Dizem que a gente não lembra os primeiros anos de vida. Eu lembro. Acho que nasci com a porta da memória aberta. Por isso lembrava aos três anos de cada briga do meu pai com a minha mãe. Não sei se eles se amavam. Eu não entendia de amor. Quando as discussões começavam eu tentava escapar colando as costas na parede, mas em algum momento eles se lembravam de mim. “Você nem ao menos cuida do seu filho”, dizia meu pai. “E você nem lembra que tem um filho”, respondia a minha mãe. E imediatamente esqueciam que eu estava ali.
Não tive tempo de saber se me amavam. Mas naquele Natal eu achei que sim. Embaixo do pinheiro empoeirado de papel brilhante havia um pacote que eu desembrulhei com um pouco de medo. Foi a primeira vez que o vi. O pequeno esquimó. Foi um tal de Noel que me deu. Pelo que eu entendi, um outro Papai. Eu gostei mais deste pai e senti uma pontada de culpa porque nessa hora o meu me olhava ansioso pela minha reação. Não entendo de amor, mas acho que amei aquele pequeno esquimó. Naquele verão que fazia minha mãe reclamar do suor embaixo do braço de seus vestidos, ele era um frio quente.
Quando as brigas recomeçavam eu agora encostava minhas costas na dele e nós dois deixávamos de ouvir. E à noite, na cama, eu o apertava bem forte e ele me dava a sua mão. Estava sempre com muita roupa, mas dizia que não sofria com o calor. Mas eu sentia que não era verdade porque ele tinha uma cara triste. Achei que ele não ouvia os gritos como eu, mas comecei a perceber que talvez ele continuasse ouvindo mas não me contava porque eram palavras ruins.
Não era uma casa bonita a minha. Era escura. E em alguns dias as paredes escorriam como se a casa tivesse inchado e começasse a explodir de dentro para fora como vi acontecer com uma ameixa que minha mãe esqueceu no fundo de um prato. Eu perguntava ao pequeno esquimó se ele estava chateado comigo por morar naquela casa e ele negava. Comecei a achar que ele mentia para mim, assim como mentia sobre os gritos. Tive medo de que ele me abandonasse e voltasse para o seu mundo de silêncio branco.
Tomei uma decisão. Não era justo que ele se sacrificasse por mim. Já era o suficiente o sacrifício da minha mãe. Às vezes ela chorava dizendo que a vida dela tinha acabado. Falava que por minha causa tinha de viver naquele lugar nojento. Parece que eu fiz algo ruim ao nascer e agora ela tinha uma barriga deformada. Eu não queria o pequeno esquimó deformado. De manhã bem cedo, eu disse a ele. Vamos embora para o seu mundo onde só se ouve o gemido do vento. Eu falava assim já naquele tempo. Depois descobri que fabulava.
O pequeno esquimó arregalou os olhinhos pretos. Mas você não vai ficar com saudades do seu pai e da sua mãe? Eu parei um pouco para pensar. Não, acho que não. Eles ficarão melhor sem mim. Poderiam fazer aquelas coisas todas que queriam e que eu não deixava, embora eu nunca tivesse dito nada.
Eu nem precisava arrumar uma mala. Não havia nada que eu quisesse levar. Deixei uma pequena flor de plástico que tinha vindo num doce em cima da cômoda da minha mãe. E uma figurinha do Shrek para o meu pai. Ele achava o Shrek engraçado. Você tem certeza?, me perguntou o pequeno esquimó. Eu tinha. Então nos demos as mãos e apertamos bem forte.
Eu não imaginava que o mundo do pequeno esquimó fosse o congelador da geladeira da minha casa. Sempre tinha achado que ficava muito mais longe. Levei um susto na primeira vez que minha mãe abriu a porta para tirar de lá uma lasanha congelada. Mas ela não nos viu entre o pacote de carne moída e uma caixa de hambúrguer de frango. Brincamos tanto naquele dia ou pelo menos eu acho que era dia porque ali dentro não sabíamos se tinha sol ou lua. Era sempre igual e eu gostava de saber que nada mudaria.
Acho que dormi. Acordei assustado com a mãozona do meu pai vindo na minha direção. O pequeno esquimó me agarrou com força, mas meu pai era muito maior. Ele não me reconheceu quando me dissolvi no seu copo de uísque.