Meu prédio tem um curioso vazamento de sons. Não ouvimos as brigas na cozinha, nem os bebês chorando, nem os casais transando. Nos primeiros meses, pensei que talvez ninguém ali brigasse, tivesse bebês ou fizesse sexo. Então descobri. Toda a vida vaza pelo encanamento velho demais do banheiro. Como artérias corroídas pelo tempo, os canos vazam a miséria humana em toda a sua glória. E depois nos encontramos no elevador social ou na portaria com sorrisos indiferentes. Eu sei o que vai pelas tripas de cada um — e eles sabem o que vai pelas minhas. Mas, quando nos encontramos, fazemos de conta que não temos tripas.
No início, a invasão da vida alheia pelo encanamento do banheiro me deixava em pânico. Tanto pelo que vinha dos outros, quanto pelo que adivinhava que ia de mim. Cogitei usar o penico de louça que uma amiga transformou em obra de arte. Mas fui impedida pelos outros moradores da casa. Então, bem aos poucos, aceitei.
E, agora, a condição humana assinala cada hora do meu dia. Não uso relógio porque cada som tem seu horário. De manhã bem cedo acordo com os velhos. Alguns têm passarinhos na janela, eu tenho escarros. Toda vez penso que um pulmão vai descer pelo cano e aterrissar na minha banheira. Mas eles resistem. E depois os cumprimento sorridente enquanto pegam sol no pátio. E eles me abanam como se eu não soubesse do seu esforço para despertar e enfrentar o mundo ainda respirando.
À noite, são os mais jovens, com seu desejo apressado e barulhento. Mais devagar, eu quero gritar pelo cano, nessa minha idade do meio. Mas já tive pressa também. E já suspeitei daqueles sons. Às vezes penso em alertar no elevador aquele cara modernetes, com cavanhaque e calça rasgada. Ela finge, planejo anunciar, entre o primeiro andar e o térreo, o tempo exato para desaparecer com um “Tenha um bom dia”. Mas, no fundo, no fundo, ele deve suspeitar. E então apenas digo: “Está precisando chover, não é?”. Ou a variação: “Vamos todos virar sapos se essa chuva não parar”. E ele concorda sempre, como concorda com os gemidos da namorada.
Entre a manhã e a noite, conheço todas as prisões de ventre e sei também quem comeu algo estragado. “Não peça mais comida chinesa do Chinguilingui”, digo para meu marido. E, só uma vez, comentei, como quem não quer nada, com uma mulher sempre nervosa e com o corpo empertigado, cujos segredos o cano me revelou: “Olha só que coisa. Uma amiga estava com o intestino trancado havia 20 dias, comeu um pacote de ameixas secas e ficou ótima”. Na hora, tive certeza de que tinha sido um mau impulso. Ela me olhou com superior indiferença, como se eu fosse um inseto tão insignificante que não valia a pena sujar o salto do seu sapato, e nem respondeu. Mas depois eu soube, pelo cano, que ela estava agradecida.
Nessa altura, alguns devem estar se perguntando. “Mas por que essa infeliz não se muda?” Não me mudo porque o velho encanamento do prédio me deu uma compreensão mais ampla do mundo. A existência humana é uma trama de dores, mas, com alguma sabedoria, acordamos fingindo que nem mesmo vamos morrer. Cumprimentar os vizinhos com um sorriso, como se eles só exalassem Chanel número 5, ainda que testemunhando seu esforço de todo dia, fez de mim uma pessoa melhor.
O velho cano me ensinou duas coisas: aceitar a miséria humana e, ao mesmo tempo, inventar uma vida. Por isso, quando na reunião de condomínio propuseram a troca do encanamento, eu me levantei e gritei: “Não!”. Com tanta verdade, que imediatamente o síndico passou para o próximo item da pauta.