É uma locadora de bairro. À primeira vista ninguém poderia imaginar o que fazem ali dentro. Do que aqueles vendedores pálidos de tanto assistir a filmes com a cortina fechada durante o dia são capazes de fazer. É como as cidades pequenas. Saudáveis por fora, bichadas por dentro. Queria pedir ajuda para montar um pacote de fim de ano. Eu sonhava com isso depois da correria do Natal. Me anestesiar vendo filmes e séries no sofá azul. E dormir no meio de algum deles, antes da meia-noite. Com sorte, aqueles fogos insuportáveis da virada de ano entrariam no meu sonho como um ataque terrorista fictício e eu só viraria de lado.
Pedi ajuda ao loiro com cabelo rastafári e cara de quem caiu num caldeirão de maconha ao nascer. Quase como o Obelix. O cara era bom. Falava dos filmes com precisão. Tínhamos gostos semelhantes. E ele não estranhava minha combinação de filme norueguês sobre o nada com o ataque dos vermes malditos. Meu pacote de sobrevivência anti-réveillon foi tão volumoso que ele até me deixou entregar um dia depois.
E lá estava eu, com um estranho sorriso nos lábios, só tirando filmes da sacola e botando no aparelho de DVD. Tirando filmes do aparelho de DVD e devolvendo à sacola. Barras de chocolate tamanho Super GG para acompanhar. E então, a surpresa. É sempre assim com o que realmente muda a vida da gente. Você está tranquilamente no seu sofá azul, sem fazer mal para ninguém, e de repente é atingida na cabeça por uma bala perdida.
No meu caso, não foi uma bala. Não ao pé da letra, pelo menos.
O que era aquilo? Eu não escolhi aquele título. O que ele estava fazendo ali?
Primeiro, fiquei preocupada. Tenho essa mania de ser boa samaritana. Alguém podia ter escolhido aquele filme para o ano-novo e ele tinha caído por engano na minha sacola. Imaginei a frustração, depois os pulsos cortados. Não, não. Improvável. Em geral as pessoas mantêm os filmes na mão até passar pelo caixa. Hummmmm. Alguém deve ter devolvido e, em vez de o funcionário guardá-lo na prateleira, deixou por ali no balcão. Na hora de colocar meus filmes na sacola, o dito entrou junto por engano. Sim, com certeza foi isso.
Me tranquilizei mais ou menos, com o filme olhando para mim da ponta da mesa. Acho que precisava muito fugir da realidade, porque os filmes acabaram antes do final do ano. Então eu olhei para o filme, ele olhou para mim. Peguei a caixinha, balancei para lá e para cá. Hum, não era um filme. Era o primeiro disco de uma série. Adoro séries e aquela praticamente era a mãe de todas as séries contemporâneas. E eu beijo os pés dos Estados Unidos por causa das séries de TV. Hum, não custa, pensei.
Antes do final dos créditos iniciais eu já estava com os olhos vidrados. Alguém me ligou para dar feliz ano-novo, mas nem mesmo tenho certeza se era este mesmo o recado na secretária eletrônica. Esqueci de botar sal na lentilha e nem liguei. Meu Deus, quem matou Laura Palmer????? Sim, sim, eu sei. Eu sou a única pessoa que tinha mais de dez anos no início dos 90 e não viu Twin Peaks. Não sei por que, não tenho nenhuma explicação aceitável. Mas não vi. Desculpa, David Lynch.
Quando acabou o piloto, uma hora depois, eu já não era eu mesma. Estava dominada por uma força maior. Do além, possivelmente. Não posso ser responsabilizada por ter pedido um McDonald’s delivery com um número um e um número três com coca normal e suco de frutas vermelhas. E um sunday de marshmallow de sobremesa. Simplesmente aconteceu. Quando terminou o primeiro episódio eu tinha uma batata frita grudada na franja. Comi.
Engordurei o controle remoto ao passar para o próximo episódio. Cadê? Cadêêêê????? Não é possível!!! Só tinha dois? Não, eu não vou aguentar. Que horas são? Onze e trinta e quatro da noite. Não, não, nenhuma locadora aberta. Comecei a ligar para os amigos. “Feliz ano-novo você tem o Twin Peaks?”. “Sim, sim, também te considero pra caramba, mas você sabe quem matou a Laura Palmer?”. Bando de inúteis! Apenas unzinho sabia do que eu falava: “Ah, aquela série que tem um anão no final?”. Que anão, criatura, foi o anão que matou a Laura Palmer?
Eu estava possuída. Não conseguia dormir. Os fogos chegaram. O ano virou. E eu só pensava em pegar um táxi e dizer: “Me leva para uma boca de filmes”. Em meio ao delírio, compreendi. Era assim que eles viciavam as pessoas. Era o velho truque da maconha no copo de fanta-uva. Você está ali, com seu vestido rodado, e de repente toma aquela droga toda de canudinho e vira uma devassa. Aquele diabólico rastafári albino.
Foi assim que adentrei em 2011. Sentada no sofá azul da sala, diante da tela escura da TV, com um único pensamento na mente: “Quem matou Laura Palmer?”. E o anão, quem era o anão? Quem era Laura Palmer? Quem sou eu? Será que eu matei Laura Palmer? Estava neste ponto quando o maconheiro rastafári me encontrou sentada diante da porta da locadora pronunciando palavras desconexas, de calça de moletom e cabelo oleoso.
Eu já estava perdida. No ponto em que estava só sendo internada numa daquelas clínicas religiosas na zona rural. Talvez plantando nabos eu pudesse me livrar do vício. Não, da obsessão. Em vez disso, agradeci muito ao rastafári por ter colocado sorrateiramente a droga na minha sacola. E retirei todas as temporadas de uma só vez.
Não assisti à posse da Dilma. Nem acompanhei Lula descendo a rampa. E, o melhor de tudo, não vi o Sarney. Diante de certas realidades, às vezes o melhor mesmo é fugir. Eu estava com Laura Palmer. E agora eu sei quem é o anão.