Silmara, nós precisamos conversar. Bem que ela deveria ter desconfiado daquele jantar só para mulheres, em pleno sábado à noite. Seis pares de olhos estavam fincados nela, entre o amor e a preocupação. Silmara encolheu-se. O que foi? Não gostaram do meu esmalte amarelo-canário?, brincou, na tentativa de desarmar o ataque. Silêncio. Betina, que era a amiga-bem-resolvida-que-diz-as-verdades-todas, avançou. É o seguinte. Nós estamos preocupadas com você. Por quê?, Silmara retrucou, assustada. Reviu mentalmente sua vida atual e, com sinceridade, achava que estava tudo bem. Não estou entendendo… Betina pegou na sua mão, rosto contrito. Acredite, vai doer mais em mim do que em você, mas amigas de verdade dizem a verdade. Silmara agora estava assustada. Betina não fez pausa:
— Querida, é o seguinte. Você está dando de graça.
A visão de Silmara escureceu na hora. Como elas descobriram? Ela tinha sido tão discreta.
Nós sabemos, adiantou-se Joana. Você sabe, os homens falam. E nossos amigos estão chocados com a sua falta de amor próprio. Por que, Silmara, você está fazendo isso com você mesma?, gritou Naiara, meio descontrolada. Ela babava um pouco no canto direito da boca quando ficava nervosa. Silmara agora torcia as mãos, sem saber o que dizer. Como poderia explicar? Me deu vontade, só isso. Aconteceu.
Como assim, ACONTECEU?!, atacou Renata. Por que você está desrespeitando o seu corpo? Silmara, o corpo é seu, não pertence a homem algum, a mulher alguma, por mais sensacional que seja. Silmara, como você pode desrespeitar o seu corpo dessa maneira, abrindo as pernas apenas por prazer, ou mesmo sem prazer, mas por amor? Silmara, o corpo a gente não dá, a gente vende!
Todas as seis começaram a falar ao mesmo tempo. E Silmara, acuada, começou a chorar. Ela estava morta de vergonha. Sabia que não havia perdão para o que tinha feito. Aconteceu, balbuciou mais uma vez. Eu gosto do Volnei, ele tem aqueles cachinhos ao redor do pinto, me lembram do meu irmão quando era bebê. Me envolvi com os cachinhos e acabei esquecendo de cobrar. Ele não falou nada e, na vez seguinte, eu esqueci de cobrar de novo — e ele de pagar. Foi meio que por acaso… Mas tenho certeza de que ele não queria me humilhar. O Volnei me respeita!
E Silmara começou a sentir coceira nas mãos, um tique nervoso que tinha desde a infância.
Valei-me, Nossa Senhora da Periquita!, berrou Verônica. É muito pior do que a gente pensava. Ela está dando de graça. E só pra um!
Silmara agora soluçava e começava a sentir ânsia de vômito.
Mas as amigas não se apiedaram. Por que, Silmara? Você teve uma infância feliz! Começou a dar desde cedo, sempre ganhou bem, tem filhos saudáveis, sua filha já está dando e ganhando seu dinheirinho honesto. Betina pegou nas suas duas mãos. Silmara, há algo do seu passado que a gente não sabe? Você foi abusada na infância?
Betina, interrompeu Renata. Você sabe que o pai da Silmara era um homem honesto, que sempre pagou direito pelo sexo, pra todas as mulheres, não só pra mãe dela. E a mãe da Silmara sempre cobrou um preço justo e, quando um mané não quis pagar pelo boquete, botou o cara na cadeia. Não é por aí!
Betina não gostou de ser questionada. Ora, Renata, eu não estou dizendo nenhum absurdo. Você sabe muito bem que é comum mulheres que foram abusadas na infância apresentarem esse comportamento autodestrutivo. Você não viu aquela reportagem no Fantástico sobre abuso sexual? As vítimas são exatamente como a Silmara. Ficam com nojo do corpo e começam a dar de graça pra um homem só. É a tal, como é o nome mesmo?
Síndrome de Estocolmo, esclareceu Naiara. Ficam obcecadas pelo abusador — e transferem essa obsessão para um estropício qualquer. E, você sabe, homem imprestável tem por toda parte. Sem tratamento, algumas mulheres acabam indo morar com um traste destes. Se acomodam, não cobram mais, abrem mão de ter outras experiências sexuais, viram uma pantufa pra ser calçada de vez em quando apenas porque é mais confortável.
Que horror!, gritou Joana, que era a mais sensível das seis e não lidava bem com catástrofes humanitárias.
Mas é assim que algumas mulheres ainda vivem, como se estivessem na Idade Média, insistiu Betina. Ela tinha gostado mesmo daquela matéria do Fantástico. Ficam vivendo uma vida sem sentido e sem dinheiro nem para comprar um sapatinho! Como não transam com outros nem cobram, acabam dependendo do aproveitador para tudo. Uma delas ficou 25 anos com um infeliz desses, até ter a coragem de denunciar na Delegacia da Mulher. Foi então abrigada num puteiro, para um programa de recuperação do sexo gratuito e monogâmico, e hoje está feliz, rodando uma Louis Vuitton na Augusta.
Ahhh, ufa, recuperou-se Joana. Satisfeita com o final feliz.
Silmara se encolheu toda. Ela e Volnei tinham pensado em morar juntos. Mas ela não confessaria isso por nada. Não nesta vida, pelo menos. Eu ganho um bom salário no meu emprego, tentou se defender. Não faz falta esse dinheiro do sexo. E o Volnei está desempregado…
Os seis pares de olhos agora lacrimejavam por ela. As amigas estavam penalizadas. Silmara, meu amor, disse Verônica. Não se trata apenas de dinheiro, mas de respeito pelo seu corpo, pela sua autonomia, pelo feminino. Se você dá seu corpo de graça, como se tivesse achado a buceta no lixo, como você vai se olhar no espelho todos os dias?
E não é só isso, meteu-se Naiara. Você está dando pra um cara só! Isso é altamente autodestrutivo, Silmara. Logo esse cara vai pensar que é seu dono. Primeiro ele não paga, depois vai começar a achar que você tem de transar com ele sem vontade, daqui a pouco vai ficar com ciúmes se você quiser se divertir com outro, como qualquer mulher bem resolvida faz desde que as feministas queimaram o sutiã em praça pública e cobraram ingresso pra quem quisesse ver seus peitos. Silmara, você precisa compreender que não se trata só de você, mas de todo um movimento, que, ao longo de séculos, lutou para que mulheres como você pudessem ter o direito de vender o corpo para quem quisessem. Silmara, você está descendo ladeira abaixo. Vai acabar casada!
Neste momento, todas fizeram o sinal da cruz. Silmara também. Deus nos livre!
Silmara caiu em si. O que há de errado comigo?, pensou. Como eu fui perder tanto o rumo da minha vida? Eu, que tinha uma carreira tão promissora, que era uma mulher feliz… Como é possível, de repente, eu ter descido tanto? Não, chega de autocomiseração! Silmara levantou o queixo, como sinal de autoestima, e berrou: Mulheres, unidas, sigam-me!
Deixaram o risoto trufado pela metade nos pratos, um resto de Barolo ainda na garrafa e partiram, determinadas. Silmara entrou na delegacia da esquina, agarrou o investigador pela gola rolê com suas unhas amarelo-canário e intimou: “Você precisa prender um abusador”.
Depois, separaram-se. Naquele dia, dobraram o preço da trepada para comemorar a emancipação de Silmara.