Eu soube que a infância dela tinha acabado quando escrevia no meu escritório e ouvi um ruído atrás de mim. Ela passava com seus novos cabelos cor de laranja pelo corredor, arrastando um saco de lixo. O que você tem aí?, eu perguntei, incauta. Meus bichos de pelúcia, ela disse. Saltei da cadeira de rodinhas, ainda era o tempo em que eu conseguia saltar, e impedi a chacina quando ela já se preparava para descer as escadas do edifício, rumo ao latão de lixo reciclável do térreo, onde desovaria os corpos. Ela se livraria de todos, menos de um.
Menos de um porque ele não era um bicho de pelúcia. Ou era quando foi comprado pelo meu irmão mais velho num supermercado para acompanhá-la em sua primeira viagem além das fronteiras da casa, do país. Mas isso foi antes de descobrirmos que estava vivo. Ela deu a esse cachorro — sim, era um cachorro — um nome tão comprido e composto quanto o de Dom Pedro II. Para os íntimos, porém, e eu me incluo nesse grupo seleto, ele foi sempre Romualdo.
Por que você faria uma coisa dessas?, eu perguntei, chocada, diante do saco de corpos de pelúcia. Porque eu cresci, ela poderia ter me dito. Mas não disse. Eu não gosto de bichinhos de pelúcia, ela falou. É tu que gostas. Eu?
Era eu mesma. Quando ela nasceu, meu irmão mais novo deu a ela um urso peludo. Eu era tão criança que a larguei no berço e fiquei penteando o urso que nunca tive. Naquela época, o urso tinha mais cabelo do que ela, que se limitava a um par de olhos bem azuis entre duas bochechas que fariam inveja ao pão de açúcar. Depois, ela ganhou um cabelo loiro em que eu fazia penteados dos anos 80 que até hoje a constrangem nas fotos.
Ela não reparava que eu era criança. Contra todos os prognósticos, sempre teve certeza de que eu era a mãe dela. E me amou com um amor incondicional. Era a única a aprovar meus cabelos azuis, amarelos, rosas, verdes, com penas de pavão ou mesmo quando eu raspei a maior parte deles. Eu olhava para ela e sabia que ela me achava linda. Eu era a mãe dela. E, aos poucos, ela me provou que não havia nada melhor para ser na vida do que mãe dela.
Não sei o que ela fez com os bichos de pelúcia que eu salvara tantos anos atrás. Acho que se livrou deles em algum momento dos muitos em que eu não estava olhando. Livrou-se de todos, menos de um.
Tampouco sei precisar quando descobrimos que Romualdo era vivo. Mas não chegou a nos causar maior espanto. Tínhamos essa naturalidade com o mistério e uma série de gestos em comum, eu e ela. Achávamos normal quase tudo. Romualdo era tão amoroso que sabíamos que jamais se transformaria em Chuck, o boneco assassino. Bastava olhar para ele para que, de imediato, o mundo voltasse a ser um lugar que ambas podíamos habitar. Muitas vezes, foi ele que a protegeu quando eu não o fiz. Em outras, quando eu me esfarinhava por aí, ela me emprestava-o por alguns dias, para que ele pudesse cuidar de mim. Depois, resgatava-o de repente, sem nenhuma explicação.
Romualdo testemunhou toda a vida dela, dos 8 aos 30. Sabe mais dela do que eu. Jamais a decepcionou, como eu. Esteve sempre lá, eu não. Uns dois anos atrás percebemos que Romualdo envelhecia. Seu pelo marrom perdera o viço e começara a ficar grisalho. As sobrancelhas, assim como os cílios, tornaram-se finas e brancas. Seu topete rareava. Nem tentamos uma explicação mágica, nós sempre soubemos que a velhice também chegaria para ele. Ao nosso redor, as pessoas se assombravam, desfiando justificativas lógicas. Nós não.
Hoje, ela me entregou Romualdo para que eu cuide dele — ou ele de mim — por um ano. Ela vai para longe, viver aventuras de adulta. Eu fico, sem saber como foi que ontem ela nem tinha cabelo para pentear e agora me olha com sua primeira ruga quase invisível embaixo do olho esquerdo. Ela ainda tem bochechas, mas não gosta que eu mencione o fato. Sei que ela vive sem mim, não sei se consegue viver sem Romualdo. Ela está insegura, eu sinto. O que significa deixar Romualdo? Entendo por que ela me deixa, mas o Romualdo?
Restamos eu e ele, vendo nossa menina partir com pose de mulher, com um outro que chegou ontem e já a carrega embora. Romualdo, eu ralho, como você permitiu isso? Ele me olha, ternurento e cheio de paciência, me conhece bem e sabe que em algum momento a razão haverá de retornar. Mas logo em seguida se distrai e esquece que eu o observo. Vejo então uma pequena lágrima suicidando-se ao lançar-se da ponta de um cílio do seu olho esquerdo. Ele jamais tinha sido deixado para trás antes e sabe que isso significa algo.
Restamos eu e ele, sem saber como se pode amar tanto alguém, sem saber o que foi que aconteceu nesses anos todos, como foi que de repente ela partiu sem nós. Eu penteio os cabelos ralos de Romualdo, mas ela não está mais nem no berço, nem em parte alguma que possamos ver. Perdidos de tudo, porque quase tudo era ela, dormimos abraçados para que ela possa nos encontrar na volta e nos contar de um mundo aonde jamais iremos. De agora em diante, será assim. E é assim que tem de ser. É o que digo a Romualdo quando peço a ele que arranque um fio branco que aponta na minha cabeça marrom.