Sou escritor, ele disse, quando a conheceu. Mas ninguém quer editar meus livros. Grande novidade, ela pensou. Bem-vindo à torcida do Corinthians. Pensou, mas não disse. Metade das pessoas que ela conhecia queria publicar um livro. Mudou de assunto, com um sorriso complacente.
Ele tinha visto todos os filmes do mundo. E discorria sobre filosofia desde os pré-socráticos até Foucault. E tinha feito metade do curso de Direito no Largo São Francisco. E um curso inteiro de cinema em Nova York. E Relações Internacionais em Londres. Falava alemão. E um pouco de mandarim. E quando andavam de mãos dadas pela rua, ele parava e dizia: olha lá. Ela olhava, mas nada via. Lá, ele dizia, com um sorriso de gente encantada. Ela continuava não vendo. Até que ele mostrava a ela uma joaninha que caminhava sobre uma folha com uma carapaça tão classuda que poderia estar num desfile de Coco depois de Chanel. Ou uma flor tão delicada que ninguém poderia tocá-la sem que desaparecesse no ato. Ou o formato de uma pedra em que ele enxergava uma nuvem.
Ela às vezes só fingia ver, porque tinha nascido com uma visão de grande angular. Não conseguia enxergar detalhes. Ela via o todo. E ao ver o todo que ele era se encantou pela soma das partes dele.
Então quis saber por que alguém tão somado de tudo não conseguia escrever um livro que prestasse. Meus personagens não têm conflitos, ele disse. Ela riu. Está nos manuais clássicos: uma história precisa de um conflito. Eu não tenho conflitos, ele repetiu. Ela riu um pouco mais. Não consigo ter conflitos, ele insistiu. O riso dela ficou nervoso.
Nessa noite ela não dormiu. Atravessou a madrugada no computador dele, lendo um projeto de livro atrás do outro. Os personagens dele eram todos extraordinários. Como ele. Mas não havia o antes, só o felizes para sempre. Ele não sabia que os livros de fadas nunca contavam o que acontecia no viveram felizes para sempre porque não havia o que dizer. Não é que não fosse possível o felizes para sempre, apenas que era chato demais para valer a pena ser contado. A questão não é que a felicidade não exista, apenas que é um porre.
Quando Branca de Neve se sentava na varanda com seu príncipe, enquanto os anões cantavam alegremente indo e vindo, todos eles sentiam saudades da bruxa má. Mas não na história dele. Na dele, eles apenas sentavam-se na varanda e olhavam para o vazio sem medo do vazio. Ele era assim. A total ausência de sentido da vida não o assustava. Ele poderia muito bem passar o resto do ano contando as sardas dela, encontrando uma nuance nova para cada uma das de sempre.
Ela começou a ter medo dele. Da falta de medo dele. Ele percebeu a desconfiança dela, cada vez mais arisca ao toque dele. Pediu. Me ajuda a ter um conflito. Ela se lembrou da carapaça da joaninha e concordou. Naquela noite bateu nele. Mas ele não conseguia bater nela. Na madrugada, arrancou um olho dele com as unhas pintadas com um lançamento da Risqué, Pink Fluor. Pronto, agora você só vai ver metade da joaninha. Mas ele não conseguiu querer arrancar o olho dela enquanto chorava sangue com seu olho vazio. Ela arrancou o outro olho, e ainda assim ele não reagiu para além de chorar mais lágrimas vermelhas. Ela acendeu um cigarro e queimou a planície do corpo dele. E ele nada fez a não ser cheirar a queimado.
Você quer conflito?, ela berrava. Você quer? Eu vou dar conflito a você.
Pegou um picador de gelo que havia comprado mais de uma década antes, ao ver Instinto Selvagem, mas que nunca havia usado porque não conseguia tirar a calcinha. Fincou o picador no peito dele com tanta força e tantas vezes que quando percebeu estava estripando a espuma do colchão.
Ele nada fez. Não se mexia mais. Chorando como uma louca ela abraçou-se ao corpo dele. Arrependida demais para perceber quando o aço foi cravado na jugular dela pela mão vermelha dele.
Afinal, ele tinha um conflito.
No resto da madrugada ele reescreveu seus livros. Virou um milionário excêntrico. Em cada uma de suas mansões em Londres, Nova York, Paris e Berlim existe a mesma coleção de joaninhas. Todas elas espetadas com alfinete.
Dizem que há um espécime de quase 1m70. Mas ninguém nunca viu.