho invocado dos hunos, Calígula… sujeito muito imaginoso, suspirou. De uns 500 anos para cá deu para se entregar a nostalgias e perder o fio da meada. A velhice é uma merda.
De novo. Calígula… Ana Bolena, hum, superestimada. Maria Antonieta, sem cabeça para a vida prática, mas infelizmente não chegava a ser má pessoa. Jack, ah, Jack, que homem aquele! Um quebra-cabeça de muitas peças. Goebbels, este era bom, mas se tivesse vida mais longa teria sido tedioso. Trabalhava demais e tinha pinto pequeno. Por sorte, havia sido dispensado de ocupar por mais tempo o general aquele… Como era mesmo o nome daquele cara de fuinha? Sujeito enfadonho. Se fosse obrigado a mais uma perversão com cavalo, pediria demissão e mudaria de lado. Até um canarinho do coral do Padre Marcelo Rossi tinha mais joie de vivre.
Pronto, perdera-se de novo, enquanto lá fora o mundo desabava. O que estava acontecendo, meu Deus? Ops! Estava mesmo perturbado. Vade retro, demonho!!! Eu te venço, tesconjuro!! Sai já deste corpo que ele não te pertence, filho de uma égua!!! Ah, tenha paciência, o que você foi fazer, Lourival?
Detestava esta falta de sofisticação, esta decadência de costumes, esta falta de respeito com as velhas tradições. Cadê aqueles exorcistas católicos bacanas, eruditos, vestidos de preto, com crucifixos de prata de lei? A-do-ra-va aquele ritual em latim!! Do jeito que a coisa andava, em vez de falar sumério antigo, ele teria de se manifestar falando “as mina, os mano” para ser compreendido. Tenha dó.
Resolveu abrir a janela daquela alma medíocre e dar uma olhada. Pronto, era só o que lhe faltava. Já tinha ouvido falar, mas pensava que era boato. Então estavam tentando despejá-lo num estúdio de TV, com aquele homenzinho ridículo metido naquele terno cafona e gritando coisas sem sentido em péssimo português? Não, não. Um mundo como este, com almas que não se dão ao respeito, não merece demônios. Pelo menos não demônios da sua estirpe, formado na Academia Real do Inferno no curso master-plus-super de mil e duzentos anos.
E tudo porque na noite anterior Lourival havia mandado a vaca da mulher horrorosa dele e a vaca-mor da sua sogra pestilenta para o quinto dos infernos e saído batendo a porta para se encontrar com os colegas do boliche? Sim, boliche, senhoras e senhores. Nada de orgias com animais, nenhuma coprofiliazinha, muito menos um estuprinho seguido de assassinato. Nada. Boliche e cerveja quente. Por causa disso interrompiam um de seus melhores sonhos dos últimos tempos, numa idade em que ele sofria de insônia e tinha joanetes nos cascos?
Era o fim. Pediria as contas ao big boss em pessoa.
Fui.
Bateu o portão sem fazer alarde, com a leve impressão de que já ia tarde.