Completar 45 anos é algo inquietante na vida de uma mulher – acho que de um homem também. Você começa a pensar que está na meia idade, mas é um autoengano. Na meia idade você estaria se tivesse certeza de que alcançaria os 90, mas as probabilidades estatísticas não estão ao seu lado. E mesmo que chegue lá, aquela idade em que você não sabia que tinha coluna vertebral, em que seis pratos de feijão desciam em espirais de hamornia pelo seu intestino, em que qualquer posição sexual parecia verossímil, já se foi. E já se foi há um bom tempo, mas você não queria ver. No ano que vem você já estará mais para os 50 do que para qualquer número digno. E em alguns anos chegará o dia em que nenhum homem – ou mulher – virará a cabeça para olhar para você com admiração e desejo. É aí, neste ponto, que entra o amigo sincero.
Uma conhecida minha teve a sorte de ter um ao seu lado na travessia para a mais idade. Completou seus 45 anos numa viagem de trabalho com um amigo sincero. Ele estava lá quando ela chegou ao final de horas de voo e um dia difícil, destruída depois de semanas de acontecimentos pedregosos e uns pés torcidos em buracos simbólicos. O amigo sincero olhou para ela e disse: “Nossa! Nunca vi você tão acabada! Está definhada!”.
Ótimo. Ela estava a dois dias dos 45 e era o tipo de estímulo de que precisava. Pensou, inclusive, que era este o tipo de comentário que todos esperam receber quando se sentem – e pelo jeito parecem – péssimos. “É”, explicou ela, enquanto tentava segurar, com o dedo mindinho, um naco de autoestima que escorria pela cadeira. “Estou vivendo um período difícil.”
Depois do jantar, ao subirem pelo elevador do hotel para os respectivos apartamentos, ele abriu o jornal local. Lá estava ela em uma foto – tirada em 2008!! –, estampando uma matéria sobre o evento do qual participaria. O que o amigo sincero diz? “Não dá, né. Você precisa fazer fotos novas. Esta aí foi feita uns 40 anos atrás!”. Era uma piada. Uma piada sincera.
Ela, que nunca sabe como reagir ao fogo amigo, não na hora, pelo menos, sacou o fórceps da bolsa e usou-o para abrir a boca num riso sem graça. Assim que a porta do elevador se fechou, levando para o alto o amigo sincero, rastejou até o espelho do quarto, onde deve ter dormido em algum momento, sonhando em roubar o retrato de Dorian Gray.
Na noite seguinte, ela ainda não tinha assimilado a sinceridade do amigo. Esta minha conhecida é meio, como diria minha mãe, “faísca atrasada”. Incauta, ela seguiu tentando. Ao final do jantar, arriscou uma confissão: “Sabe, eu tenho vontade de fazer aulas de canto. Sofri um trauma quando era adolescente e fiquei com problemas de fala. Acho que o canto pode ajudar, embora ninguém aguente me ouvir cantando”. Ela nunca tinha falado isso para nenhuma outra pessoa além do seu analista. O amigo sincero pareceu surpreso. Então disse, sinceríssimo: “Imagino, sua voz é metálica. Perfura”. Pronto. Enquanto tentava comer o cigarro, ela assistiu ao naufrágio de anos de divã em apenas uma frase.
Adivinha quem foi a primeira pessoa que ela ouviu, às 5h da madrugada do dia do seu aniversário? Sim, ele, o amigo sincero. Gentilmente ele ligava para desejar boa viagem: “Veja se descansa um pouco, hein, porque você está bem amarrotadinha!”. O toque do diminutivo foi deferência carinhosa, é importante deixar claro. E sim, sim, feliz aniversário para você também. Mas ele nem sabia que era o aniversário dela.
Só no avião ela compreendeu. O amigo sincero dizia tudo isso porque gostava dela – e se preocupava com seus sentimentos. A intenção do amigo sincero era das melhores. Ele queria prepará-la para a crueldade do mundo para além do regaço aconchegante da amizade. Havia planejado aquilo para o seu bem. Afinal, se ela ouvia tudo isso de um amigo, nenhum inimigo seria capaz de abalar sua autoestima nos anos em que a sua pele ganharia rugas e cicatrizes outras até virar uma uva passa.
Era um tratamento de choque para botar sua resistência à prova – e endurecer os músculos da sua alma, já que os do corpo tinham começado a se recusar a responder aos seus apelos. Sim, o amigo sincero havia descoberto o que nem ela mesma sabia, que a vida tinha sido fácil demais até então – e era importante providenciar umas rasteiras antes que os 50 chegassem. O amigo sincero tinha assumido, por puro altruísmo, a (in)desejada tarefa de fazer o serviço ele mesmo. Afinal, como dizia Nietzsche, um homem que entendia do assunto, o que não nos mata nos fortalece.