A primeira família de duas mulheres

As psicanalistas Michele Kamers e Carla Cumiotto conquistaram na Justiça o direito de registrar seus filhos gêmeos no nome de ambas

primeira nova familia

RETRATO DE FAMÍLIA De pé, Michele Kamers, de 31 anos, e Maria Clara. Sentados, Carla Cumiotto, de 38, e Joaquim Amandio. Eles posam diante de sua casa, em Blumenau, Santa Catarina, dias depois de receber autorização judicial para o registro dos gêmeos em nome das duas mulheres

Eliane Brum e Marcelo Min (fotos), de Blumenau (SC)

O primeiro foi Joaquim Amandio, com 2,8 quilos. Dois minutos depois chegou Maria Clara, só alguns gramas mais pesada. Michele estendeu a mão para Carla, deitada na mesa cirúrgica onde fez cesariana. Às 9h55 de 8 de fevereiro de 2007, as palavras faltaram. Com olhos castanhos boiando em lágrimas, Michele acolheu os bebês: “Filhos, a pami está aqui”. Sabia que reconheceriam sua voz porque havia contado a eles muitas histórias ao longo dos nove meses de gestação em que habitaram o ventre de Carla. A enfermeira olhou para Michele: “A Maria Clara é a sua cara”. Michele exultou. Até hoje conta essa história muitas e muitas vezes. Disparou então para o corredor do Hospital Santa Catarina, em Blumenau, gritando: “Meus filhos nasceram, meus filhos nasceram”. Na sala de espera, as pessoas a olhavam com susto. Afinal, como ela acabou de dar à luz e está gritando e correndo feito doida? Nascia ali uma nova família. Diferente, sem dúvida. Mas uma família.

Sem dúvida.

Um mês mais tarde, Carla e Michele anunciaram à escrivã do cartório de registro civil, em Blumenau: “Somos casadas, nossos filhos foram gerados por inseminação artificial e queremos registrá-los no nosso nome”. A mulher perguntou quem era o pai. Michele respondeu: “Eles não têm pai. Têm a mim”. A escrivã afirmou que só poderia registrar em nome da mãe biológica. “Nós vamos tentar na Justiça, então”, disse Carla. A escrivã retrucou: “Podem tentar, o máximo que vão conseguir é um não”.

Em 12 de dezembro de 2008, o juiz Cairo Roberto Rodrigues Madruga, da 8ª Vara de Família e Sucessões de Porto Alegre, disse “sim”. Em 14 de maio, foi determinada a alteração da certidão de nascimento dos gêmeos. Joaquim Amandio e Maria Clara Cumiotto Kamers são agora filhos de Carla Cumiotto e Michele Kamers e seus avós são Alcides e Clara Cumiotto e Jaime e Maria Kamers.

A sentença é histórica. Pela primeira vez é reconhecido na Justiça o direito de uma mulher, sem nenhum vínculo biológico com seus filhos, ocupar um lugar parental. A Justiça gaúcha, conhecida por decisões de vanguarda, reconheceu e legitimou um vínculo afetivo, amparado por uma história de amor de 11 anos entre duas mulheres, comprovada por vídeos, fotos, documentos e testemunhas. “Algumas pessoas pensam que os novos arranjos estão destruindo as famílias”, diz Michele. “Não é verdade. Eu não poderia adotar filhos que sempre foram meus, que nasceram não apenas do desejo da Carla, mas do meu também. Quem critica não pensa no direito dos meus filhos a ter meu nome, minha herança, o meu amparo legal. Lutamos tanto pelo reconhecimento desse vínculo justamente porque acreditamos na importância da família. Tanto que nos autorizamos a reinventá-la. Pode parecer paradoxal, mas somos tradicionais.”

Ao dar a notícia, a advogada Ana Rita do Nascimento Jerusalinsky desandou a chorar. “Essa sentença mostra que a família não morre nunca. Vai viver para sempre, se a sociedade não for preconceituosa”, afirma. “As novas famílias agregam novos membros, alguns que ainda não sabemos como nominar. É uma grande inclusão. E é esse processo social que está nos levando não ao fim, mas à revalorização da família.”
E como nasce uma família? A de Carla e Michele começou numa troca de olhares numa aula de história da psicologia, nocampus do pequeno município de Biguaçu, da Universidade do Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Michele, 19 anos, era a aluna. Carla, 27, a professora. Ao ver Carla metida em um vestido justo, verde-claro, de um ombro só, as unhas vermelhas, Michele achou que ela era linda. Carla sentiu, como sente até hoje, 11 anos depois, “como se fosse um homem me tirando a roupa com o olhar”.

Quem eram elas até aqui? Michele é filha de comerciantes bem-sucedidos de Florianópolis, descendentes de alemães. Única menina dos três filhos, “era mais menino que os meninos”. Eram garotas os objetos de seus amores de infância. Mas sofria na escola quando a chamavam de “machorra”. Aos 11 anos, tentou resolver a questão da identidade sexual com uma mudança radical. Michele assumiu o estereótipo da garota feminina. Tornou-se modelo. Tão profundamente que sofreu de anorexia e bulimia até os 17 anos. As fotos do book mostram uma loira muito magra, de cabelos longos, encaracolados, olhar profundo. Michele debutou, namorou muitos garotos, foi capa de jornal.

Num evento, ao pegar uma bebida, outra modelo a beijou na boca. Michele descobriu que adorava. Passou a namorar garotos e garotas, sem nada esconder da família. Aos 18 anos, conseguiu conciliar pela primeira vez a mulher que era à posição masculina com que se identificava. Matriculou-se num colégio de padres, tornou- -se ótima aluna e ingressou na psicologia. Quando perfurou Carla com seu olhar na aula da faculdade, era uma mulher bonita, bem cuidada, mas dotada de uma postura e um magnetismo inscritos nas referências culturais como masculinos.

Carla era a caçula de uma numerosa família de imigrantes italianos de Santa Rosa, interior do Rio Grande do Sul. Loira de olhos azuis e traços delicados, sua feminilidade não era apontada numa família de homens com sexualidade explícita. A Carla era destinado o lugar de “intelectual”. Não era feita para namorar, mas para cuidar dos livros. Mesmo assim, namorou por três anos um colega de psicologia. E depois, quando terminou, teve muitos casos de uma noite só. A Carla nunca havia aparecido a possibilidade de amar outra mulher.

Quando Michele, dona de um olhar mais masculino que muitos homens, a encarou, Carla sentiu-se atraída e confusa. Numa noite, as duas encontraram-se num bar e, quando o bar fechou, transferiram-se para um café. Discutiam algo só verossímil no encontro de uma psicanalista e de uma estudante de psicologia: o que sentiam era “querer ou desejo”?

De repente, Carla perguntou: “Para você, é querer ou desejo?”. Michele respondeu bem rápido: “Desejo”. E já pegou a chave do carro e um par de balas de manga. Quando Carla aceitou a bala, ela veio junto com o primeiro beijo. Passaram a noite dentro do carro, na Praia de Jurerê, em Florianópolis. Até hoje guardam o papel da bala e uma foto das roupas do primeiro encontro.

Carla passou alguns anos tentando entender esse amor tão surpreendente em sua trajetória de vida. A liberação erótica só veio no dia em que ela, muito tímida, sussurrou a Michele: “Eu gosto quando você usa camisa”. Funcionou como uma espécie de senha não só para as fantasias sexuais, como para a libertação das palavras usadas na intimidade. “Até hoje eu continuo gostando de homens, olhando para homens. Só olho para as botas ou os cintos das mulheres, não para elas”, diz Carla. “Descobri que gosto de homens masculinos, de mulheres masculinas. Não conseguiria beijar ou transar com um homem feminino ou uma mulher feminina. Por isso, não consigo me apresentar como homossexual. Não por preconceito, mas porque não me interesso por iguais. Pelo contrário, o que me atrai é a diferença de posição, seja em homens ou mulheres.”

Carla e Michele escolheram a cidade de Blumenau para morar. A princípio, uma cidade com fama de conservadora, povoada por descendentes de alemães, poderia parecer uma má escolha. Mas, depois de alguns risos nervosos nos primeiros tempos, as duas tornaram-se respeitadas na comunidade como psicanalistas e professoras universitárias, autoridades em sua área.

Quando o pai de Carla adoeceu, cuidaram juntas dele até quase a morte. Michele, porém, tinha uma queixa. Enquanto participavam com desenvoltura da vida na família de Michele, como casal, a de Carla ignorava a relação. No enterro, a família agradeceu a todos os que ajudaram a cuidar dele na doença, não sobrou nenhuma palavra para Michele. Ela então exigiu ser assumida. Carla não se sentia capaz desse ato, confusa com a novidade do que sentia. Antes de se separar, Michele lhe entregou uma rosa vermelha e dois cálices de champanhe: “Se nunca te casares, saiba que um dia alguém te pediu em casamento”.

Carla namorou “um homem bacana, numa relação muito interessante”. Michele teve casos com várias mulheres, alguns deles ao mesmo tempo. Um dia Carla descobriu que, mesmo vivendo uma relação com um homem que valia a pena, ela gostava mesmo era de Michele. “Acho isso muito importante, bonito”, diz. “Eu escolhi a Michele.”

CENAS DO COTIDIANO  Os gêmeos têm uma rotina de crianças amadas e pais presentes. Na primeira foto, Michele dá café aos filhos; na segunda, Carla brinca com Joaquim na pracinha; na terceira, Michele deixa os bebês na escola. E, na quarta, ambas dão banho e preparam as crianças para dormir

CENAS DO COTIDIANO
Os gêmeos têm uma rotina de crianças amadas e pais presentes. Na primeira foto, Michele dá café aos filhos; na segunda, Carla brinca com Joaquim na pracinha; na terceira, Michele deixa os bebês na escola. E, na quarta, ambas dão banho e preparam as crianças para dormir

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Depois de vários drinques num bar com uma amiga, decidiu ir até o apartamento de Michele. Ela estava de pijama, no carro, espiando diante da porta do bar. Recomeçaram. Carla procurou cada parente para contar sua escolha. Mãe, irmãos, sobrinhos. Dessa vez, foi Carla que assustou Michele. Ela queria casar. “Para mim, casar era morar junto”, diz Michele. “A gente não teria documento, nenhum papel. Eu queria um ritual”, diz Carla. “Queria tornar público para nossas famílias e amigos, para a comunidade.” Michele debateu-se ao longo de muitas sessões de análise. “Sabíamos que não podíamos ser duas noivinhas. E era eu, claro, que ocuparia a posição de noivo. E noivo usa smoking. Ficava pensando: ‘Será que só eu sou a homossexual’?”. Decidiu mandar fazer um conjunto de calça e casaco, que usou com camisa branca, colar, brincos e maquiagem. Carla encomendou um vestido de noiva a rigor. “Por que eu não poderia me vestir de noiva?”, diz. “Eu me sentia noiva. A Michele não seria minha mulher, mas meu marido.” A casa que compraram juntas, num bucólico bairro de classe média de Blumenau, foi decorada com todos os elementos que testemunhavam sua história: pétalas de rosas vermelhas, grãos de café, velas, mapas das regiões de onde vieram os antepassados, as árvores genealógicas das duas famílias, fotografias, cartas e bilhetes do romance. Michele esperou Carla na porta. E um amigo celebrou o casamento, numa cerimônia em que contou a trajetória daquele amor. No altar, as duas choravam. Era 3 de setembro de 2004.

“Acreditamos tanto na importância da família que
nos autorizamos a reinventá-la. Somos tradicionais”
MICHELE KAMERS

“Não me vejo como homossexual. Sou uma mulher
feminina, atraída por homens e mulheres masculinos”
CARLA CUMIOTTO

Em 2005, Carla começou a esboçar um comportamento estranho até para si mesma. Na conversa com uma amiga, trocou a palavra “psiquiatra” por “pediatra”. Depois, ao falar de um bar, em vez do nome “Tip-Tim, disse “tip-top”. Um dia, surpreendeu-se no centro da cidade espiando vitrines de lojas de roupas de bebê. Por fim, começou a sonhar com bebês. E, um dia, quando atravessavam uma ponte, anunciou, sem preliminares: “Michele, acho que quero ter filhos”. O carro quase despencou lá de cima.
Nos dois anos seguintes, as duas discutiram possibilidades e riscos. “Comecei a desejar o desejo dela de ter filhos”, diz Michele. “E um dia tornou-se meu desejo. Mas queríamos ter a tranquilidade de saber que nosso filho ou filha ficariam bem.” Para Michele, havia uma questão crucial. Como seus filhos a chamariam? Nunca houve nenhuma dúvida, na vida e no casamento, de que ela ocupava a posição masculina. “Era claro para mim que eu teria a função paterna na vida do bebê, mas ele não poderia me chamar de pai”, diz. “Era preciso criar outro nome para uma mulher que ocupa a função paterna. Mas qual?”

Muitas sessões de análise depois, Michele chegou à palavra “pami”. Um nome que, mais tarde, entendeu como a união de “pai” e da primeira sílaba de “Michele”, mas também o masculino de uma palavra popular na vida das crianças: “mami”. Na saída do consultório, ligou para Carla. “Encontrei um nome!” Carla respondeu na hora: “Gostei”. A partir da nomeação, a decisão de ter filhos ganhou serenidade. Depois de conversar com o primeiro especialista, em Porto Alegre, compraram na viagem de volta o primeiro presente do bebê. Um Fusca se fosse menino, um dado para a menina – “já que as bonecas ali eram muito feias”.

Ao receber o catálogo, por e-mail, das opções disponíveis no banco de esperma, em São Paulo, optaram por um doador de ascendência alemã, italiana ou portuguesa, para ser parecido com elas, e de olhos castanhos, como os de Michele. Na primeira inseminação, o médico, um especialista renomado, foi taxativo: “Não sei para que tanta emoção se as chances são só de 20%”. Logo depois Carla menstruou, e elas passaram dois dias com a sensação de que alguém tinha morrido. Tentaram de novo. Dessa vez, o médico, um assistente, foi caloroso. “Vai dar certo!” Deixou que Michele fizesse a inseminação. Há fotos com o registro de cada passo. Para elas, era tudo romance. Carla engravidou. E Michele até hoje se vangloria da “pontaria”.

No segundo mês de gestação, ao acompanhar a ultrassonografia, Michele apontou: “Olha só, há outro pontinho preto aqui”. Foi assim que descobriram que teriam gêmeos. Michele adorou. Carla ficou assustada. Aos quatro meses, outra ultrassonografia revelou que os gêmeos eram um casal. Carla relaxou. Já tinham até nomes. Maria Clara era a soma dos nomes das avós: Maria, mãe de Michele, e Clara, mãe de Carla. Joaquim Amandio, dos patriarcas das duas famílias: Joaquim, “nonno” de Carla, e Amandio, avô de Michele. O casal teve o cuidado de inscrever os filhos na linhagem das duas famílias. Eles chegariam ao mundo amparados pela tradição. Pelas paredes da casa, muitas fotos de Joaquim, Amandio, Maria e Clara. Assim como de Joaquim Amandio e de Maria Clara.

Os dois anos de preparação foram decisivos para organizar com amor e inteligência a chegada de crianças que viveriam num arranjo familiar marcado pela diferença. E também para cometer aqueles absurdos dignos de pais que se prezem. Decidiram que Maria Clara seria escritora e Joaquim Amandio aviador. “Loucura, né?”, dizem hoje, rindo muito. Loucura ou não, Joaquim Amandio ganhou um kit aviação. Mas parece ter mais vocação para caminhoneiro, já que não larga seu caminhão cegonheiro por nada.
Carla logo se tornou uma grávida clássica. Com deslocamento de placenta no início da gestação, encolheu o ritmo de trabalho. E sentiu-se uma rainha, mas uma rainha carente. “Você não me olha, não me vê, está sempre trabalhando”, dizia, mal Michele assomava na porta. Se ela se atrasava cinco minutos para chegar da universidade, Carla sentia-se abandonada. Michele então se dedicou a uma ampla reforma do quarto do casal e dos bebês. Iniciar uma reforma, sempre que algo importante está em curso, tornou-se uma marca de Michele.

Quando os gêmeos nasceram, foram tantas as flores que Michele precisou fazer três viagens de carro entre o hospital e a casa para trazê-las. “Eles foram muito bem recebidos”, diz. O primeiro ano foi duro. Carla teve licença-maternidade, Michele nenhuma. “Passava a noite levando os bebês para mamar e depois tinha de acordar às 7 horas para ir à universidade.” É dela o papel de impor limites. Botou horário nas mamadas e aguentou a choradeira, proibindo Carla de chegar perto do quarto para acudir os filhos. Os gêmeos começaram chamando-a de “a pai”. Depois, “a papai”, em seguida “pã”. E, por fim, “pami”. “Quem é o pai da Maria Clara e do Joaquim Amandio?”, perguntou uma coleguinha de escola. “Você tem pai, eles têm pami”, é a resposta. “Eles são filhos seus ou dela?”, indagou um sobrinho na primeira festa de família. “De nós duas”, disse Carla. “Ah, que legal, assim cada uma pode cuidar de um.” Carla e Michele descobriram que as crianças sempre acham uma boa saída. “Que nojo, beijar uma mulher na boca”, disse uma menina na pracinha. “É mesmo, quando elas não se amam, deve ser bem nojento”, retrucou Carla. “Mas, quando se amam, é bonito.” Um garotinho que circulava por perto falou: “Meu pai namora um homem”.

Nem Carla nem Michele vivem em guetos gays. “Nunca me identifiquei como homossexual. Frequentei pouco bares gays. Porque, ao se apresentar como homossexual, me parece que a identidade é reduzida à escolha sexual. Entendo que, na vida, somos homens ou mulheres e, a partir de marcas infantis e dos bons encontros, cada um vai se referenciando a partir do feminino e do masculino”, diz Michele. “Enquanto um casal tem uma relação homoafetiva, homoerótica e quer viver em guetos, problema dele. Mas, a partir do momento em que um casal tem filhos, acho delicado uma criança ser apresentada ao mundo num gueto. Porque todo gueto, e não só o gueto homossexual, visa excluir a diferença. É o confronto com a diversidade, com outras famílias, outras classes sociais, outras experiências, que aumenta as possibilidades, faz com que cada um seja capaz de inventar uma vida melhor. Nas ocasiões em que tentaram eliminar as diferenças, determinar que só existia uma forma de viver, foi muito triste, como no nazismo e no fascismo.”

Michele espera que “pami”, seu nome para os
filhos, vire uma nova palavra inscrita na língua

A pré-escola das crianças foi escolhida por dar prioridade à brincadeira. “Não queremos nossos filhos no computador ou aprendendo inglês, para isso vão ter muito tempo depois”, diz Carla. Quando as crianças fizeram sua estreia para além dos limites da casa da família, Michele e Carla enviaram uma carta à diretora e aos professores. Nela, contavam suas expectativas, sua história de vida e os hábitos dos filhos. A carta é um testemunho de pais amorosos tentando preparar o mundo para os filhos, até que tenham tamanho e maturidade para se defender sozinhos. Num dos itens, denominado “o mito da origem”, escrevem: “Toda criança investiga, lá pelas tantas, de onde eu venho e por que os pais me tiveram. Na verdade, elas querem saber da sexualidade dos pais (não da anatomia), assim como do desejo que as trouxe ao mundo. Isso é o que importa. Como queremos que a escola conte sobre isso para nossos filhos e para as outras crianças, gostaríamos de situar uma pequena história: A mamãe e a pami (nome inventado pela Michele para se apresentar para os filhos) se amavam tanto que chegou uma hora da vida delas que elas quiseram ter filhos. E, como eram duas mulheres, precisavam de um médico que as ajudasse. Aí, elas viajaram para São Paulo e encontraram um médico que as ajudou a encontrar um homem que lhes doou uma sementinha para a vinda dos bebês. Um homem desconhecido, mas muito gentil. É importante que vocês situem que é um doador, e não um pai. Explicar que pai não vem da genética ou do sangue, mas do coração. Por isso, vocês podem explicar que, do mesmo modo que os amiguinhos têm pai e mãe, o Joaquim Amandio e a Maria Clara têm a pami e a mamãe”.

Carla e Michele escreveram uma carta aos professores
da escola para prepará-los para a chegada dos filhos

Na passagem do primeiro para o segundo ano de vida dos gêmeos, Carla e Michele tiveram a primeira crise depois do casamento. Carla reclamava que Michele só pensava no trabalho. Michele dizia que era “a mulher que devia ficar mais com as crianças”. “Imagina se eu casei com uma mulher para ouvir uma coisa machista como essa”, diz Carla.

Hoje, as duas dedicam-se a superar o impasse vivido pela maioria dos casais a partir do primeiro filho: como um casal se transforma em família. “As pessoas acham que, como a gente teve tantas dificuldades para se firmar como casal, não poderia ter crise”, diz Michele. “Temos crises como todo mundo. Nossa questão, no segundo ano, foi como voltar a namorar. Além disso, tenho muitos planos, como fazer meu doutorado na França. Não abri mão desse plano por causa dos bebês ou da Carla. Agora, virou um projeto da família, estamos pensando em morar um tempo na França. A questão aqui é como não perder a singularidade.”

Álbum de família
A história de Michele, Carla, Joaquim Amandio e Maria Clara, contada em imagens

MOSAICO As fotos narram a trajetória de Michele Kamers (à esq. na foto maior, nas fotos de infância e de baile) e Carla Cumiotto, desde que eram crianças e adolescentes até se conhecer, casar-se e formar uma família

MOSAICO
As fotos narram a trajetória de Michele Kamers (à esq. na foto maior, nas fotos de infância e de baile) e Carla Cumiotto, desde que eram crianças e adolescentes até se conhecer, casar-se e formar uma família

Carla e Michele compartilham o pacto de manter o desejo erótico entre elas. “Nosso casamento começou com erotismo. E a gente não larga mão disso”, diz Carla. “Muita gente, depois de ter filhos, deixa de ser homem e mulher, mas achamos que esse é um preço muito alto. Então estamos reinventando nosso casamento.”

A família vive numa casa ampla e antiga, numa rua sem saída que parece feita para criar filhos. No fim do calçamento há uma mata nativa, onde “pami” faz barquinhos de papel para os gêmeos atirarem no rio. Na outra ponta, há uma pracinha. As crianças brincam pelas calçadas com os filhos dos vizinhos. Lá, são conhecidas como “Mano” e “Mana”. Os consultórios das duas estão instalados na parte frontal da casa, o que torna a vida mais fácil e mais próxima das crianças. Há ainda dois membros completando o clã: os cachorros Sofia, um maltês, e Smeagol, um pincher.

Até o início de maio, Carla e Michele não pensavam em divulgar sua vitória na Justiça. A decisão de expor sua trajetória foi tomada depois que a Justiça negou a um casal de mulheres de Carapicuíba, em São Paulo, a tutela antecipada de seus filhos, uma história revelada pela reportagem de ÉPOCA. Nesse caso, os óvulos de Munira Khalil El Ourra foram implantados no útero de sua companheira, Adriana Tito Maciel, gerando gêmeos. Com a negativa, Carla e Michele entenderam que tinham uma responsabilidade “ética e social”. “Se a gente ficasse quietinha, estaríamos fazendo coro à sociedade do narcisismo. Tipo: eu consegui o meu, os outros que se virem”, diz Michele. “Tornar público é uma tentativa de inscrever essa possibilidade no tecido social. Em nenhum momento a gente fez apologia, como se nosso arranjo fosse uma solução ou nossa família fosse melhor que as outras. Cada um faz seu arranjo para se tornar uma família interessante.”

DE VOLTA PARA CASA Michele (à esq.) e Carla retornam depois de passar a manhã brincando com os filhos na pracinha, jogando barquinhos de papel no rio e divertindo-se pela vizinhança da rua onde vivem, em Blumenau, Santa Catarina

DE VOLTA PARA CASA
Michele (à esq.) e Carla retornam depois de passar a manhã brincando com os filhos na pracinha, jogando barquinhos de papel no rio e divertindo-se pela vizinhança da rua onde vivem, em Blumenau, Santa Catarina

Carla e Michele não perderam nenhum paciente devido à exposição, como era o temor de alguns familiares. A reação de pacientes e alunos é de “admiração pela coragem”. “A gente tem uma posição confortável e uma sustentabilidade para dar esse passo sem sofrer com a reação pública”, diz Carla. “As pessoas podem até falar dentro de suas casas, mas não dizem nada para nós. Conseguimos lidar com tranquilidade também porque estamos representadas a partir de diversos referenciais, para além da escolha sexual.” Elas se esforçam para não deixar nada sem dizer. “Enquanto a sociedade pede para esconder, nós fizemos questão de deixar tudo transparente”, diz Carla. Quando são apresentadas a alguém, sempre contam que são casadas e tiveram dois filhos por inseminação artificial. Carla chama Michele de “companheira” ou “marido”. Michele chama Carla de “mulher” ou “princesa”. Ambas se chamam de “amor”. “A gente não acha feio, por isso podemos expor”, diz Michele. “Espero que as pessoas possam mudar um pouco o olhar sobre o que é uma família. Estamos pautadas pelas mesmas leis de toda família, funcionamos a partir dos mesmos códigos. Não estamos fora. Eu tive de inventar um nome, e não é um nome fora da cultura, porque existe um ‘mami’, inventado pelas crianças. Espero que o ‘pami’ possa se inscrever também na cultura, como uma nova palavra, significando coisas diversas para cada um. Tenho muito orgulho da nossa família.”

A história de Joaquim Amandio e Maria Clara está documentada desde o primeiro Kamers e o primeiro Cumiotto que chegaram ao Brasil. Os retratos antigos dividem as paredes da casa com as fotografias que contam o romance de seus pais e seus dois primeiros anos de vida. Michele é quem registra a história dessa nova família. São dezenas de DVDs, centenas de fotos. Até o dia da audiência com o juiz está gravado.
Os gêmeos acordam cedo e pulam dos berços para a cama de “mami” e “pami”. Depois que todo mundo se enrosca um pouco, vão para a mesa do café, quando comem de forma surpreendente para o tamanho. E de tudo um pouco. Depois vão para a rua brincar. À tarde, na escola, Joaquim é conhecido como “conversador” e Maria Clara como “carinhosa”. Michele, Carla ou ambas vão buscá-los. Depois do banho e da mamadeira, as duas se deitam numa joaninha gigante, de pelúcia, até que cada um durma em seu respectivo berço.

No primeiro Dia dos Pais de suas vidas, a escola fez um cartaz com fotografias. Lá está “pami” em duas fotos: uma com Joaquim Amandio, a outra com Maria Clara. Não é a única mulher. Há outras que ficaram viúvas ou cujo marido se tornou ausente – e que tiveram de assumir também a função paterna para os filhos.

A história da família Cumiotto Kamers, não fosse ter duas mulheres à frente, é bem tradicional. Carla e Michele trazem novas nuances à questão. Uma delas é: por que elas não poderiam ser tradicionais? Ou, posto de outra forma, por que, pelo fato de formarem um casal de mulheres, seria imperativo que todas as decisões e arranjos fossem de vanguarda? Se assim fosse, talvez elas não tivessem se empenhado tanto para que sua família fosse reconhecida.

Na volta da escola, a família tem sua brincadeira particular: “Quem é o príncipe do castelo da ‘pami’?”, pergunta Michele. Joaquim responde: “O Mano!”. “Quem é a princesa do castelo da ‘pami’?” Maria Clara diz:“A Mana”. “Quem é a rainha do castelo da ‘pami’?” Carla e os gêmeos afirmam: “A mamãe”. “E quem é a dona do castelo?” Todos gritam, felizes: “A ‘pami’!”.

(Publicado na Revista Época em 29/09/2009)

A história de Lili Lohmann

Se alguém lhe disser que você é substituível, não acredite

Dias atrás, meu telefone na redação da ÉPOCA tocou quando eu arrumava minhas coisas para ir embora. Atendi um pouco impaciente. Do outro lado, uma voz de mulher com sotaque alemão. “Eliane, aqui é Lili Lohmann.” No mesmo instante, voz e nome resgataram-me para mim mesma. “Estou ligando para dizer que li teu último livro, O Olho da Rua, e adorei.” De novo, eu sabia quem era eu. Lili me contava o que importava na vida. E aquela noite que seria mais uma, numa rotina de repetições, povoou-se de significados. Lili me devolvia a grandeza.

Quando eu aprendi a ler, aos sete anos, senti que minha vida ganhava todas as possibilidades do mundo. Cheguei perto dessa sensação algumas vezes ao longo dos meus 43 anos, mas nunca como a dos primeiros livros. Desde então, eu, que era ao mesmo tempo uma criança que olhava muito e falava pouco, mas também uma criança que aprontava bastante, passei a atravessar meus dias trancada no quarto lendo um livro atrás do outro. Às vezes nem comia. Ou me sentava à mesa para o almoço imersa na última linha lida, temerosa de perdê-la numa colherada de feijão e, com ela, a chance de chegar à linha seguinte.

Lia até quatro, cinco livros por dia. Comecei pelos infantis e logo passei para os adultos. Aos dez anos, eu já tinha lido todos os livros de José de Alencar, não porque gostasse, mas porque não conseguia parar até chegar ao fim da coleção. E me atraía nele aquele erotismo velado, de loiras que amavam índios de pele cor de cuia, dândis que se perdiam pela marca de um pé minúsculo deixada na lama, moças virtuosas que viravam prostitutas. A partir daí, nada, nem mesmo minha iniciação sexual, foi vivida sem a ajuda inestimável dos livros. Era neles que eu buscava as respostas às tantas dúvidas que me assaltavam.

Então conheci Lili. Essa moça de origem alemã, ao mesmo tempo austera e enérgica, magra e sólida, com cabelos castanhos encaracolados e cortados curtos, cuidava da seção de livros da Livraria Cultural, a maior de Ijuí, minha cidade natal no Rio Grande do Sul. E Lili gostava de livros, entendia de livros. Meus pais, ambos descendentes de imigrantes italianos esfomeados e analfabetos, tinham um acordo com relação à sua prole: não poderia faltar comida nem educação. Passávamos às vezes anos sem ganhar uma roupa, até os oito anos eu ainda dormia num berço, com as pernas encolhidas, porque não havia dinheiro para comprar uma cama, mas a mesa era farta e os livros presentes.

Mas nem mesmo com esse firme propósito era possível para eles, professores eternamente mal pagos, como todos nesse país, dar conta da minha voracidade de leitora. Lili então, com o cuidado de não expressar nenhuma condescendência, me deixava ficar no canto da livraria lendo por horas livros que jamais compraria. Sentada no chão, num canto, com prateleiras e mais prateleiras à disposição, foi o mais perto que consegui chegar de uma ideia de paraíso.

Foi ali que aprendi a começar a ler pelo cheiro do papel. Meu primeiro ato era uma cafungada quase erótica naquelas folhas virgens, as quais eu seria a primeira a desbravar. Depois eu passava a mão na lombada, sentindo formato e textura, acariciava as páginas com reverência e delicadeza. Só então lia a primeira palavra, possuída por imensa felicidade. Até hoje repito esse ato nas livrarias, causando algum estranhamento nas pessoas próximas. Para mim, os livros sempre foram sagrados, mas apenas para que pudessem ser profanados.

Um dia Lili colocou uma escada à minha disposição, e então pude alcançar os livros mais altos. Nunca encontrei palavras para expressar o que essa escada representou. Com ela, eu podia alcançar a Lua. Eu era Neil Armstrong, mas não para fincar nenhuma bandeira, não era a posse que me interessava. Contentava-me em acariciar o chão lunar com a ponta dos dedos. A certa altura, nunca soube se porque alguém reclamou daquela criança metida por horas numa dobra das prateleiras sem nada comprar ou porque ela realmente acreditava no meu discernimento, Lili me promoveu. Fui incumbida da tarefa de ler os livros recém-lançados para dizer a ela se devia ou não encomendá-los. Ganhei então o privilégio de levá-los para casa. Aos nove anos, eu era uma profissional com imenso poder.

Quando Lili anunciou que iria deixar a livraria, meu mundo ficou profundamente abalado. Talvez tenha sido minha primeira grande perda. Com ela, toda a magia, assim como os bons livros, partiu. As que a sucederam nunca perceberam a grandeza do seu trabalho, deixavam-se reduzir a funcionárias. Entre elas e os livros não havia intimidade, seria o mesmo se apertassem parafusos. Nunca soube as razões oficiais pelas quais a livraria mais importante da cidade foi se terminando. Mas, para mim, era a minha versão que fazia mais sentido. Primeiro a livraria perdeu Lili, depois a seção de livros, restando apenas a papelaria, e, por fim, morreu. Não havia como ser diferente. Livrarias sem alma podem até vender muito, mas jamais serão grandes. Não há vida sem o mistério da vida. Há apenas atos destituídos de gente.

Nosso tempo, me parece, sofre de dois males que se complementam. Pelo menos dois. Um deles é acreditar que as pessoas importantes são aquelas que batem recordes, ganham milhões ou aparecem na capa das revistas de celebridade com seus corpões. Fora desse hall da fama determinado por razões que servem aos poucos de sempre, a vida de todos os demais se torna pequena, insignificante. O outro mal é aquilo que está no discurso de gurus e da maioria dos chefes nas mais diversas áreas, que se resume por uma frase dita com ares de verdade absoluta: “Ninguém é insubstituível”.

Eu acredito na grandeza das vidas supostamente comuns. Interesso-me pelos acontecimentos que se repetem no cotidiano, observo mais os desacontecimentos. Sou fascinada pelo sentido que cada um cria para sua existência no mundo, pelas pequenas delicadezas que nos fazem acordar e levantar da cama a cada dia, apesar de todas as brutalidades. Acredito que nossa vida é uma busca pelo extraordinário que mora em nós. E que só o encontramos ao descobrir o extraordinário que mora no outro. É esse o exercício de resistência de cada homem, de cada mulher, diante do espelho do mundo, a cada manhã: não se deixar reduzir, um exercício que só pode ter êxito na generosidade ao olhar para o outro em busca de sua singularidade.

Então, quando ouço essa frase fatídica – “ninguém é insubstituível” – só sinto pena. Quanto medo tem aquele que a pronuncia. Como ele suspeita de sua insignificância. E como ele se deixou reduzir. A minha frase é outra: Ninguém é substituível. A singularidade do que sou, só eu sou. A singularidade do que é você, só você é. O que você não fizer, não será feito do jeito que só você pode fazer. Se você deixar de ser o melhor que pode ser, se desistir de dar o melhor que pode dar, é uma falta inscrita na história do mundo. E só há um jeito de alcançar a grandeza de cada um de nós, que é a descoberta da grandeza do outro.

É só o reconhecimento da singularidade de cada um que, paradoxalmente, pode nos levar à descoberta de que somos mais iguais do que diferentes. E ao acreditarmos que ninguém é substituível, torna-se impossível a discriminação por raça, religião ou ideologia. É o imenso valor da vida que alcançamos, da nossa e da dos outros. Então, quando alguém lhe disser que você é substituível, tenha compaixão. E não acredite. Nunca permita que reduzam o mistério que é a sua vida – e a do outro. Até mesmo do equivocado que proclama frases como essas.

Passei décadas sem Lili. Deixei Ijuí aos 17 anos, vivi em Porto Alegre até os 33, desde 2000 moro em São Paulo. Anos atrás, fui procurada pela editora do principal jornal de Ijuí, o Jornal da Manhã, para participar de uma série sobre ijuienses que haviam “vencido” fora da cidade. Minha tarefa era escrever um texto sobre essa aventura pessoal. Eu aceitei. Mas escrevi um texto em que dizia que mais difícil do que partir era permanecer na cidade. E contei a história de Lili e de como ela havia transformado a minha vida.

O texto publicado alcançou Lili, numa cidade próxima e ainda menor, algum tempo depois. Ela vivia tempos duros, estava triste, solitária. Desconectada de sua grandeza. Até então, não tinha ideia de que havia sido tão decisiva na vida de uma outra pessoa. Nos reencontramos nesse reconhecimento. E eu pude contar a Lili o que ela também fez de mim. Era eu que agora escrevia livros. Ela poderia me ler porque um dia permitiu que eu lesse numa esquina das prateleiras de uma livraria de cidade pequena, onde ela vivia cada dia consciente da grandeza de seu trabalho.

Contei essa história aqui por várias razões. E por profundo sentimento. Mas também para propor a você, que me lê, o exercício de identificar no tempo as pessoas que, com seus pequenos grandes gestos, deram sentido à sua vida. Fizeram diferença, fizeram de você mais você. E depois de redescobri-las em lembranças há muito esquecidas, contar a elas que foram/que são insubstituíveis. E então aprender para sempre que são essas as pessoas importantes, mesmo que não sejam elas a ilustrar a capa das revistas de celebridades.

Dias atrás, quando Lili Lohmann me ligou numa noite em que eu também me iludia que eram horas iguais a todas as outras, ela me disse uma frase que até agora me faz dançar: “Quando eu leio o que você escreve é como se eu ganhasse um presente”. Lili, você é um presente para sempre presente em tudo o que sou.

(Publicado na Revista Época em 25/05/2009)

Fragilidade

Por que tememos tanto o que nos torna humanos?

“Há algo perdido na vida de cada um”, diz o artista inglês Mark Leckey. “As pessoas tentam preencher essas lacunas com imagens.” Ele fala de seu filme, Parade (2003), que será exibido na sexta-feira, 15/5, na mostra do Museu Sammlung Goetz, de Munique, promovida pelo Itaú Cultural, em São Paulo. Nos 31min30s do filme, me senti incomodada pelo brilho ofuscante da imagem de seres humanos que em nada lembravam humanos. Seres inanimados de uma vida glamourosa sem vida, vestidos de grifes, com sorrisos que não riem. De repente, esses modelos ofuscantemente belos desaparecem e o vazio toma conta da tela, agora que as imagens já não estão mais ali para nos cegar. Mark Leckey fez um filme “sobre se sentir perdido no começo do século XXI”, um filme sobre o vazio. “Estou doente de imagens”, ele diz.

Eu também. Há muitos caminhos para pensar sobre o filme de Leckey. Eu gosto de pensar sobre a fragilidade que mora em nós e que tanto nos assusta. A certeza, ainda que inconsciente, que dentro de nós há uma fratura. Essa dor à espreita que faz com que nos disfarcemos de tantas formas – e que nos torna vítimas tão dóceis, contentes até, de todas as armadilhas de consumo que preenchem nosso cotidiano.

Algo precisa ser feito quando o vazio nos ronda com sua lucidez implacável. Nem que seja, para uma mulher, comprar um sapato novo que dirá aos outros que nada falta exceto talvez uma bolsa para combinar com ele. E nesse ato não importa se compramos na grife que criou o modelo, na loja de departamentos que o copiou com material de menor qualidade ou no camelô do centro que pirateou o produto. A categoria sócio-econômica não altera nosso medo do abismo. Nesse ato, estamos todos nus.

Você já experimentou permanecer num shopping quando as lojas se fecham e não há mais iluminação sobre os produtos, nem gente colorida andando de um lado para outro sem ir realmente a lugar algum? Vale a pena se arriscar a essa experiência tão urbana. Os seguranças continuam ali, mas não estamos mais seguros.

Em seu livro Fragilidade (Objetiva), o roteirista francês Jean-Claude Carrière reflete sobre a imagem dos corpos brilhantes, malhados nas academias. Com a justificativa da saúde e da beleza – hoje dois conceitos quase inseparáveis –, passamos horas de cada um de nossos dias carregando peso para que nossos corpos ganhem músculos, transformem-se progressivamente em armaduras para que possam ser exibidos em todas as vitrines. Mas por que precisamos de corpos tão fortes, tão impenetráveis? Por que precisamos mostrar força física para sermos atraentes? Por que tantos de nós passam outras horas deleitando-se no espelho com seus bíceps, tríceps e quadríceps? E por que este é o padrão de beleza dessa época?

A hipótese de Carrière é que esse corpo modelado em aparelhos para se tornar ele mesmo uma armadura, uma muralha ou uma fortificação serve para esconder uma intimidade quebradiça, a matéria frágil de que somos feitos. É uma ideia interessante. Levamos uma imagem de saúde e força física a um mundo de imagens, esperando que ninguém adivinhe nosso medo de sermos descobertos, ou suspeite que nossos músculos – como tudo em nós – são mais vulneráveis do que parecem. Desfilamos sob muitas luzes, nunca tantas como hoje, na esperança de que possamos cegar os outros tanto quando essa overdose de flashes nos ofusca a cada dia. O que aconteceria se deixássemos toda a maquiagem de lado, e também a de nossos músculos hipertrofiados? O que aconteceria se as luzes se apagassem de repente? Não é curiosa uma época em que para enxergar é preciso ficar no escuro?

Vivemos num tempo em que as mulheres, em sua magreza, têm de ser retas e rijas como um homem e pendurar enormes peitos artificiais, uma imagem que no passado pertencia apenas aos transsexuais. Por que de repente os seios de carne ficaram aquém do feminino e se tornou necessário fabricar outro à custa de intervenção cirúrgica? Que ideal de corpo feminino é esse que criamos? Duro, definido e sem gordura, nele o único lugar em que só a maciez era possível foi substituído por silicone. Quando foi que nossos corpos se tornaram insuficientes e a saída foi torná-los menos nossos? O que estamos dizendo ao desfilar essa imagem pelas ruas do mundo?

Somos hoje tão duros, tão definidos, talvez porque nunca antes fomos tão vulneráveis, tão indefinidos. Nós, que estamos nesse mundo como indivíduos, sem o amparo da tradição, quase sem utopias. Há algo para sempre fora do alcance dos aparelhos e dos bisturis. Acredito que é o melhor de nós. O que nossos corpos construídos como cidadelas – exilados de nós, feitos para serem impenetráveis até para nós – tentam esconder é o que deveríamos mostrar. É a “essência de vidro” de que falava Shakespeare.

É nossa fragilidade – e não a nossa força – que nos faz humanos. Só chegamos mais perto do que somos ao reconhecermos a fragilidade que nos habita. Só alcançamos o outro pelas fendas entre nós, só podemos amar um outro porque há um rasgo em nós. Não há ponto de contato entre corpos inexpugnáveis. Só criamos pelo que de frágil nos habita, só evoluímos tanto como espécie pelo que há de vulnerável em nossos corpos. E só destruímos o planeta que nos serve de casa e outros de nossa espécie pela recusa à fragilidade que nos constitui – e pela ilusão de uma força que não vem dela.

Não há nada menos interessante – e mais falso – do que um homem ou uma mulher que só exiba força. Não há nada menos sedutor do que gente que não tira máscaras. Assim como poucas coisas são mais embrutecedoras que esse mundo de imagens, em que nós mesmos somos apenas atores coadjuvantes que não sabem como viver quando as luzes se apagam.

Nossa fragilidade é a nossa força. E será melhor viver nesse mundo quando soubermos disso.

(Publicado na Revista Época em 11/05/2009)