A filha queria muito um bichinho de estimação. A mãe achava que dava muito trabalho. Sujava aquela casa sem jardim, toda ela concreto. A mãe achava que concreto servia para gente, não para bicho. A filha achava que concreto não servia nem para bicho nem para gente. Por isso queria a carne quente do gato. Para se sentir menos alienígena naquela casa de concreto.
Tinha sido assim entre ela e a mãe, desde que se lembrava. A mãe era toda concreto, a filha era o vento que soprava entre paredes. Um vento que sangrava.
A vida naquela casa obedecia a um conceito de praticidade e sujeira mínima. De horas marcadas em muitos relógios para um tempo que não mudava. De pratos de plástico e flores de papel. De suco artificial e carne de lata. De palavras que não diziam. Emparedada na casa, a filha se debatia.
Achava que o útero da mãe devia ser também de concreto. E ela era a carne que, como um tumor, havia sido expulsa dali. E, desde então, escorria pela casa.
A mãe não perdoava a filha por ter deixado nela, misturada aos fluidos dela, células indesejadas. As células defeituosas da filha. Aquelas que faziam a mãe lascar nos dias escuros.
E foi num destes dias sem luz que a mãe aquiesceu, furiosa. Vou te dar o gato. Mas eu não quero saber de bicho. Você vai cuidar do gato. Você vai alimentar o gato. Limpar o gato. Enterrar o cocô do gato. Enterrar o gato inteiro.
A filha ganhou o gato. Mais um rebento de mais uma ninhada de mais uma gata vadia encontrada por uma amiga da vizinha num canto da garagem. No primeiro dia a filha ficou agarrada ao filhote. Sentindo o calor dele. O coração palpitante dele. A carne dele entre suas mãos, batendo.
O gato queria saltar, arranhar o sofá, se enrolar no novelo. Fugir. Mas ela o segurava com as duas mãos. E apertava.
No meio da tarde, a filha percebeu que havia se tornado o concreto do gato.
A compreensão não fez com que o libertasse. Ao contrário. Apertou-o mais.
Quando a filha não apareceu para o jantar, a mãe a descobriu no último quarto. O gato já não estava lá. Sua carne lambuzava a filha. As mãos vivas da filha enfiadas na barriga aberta do gato. Os olhos da filha muito abertos.
A mãe se aproximou lentamente. Com uma delicadeza nova, abriu a boca da filha. Que não resistiu. Entre os dentes, a mãe viu o coração do gato.
A mãe olhou os olhos da filha. E a filha olhou os olhos da mãe. Entenderam-se.