Olhos de insulfilm

Olhar para ver é um ato de resistência diante da banalização da vida

Aprendi, no exercício do jornalismo, que olhar para ver é um ato de resistência cotidiana. O mais fácil, sempre, é não ver. Ou enxergar apenas aquilo que nos dão para ver, como se essa fosse toda a verdade. Existe aquilo que não vemos, mas gostaríamos de ter visto. E existe aquilo que não vemos porque escolhemos não ver. Como quando fechamos o vidro do carro para impedir o contato com as pessoas que nos pedem alguma coisa do lado de fora. E colocamos insulfilm nos vidros, quanto mais escuro melhor, para que nem mesmo elas possam nos ver. É mais fácil quando aqueles que querem entrar não enxergam nosso rosto assustado, culpado ou com raiva. Nosso desamparo diante da dor do outro é oculto por camadas de insulfilm. E um pouco mais: a película que permite a nossa cegueira impede os que pertencem ao lado de fora de ver que não estamos vendo.

Nos iludimos que estamos protegidos, mas a escolha de não ver – assim como a de não ser visto – vai nos brutalizando. E logo nem precisamos mais da película sintética na janela. Porque um insulfilm orgânico já cobre nossos olhos, faz parte de nós. Não ligamos mais. Os que querem entrar já não importam, porque nos iludimos que são tão diferentes de nós, que temos a sorte de estar dentro, que não faz mais diferença.

Todos os genocídios da história foram cometidos por poucos, mas só puderam ser consumados porque muitos fingiram não ver. E fingiram com tanta ênfase que acabaram por acreditar que não viam. Às vezes, contra todos os meus esforços, acontece comigo. Sucumbo à banalidade, me distraio e permito que o insulfilm me cubra os olhos. Iludo-me que estou vendo, mas não estou.

Na semana passada, duas pessoas de mundos diferentes – mas só aparentemente – me trouxeram histórias que me despertaram. Fiquei com uma dor constante na boca do estômago, um incômodo que não me deixa, desde então. Ver não é fácil. Não entramos em contato com a verdade – a nossa e a do outro – impunemente.

A primeira história veio de longe. Nada mais distante dos nossos olhos do que a África, todas elas. Às vezes temos notícia do mundo de lá por que Angelina Jolie andou pelos campos de refugiados de Darfur ou a copa das confederações, vencida no domingo pelo Brasil, aconteceu na África do Sul. Mas isso não é exatamente ver. A verdade é que poucas realidades do mundo são tão fáceis de não ver como a das Áfricas todas. Porque a rigor nem mesmo a África existe. Como sabemos, o continente e cada país dele foram uma invenção riscada no papel pelos colonizadores, com as consequências mais devastadoras. Para a maioria de nós, que aqui está, nada mais distante de nós do que os africanos todos. Vez por outra acompanhamos seu sofrimento como se acontecesse com gente de outra espécie. Eles morrem todos os dias de guerra, de fome, de sede, de malária e de Aids. E é como se seu sofrimento fosse um dado da natureza. É banal, é corriqueiro, deixamos de ver, não nos sentimos implicados, “a África é assim”. É mais assim ainda que as favelas que se multiplicam ao nosso redor.

Como podemos?

Racionalmente, eu não aceito isso. Mas a realidade, percebi, é que vivo como se aceitasse. Dias atrás, entrevistei uma moçambicana chamada Lucrécia Paco. É considerada a maior atriz do seu país. Sofreu discriminação numa casa de câmbio do Shopping Paulista, quando trocava seus dólares, em São Paulo. Contei essa história nesse site. A certa altura da entrevista, Lucrécia me disse: “Você sabe, no tempo da guerra civil, a expectativa de vida em Moçambique estava em torno de 45 anos. Agora, com a Aids, baixou”. Eu sabia, mas não sabia. Só enxerguei de verdade quando olhei para a mulher diante de mim. Próxima dos 40 anos, ela beirava a expectativa de vida de seu país. Se eu lá vivesse, já a teria superado. E é um índice a ser comemorado, já que em 2003 a expectativa de vida de um moçambicano ao nascer era de 31 anos, só um pouco maior que alguns dos períodos de maior fome da Europa medieval. Ao me reconhecer nos olhos doídos de Lucrécia, lentamente comecei a abrir as pálpebras dos meus.

Em seguida, li um livro chamado O Tradutor – Memórias de um homem que desafiou a guerra (Rocco, 2008). Daoud Hari, seu autor, é também o tradutor do título do livro. Depois de ter sua aldeia dizimada, em Darfur, no Sudão, em 2003, ele passou a levar jornalistas estrangeiros para dentro das fronteiras perigosas do país, para que pudessem contar o que acontecia no seu mundo. Dois anos mais tarde, em 2005, foi preso e torturado pelo governo do Sudão junto com o motorista do carro e um repórter da National Geographic. Só foram libertados depois de uma intensa campanha internacional, que envolveu celebridades como Bono Vox, o líder do U2.

Meus olhos se escancararam quando li o seguinte trecho do livro. Nele, Daoud conta o relato que ouviu de um pai enlouquecido de dor, num dos campos de refugiados de Darfur. Esse homem não conseguia mais viver, seus dias tornaram-se a repetição dessa cena impossível. Daoud não voltou a encontrá-lo. Quando o procurou mais tarde, nem sua mulher sabia de seu paradeiro. Há dores incompatíveis com a vida. Leia o que ele viveu:

“– Um dos janjaweed (milícia apoiada pelo governo do Sudão) começou a me matar de forma dolorosa. Minha filha não aguentou ver aquilo calada e correu em minha direção, gritando Abba, abba.

Ao repetir essa palavra, que em zaghawa significa ‘papai’, sua voz ficou embargada, o que o obrigou a fazer uma longa pausa.

– O homem que tinha me amarrado à árvore viu minha filha correndo em minha direção. Então baixou o rifle e enfiou-lhe a baioneta, empurrando a arma fundo, varando o ventre da menina. Mesmo assim, ela ainda conseguiu gritar Abba, abba. Ele então levantou a arma, ainda enfiada na barriga da minha filha, o sangue derramando sobre ele. Em seguida, começou a dançar com ela suspensa no ar e gritou para os companheiros: ‘Olhem só como estou bravo’. Os outros responderam em coro: ‘Você bravo, bravo, bravo’, enquanto matavam outras pessoas. Minha filha olhou para mim, demonstrando estar sentindo uma dor imensa, os bracinhos estendidos em minha direção. Ela ainda tentou dizer Abba, mas não conseguiu. Demorou muito para morrer, o sangue tão vivo, de um vermelho intenso, escorrendo sobre aquele… o que ele era? Um homem? A encarnação do mal? Ele estava pintado de vermelho, coberto com o sangue da minha filhinha. O que ele era?”

Cenas como essa não são passado, acontecem agora mesmo em Darfur – e em outros pontos da África – sem que tomemos conhecimento delas. Porque acreditamos que “a África é assim mesmo, não tem jeito”.

Como podemos?

Terminei de ler esse livro extraordinário na mesma noite. Extraordinário porque Daoud fala de morte, ele mesmo meio morto por dentro, para reivindicar a vida. É um livro vivo, onde ele acha até espaço para o humor, para reafirmar a importância de sorrir pelo menos uma vez por dia. Esse homem, que viu seu mundo desaparecer em sangue dos seus, nos escreve para reeditar a vida, para nos pedir para olhar, porque a existência dele e de todos lá depende da nossa capacidade de enxergar.

No dia seguinte, Maycon Silva me escreveu. Ele havia lido minha coluna anterior, em que começo a resgatar a história de Manezinho, um homem que morreu atrás da montanha de escombros em que se transformou a favela Jardim Edite, na Zona Sul de São Paulo. Inspirado na história desse homem que nossa cegueira tornou invisível na morte como na vida, Maycon juntou forças para escrever sobre algo que ele testemunhou em 2005 e não pôde esquecer. Maycon tem 25 anos, é estagiário de arte da revista Casa e Jardim, da Editora Globo. Migrou do Paraná aos 11 anos para a periferia de São Paulo, estudou com o apoio de ONGs e do ProUni. Tento convencê-lo a virar repórter, porque ele tem um texto contundente e um par de olhos abertos. Mas ele resiste.

Leia o que Maycon testemunhou. Se lá é longe, aqui é perto:

“Era um sábado de manhã, 3 de setembro de 2005. Eu voltava de um projeto social em Diadema. Como todo ‘cachorro-loco’ que se preza, lá estava eu com minha moto pela avenida Ricardo Jafet, cortando todos os carros, querendo chegar mais rápido não sei aonde.

Paro no semáforo vermelho. Aqueles segundos parecem eternos, ansioso espero a luz verde acender, eu e outro motoqueiro avançamos o mais rápido que nossas mãos permitiam acelerar. Sinto um vulto cair entre as duas motos e escuto o estrondo mais forte por mim presenciado, comparado ao barulho forte de bomba, mas não pela audição e sim pela explosão sentida no impacto.

Olho pelo retrovisor. Enrolada por uma manta cor-de-rosa e vestida com macacão branco, lá estava no chão a linda bebezinha, cujo rosto não sai de minha mente, a pele branca como neve. Nunca estive em um campo de guerra, porém penso ser a mesma sensação de ver um companheiro ser atingido por um tiro de fuzil e não ter forças para fazer nada. A criança foi jogada de cima da ponte, o barulho que escutei foi o do seu corpo batendo no asfalto.

Imediatamente volto. Enquanto alguns correm para a rua e param o trânsito para o bebê não ser atropelado, subo pela contramão, na intenção de matar quem havia feito aquilo. Me deparei com uma mulher, aparentando ter uns 28 anos, sentada no chão, com os olhos brilhando cheios de lágrimas. Quando chego perto dela, ela me estende as mãos e pergunta:

– Cadê minha filha?

No mesmo instante começam a chegar pessoas querendo linchar a mulher. Tento conter a ação e pergunto por que ela jogou sua filha. Sua resposta é a seguinte:

– Preferi jogar ela da ponte a vê-la continuar passando fome junto comigo. O pai está preso e eu não tenho condições de sustentar. Deixa eu me jogar também.

Não consegui ter raiva daquela mulher, foi uma mistura de sentimentos. Ela tinha o olhar sofrido, uma vida que qualquer pessoa da classe média não aquentaria. Ao tentar proteger a filha da fome, ela a matou. Como julgar aquela mulher, se dava para sentir seus sentimentos. Um ato e tudo mudou naquele instante.

No dia seguinte comprei todos os jornais, busquei notícias na internet. Nada, nem ao menos uma nota. Pensei em ir à delegacia saber o que aconteceu com a mulher e sua filha, fazer um documentário, escrever um livro. Mas histórias de pessoas comuns, quem quer saber?” .

Foi essa a história que Maycon Silva contou. Descobri ali, no final, que meus olhos andavam menos abertos do que eu acreditava. Não havia nem a desculpa feia da distância. A África é do outro lado do oceano, mas a Ricardo Jafet é logo ali. Para todos nós, há sempre uma Ricardo Jafet logo ali e muitas Áfricas mais perto do que acreditamos, ainda que seja porque os que morrem lá são feitos da mesma matéria frágil e imperfeita que nós.

Ao final desses relatos, eu não tinha nenhum vidro com insulfilm para fechar às pressas, com as mãos suando, com medo de deixar a vida do outro entrar e transtornar a minha. Ficar de olhos bem abertos dói, mas sigo acreditando que é a única maneira de viver com verdade. A única que preserva nossa humanidade.

E, agora, como o homem que viu a filha ser varada por uma baioneta, empunhada por alguém que também parecia um homem, que dançava enquanto era banhado pelo sangue da criança, também me faço uma pergunta, de olhos bem abertos:

– Como pude? O que sou eu?

(Publicado na Revista Época em 29/06/2009)

Sarney e Manezinho

Será que alguns são mais comuns do que outros? Não acredite em Lula

“Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum.”

Esta foi a frase mais terrível já dita por Lula desde que ele iniciou uma trajetória pública que deu esperança a milhões de pessoas comuns no Brasil. Para mim, 17 de junho de 2009, a data em que foi pronunciada essa sentença, lá do outro lado do mundo, no Cazaquistão, tornou-se histórica. Nela, o homem comum que chegou ao poder afirma que: 1) há brasileiros, como Sarney, que não são comuns; 2) porque seriam supostamente incomuns mereceriam tratamento diferenciado; 3) ser comum é desimportante.

É com essa frase – mais do que qualquer outra coisa que tenha dito ou feito – que Lula pisoteia sua extraordinária biografia. E, ao fazê-lo, esmaga 190 milhões de brasileiros comuns. Como muitos, eu sempre admirei Lula – antes mais do que até há pouco, é verdade. Na campanha presidencial de 2002, coube a mim fazer as reportagens sobre a vida de Lula e de sua grande família. Tive a alegria de conhecer todos os irmãos de Lula, os meio-irmãos, os primos, os tios, os amigos. Não só os irmãos que mais freqüentam as páginas da imprensa, como Frei Chico e Vavá, mas também outros, como Jaime, que trabalhava como metalúrgico, e Tiana, merendeira de escola. Eles são extraordinariamente comuns, como Lula e como todos nós.

O que Lula deu ao país como capital simbólico ao tornar-se presidente do Brasil era enorme. Vi nas ruas, fazendo reportagem, o aumento da auto-estima de brasileiros que até então acreditavam que ser comum era desimportante, que o poder não era para o homem comum. Gente que descobria, com Lula, que também era habitada pelo extraordinário. Grande, muito grande. E agora Lula diz essa frase. Ela mesma tão comum na boca das elites que precisavam se diferenciar para justificar seus desmandos e seus privilégios desde o Brasil colônia.

Todos esses dias eu esperei que Lula dissesse que errou, que pedisse desculpas públicas, que lembrasse de si mesmo como um homem comum, que merece tratamento de homem comum, como todas as pessoas que o elegeram e como todas as pessoas que não votaram nele, mas cujo país é governado por ele. Não aconteceu. Ao que parece, o pragmatismo do político prevaleceu sobre os ideais do homem comum.

Acho que vamos demorar muito tempo até conseguir alcançar não só o significado, mas as enormes consequências da mais terrível frase já pronunciada por Lula. Tão terrível porque ela destrói um valor simbólico que não pertence ao operário que virou presidente, mas, num momento histórico determinado, foi encarnado por ele. O de que ser comum não é banal, não é trivial, não é óbvio. O de que somos, sim, todos comuns e, ao mesmo tempo, extraordinários.

Comuns e singulares. Alguns mais bonitos, outros mais inteligentes, outros ainda engraçados. Alguns, como eu, não conseguem recortar um pedaço de papel em linha reta e derrubam sorvete na roupa, mas são capazes de escrever uma frase interessante. Há aqueles que tocam música ou pintam lindamente sem nunca ter estudado, os que cozinham com um tempero só deles, os que contam histórias sem saber ler nem escrever. Há de tudo, ainda bem.

Nunca encontrei ninguém que não fosse habitado pelo extraordinário. Mas só a igualdade permite que sejamos singulares cada um a sua maneira, só a igualdade concilia a enorme riqueza de nossos diferentes modos de ser e de estar no mundo. Essa é a diferença que nos aproxima. Não aquela, forjada, que nos afasta. A singularidade que nos permite perceber que, na beleza da nossa humanidade, somos mais iguais do que diferentes. Que a diferença serve para alargar a riqueza da nossa vida comum, em comum.

O que quero dizer aqui é: não acredite nessa frase de Lula.

Vou fazer a minha parte nesse ato cotidiano de resistência. E contar não a história de Sarney, mas a de Manezinho. Eu o conheci na mesma semana em que Lula pronunciou A frase. Não ele, mas os fragmentos do final de sua história. Fazia uma reportagem sobre a única família que resistiu à destruição da favela Jardim Edite, na Zona Sul de São Paulo. Uma única casinha pintada de azul em meio aos escombros que até o final de maio eram habitados por mais de 800 famílias, em meio ao que hoje é uma zona imobiliária em expansão, ao lado do mais novo cartão postal da capital paulista, a ponte estaiada. A matéria foi publicada neste site com o título de Marcão da Pipoca contra a expansão imobiliária.

Manezinho também morava ali. Separado da mulher e da filha, sozinho no seu barraco. Todo dia esse migrante nordestino puxava sua carrocinha, juntando sucata pela cidade. Sobrevivia disso. Seguidamente bebia além da conta, mas sem causar grandes incômodos. Quando a favela foi despejada, depois de uma longa batalha judicial e de um acordo entre a prefeitura e a associação de moradores, Manezinho disse: “Só saio daqui morto”. Era uma frase de efeito. Virou destino.

Num dia de maio, Manezinho estava sentado diante de seu barraco, enquanto as máquinas destruíam a favela. Avistou uma calha de latão. Foi pegá-la para vender ao ferro-velho. Um muro inseguro, como muitas das ruínas ali, desabou sobre ele. Manezinho foi socorrido por Marcão da Pipoca, seu filho e os trabalhadores da empreiteira. Ainda disse: “Eu pedi”. Talvez, confuso, tenha achado que a dor se devia a um castigo por ter pegado a telha. Não sei. Manezinho morreu. Enquanto era enterrado no Cemitério São Luiz, “num caixão bonito pago pela empreiteira”, como diz Marcão da Pipoca, o barraco de Manezinho foi demolido pelos homens e pelas máquinas. Não havia mais nada dele no mundo.

Tudo isso se passou atrás da montanha de terra em que se transformou a favela. Da bela ponte estaiada, nada se vê. A demolição de centenas de casas, rotinas de vida, sonhos de gente, é sempre uma morte simbólica. A de Manezinho foi literal. Mas quase ninguém viu. Menos ainda ligou. Tentei descobrir na internet o que sites ligados ao Jardim Edite diziam sobre Manezinho. Em um dos poucos que faziam referência a sua morte, ele era um bêbado sem nome. Como se o alcoolismo de Manezinho justificasse que um muro desabasse sobre ele, sepultando sua vida. Uma das lideranças comunitárias mais importantes disse que “coisas assim acontecem”. Ninguém quer “criar caso”, à espera do conjunto habitacional que a prefeitura prometeu construir ali para apenas 240 das mais de 800 famílias.

Entre Sarney e Manezinho há muitas diferenças. A mais simbólica delas não é a de que Manezinho era um homem comum e Sarney supostamente não seja. Mas a de que a Manezinho foi oferecido R$ 8 mil pela sua única casa ou R$ 500 de aluguel por dez meses. E a Sarney era dado, irregularmente, R$ 3,8 mil de auxílio-moradia todo mês, mesmo ele tendo casa fixa em Brasília.

Da frase de Lula pode-se inferir que algumas mortes são menos importantes que outras. Algumas mortes são visíveis, outras não. Por quê? Porque algumas vidas supostamente valeriam mais a pena do que outras. Algumas vidas seriam supostamente mais importantes do que outras.

Não acreditemos nisso. Meu ato de resistência é devolver a Manezinho não a sua vida, porque isso é impossível, mas a história de sua vida. Me comprometo aqui a resgatá-la. E contá-la nessa coluna. Se você puder ajudar, se souber algum detalhe, uma informação que seja, sobre Manezinho, me ajude, escreva nesse espaço ou me envie um email.

Toda vida é comum, toda vida é extraordinária. Toda vida vale a pena.

O fotógrafo Marcelo Min enviou duas fotos de Manezinho. Agora ele já tem, pelo menos, uma imagem

O fotógrafo Marcelo Min enviou duas fotos de Manezinho. Agora ele já tem, pelo menos, uma imagem

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(Publicado na Revista Época em 22/06/2009)

Marcão da Pipoca luta contra expansão imobiliária

Ao lado do mais novo cartão-postal de São Paulo Marcão e sua família já não têm mais vizinhos, mas ainda defendem seu lar

Marcelo Min (fotos) e Eliane Brum (texto)

UMA PEQUENA ALDEIA GAULESA  O casal José Marcos, conhecido como Marcão da Pipoca, e Maria Aparecida, sua filha Késia e o neto Miguel Isaías, diante de sua casa, numa favela que não existe mais, na Zona Sul de São Paulo. Das mais de 800 famílias, a sua é a única que permanece no local

UMA PEQUENA ALDEIA GAULESA
O casal José Marcos, conhecido como Marcão da Pipoca, e Maria Aparecida, sua filha Késia e o neto Miguel Isaías, diante de sua casa, numa favela que não existe mais, na Zona Sul de São Paulo. Das mais de 800 famílias, a sua é a única que permanece no local

José Marcos Carneiro Santana e sua família habitam um mundo que não existe mais. Ele fez sua casa quando cartões-postais de uma São Paulo monumental, como a ponte estaiada e a Avenida Berrini, nem existiam, quando tudo era lama e ninguém queria aquele pedaço de charco. José Marcos e os tantos como ele tiveram de querer. O Jardim Edite, um amontoado de barracos colados uns aos outros, só tinha flores no nome. Desapareceu no fim de maio, levando com ele a vida cotidiana de mais de 800 famílias. Sobrou José Marcos, sua mulher e seis filhos, resistindo numa casa que ele, muito religioso, pintou da cor do céu. No tabuleiro do mercado imobiliário, só resta ele a derrubar, o último peão.

Está lá porque entrou com uma ação de usucapião e obteve uma certidão, registrada em cartório, que lhe garante ficar no local enquanto não sai a sentença definitiva. Quando a empreiteira mandou que pegasse suas trouxas e fosse embora, José Marcos colou a certidão na parede. Todos foram varridos dali, menos ele. Sobrou ainda outra casa, cujo dono – de classe média – afirma ter escritura e não estar em área pública. Isso também a Justiça terá de decidir.

José Marcos salvou seu canto de mundo, por enquanto, ao se especializar em vender pipoca perto de faculdades de Direito. Ele conta que gosta de “um pessoal mais conceituoso”. “Entrei no ramo da pipoca lá na USP, no Largo São Francisco”, diz. Depois, estabeleceu-se no campus de outra universidade, a Unip, no bairro de Santo Amaro. Há uns 20 anos tem lá um “imperiozinho bem formado”. Nele, é conhecido como Marcão da Pipoca. Quando os rumores da retirada da favela subiram de tom, José Marcos conversou com seus clientes, estudantes de Direito, enquanto preparava sua especialidade com provolone. “Você tem a posse passiva”, os quase “doutores” disseram unânimes. José Marcos contratou por lá mesmo um advogado e pagou em prestações espichadas.

Penetrar no mundo aos pedaços de José Marcos e de sua família produz estranhamento. É uma grande cova fresca, onde a terra se mistura com fragmentos da vida que existia ali. Uma janela, um sapato velho, uma flor de plástico. Da ponte estaiada, uma montanha de terra encobre a visão do que parece um cenário de guerra. A casa azul e seu mundo em dissolução ficam ocultos. Miguel Isaías, neto de José Marcos, foi gerado ali. O barraco de Késia, a mãe, foi posto abaixo. Ela caiu entre os escombros quando foi buscar a água que cortaram e machucou a barriga de quase nove meses. Foi levada ao hospital para que o filho nascesse e, agora, o amamenta em meio à devastação.

DUAS PAISAGENS, MESMO ÂNGULO  Na foto à esquerda, o Jardim Edite. À direita, o que sobrou. A prefeitura afirma que construirá um conjunto habitacional para parte das famílias retiradas

DUAS PAISAGENS, MESMO ÂNGULO
Na foto à esquerda, o Jardim Edite. À direita, o que sobrou. A prefeitura afirma que construirá um conjunto habitacional para parte das famílias retiradas

Atrás do monte de terra, morreu outro morador, Manezinho, quando um muro desabou sobre ele, em meados de maio. Manezinho estava sentado diante do barraco de onde jurou “só sair morto”, quando avistou uma calha de latão. Ao alcançá-la, porque vivia de juntar sucata, ruínas inseguras caíram sobre ele. Suas últimas palavras foram: “Eu pedi”. A empreiteira fez um enterro “com um caixão bonito”, nas palavras de José Marcos. Diziam que Manezinho bebia além da conta, e ninguém parece ter ligado muito. Ele se tornou vítima de uma guerra invisível.

Depois de uma disputa judicial, o prefeito Gilberto Kassab (DEM) prometeu construir ali um conjunto habitacional para 240 das 842 famílias do Jardim Edite. Os moradores poderiam escolher entre receber R$ 8 mil para comprar uma casa noutro lugar, um auxílio de R$ 500 por dez meses de aluguel ou ser encaminhados a outra unidade. O valor médio do metro quadrado da região é de R$ 4 mil, para apartamentos residenciais, segundo a Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio (Embraesp). É uma área em expansão, com valorização crescente. Ao longo das avenidas alinham-se alguns dos mais caros hotéis da cidade e prédios de luxo ocupados por grandes empresas. A única intersecção do Jardim Edite com a vizinhança chique era o tráfico de drogas. Carrões BMW, Volvo ou Citroën estacionavam na favela com os faróis apagados, para desgosto da maioria dos moradores.

José Marcos resiste porque a pipoca fez uma ponte que lhe permitiu alcançar a Justiça. Ele não acredita que os moradores da favela poderão voltar. Chegou ali nos anos 70, vindo de Minas Gerais com o sonho de gravar um “long-play” de samba. A vida revirou, e sua música virou o estalo da pipoca na panela. Ali conheceu sua mulher, virou evangélico e teve seis filhos. “Para mim, essa casa é muito linda”, diz. “Se for obrigado a vender, eu vendo, mas pelo valor correto.”

A família sente falta dos vizinhos, mas gosta do silêncio. Agora não há mais forró à noite, não há mais nada. Só eles e seu estranho mundo, uma miragem entre a ponte estaiada e os prédios da Berrini. Há um filme de Frank Capra chamado Do mundo nada se leva (1938). Nele, uma excêntrica família decide resistir em sua casa ao avanço de um grande empreendimento imobiliário. O filme, que ganhou o Oscar, tem final feliz. José Marcos e sua família também lutam pelo seu happy end na casa azul. Mas, do seu mundo, quase tudo já foi levado.

(Publicado na Revista Época em 18/06/2009)

Como se conquista a felicidade?

Descubra como com uma prostituta chamada Ilya

Ilya é prostituta no porto de Pireu, o mais famoso da Grécia. E é absurdamente feliz. Homero é um filósofo, um escritor americano que ancora determinado a iniciar uma odisséia pessoal para descobrir porque nosso mundo é tão infeliz. Os nomes, obviamente, não são um acaso. Homero acredita que, pisando sobre a mesma trilha de Aristóteles, Sócrates e Platão, vai encontrar a resposta que procura. Ele acha que, se descobrir porque a Grécia clássica, apogeu da experiência humana, entrou em declínio, pode alcançar o mistério. Ilya e sua felicidade são incompreensíveis para o filósofo, que precisa entender, não sentir. A felicidade de Ilya, por inacessível que é, o ofende. Decide então que a prostituta feliz simboliza a Grécia em declínio. Se conseguir redimi-la, pode redimir o mundo. A redenção de Ilya é a salvação do mundo. E, quem sabe, ao salvar o mundo, também ele possa ser feliz.

Esse é o enredo de Nunca aos domingos, um filme antigo, preto e branco, de 1959. Assisti-o pela primeira vez na noite da última sexta-feira, para respeitar o título. Foi o presente de aniversário de dois amigos muito queridos. Como passei 43 anos sem conhecê-lo? Ele já existia quando eu nasci. E levou mais de quatro décadas para chegar a mim. Escrevo sobre ele com o desejo de que você, que me lê, tenha vontade de correr para a locadora e abreviar o tempo que ainda poderia esperar. Sabe quando você encontra algo muito especial – e muito simples, como um filme, um livro ou uma comida – e quer compartilhá-lo com o mundo inteiro? Pois é. Nunca aos domingos é, ele mesmo, uma experiência de felicidade. Me descobri com aquele sorriso bobo no rosto na maior parte do tempo. Aquele sem dentes, embevecido, que a gente só pendura na cara quando não tem ninguém olhando.

Ilya rejeita tudo o que é mau e feio, no seu ponto de vista. No festival de teatro de Atenas, ela bota uma placa de papelão na porta de seu apartamento tão assediado: “Fechado por causa da tragédia grega”. Ela as adora, mas as interpreta a seu modo. Homero, para quem Ilya virou um objeto de estudo, se escandaliza. Para ela, todas as tragédias terminam com a mesma frase: “e foram todos para a praia”. Uma variação do “e foram todos felizes para sempre”. “Ela deu um final feliz para a tragédia grega?”, pergunta ele, estarrecido, a seu amigo capitão. “Ilya é feliz, tem a sua forma própria de ver a vida. Deixe-a em paz”, responde o capitão, que é o verdadeiro filósofo da história.

Mas deixá-la em paz é tudo o que Homero não consegue. Ele é zeloso demais de sua verdade para ter essa grandeza. Quando sua suposta verdade é posta em xeque pela experiência da vida, por outras verdades, ele sente-se em risco. E precisa destruir a causa de sua insegurança, com a melhor das intenções. Não conhecemos tantas pessoas assim, para quem tudo o que é diferente de sua crença ou certeza torna-se imediatamente ameaçador e precisa ser destruído? Quantas vezes nós mesmos não agimos assim diante do novo? E, para ocultar o nosso medo, invocamos a fé, a ideologia, a moral ou uma suposta sabedoria que só nós temos para travestirmos de bons princípios a nossa incapacidade de ver e escutar o outro, a nossa deformação, exposta ao rejeitarmos tudo o que é diferente de nós como errado ou impuro.

Para Homero, Ilya não é uma mulher, é uma ideia. Ele possivelmente seria mais feliz se apenas assumisse seu desejo de se deitar com ela para fazer amor. Mas isso era banal demais para Homero, que só acreditava no acesso ao conhecimento pela razão, jamais pelos sentidos. A única porta que se sentia seguro ao escancarar era a dos livros. A da carne era insuportavelmente temerária. E por isso ele precisava desprezá-la. Não bastava fechar essa porta, era necessário destruí-la, dinamitar o caminho.

Homero quer incutir na mente de Ilya – ele, que tanto teme seu corpo –, “razão em lugar de fantasia, moralidade em lugar de imoralidade”. Quer transformá-la. Ele diz ao capitão: “A lei deve ser restabelecida em toda parte, não vê?”. Ao que o capitão responde: “Vejo que você terá os olhos vendados por toda a vida”. Mas Homero, como tantos grandes pequenos homens de nosso mundo, é arrogante demais para escutar. Ele começa por impor a Ilya a interpretação “correta” das tragédias gregas. E arranca de Ilya seu prazer pelo teatro, aguardado por ela com tanta expectativa. Deixa Ilya triste.

A cena em que Homero irrompe no quarto em que Ilya dorme depois de uma noite intensa é antológica.

– Você é feliz? – ele pergunta.
– Sou – ela diz.
– Você gosta da sua vida?
– Gosto.
– Você gosta do seu trabalho?
– Gosto.
– O que exatamente te faz feliz?
– O sol brilha sobre mim. Faz-me feliz. Se como um bom pescado, fico feliz. Toco-te, e se eu gostar do tato, sou feliz.

Ilya diz a Homero o que sua vida já tinha demonstrado a Homero. Mas Homero não era capaz de escutar a vida, menos ainda as palavras. Ele faz a ela a proposta:

– E se eu te demonstrasse que você não é feliz?

Homero então convence Ilya a lhe dar duas semanas de sua vida para que possa salvá-la. Ao fazê-lo, une-se ao único inimigo de Ilya, que por razões mais pragmáticas, também quer que ela desista de ser o que é. Mas Homero, como tantos que conhecemos, acredita que a degradação está sempre no outro. Suas boas intenções o absolvem previamente de todos os crimes que possa vir a cometer em sua ânsia por impor um único jeito “certo” de viver.

E o resto não vou contar, para respeitar o prazer de quem deseja assistir ao filme.

Será que Homero vai descobrir que é ele – e não Ilya – que vive na fantasia? Que de fato ele não estava procurando, sua busca era só um subterfúgio para seu verdadeiro objetivo, o de convencer a todos, e principalmente a si mesmo, que sua escolha era a única certa? E, quando encontra uma resposta que não buscava, não é capaz de aceitá-la? Será que Homero vai perceber que é ele que está sendo transformado enquanto tenta transformar Ilya?

As perguntas que a história de Homero suscita valem a pena porque podem ser aplicadas a cada um de nós. Será que não somos mais como ele e menos como Ilya ao olhar para o mundo, para o outro e para nós mesmos? Ilya olhava com imensa generosidade para a sua vida – e para a do outro. Por isso era feliz e fazia os outros felizes. E você? Como olha para a sua vida? E para a do outro?

Sempre fico curiosa com a quantidade de livros, palestras e dvds sobre a fórmula da felicidade. E como isso vende. O próprio título dessa coluna é um chamariz para todos nós, que nos deixamos seduzir pelo apelo publicitário da felicidade, por uma pretensa receita de felicidade como mais um artigo a ser comprado e consumido. O que Ilya nos mostra, sem nenhuma intenção de mostrar, é o óbvio: não há nenhuma fórmula. Assim como não há uma única interpretação para esse filme. Cada um precisa encontrar o seu modo de olhar para a tragédia grega que é a nossa aventura no mundo. É esse modo de olhar que nos dá a singularidade de nossa experiência, nos torna únicos ao nosso próprio modo.

O que me parece, apenas, é que quanto mais nos fixamos em certezas de certezas, mais longe estamos das possibilidades de descoberta e, talvez, de bocados de felicidade. As receitas de felicidade não fazem nada além de obedecer ao mercado, são mais um objeto de consumo que precisamos comprar para manter as engrenagens funcionando. Somos bombardeados minuto a minuto com receitas embaladas na fórmula: dinheiro + beleza e juventude + poder = sucesso. E sucesso = felicidade. E um pouco mais: precisamos ter sucesso e ser felizes de uma determinada maneira que nos vendem como a única possível. E, sem pensar, vamos comprando devagarinho, com uma pequena rebelião aqui, outra acolá. A alma não se vende de uma vez só, como em alguns clássicos, ela nos é roubada pelos flancos, aos poucos.

Pare por alguns minutos, agora. Se estiver trabalhando, se esconda, nem que seja no banheiro. Vasculhe suas memórias. Quando foi que você realmente foi feliz? Com a felicidade absurda de Ilya? Cada um tem a sua resposta. Eu descobri, neste exercício, que meus momentos de felicidade foram um sentimento profundo de amor por um homem, o gosto desse homem, uma série de feijoadas, o sabor de um vinho, muitos livros e filmes, um banho quente, uma atmosfera na casa de meus pais, compartilhando silêncios, as várias vezes em que percebo a beleza inabarcável da minha filha, as longas conversas com meus amigos mais queridos, uma paisagem passando pela janela do trem, do ônibus, do carro, todas as vezes em que meu irmão tenta me explicar os mistérios do universo com os olhos brilhando mais que as estrelas (acho que nunca aprendo também para que ele possa repetir a explicação), o cheiro do frio da manhã desse último sábado, o sol da manhã desse último sábado. São tantos. E nenhum deles exigiu a aplicação da fórmula com que nos bombardeiam todos os dias, aquela pela qual nos deixamos escravizar.

Com ganas de Pigmalião, Homero encontrou uma mulher que se recusou a virar estátua. E uma resposta que não foi buscar. Jules Dassin (1911-2008), o diretor de Nunca aos domingos, paradoxalmente também. Americano de família judia, ele foi uma das vítimas mais famosas do macartismo, na Guerra Fria. Seu nome estava na lista negra de Hollywood, acusado de ser comunista. Dassin teve de deixar os Estados Unidos, onde foi assistente de direção de Alfred Hitchcock, e procurar trabalho na Europa. Uma tragédia, sem dúvida. Mas talvez o melhor que poderia ter acontecido a ele. No exílio, ele conheceu sua musa, a grega Melina Mercouri (1920-1994). Dassin interpreta Homero, Melina encarna Ilya. Pelo papel, ela ganhou o prêmio de melhor atriz do festival de Cannes, em 1960. Três anos antes, Giuletta Masina ganhava o mesmo prêmio por outra prostituta extraordinária, no imperdível Noites de Cabíria (1957), de Federico Fellini.

Como a Ilya de Nunca aos domingos, Melina é uma gigante. Perto dos 40, em sua beleza nada convencional, de olhos rasgados e boca grande, ela tinha demasiada idade para as heroínas da época. Mas ninguém ousou imaginar outra atriz para o papel. Melina era poderosa, na tela e fora dela. Muitos anos depois, disse uma frase aos ditadores militares que tentaram cassar sua cidadania nos anos 70: “Eu sou grega e vou morrer grega. Vocês são fascistas e vão morrer fascistas”. Mais tarde, na redemocratização do país, tornou-se a ministra da cultura da Grécia.

Melinda é Ilya. E torna-se a Ilya de Jules Dassin. Perseguido e banido de seu país pela doutrina do macartismo, Dassin reafirma a liberdade das escolhas com esse filme que, com humor, sutileza e encanto, é uma crítica a todas as doutrinas que esmagam o homem e a invenção da vida. Com ele, de mãos dadas com sua Ilya, Dassin também termina à beira-mar.

E você? Qual foi seu último momento de felicidade? Se quiser, compartilhe-o com todos nós aqui nesse espaço que não é meu. Aqui, eu só inicio. “E vamos todos juntos à praia?”.

(Publicado na Revista Época em 15/06/2009)

A vida muda num segundo

O que podemos aprender ao entrar em contato com o imponderável da vida?

Na segunda-feira, 1° de junho, peguei um táxi para me levar à redação da ÉPOCA, em São Paulo. Eu vou cedo, para fazer a última revisão no texto desta coluna, antes de enviar para a equipe de ÉPOCA online botar no ar. Depois, participo da reunião de pauta das 10h, onde são tomadas as primeiras decisões sobre a próxima edição da revista. O taxista estava nervoso. “Você viu o que aconteceu? Um avião desapareceu”. Foi assim que eu soube da tragédia do Air France. O motorista precisava compartilhar seu horror com alguém. Relatou-me todos os detalhes que ouvira pelo rádio até chegar ao prédio da Editora Globo. Meia-hora de trânsito paulistano depois, eu sabia que mais de duas centenas de pessoas haviam sumido em algum momento depois das 23h15 do domingo, 31/5. Para além disso, só havia incerteza.

Logo depois da minha chegada à redação, o diretor de ÉPOCA, Helio Gurovitz, me alcançou. “Você vai para o Rio”. Eu pedi uns minutos para terminar a coluna, levantei e fui. De avião, claro. Na hora, é sempre um misto de excitação e de medo, pelo menos para mim. Excitação porque eu sou, como diz minha família, um “bicho repórter”. Eu sofro se não estou onde as coisas estão acontecendo. E medo porque eu sabia que teria de entrar em contato com uma dor sem nome. Cheguei à sucursal do Rio no início da tarde e comecei a localizar os parentes das vítimas, junto com outros quatro colegas. Como você fala com alguém que acabou de saber que o corpo da pessoa que mais amava possivelmente está em algum lugar do oceano Atlântico?

Tarde da noite, no hotel, meu marido me ligou. “Como você está?”. Eu disse: “Estou bem. Acho que depois de 20 anos de reportagem já consigo lidar melhor com isso”. É incrível como a gente, por mais que se esforce, se conhece menos do que gostaria. Na semana que passou eu estava particularmente muito iludida comigo mesma. Naquela noite dormi mal. Tive pesadelos, depois insônia. Uma rotina que se repetiu pelas noites seguintes. Só agora, uma semana depois, acordo da primeira noite sem sonhos ruins.

Peguei um táxi para me levar à sucursal logo cedo, na terça-feira. O Rio de Janeiro continuava lindo, as pessoas caminhavam ao sol, sem ligar para o vento de junho. Na minha cabeça, ecoava sem parar a frase de Joan Didion, uma brilhante jornalista americana: “A vida se transforma rapidamente, a vida muda num instante, você senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Joan a escreveu no livro “O Ano do Pensamento Mágico” (Nova Fronteira, 2006), em que elabora, com uma grande reportagem, o luto pela perda repentina de seu marido, vítima de um acidente coronariano fulminante.

Eu tinha um longo caminho até a sucursal. O trânsito do Rio não chega perto do caos de São Paulo, mas ainda assim é difícil. Concentrei-me em pensar no que eu estava sentindo, em entender aquela noite de sonhos ruins, em me entender naquele dia que começava. Por que eu, que tanto me interessava pela tragédia humana, rejeitava tanto aquela cobertura (para além da dificuldade óbvia, claro)? Porque é um vazio, concluí. Ainda que o piloto possa ter errado ou o avião ter algum problema mecânico, não há desejo ali. No assassinato, alguém quis matar, ainda que por um segundo. Na guerra, há intenção. Nas mortes desejadas por alguém há drama humano. Há cobiça, há inveja, há maldade, há até – ou principalmente – paixão. Mas na queda de um avião, se ela não for causada por uma bomba, não. Pelo menos era o que eu acreditava nesse ponto de minhas divagações.

Tragédias como essa comovem tanto as pessoas todas, mesmo as que não tiveram nenhuma perda, mesmo as que nunca voaram, porque esse tipo de fatalidade nos coloca em contato com aquilo que mais tememos: a certeza de que pouco controlamos o nosso destino. É provável que quase todos os passageiros do voo 447 estivessem perfeitamente saudáveis, nem remotamente ameaçados por uma doença. Apesar de toda a empáfia, de conseguirmos até mesmo cortar os céus com asas de metal, a verdade é que toda a certeza de controle não passa de ilusão. Nossa vida muda em um segundo, para o bem e para o mal, sem que pouco ou nada possamos fazer para evitar.

Suspeito que a impossibilidade de controlar o que realmente importa, como a nossa vida, é o que mais tememos em nossa época, toda ela supostamente dominada por uma parafernália eletrônica que nos parece tão precisa, tão poderosa, tão segura. Tão nossa. Descubro então, antes de chegar à Cinelândia, no centro do Rio, que esse talvez seja o maior de todos os dramas humanos.

Catástrofes como a do voo 447 confrontam-nos de imediato com nossa verdade mais profunda: não controlamos quase nada do que é essencial, menos ainda a morte. E sobre isso há pouco a dizer. Ninguém desejou a morte de 228 pessoas que carregavam seus sonhos para Paris. Aconteceu. É esse o vazio com que temos de lidar. A culpa não é do outro, como nos assassinatos que mobilizam a opinião pública. Não há um psicopata tão supostamente diferente de nós que podemos acreditar que estamos a salvo de toda loucura. Não há leis nem cadeia para isso. Não há como evitar por completo falhas e erros. Ainda que a causa seja um erro humano ou uma falha mecânica, isso sempre poderá um dia acontecer. Não há como prever ou escapar totalmente das tempestades da vida. E é esse o tipo de calamidade que mais nos evoca a tragédia maior, aquela com a qual já nascemos, que é a certeza da inevitabilidade da morte.

No caso do voo 447 não podemos nos iludir de que não seremos afetados, de que o drama está longe de nós – ou mais perto do outro. Não. Essa é a fatalidade que pertence à verdade essencial da vida de cada homem, de cada mulher. Não há controle. A vida muda rápido, a vida muda num instante, você senta na poltrona de um avião para uma viagem que você planejou nos mínimos detalhes e a vida que você conhecia acaba de repente.

Pensando tudo isso que agora escrevo, comecei a chorar no banco de trás do táxi. Não um choro convulso, mas lágrimas lentas e intermitentes. Eu sofria pela perda de todas as óperas que o maestro Sílvio Barbato não comporia, pelas frases musicais que jamais seriam criadas; pelas descobertas que o cientista Octavio Augusto Ceva Antunes deixaria de fazer numa área tão importante como a dos medicamentos contra o HIV; pelo que Deise Possamai jamais saberia sobre si mesma, porque a viagem que fazia à Itália em busca de suas raízes nunca seria completada; pelos amigos que Adriana Van Sluijs, que nasceu para ser amiga de alguém, não teria. Percebi naquele instante, enquanto olhava para o mar do Rio de Janeiro, o quanto o mundo acabara de ficar mais pobre por todas as vidas que deixaram de existir de repente.

E pelo menos umas duas lágrimas abriram um rastro na camada de protetor solar que cobria meu rosto, por todas as possibilidades perdidas por aqueles que tiveram o curso da vida alterado, ainda que indiretamente, pela queda do avião da Air France. Como o rumo da existência havia mudado de forma abrupta. Até mesmo para mim. Pensei na semana que eu tinha planejado com tantos detalhes. Que consequências teria essa mudança de curso na minha vida, a longo prazo? Que acontecimentos em cadeia foram suspensos e que outra série foi acionada porque eu estaria no Rio e não em São Paulo, fazendo isso e não aquilo? Eu nunca saberia, já que não há como saber o que poderia ter sido. Mal podemos ter a pretensão de saber o que é.

Quando cheguei à sucursal, liguei para o amigo de um dos passageiros do voo 447. Perguntei a ele se achava que uma das filhas gostaria de falar sobre o pai para o perfil que eu estava fazendo. Ele disse: “Não vou perguntar isso a elas, eu tenho de ser sensível. Sei que vocês, jornalistas, não têm sensibilidade nessa hora”. Minha garganta arranhou. Por ela emergiu uma resposta malcriada, mas tive a sensatez de prendê-la ainda no esôfago. “Nós, repórteres”, como as pessoas gostam de dizer, convivemos com as certezas alheias a nosso respeito. As pessoas parecem sempre saber quem somos e o que sentimos: ou seja, somos seres sedentos de sangue, sem nenhuma espécie de limite, prontos a desrespeitar a dor de alguém para dar uma notícia sensacionalista. É verdade que alguns são assim mesmo. Mas também é verdade que a maioria dos jornalistas que conheço não tem nada a ver com esse perfil. Naquele momento, minha colega Martha Mendonça enchia os olhos de lágrimas ao desligar o telefone depois de tentar falar com a mãe de uma vítima. Escreveu um post no blog Mulher 7X7: “Jornalista não pode chorar?”

Contar a história das tragédias faz com que nós, jornalistas, entremos em contato com uma frequência não desejada com aquilo que a maioria tenta esquecer para conseguir tocar a vida. Nos meus primeiros 11 anos de reportagem, trabalhei no jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Lá, eu era conhecida como uma repórter competente para “contar histórias humanas”. Isso fazia com que sempre fosse escolhida para cobrir todo o tipo de drama, de assassinatos a acidentes. Num ano, a RBS, grupo ao qual pertence o jornal, fez uma campanha para reduzir os acidentes de trânsito. Foi determinado então que todos os choques com vítimas fatais virassem notícia no jornal. Todos.

Era eu a primeira a ser escalada. Minha missão era contar quem eram aquelas pessoas cuja vida acabara de se interrompida, quais eram seus sonhos suspensos num átimo, além de todos os detalhes das circunstâncias que as levaram até ali. Lembro que à meia-noite de um domingo eu me vi numa estrada, a 200 quilômetros de Porto Alegre, diante dos corpos carbonizados de quatro crianças no banco traseiro de um carro. Comecei a perceber o óbvio: cada pessoa, rica ou pobre, velha ou jovem, preta ou branca, era movida por um sonho, todas elas estavam indo fazer alguma coisa quando morreram de repente, todas tinham alguma circunstância que poderia ter evitado que estivessem naquele carro, naquele quilômetro, naquele exato instante. E que todos os pequenos detalhes do cotidiano que, em circunstâncias normais sequer são registrados na memória, ganham sentido e relevância na fatalidade. Alguns até mesmo se revestem de premonição.

Logo comecei a detectar todos esses detalhes e fluxos de acontecimentos na minha própria vida. Cada acontecimento trivial tinha potencial de profecia. Se eu perdia um ônibus, eu já imaginava o lide (como é chamado o primeiro parágrafo de uma matéria): “Eliane Brum correu para pegar o ônibus tal, mas as portas se fecharam diante do seu rosto. Ela ainda gritou para o motorista, mas ele seguiu. Um passageiro tentou fazê-lo parar, mas…” É claro que o ônibus seguinte explodiu. Ou, ao contrário, era esse que tinha explodido. As circunstâncias que levaram à morte poderiam ser as mesmas que levaram a escapar da morte. “Eliane Brum correu para pegar o ônibus tal, mas as portas e fecharam diante do seu rosto. Ela ainda gritou para o motorista, mas ele seguiu. Ela xingou mentalmente sua mãe, que havia telefonado na hora em que ela abria a porta de casa para sair. Mas, não fosse o telefonema, ela hoje estaria morta…”.

Ou seja. Sempre pode ser qualquer coisa. E foi isso que começou a me apavorar. Eu cobria um acidente por semana. No mínimo. Fiquei tão aterrorizada com a total falta de controle sobre o destino, o meu e o de todos os outros, que passei a narrar mentalmente reportagens sobre a minha vida. Ou morte. Tudo o que eu fazia – ou deixava de fazer – soava como premonição. No segundo seguinte, a depender de alguma decisão prosaica, eu poderia estar morta ou escapar da morte. Mas como saber? Era um mergulho radical demais na essência da matéria da vida. Porque é exatamente assim: num segundo podemos estar mortos ou escapar da tragédia, e isso é determinado por uma decisão circunstancial, banal. Como mostraram todas as reportagens com aqueles que embarcaram no voo 447 – e com aqueles que “quase” embarcaram.

Mas pensar o tempo todo que podemos estar mortos daqui a um segundo nos impede de viver. Não lembro como lidei com isso para não ficar totalmente paranóica. Revivi essas lembranças agora, ao narrar as histórias dos passageiros do avião. Me surpreendi, no voo de volta, escrevendo mentalmente um lide. Nele, a repórter que cobrira a tragédia do Air France morrera na queda do avião que a levava de volta para casa. Em seguida lembrei que o mesmo imponderável que poderia me levar à morte repentina já havia me levado ao encontro de um grande amor. O mesmo imponderável foi o que determinou a combinação genética que fez de mim o que sou. É feita da mesma matéria a tragédia e o grande encontro, o melhor e o pior, o começo e o fim da vida. Exausta, acabei dormindo.

Tempos atrás vivi a pior turbulência que passei a bordo de um avião, do tipo que a bagagem despenca na nossa cabeça e as pessoas gritam. Rapidamente fiz um balanço da minha trajetória. Pensei: “Eu não quero morrer agora. Mas vivi intensamente a minha vida até aqui”. E eu sentia isso profundamente, nos ossos.

Quando a turbulência passou, mas ainda assim o avião não pôde descer porque os ventos eram muito fortes, e tivemos de voltar porque o combustível poderia ser insuficiente, peguei um pedaço de papel e escrevi para a minha família: “Não se preocupem. Eu vivi intensamente a minha vida. Vivam as suas vidas e sejam felizes, porque eu fui”. Eu queria libertá-los da minha perda trágica, mas também queria me libertar para a morte sem tragédia. Guardei esse pedaço de papel junto com os documentos, na esperança de que fossem encontrados. Mas o avião conseguiu abastecer, os ventos cessaram e eu cheguei em casa pronta para mais vida, outras reportagens, novos medos.

Agora, no instante em que escrevo, cruza pela minha cabeça o pensamento: “E se essa coluna for premonitória?”. Mas logo essa ideia vai embora, levada pelo cheiro absurdamente delicioso do cordeiro que o João prepara na cozinha para o almoço de domingo, receita secreta e imbatível que alegra prosaicamente nossas vidas.

Espero que, se deu tempo para pensar em algo ao perceber a iminência da morte, cada um dos passageiros do voo 447 tenha lembrado de que viveu intensamente a sua vida. E que essa certeza possa tornar não mais fácil, mas menos pesado, o luto de quem os amava.

Só consegui contar suas histórias porque percebi que era disso que se tratava: a memória de uma vida que valeu a pena, seja por pequenos ou grandes feitos, tanto faz. O que escrevemos ao contar a trajetória dos passageiros do voo 447 não foi uma narrativa de morte, mas de vida. É só a vida que pode dar algum conforto na morte, é só a vida que dá sentido à morte. E é só isso que torna possível ser repórter e fazer bem o nosso trabalho diante de uma dor impossível de alcançar por palavras.

Diante da consciência da falta de controle sobre nosso destino, só nos resta viver bem a nossa vida enquanto ela existir. E isso não é pouco.

(Publicado na Revista Época em 08/06/2009)

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