O doping dos pobres

Promover saúde não é sufocar a dor da vida com drogas legais

Parte da minha família tem origem rural e lá está até hoje. Na roda de conversas, chimarrão girando de mão em mão, os tios com um cigarro de palha pendurado no canto da boca, ficava encasquetada com um comentário recorrente. Toda prosa começava com o preço da soja ou do trigo, evoluía para a fúria da geada do inverno daquele ano, quicava por quanto fulano e beltrano estavam plantando e, por fim, chegava ao ponto que me interessava.

Eu era um toco de gente, mas sentada num banquinho ao pé dos adultos e do fogão à lenha, não havia nada que me arrancasse dali. Depois desses assuntos chatérrimos, que eu suportava com brios de filósofo estóico, finalmente minhas tias começavam a atualizar meus pais sobre as fofocas locais. Invariavelmente havia alguém que tinha descarrilado. Vinha então a voz meio sussurrada, em tom de sentença: “fulana sofre dos nervos”.

Pronto, estava tudo explicado. Menos para mim. Eu não entendia o que eram os tais dos nervos. Só sabia que eles eram os culpados por alterar a ordem daquele pequeno mundo rural. Depois de “atacadas dos nervos”, pessoas até então trabalhadeiras, de repente, não achavam mais que acordar às 4h da madrugada para tirar leite de vaca e plantar soja era a vida que tinham pedido a Deus. Mulheres sensatas largavam as panelas e os filhos ao vento e recusavam-se a juntar o marido bêbado na bodega do povoado. Rebelavam-se. Por culpa dos nervos.

Eu criava ouvidos de Dumbo – não para voar, mas para ficar plantada bem ali, ouvindo até o zum-zum das varejeiras tentando alcançar as bolachas de confeito branco, paridas na cozinha das tias para as visitas do domingo. Só raramente alguém notava meus olhos de bolinha de gude e fazia sinal para mudar de assunto. Naquelas noites, eu nem dormia. Parte por causa dos borrachudos que tinham esfolado a minha pele. Parte por causa do mistério dos ataques de nervos. Será que eu também tenho nervos?, matutava. De manhã, perguntava a um e outro, mas ninguém dava uma explicação convincente. Nervos eram nervos e pronto. E não eram assunto de criança.

Cresci, apalpei outras geografias, mas revisito aquele mundo rural sempre que possível. Nas minhas recentes passagens por lá, descobri que os nervos desapareceram. Não há mais nervos em parte alguma. Agora há depressivos e vítimas de pânico. E, em vez de ataques de nervos, as pessoas têm crises de ansiedade. Antes, o contra-ataque se dava por um arsenal de chás e ervas de nomes estranhos. Mesmo na cidade, não tinha nada que o finado Chico não tratasse com alguma beberagem de cor estranha. Minha teoria pessoal é que não existia vírus ou bactéria ou até mesmo nervos capaz de suportar o cheiro daqueles troços. Mas o velho Chico morreu, não sei dizer se antes ou depois dos nervos. E agora tudo é tratado com comprimidos de cores variadas.

Quando comecei minha aventura de repórter, no final dos anos 80, ainda encontrava referência aos nervos por onde andasse, fosse em zonas rurais de norte a sul, fosse na periferia das grandes cidades. Com o tempo, especialmente a partir dos anos 90, as mesmas queixas começavam a ser embaladas em termos médicos. Nos últimos anos, tenho ficado embasbacada ao entrevistar gente analfabeta que fala em depressão como se fosse o nome de alguém da família. A terminologia médica invadiu a linguagem em todas as classes sociais e regiões – e se inscreveu na cultura.

Há algum tempo penso nos muitos significados dessa enorme mudança. Significa que as pessoas estão sendo mais bem tratadas e tendo acesso a medicamentos? Talvez. Mas não me parece que seja isso. Ou pelo menos apenas isso. Estou preocupada com o que tenho testemunhado pelas periferias do Brasil. Antes, quando batia na casa das pessoas mais humildes, os pais de família me apresentavam sua carteira de trabalho. Isso sempre me devastou, porque revelava a violência silenciosa que vitimava os mais pobres. Com o gesto, eles queriam provar que eram trabalhadores, gente de bem – e não vagabundos ou bandidos porque eram pobres. Eu tentava explicar que não era autoridade nem tinha direito algum de ver seus documentos. Mas o homem diante de mim, estendendo a carteira de trabalho, carregava na alma séculos de humilhação. Então, eu examinava e elogiava seu documento.

Hoje, quase não acontece mais. De uns tempos para cá, o que muita gente tem me mostrado são, adivinhem: “seus” medicamentos. Com um sentido diverso. Acreditam que, por ser jornalista, tenho um conhecimento que eles não têm, sou capaz de esclarecer suas dúvidas. Estou lá, sentada no único sofá ou na melhor cadeira da casa, quando acontece. Depois da prosa inicial, que no meu caso leva umas duas horas, já estamos todos bem à vontade. Então o pai ou a mãe ou a avó fazem sinal para a menina mais nova. E lá vem a criança carregando uma lata da cozinha. Deposita entre as minhas mãos, como uma hóstia. Olho e já sei o que vou encontrar: cartelas de comprimidos até a boca.

Querem saber se faz bem mesmo. Se posso explicar como devem tomar. Se acho que o guri que só apronta na escola deveria tomar também. Me arrepio. Examino o conteúdo. Procuro as bulas. Boa parte são antidepressivos e tranquilizantes. Pergunto quem toma e por que toma. O avô porque não dorme, a mãe e a avó porque estão deprimidas, o pai porque é nervoso e o filho porque é “muito agitado”. Com variações, claro. Mas em geral as deprimidas são as mulheres. Lembro que eram elas também as que mais sofriam dos nervos. Não que os homens não sofram, mas sinto que resistem mais antes de assumir publicamente que são “deprimidos”. Em geral eles não dormem ou são “nervosos”. Muitas vezes, os pais bebem álcool, os filhos são usuários de drogas.

Com delicadeza, explico que não sou médica, que precisam procurar o posto de saúde. Respondem que a próxima consulta é só daqui a três meses. Descubro então que trocam de medicamentos. Quando acham que o seu não está resolvendo, tentam o do outro. Consciente da minha ignorância, afirmo apenas o que posso afirmar: não tomem o medicamento que é do outro nem dêem para as crianças. Semanas atrás uma mulher me perguntou se podia dar um tranquilizante para a sua sobrinha, de 9 anos, que estava muito agitada. Eu disse que de jeito nenhum, “é muito forte”. Minutos depois, veio me contar com um sorriso. Tinha encontrado uma solução: “Dei só a metade”.

A medicalização da dor de existir não é nenhuma novidade. Antidepressivos e tranquilizantes estão disseminados em todas as classes sociais. Para boa parte das pessoas tomar uma pílula para conseguir “aguentar a pressão” é tão trivial quanto tomar um cafezinho. Mas penso que, se você é de classe média, tem mais acesso à informação, à terapia, a um tratamento mais competente. Tem mais acesso à escuta da sua dor.

É importante fazer a ressalva. Não sou contra antidepressivos e tranquilizantes. Nem tenho autoridade para ser. Acho que medicamentos têm sua hora e seu lugar. Mas não é preciso ser médico para saber que, em geral, seu uso deve ser temporário, monitorado e acompanhado por outros recursos. Como psicoterapia e análise, em muitos casos. Ou seja, devem ser usados com muita parcimônia, critério e acompanhamento. E não como se fossem pílulas de açúcar, que podem ser tomadas por todos a qualquer sinal de dor psíquica.

O que tenho visto é um doping social. Combate-se a maconha, o crack, até o cigarro, ótimo. Mas e as drogas médicas que estão pelos barracos e pelos palácios? São menos drogas porque dadas por um doutor?

Minha percepção é de quem anda bastante por aí. Por ser repórter, tenho o privilégio de entrar por várias portas, escutar a narrativa de muitas e diferentes vidas. Para escrever este texto conversei com psiquiatras, psicólogos e psicanalistas que trabalham na rede pública de saúde. Queria ir além do meu testemunho. Seus relatos são mais assustadores que o meu.

“Basta chorar”, afirma uma psiquiatra muito conceituada. “Há poucos psiquiatras na rede pública, em qualquer parte do país. Em geral, as pessoas vão ao médico por algum outro motivo. Então choram. E o médico, seja qual for a sua especialidade, receita um antidepressivo ou um benzodiazepínico (tranquilizantes – ansiolíticos e hipnóticos). Meses depois a pessoa volta. E continua chorando. Aí ganha um mais forte. Ou ganha dois. E ela continua chorando. Mas tudo o que ouve é que é doente e tudo o que lhe dão são remédios. Só que ela continua chorando.”.

“As pessoas são levadas a acreditar que o remédio pode acabar com a sua dor, uma dor que tem causas muito concretas. Não resolve, claro. Um exemplo. Uma mulher tinha dois empregos, um de dia, outro de noite. O que ganhava não dava para pagar as contas. Os ônibus que pegava para chegar até esses empregos eram lotados. Ela vivia num barraco. Aí procurou o posto de saúde e lhe trataram com antidepressivos. Não adiantou. Deram-lhe outro medicamento. Nada. Um dia, sem nenhuma esperança ou recurso, ela tentou suicídio”, conta uma psicóloga. “A questão é que não há promoção de saúde, porque isso implicaria se preocupar com projeto de vida, com perspectiva de vida, com melhoria das condições de vida. O que há é medicalização da vida. Vemos o tempo todo gente que foi viciada em ansiolíticos nos postos de saúde.”.

“A gente vê um monte de gente sofrendo. E sofrendo muito. Mas o atendimento funciona assim: está chorando?, toma um antidepressivo; não dorme?, pega um benzodiazepínico. É uma supermedicalização sem critério. As pessoas estão tomando remédios como se fossem bolinhos”, afirma um psiquiatra. “Vivemos uma época de sedativo social. O médico não tem tempo de escutar, dá um remédio para que parem de chorar ou reclamar, e as pessoas vivem a fantasia de que são atendidas. Não funciona, claro. Elas continuam sofrendo. Então voltam e o procedimento se repete. E assim vai diminuindo a pressão social.”.

Vale a pena parar e refletir. Nossa época está produzindo gerações de anestesiados? A medicalização da dor psíquica é um fenômeno relativamente recente. Pelo menos nesta proporção, com essa enorme variedade de medicamentos disponíveis e muito mais sendo produzido em escala industrial e vendido em licitações para a rede pública em suas variadas instâncias. Cada comprimido de diazepam (benzodiazepínico), por exemplo, custa menos de um centavo para a rede pública. Bem mais barato, digamos, que uma sessão de psicoterapia.

Se pensarmos que a medicação da população com antidepressivos e tranquilizantes se acentuou a partir dos anos 90, que tipo de sociedade teremos daqui, digamos, uma ou duas décadas? O que acontece com as pessoas quando têm a sua dor de existir abafada, mascarada, calada a golpes de pílulas? Não sei. Mas acredito que são perguntas que devemos nos fazer. Nós todos, não apenas os governantes ou os profissionais da saúde. Estamos vivendo uma mudança cultural das mais profundas. E não me parece que estamos suficientemente atentos a suas causas, significados e implicações. Que tipo de mundo e de gente estamos criando quando a resposta para toda dor é uma pílula?

De novo, não sou contra o uso responsável de medicamentos. E me sinto bastante satisfeita por viver numa época em que é possível curar – ou pelo menos controlar – muitas doenças graças ao avanço da ciência. Mas não é disso que se trata. O que tenho testemunhado não é tratamento – mas doping. E do pior tipo, o legalizado, aquele que é travestido como promoção de saúde e promovido pelo Estado, sob a pressão da indústria farmacêutica. E, atenção: cada vez mais cedo. Em todas as classes sociais, as crianças começam a ser medicadas nos primeiros anos de vida, bastando para isso não ter um comportamento na escola considerado “normal”.

Na passagem do tempo, descobri que também eu tinha os tais dos nervos. Desde criança, convivo com as muitas dores de existir. Como quase todo mundo. Às vezes “a vida dói como uma afta”. Mas nem sempre – talvez até raramente – seja caso de antidepressivo. Assim como nossas palpitações de ansiedade nem sempre são patologias ou as noites de insônia são doença. Sentimos tristeza, melancolia, medos, lutos. Tanto pela perda de quem amamos como pela perda de amantes como pelas pequenas perdas de cada dia.

A dor é parte da vida. O fascinante na espécie humana é que conseguimos transformar dor em criação. Elaboramos nossas muitas dores criando poesia, pintura, escultura, música, vestidos, bordados, artesanato, culinária, cinema, móveis, teatro, ciência, histórias. Cada um a sua maneira. Se em vez de elaborar a dor e transformá-la em expressão, tomamos comprimidos que conseguem apenas nos embotar por um tempo, o que estamos fazendo conosco e com o nosso mundo?

Se você pega seis ônibus lotados por dia, trabalha 15 horas, é humilhado pelo seu chefe, mora num barraco e não tem dinheiro para pagar as contas, você está deprimido porque não tem mais forças para suportar esse cotidiano ou está doente porque não consegue dormir? Não. Não é preciso ser médico para saber que ninguém pode estar bem em condições de vida como essas. Sua alternativa não é se entupir de tarja-pretas, mas criar um jeito de lutar por uma vida melhor, pressionar o poder público, criar uma associação comunitária para exigir seus direitos, construir um projeto de vida com aquilo que é possível e brigar por aquilo que precisa se tornar possível.

Ser ativo e ser parte é ter saúde. Não há nada mais doentio e aniquilador do que o sentimento de impotência. E, quando a questão é esta, tomar remédios como se sua dor não fosse legítima, não tivesse causas reais que precisam ser escutadas e transformadas, é acentuar o abismo da impotência. É o contrário de saúde. Por isso, fico muito preocupada quando entro nas casas e os moradores me mostram suas pílulas.

Tenho o privilégio de acompanhar o movimento literário das periferias do Brasil. Em especial, o sarau da Cooperifa, na zona sul de São Paulo. Das mais diversas regiões da Grande São Paulo, toda noite de quarta-feira, centenas de pessoas, a maioria delas pobres, alcançam o bar do Zé Batidão para ouvir e fazer poesia. Sérgio Vaz, o criador da Cooperifa, pode passar horas contando sobre gente que chegou lá aniquilada, com a espinha quebrada, a vida por um triz. E, ao ser escutada, sentir-se parte, transformou a sua vida. Gostaria que alguém fizesse uma pesquisa de saúde mental entre grupos que pertencem a saraus de poesia, rodas de samba, posses de hip-hop, oficinas de arte, associações comunitárias e a população que não pertence a nada, nem a si mesma.

Penso que o conceito de saúde – e de saúde mental – não existe se não abarcar projeto de vida.

O primeiro texto que escrevi, aos 9 anos, foi inspirado pela abissal melancolia de um domingo de manhã em que eu estava sozinha enquanto todos em casa dormiam. Era escrever ou a melancolia me engolir. Aos 11 anos, eu já tinha um livro de poesias. Todas elas elaboravam momentos diversos da minha dor de existir. Para mim, a escrita foi a maneira que encontrei de elaborar a minha angústia, “os meus nervos”. Acabei fazendo disso um projeto de vida.

Já vivi muitos momentos duros, inúmeros traumas. Posso afirmar, sem exagero, que fui vítima da maioria dos artigos do Código Penal, com exceção de assassinato. Estive algumas vezes à beira do precipício. E por duas vezes na minha vida precisei de medicamentos. Tive a sorte de encontrar profissionais competentes, humanistas, que acreditavam no que faziam, no que eram. O uso de medicamentos foi pontual, parcimonioso, controlado e com tempo para acabar. Sempre acompanhado por sessões de psicanálise. Superei cada um deles não me anestesiando, mas elaborando a dor. E criando furiosamente.

Tudo o que vivi uso para escrever. E tudo o que vivi me ensinou a escutar. Quando entro na casa das pessoas como repórter e elas me mostram seus medicamentos, o que esperam de mim é que as escute. E é o que talvez eu faça de melhor. Fico horas em suas casas, apenas ouvindo. Escutando de verdade. A narrativa da vida é um reconhecimento da vida. A escuta da dor é um reconhecimento da dor. Se alguém que sofre procura um médico e, em vez de escutá-lo, ele o entope de comprimidos, o que aconteceu ali não é promoção de saúde, é promoção de doença. E o médico que se sujeita a isso pode estar tão doente quando aquele que o procura. O sistema de saúde não pode funcionar como um reprodutor de impotências. Uma linha de produção de impotências, que em vez de apertar parafusos, coloca bolinhas na boca. Como sabemos por pesquisas, é significativo o número de médicos que não apenas dopa, mas também se dopa.

Promover saúde é promover vida. E a vida começa pela escuta da vida. É o que faço como contadora de histórias reais. Mas quando as pessoas me mostram uma lata de comprimidos, que todos tomam, da criança mais nova ao avô, não é de mim que elas precisam. Para não me sentir impotente, escrevo este texto. Na esperança de que alguém me escute.

(Publicado na Revista Época em 31/08/2009)

Vida de clichê

Quando nos resignamos a uma existência lugar-comum

Na terça-feira (25), Humberto Werneck lançou seu O Pai dos Burros – dicionário de lugares-comuns e frases feitas (Arquipélago Editorial, 2009). Dono de um dos grandes textos da imprensa brasileira, ele passou quase 40 anos colecionando os clichês que sujam as páginas de jornais, revistas, livros. Aquelas palavras que, de tanto ouvi-las, são as primeiras a aparecer na nossa cabeça, na ponta dos nossos dedos. É automático. Chegam antes do pensamento. De certo modo, são as palavras que nos libertam para não pensar. Foram ditas muitas vezes antes, não causarão nenhuma reação inesperada. Não provocarão nada, nem de bom, nem de ruim. Tanto faz dizer que “a vida imita a arte” ou que “o futebol é uma caixinha de surpresas”. É um dizer que nada muda, é um imenso nada.

Por que então os clichês são tão populares? Porque são seguros, é o que disseram gente brilhante como H.L. Mencken e Hannah Arendt. Ao repetir uma ideia velha, o que foi dito e redito por tantos antes de nós, nada sai do nosso controle. Também nada acontece. Uma nova ideia é sempre um risco, não sabemos aonde ela vai nos levar. E, na falta de ousadia, o que nos sobra é medo.

Escrevi uma pequena matéria sobre o dicionário de clichês na edição impressa desta semana. E li todas as 208 páginas, os 4.640 clichês, para conhecer as palavras das quais deveria fugir. Desde então, adquiri um incômodo que não sai de mim. Ao colecionar lugares-comuns, Werneck espera nos instigar a pensar antes de sair escrevendo – ou falando. Se o jogo de palavras vier muito fácil, é porque já foi dito tantas vezes que abriu um escaninho no nosso cérebro. Basta apertar uma tecla invisível e sai de lá pronto. Não custa nada, nem mesmo um esforço mínimo. “O tempo é o senhor da razão”, “a esperança é a última que morre”, “nunca antes na história deste país”… os clichês estão sempre sendo produzidos, até mesmo como estratégia de marketing.

Há os clichês coletivos, que estão no dicionário do Werneck, e acredito que cada um de nós tem um repertório próprio. Expressões que repetimos nos nossos textos, nos nossos discursos, na nossa autodefesa permanente – não apenas diante de outros, mas também no banco dos réus do nosso tribunal pessoal. Ideias que já testamos e sabemos que tipo de reação provocam, um repertório confiável de velhos truques.

Criamos nosso próprio mundo de palavras e de pensamentos. Na busca de um lugar seguro, não copiamos apenas os outros, mas a nós mesmos, infinitas vezes. Se é fácil rir das frases feitas a que a maioria se agarra para não mergulhar no desconhecido, também é fácil observar que muitos dos que riem não ousam ir além dos comportamentos clichês em sua própria vida.

Foi seguindo o fio deste raciocício que fui me tornando incomodada e um pouco melancólica. Tento policiar-me para escrever sem usar fórmulas, ainda que minhas. Forçar-me a buscar jeitos novos, ser uma parte diferente de mim em cada texto. Nem sempre consigo. Mas tento me obrigar a tentar. Depois de 21 anos escrevendo na imprensa, é fácil ser uma cópia de mim mesma.

Sei disso e tento manter-me inquieta. Quando vou me tornando um bichinho, enrodilhada em mim mesma, sou também eu que me cutuco com um pedaço de pau para sair da toca. Conforto é bom, mas é também uma não-ação. Sei que apenas chegando cada vez mais perto de mim mesma é que posso alcançar a possibilidade de ser outra. E de fazer do velho em mim algo novo.

Numa entrevista a Clarice Lispector, o psicanalista Hélio Pellegrino disse algo que me cutucou com delicadeza, mas bem fundo. Sempre que leio uma entrevista ou um texto dele, fico pensando como alguém pode dizer algo tão elaborado com tanta simplicidade, numa resposta oral a uma pergunta que não esperava. E com tanta generosidade para aquele que o escuta. Suas palavras não machucam porque não foram pensadas para ferir. Com a ponta dos dedos, elas acariciam. Foram pronunciadas para dar uma chance ao interlocutor, leitor. São como uma mão que alcança – e não um pé que esmaga. Vivemos num mundo em que as pessoas se sentem mais seguras quando se tornam pés que esmagam. A mão que alcança exige mais coragem, porque alcançar é sempre um risco – e esmagar tem um final previsível.

O Hélio disse, lá pelas tantas: “Escrever e criar constituem, para mim, uma experiência radical de nascimento. A gente, no fundo, tem medo de nascer, pois nascer é saber-se vivo – e, como tal, exposto à morte”. Lembrei da frase e fui reler essa entrevista por causa dos clichês. Pareceu-me, então, que o esforço do Werneck ganhou um sentido mais amplo. Ele tenta, com seu pequeno dicionário, seu “burrinho”, como ele diz, nos chamar a atenção para as inúmeras possibilidades de nascimentos que perdemos quando repetimos um lugar-comum em vez de uma combinação de palavras que só nós podemos fazer.

Não porque somos melhores que os outros, mas porque a singularidade do nosso olhar é só nossa. Como diz o poeta, “se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver”. Ou, na frase genial do menino de 8 anos que li na seção “Quem diria” da Revista da Folha do último domingo (23): “Pai, tô em extinção. Só tem um Guilherme Ribeiro Kierpel no mundo”. Ele descobria ali, depois de uma aula de ciências, a singularidade do que era. Um dia pode descobrir que, para alcançá-la em sua integridade, precisará de muita coragem. Terá de resistir ao conforto de uma vida de lugar-comum.

Clichês são letra morta. Palavras que nasceram luminosas e morreram pela repetição, já que a morte de uma palavra é o seu esvaziamento de sentido. Agarrar-se aos lugares-comuns para não ousar arriscar-se ao novo é matar a possibilidade antes de ela existir. É matar-se um pouco a cada dia, ao matar nossa expressão no mundo. De homens, nos reduzimos a papagaios. Como naquelas reuniões de empresa em que as pessoas se digladiam numa guerra de jargões coorporativos que nada dizem delas, mas fingem dizer. Acreditam que assim mantêm o emprego, seu diminuto lugar no mundo. Se os clichês forem pronunciados em inglês, mais seguras se sentem.

O mundo das frases feitas serve também para isso, para não deixar o novo entrar. Quem não conhece o manual – e é preciso um certo tempo para descobrir que os jargões só são cascas de palavras e não palavras –, é colocado do lado de fora da linguagem. Exilado, não ameaça ninguém – nem o funcionamento do todo – com as palavras mais subversivas e ameaçadoras para este mundo: as próprias.

Quando nos expressamos por palavras, temos sempre a possibilidade de nascer. E se renunciamos ao nascimento, ao trocar a possibilidade do novo pelos chavões, aceitamos a morte antes de viver? Fiquei pensando nisso. Parece-me que os lugares-comuns vão muito além das palavras. A gente pode transformar nossa vida inteira num clichê. Não basta apenas pensar antes de escrever, na tentativa de criar algo nosso. É preciso pensar para viver algo nosso – antes de repetir a vida de outros.

Do mesmo modo que é mais fácil botar no mundo o primeiro chavão que nos vem à cabeça, também é mais fácil – e mais aceito – viver segundo os clichês da nossa família, sociedade, época. Penso que a maioria de nós vai vivendo e repetindo velhas vidas que aparentemente já deram certo e não incomodam ninguém. O que seria o clichê de uma vida de classe média de um brasileiro de hoje?

Vou arriscar. Estudar num colégio privado desde a creche. Começar a falar inglês ainda bebê. Alguma coisa tipo ballet ou artes marciais ou aulas de circo. Em algum momento do ensino médio ir para a Disney com a turma ou até fazer um intercâmbio para melhorar o inglês. Ingressar na universidade. Antes ou depois da faculdade morar um tempo em Londres. Em algum momento tocar saxofone ou algum outro instrumento que lembra bares boêmios, com atmosferanoir, de uma vida que leu nos livros e/ou viu nos filmes. Produzir alguma coisa de cinema de documentário e/ou criar um blog onde finalmente pode expressar seu verdadeiro eu. Rebelar-se um pouco e enfim trabalhar, reclamar do trabalho e fazer umas baladas com os colegas de trabalho e os velhos amigos da faculdade. Descobrir que ser adulto é aceitar a vida como ela é. Casar, comprar apartamento, ter um ou dois filhos, entender de vinhos e fazer viagens de férias bacanas para a Europa, Estados Unidos ou países exóticos da Ásia e mais recentemente também da África. Não sei bem como continua.

Não é ruim ou errado, não se trata disso. Pode até ser muito rico, se for vivido como algo próprio, segundo a singularidade de quem vive, não segundo a ditadura do clichê do que deve ser uma vida de uma pessoa de classe média do início do terceiro milênio. Parece-me, porém, que não pensamos muito antes de vivermos uma vida lugar-comum. Não pensamos nada quando acordamos pela manhã e seguimos até a noite uma rotina instituída por quem? Ah, sim, por nós.

Não pensamos nem mesmo que nada impede que façamos tudo diferente. Apesar da pilha de empecilhos-clichês que temos na ponta da língua para ocultar nosso medo de arriscar, se formos pensar com a necessária honestidade, a vida está mesmo nas nossas mãos.

Podemos viver um lugar-comum, que nos carrega para a zona de conforto e não ofende nem a família, nem o patrão, nem o Estado. E podemos tentar viver a nossa vida, a vida que só nós podemos viver. A vida que nos transforma desde sempre, como descobriu o menino de 8 anos, em alguém em extinção.

E com isso não falo de uma vida povoada de aventuras grandiosas, falo de pequenas aventuras que podem ser vividas até mesmo no sofá da sala, sem acompanhamento de violinos, sem testemunhas, sem reconhecimento público. A vida que só nós podemos viver, aquela que busca a singularidade do que é nosso, é aquela que pas

É também a vida sujeita ao erro, ao imprevisto, ao descontrole. De novo, a entrevista de Hélio Pellegrino a Clarice Lispector. Ela, ainda bem, não tenta arrancar nada de ninguém. Apenas pergunta, suavemente: “Hélio, é bom viver, não é?”. Ele responde, um vento avançando pelas nossas crenças: “Viver, essa difícil alegria. Viver é jogo, é risco. Quem joga pode ganhar ou perder. O começo da sabedoria consiste em aceitarmos que perder também faz parte do jogo. Quando isso acontece, ganhamos algo extremamente precioso: ganhamos nossa possibilidade de ganhar. Se sei perder, sei ganhar. Se não sei perder, não ganho nada, e terei sempre as mãos vazias. Quem não sabe perder, acumula ferrugem nos olhos, e se torna cego – cego de rancor. Quando a gente chega a aceitar, com verdadeira e profunda humildade, as regras do jogo existencial, viver se torna mais do que bom – se torna fascinante. Viver bem é consumir-se, é queimar os carvões do tempo que nos constitui. Somos feitos de tempo, e isso significa: somos passagem, somos movimento sem trégua, finitude. A cota de eternidade que nos cabe está encravada no tempo. É preciso garimpá-la, com incessante coragem, para que o gosto do seu ouro possa fulgir em nosso lábio. Se assim acontece, somos alegres e bons, e a nossa vida tem sentido”.

A vida que se vive para longe dos clichês não tem garantias. Tem vida. Tudo o que a vida que se vive para longe dos clichês nos oferece é isso, vida apenas.

Quando eu tinha 13 anos, de repente percebi que a vida que me esperava era um interminável lugar-comum. Terminar o colégio, fazer faculdade etc etc. A revelação teve um enorme impacto sobre mim. Me fechei no quarto, passei um tempo sem falar com minhas amigas, com ninguém. A falta de sentido do sentido da minha vida me esmagava. Decidi então que deixaria o colégio. Pararia tudo. Não pela convicção de que não deveria estudar, mas porque eu precisava fazer algo para interromper o fluxo inexorável rumo a uma vida feita de uma sucessão de frases feitas.

Parar tudo era um ato desesperado. E de uma lucidez assustadora para alguém de 13 anos. Anunciei a decisão aos meus pais. E disse que iria a Campinas falar com o meu irmão sobre o que sentia. Sempre fui enormemente ligada a esse irmão, que foi quem me ensinou a escrever – graças a isso escrevo como canhota, embora seja destra. Na época, ele estudava Física na Unicamp.

Peguei um ônibus em Ijuí, na minha primeira viagem sozinha, e desembarquei em São Paulo. O Zé estava lá, me esperando – e disfarçando bastante bem a enorme encrenca que representava o advento da irmã caçula em sua rotina de estudante pobre. Embarcamos num ônibus para Campinas e eu vivi a sua vida por uns dias. Ele morava numa garagem de carro, nos fundos de uma casa. Em vez do carro, tinha ele. O chão era de terra, sua cama, que passou a ser a minha cama, era um colchão em cima de uns tijolos, suas poucas roupas eram guardadas num caixote de madeira, o único móvel era uma escrivaninha onde ele estudava das 5h de uma madrugada até à 1h da seguinte, com interrupção para as aulas que ele achava que valiam a pena e para eventuais reuniões de política estudantil. A mesma rotina que ele havia iniciado com apenas 15 anos. Naquele tempo, sem saber por onde começar, começou lendo enciclopédias. Mas esta é uma outra história.

Na primeira madrugada que passei na sua garagem-casa, acordei e o vi ali, debruçado sobre os livros, os pés na terra, tudo muito pobre e muito frio. Além do almoço no restaurante universitário, sua dieta se limitava a bananas, pão e leite. Meu coração se apertou de amor pela grandeza daquele pouco mais que um menino, solitário diante do parapeito do mundo. Descobri ali, assistindo àquela cena enquanto fingia dormir, que o Zé estava obcecado em se tornar não apenas o melhor físico que podia ser, mas o melhor homem que podia ser. Estava em busca da vida que só ele poderia criar para si mesmo.

Voltei para casa. E muito aconteceu desde então. Semanas atrás, quando escrevi uma coluna sobre nosso afastamento do universo (O céu nos espera), o Zé me mandou um email sobre sua “visão cosmológica”. Escreveu na linguagem informal de um irmão escrevendo um email para a irmã: “Somos um acidente evolutivo, ou melhor, apenas um dos inúmeros (sub-) produtos. A consciência não tem nada de especial (a não ser para nós, é claro). Nossa posição temporal e geográfica no universo é totalmente irrelevante. A contrapartida é que somos capazes de perceber nossa existência (acredito que, em outros níveis, outros animais complexos também conseguem). A partir daí, o mundo, tal qual percebemos, é TUDO o que temos (e teremos!). Portanto, estamos no centro do NOSSO universo. E isso coincide com as nossas adaptações evolutivas. Assim, nossa cosmologia é encontrar um ponto de contato entre essas duas realidades: a externa, de total irrelevância, e a interna, onde somos centrais (tanto que nosso universo desaparece com a nossa morte). Por isso a religião (que resolve esse problema) é – a meu ver – uma evolução natural da nossa cultura, consequência natural da nossa evolução biológica (esse é o pensamento, mais ou menos, entre outros, do Daniel Dennett, em Breaking the Spell). Somos “believers” (crentes). O que eu acho mais interessante no ponto de vista agnóstico (ou ateu) é que, diante dessas percepções, sabemos que somos tudo o que temos (como indivíduo ou como espécie) e, portanto, temos a liberdade e a responsabilidade de definirmos o que queremos ser (como indivíduo e como espécie). A construção do nosso mundo e para onde vamos é nossa responsabilidade. Acho que não pode haver maior riqueza em uma vida do que essa liberdade”.

Era um convite para tomarmos um vinho e falarmos sobre a vida. Como conversamos lá atrás, comendo banana com leite. Agora, nós dois podemos pagar por um vinho que não dê dor de cabeça no dia seguinte. E temos um tapete para pisar. Mas nossa inquietação segue latejando, às vezes doendo muito – e nos carregando para vários lugares. Sempre em busca. E sempre usando qualquer pretexto para buscar: uma palavra, um livro, um filme, uma pessoa, uma traição, um esquecimento, uma solidão. Qualquer pedaço de madeira em que possamos nos agarrar para não sermos afogados pelo oceano de comportamentos clichês, para que nossa ânsia de vida nos leve sempre a viver. Com todas as dores, as fomes, as perdas e também os ganhos que fazem parte de uma vida não escrita. Nenhum de nós quer ser reduzido a um personagem de si mesmo, ainda que seja um bom personagem.

Foi até aqui que o dicionário de clichês do Humberto Werneck me levou. Não sei se faz sentido para mais alguém além de mim, mas no fundo sempre escrevemos para nós mesmos. Para, como disse Hélio Pellegrino, poder nascer. E descobrir-se vivo, radicalmente vivo.

(Publicado na Revista Época em 24/08/2009)

De volta à Idade Média

Não concorde com a concordata de Lula e do Papa

A primeira vez que vi um crucifixo no plenário do Supremo Tribunal Federal, acima da cabeça do presidente, achei bizarro. Como a corte máxima da Justiça de um país laico pode ostentar o símbolo religioso do catolicismo? Como se sentem os evangélicos, judeus, umbandistas, budistas, espíritas, muçulmanos e também os agnósticos e os ateus ao descobrirem que a corte laica prioriza uma religião? Estado laico pressupõe a separação Estado-Igreja. Ou seja, o Estado respeita todas as religiões, mas esse é um assunto da esfera privada de cada cidadão. As religiões, nenhuma delas, interferem nas questões do Estado, que tem o dever de governar, julgar e legislar no interesse de todos. Tenham a religião que tiverem – ou não tenham nenhuma.

Na Idade Média, os papas tinham poderes tão grandes e muitas vezes maiores que os reis sobre a vida – e a morte. A separação Estado-Igreja deu origem aos estados modernos e ao Ocidente como hoje o conhecemos. Em 1776, a Declaração de Independência dos Estados Unidos foi um marco nessa direção, ao determinar as bases para a liberdade religiosa e os direitos civis. Assim como a Revolução Francesa, em 1789, ao tirar o poder das autoridades religiosas. No Brasil, a separação Estado-Igreja e a proteção à liberdade de crença já é um valor desde a Constituição de 1891. Vale a pena lembrar das aulas de História, porque vamos precisar reaprender antigas lições. Há um golpe em curso contra o Estado laico – e contra o cidadão brasileiro. Contra mim e contra você.

Em 13 de novembro de 2008, o presidente Lula e o Papa Bento XVI assinaram o que se chama de “concordata”, um acordo entre o Vaticano e o governo brasileiro, com o argumento de “regulamentar o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil”. Primeira pergunta: por que a Igreja Católica, que chegou ao país junto com Cabral, precisaria regulamentar alguma coisa? E justo hoje, quando as projeções mostram que o Brasil tende a ser um país cada vez menos católico e mais multirreligioso?

Como o Vaticano tem esse ambíguo status jurídico de Estado, embora seja um Estado que só existe para organizar e propagar uma religião, a concordata tem o valor de um tratado internacional, bilateral. Não pode ser rompido por um dos signatários, só por ambos. Em 20 artigos, o texto interfere em questões como o ensino religioso confessional na escola pública, efeitos civis do casamento religioso e o reconhecimento de que não há vínculo empregatício entre padres e freiras com as instituições católicas.

Sempre me incomodou que a escola pública de um estado laico tenha ensino religioso confessional. Como cidadã, acredito que a escola pública deveria ter mais carga horária, melhores e mais bem pagos professores. Como aluna de escola pública que fui, gostaria de acrescentar ao currículo matérias como filosofia, latim e grego, entre outras. E aumentar a carga horária das demais disciplinas.

O ensino da religião, inserido no contexto social e político, eventualmente pode ser interessante, se for ministrado por um professor com boa formação na área. Mas não encontro nenhum argumento que faça sentido para a presença no currículo do ensino religioso confessional. Esta não deve ser a prerrogativa da escola, mas das denominações religiosas. Se você quer dar ao seu filho uma educação religiosa, que ele a tenha dentro da igreja ou templo. Se você acha que seria bom ter dentro da escola, então o matricule numa escola privada confessional.

A Constituição de 1988, que avançou em tantos temas, contém um artigo que prevê oferta obrigatória de ensino religioso, com matrícula facultativa. Há um movimento em curso na sociedade brasileira para rever esse artigo, que contraria o princípio da laicidade do Estado. Em seu uso mais abusivo, as escolas públicas do Rio de Janeiro, no governo de Rosinha Garotinho, usavam as aulas de religião para ministrar a doutrina do criacionismo – uma visão religiosa sobre a origem da vida que nega a teoria da evolução de Charles Darwin. Ou seja, um desserviço à boa qualidade do ensino, tema tão caro e delicado para qualquer nação que pretenda ter grandeza no seu futuro. E, com o perdão do trocadilho, usada com má fé, já que tenta enfiar goela abaixo dos estudantes uma visão religiosa como se fosse científica.

A concordata assinada por Lula e pelo Papa precisa ser aprovada pelo Congresso brasileiro para vigorar. Tem tramitado por lá sem maiores alardes, o que, em si, já é curioso. Na quarta-feira passada, 12 de agosto, foi aprovada pela Comissão das Relações Exteriores da Câmara. Precisa passar ainda por mais três comissões, mas como corre em regime de urgência, pode ser votada no plenário nos próximos dias.

Aí vem a segunda pergunta: você não consegue lembrar de no mínimo algumas dezenas de projetos que merecem urgência porque lidam com questões vitais para todos os brasileiros? E, em vez disso, se arrastam pelo Congresso há anos? Algum de nós, cidadãos – católicos e não-católicos –, consegue imaginar por que motivo a “Regulamentação do Estatuto Jurídico da Igreja Católica” seria urgente para a nação brasileira? Isso, por si só, bota algumas pulgas atrás não de uma, mas das nossas duas orelhas.

Diante das críticas de que o acordo fere o princípio da laicidade do Estado, a CNBB afirma que tudo o que está lá já é previsto na Constituição. É verdade. E aí somos imediatamente levados à terceira pergunta: se já está na Constituição, por que precisamos de um acordo? E por que o Papa e os bispos estão tão empenhados na sua aprovação? Mais umas três dúzias de pulgas.

Se o acordo for aprovado, como discutir o artigo constitucional sobre o ensino religioso na escola pública? E o que acontece com as escolas públicas que usam o ensino religioso para estudar a história da religião no contexto sócio-político de cada época – e não para ministrar aulas confessionais?

O mais grave, porém, é que o artigo da tal concordata – o nome é horrível, não? – fere a Constituição em pelo menos dois de seus princípios mais caros: 1) ao fazer um acordo com uma denominação e não com todas as outras, está privilegiando uma religião em detrimento de todas as outras, ferindo o artigo constitucional que proíbe o tratamento diferenciado entre cidadãos por razões de ideologia, crença ou culto; 2) ao fazer um acordo com uma determinada denominação, fere o princípio da laicidade do Estado. Estado Laico é aquele que não interfere em questões religiosas e não estabelece relações de dependência ou aliança com crenças religiosas ou seus representantes. Portanto, não faz diferença entre brasileiros por sua escolha religiosa.

Caso o acordo entre o Vaticano e o governo brasileiro seja aprovado pelo Congresso, terá força de lei e será incorporado à vida nacional. Teremos dito “sim”, por meio de nossos representantes, à ingerência de uma denominação religiosa, a Igreja Católica, no Estado, que tem por dever moral e constitucional zelar por todos os cidadãos, católicos e não-católicos.

É um precedente grave, perigoso e muito retrógrado. Um dos artigos, o que determina que não há vínculo empregatício entre padres e freiras com a Igreja, por exemplo, é tema da Justiça trabalhista. Uma denominação religiosa não pode estar acima da Lei de um país. É o Estado que deve decidir – e não uma das partes interessadas. E ainda não há Jurisprudência unânime sobre esse tema. Outro artigo, o do casamento, abriria espaço para que a Justiça brasileira seja obrigada a aceitar sentenças de anulação matrimonial do Vaticano.

Você acha que, no Brasil do início do terceiro milênio, isso faz algum remoto sentido? Para que fique claro: sou agnóstica, meus pais são católicos praticantes, tenho excelentes amigos católicos, espíritas, budistas, judeus, muçulmanos, umbandistas, do candomblé, do batuque e também ateus. É essa a maravilha do Estado laico: o exercício da tolerância e do respeito à escolha do outro. Respeito profundamente a religião de meus pais e as dos meus amigos – e eles respeitam profundamente a minha escolha de não aderir a nenhuma confissão religiosa. Somos todos cidadãos que respeitamos as escolhas uns dos outros e convivemos em paz.

O Estado laico é exatamente isso: ele garante que ninguém será perseguido ou discriminado por sua crença. Muito diferente dos Estados teocráticos que conhecemos, por exemplo. Eu não quero a ingerência da Igreja Católica – e de nenhuma outra crença religiosa – no Estado que me representa. A supremacia de um credo em detrimento do outro é sempre fonte de intolerância e de desrespeito. Contraria todos os nossos mais caros princípios de igualdade de escolhas.

Acho uma boa ideia conhecer a fundo esse acordo para exercer a nossa cidadania, nos posicionarmos como cidadãos de um Estado laico e democrático. Se a concordata for aprovada, vai afetar a nossa vida. E poderá abrir espaço para mais mudanças que não queremos e não precisamos.

A França discute hoje se deve permitir que muçulmanas usem burca nos espaços públicos. Até mesmo os Estados Unidos, de longe o país mais religioso do Ocidente, proibiu um monumento dos Dez Mandamentos em dois tribunais – e manteve em um terceiro, porque estava ao lado de outras obras de arte.

No Brasil, a discussão da legitimidade dos crucifixos em repartições públicas chega com mais de um século de atraso. Na França, eles foram retirados em 1880. Minha sugestão é que, enquanto não há uma decisão sobre os ícones católicos na esfera pública, todas as religiões peçam isonomia, com base no princípio constitucional que não permite que se faça diferença entre os cidadãos por sua crença religiosa.

Enquanto o bom senso não prevalecer, sugiro a instalação da imagem de Xangô ao lado do crucifixo, a representação do Buda, um retrato de Alan Kardec etc. E um espaço em branco para aquelas religiões que não usam imagens e também para nós, agnósticos e ateus. Pelo menos o senso de Justiça, nesse caso específico, prevaleceria no Supremo Tribunal Federal. E a ingerência religiosa no espaço público daquele que se define na Constituição como um Estado laico se tornaria clara.

Temos, porém, um desafio mais urgente. Como cidadãos, precisamos nos posicionar e pressionar os parlamentares que legitimamos com nosso voto a recusar esse acordo tão flagrantemente inconstitucional. Devemos caminhar cada vez mais em direção à tolerância das diferenças – e não para reforçar privilégios de uns em detrimento de outros. Queremos ser mais igualitários – e não elitistas.

Para botar mais algumas pulgas em todos os lugares do seu corpo – especialmente no cérebro –, rememore o que o Papa Pio X (1903-1914) disse sobre o Estado laico, na encíclica Vehementer nos: “tese absolutamente falsa”, “erro perniciosíssimo”, “em alto grau injurioso para com Deus”. Você pode argumentar que a encíclica tem mais de um século. É verdade. Só que nunca foi revista ou revogada. Ou seja, é exatamente o que o Vaticano e o atual Papa Bento XVI, que representam um dos dois lados do acordo, acreditam.

Quem faz o país somos nós – seja pelas nossas boas ou pelas nossas más escolhas. É só assumindo nossa responsabilidade e exercendo a cidadania que nos tornamos capazes de barrar abusos e conquistar um Brasil mais justo. Essa é uma boa hora para lembrar disso.

(Publicado na Revista Época em 17/08/2009)

A invasão dos blábláblás

Uma campanha pela volta do silêncio no cinema

O planeta é dividido entre as pessoas que falam no cinema – e as que não falam. É uma divisão recente. Por décadas, os falantes foram minoria. E uma minoria reprimida. Quando alguém abria a boca na sala escura, recebia logo um shhhhhhhhhhhhh. E voltava ao estado silencioso de onde nunca deveria ter saído. Todo pai ou mãe que honrava seu lugar de educador ensinava a seus filhos que o cinema era um lugar de reverência. Sentados na poltrona, as luzes se apagavam, uma música solene saía das caixas de som, as cortinas se abriam e um novo mundo começava. Sem sair do lugar, vivíamos outras vidas, viajávamos por lugares desconhecidos, chorávamos, ríamos, nos apaixonávamos. Sentados ao lado de desconhecidos, passávamos por todos os estados de alma de uma vida inteira sem trocar uma palavra. Comungávamos em silêncio do mesmo encantamento. Cada experiência era ao mesmo tempo individual e coletiva. E, quando tudo acabava, éramos distantes, mas próximos.

Sigo guardando dentro de mim essa reverência. Assisto aos filmes com o mesmo respeito com que acompanho a apresentação da orquestra no Municipal ou um show na Broadway. Seja um filme japonês ou um blockbuster de Hollywood. Há algo para além do filme, algo que é o cinema. Uma mágica capaz de nos levar à transcendência. Mesmo quando o filme é ruim, não consigo sair na metade. Me soa como desrespeito. Fico. Pelo cinema.

Percebi na sexta-feira que não ia ao cinema havia três meses. Não por falta de tempo, porque trabalhar muito não é uma novidade para mim. Mas porque fui expulsa do cinema. Devagar, aos poucos, mas expulsa. Pertenço, desde sempre, às fileiras dos silenciosos. Anos atrás, nem imaginava que pudesse haver outro comportamento além do silêncio absoluto no cinema. Assim como não imagino alguém cochichando em qualquer lugar onde entramos com o compromisso de escutar.

Não é uma questão de estilo, de gosto. Pertence ao campo do respeito, da ética. Cinema é a experiência da escuta de uma vida outra, que fala à nossa, mas nós não falamos uns com os outros. No cinema, só quem fala são os atores do filme. Nós calamos para que eles possam falar. Nossa vida cala para que outra fale.

Isso era cinema. Agora mudou. É estarrecedor, mas os blablablás venceram. Tomaram conta das salas de cinema. E, sem nenhuma repressão, vão expulsando a todos que entram no cinema para assistir ao filme sem importunar ninguém.

Comecei a escrever essa coluna na sexta-feira e decidi tentar mais uma vez. Vi três filmes entre a sexta e o sábado, em cinemas diferentes. No primeiro, à noite, teve um bate-boca entre um casal e duas adolescentes por causa da conversinha das teen. No segundo, no início da tarde de sábado, um casal de avós com seu neto sentou-se ao meu lado. Achei bonitinho os três, mas temi pelo neto. Nada. O neto comportou-se muito bem, o avô é que manuseava o saco da pipoca como se quisesse torturar o pedaço de papel.

No último, no meio da tarde, aconteceu. Os blábláblás do cinema estão inovando. Estava acomodada, bem feliz, com poltronas vagas entre mim e os próximos cinéfilos, quando entraram duas mulheres pouco antes de iniciar o filme. Não pediram licença, claro. Para que ter boa educação com desconhecidos? Depois de atropelar meus pés, sentaram-se e na mesma hora começaram a conversar. Em inglês. Pronto. Agora os blábláblás são poliglotas. Pensei em berrar um “Shut up!”. Mas optei por um “shhhhhhhhhhhhh” em esperanto.

Confesso, desisti. Cansei de me incomodar. Me parece uma Missão Impossível. Quando os primeiros espécimes de blábláblás surgiram na escalada da involução, eu mudava de lugar. Abandonei os lugares do meio, que até então haviam sido meus preferidos, e passei a ocupar a periferia do cinema, me esgueirando pelos cantos como Nosferatu. Era chato, mas tirando a movimentação inicial, depois que me acomodava longe dos faladores compulsivos, assistia ao filme sossegada. Com o tempo, não adiantava mais trocar de lugar. Para onde você ia, havia um blabláblá. Estavam em toda a parte. E não apenas nos cinemas de rede, mas também nos cinemas mais cabeções da cidade.

Mudei de estratégia. Em vez de chegar cedo, para escollher um bom lugar e ficar alguns minutos só antecipando o prazer que estava por vir, passei a violar meus melhores princípios de pontualidade e a chegar tarde. Quando eu chegava cedo, no último minuto era encurralada por uma gangue de blablablás. E minha sessão estava arruinada. Em vez de assistir ao filme, era obrigada a saber o que eles achavam do filme. Ou do namorado que não apareceu, da pipoca que tinha pouca manteiga, do fulano da firma que disse não sei o que para o chefe. Sempre temas fascinantes para o meu crescimento pessoal.

Comecei a chegar quando os trailers já iam pela metade. Assim, poderia escolher o lugar mais isolado. Aprendi a avaliar um caráter em segundos – e no escuro!!!. Tentava adivinhar quem iria assistir ao filme e quem ficaria falando. Deu certo por uns tempos. Mas logo os blablablás se multiplicaram. Descobri que tinham a mesma capacidade reprodutiva dos roedores. Eles estavam por todos os lados. Falando, falando, falando. Pagavam para falar no escuro. Oquei, poderia ser uma nova modalidade de fetiche: gente que gosta de pagar ingresso para impedir os outros de ver um filme. Não era. Falar no escuro é uma característica dessa nova espécie. Se fosse um fetiche, ainda haveria a esperança de convencê-los a mudar para fetiches mais civilizados. Eu poderia chicoteá-los ou pisar de salto agulha na sua cabeça sem cobrar nada, por exemplo.

Mas não, não seria tão fácil.

Pareço uma pessoa calma. Uma parte de mim não é. Quando me sinto desrespeitada, posso virar um Alien. Sinto mesmo que o meu rosto se deforma, os olhos se esbugalham, um calor toma conta de mim. Sou possuída por um instinto assassino. Quero sangue. Comecei a ter esse tipo de sentimento perturbador. Como sou muito controlada, só eu sabia. O blablablá atrás de mim – ou na frente, ou ao lado – começava a conversar com a colega como se estivesse na manicure. Eu esperava dez minutos regulamentares. Se o bate-papo continuava, tocava o ombro, com toda a delicadeza para não assustar ninguém: “Por favor, seria possível ficar quieta (o)?” Era possível. Eu agradecia, sorridente. Na verdade, era meu maxilar que tinha travado, mas ninguém precisava saber disso.

Por uns tempos bastou mandar um e outro calar a boca com a maior finura. Durou pouco. Para meu desespero, descobri que os blablablás sofrem mutações. São parecidos com o vírus da gripe suína. No período de uma estação, eles tornam-se mais nocivos. Não adiantava mais pedir silêncio. Os blábláblás ignoravam. No início, pensava que formavam um sub-gênero da grande família dos sem-noção. Descobri que não. Como alguns espécimes do Senado, eles têm noção da diferença entre o público e o privado. (Justamente por ter noção é que preferem empregar namorados de netas no público, não no privado.) Apenas não se importam. Os blábláblás sabem que perturbam, mas não estão nem aí. Acham que, sim, pagaram o ingresso, podem falar à vontade. Afinal, só uma trouxa como eu vai ao cinema para assistir ao filme.

A situação se agravou. Os blablablás começaram a querer briga. Eu também queria briga, mas preferia assistir ao filme. Um dia, um amigo pediu silêncio a um homem que sentava atrás de nós, com seu filho de uns 10 anos. Adivinha qual foi o exemplo de educação que o pai deu ao seu pimpolho? “Ficar quieto o cacete!”. Meu amigo invocou. O pai continuou educando a criança: “Vem calar a minha boca, então”. Aconteceu. Os dois saíram do cinema e se encontraram na esquina do shopping. Era uma comédia romântica, virou um filme de terror.

Uma outra vez, fui com minha filha assistir a um filme japonês. Não no Cinemark, mas no Unibanco Arteplex. Cinema de gente chique. Estava lotado. Minha filha ficou sentada ao lado de dois adolescentes que falaram o tempo todo. Ela não pôde ver o filme, foi obrigada a assistir a eles. Maíra é um tantinho mais nervosa do que eu. Ela suportou calada toda a sessão para não atrapalhar aqueles que não tiveram a sua infelicidade. Só eu, que a conheço bem, sei o quanto deve ter custado esse auto-controle.

Quando a sessão acabou, ela fez um discurso sobre respeito ao outro para os dois adolescentes. A mãe deles estava sentada na poltrona da frente e não gostou que alguém estivesse chamando seus filhos de mal-educados. O fato de seus meninos terem conversado o filme inteiro e importunado quem estava ao redor, para essa boa educadora não era um problema. O problema era uma estranha dizer a eles o que ela devia ter dito assim que aprenderam a dizer “mamãe”, o que deve ter sido lá pelos oito anos de idade. A mulher quis briga com a minha filha. Nesse momento, eu, que tentava acalmar a Maíra, senti meu instinto materno sair pela boca. Estava calculando a distância do salto que devia dar para alcançar a jugular da mulher com meus dentes, quando o moço que limpava a sala me puxou pelo braço: “Não vale a pena”.

É claro que não valia. Naquele dia percebi que acabaria matando alguém. Olhando fixo para os blablablás, eu rememorava as mais sangrentas cenas cinematográficas de todos os tempos. Reeditei versões muito mais violentas de O Massacre da Serra Elétrica. Fui Chucky, o brinquedo assassino. Encarnei até A noiva do Chucky. Em mim, habitavamFreddy Krueger e Jason Voorhees – ao mesmo tempo. Meus remakes do Tubarão 1, 2 e 3 iniciavam pela mesma cena: com o tubarão mascando a parte mais musculosa dos espécimes falantes, a língua. Às vezes evocava apenas clássicos. Na minha versão de Os Pássaros, eu mesma bicava o cérebro dos falantes até alcançar o umbigo.

Inventei roteiros criativos, que me fariam ganhar milhões em Hollywood, não fosse o final previsível. Os blablablás sempre morriam lentamente, em sofrimento: empalados, queimados ou estripados. Às vezes, tudo isso ao mesmo tempo. Sem olhos, um buraco no lugar da boca. Uma vez estava lendo um livro sobre a África e inclui no enredo um exército das vorazes formigas assassinas. Considero meu melhor trabalho.

O problema é que eu não tinha ido ao cinema para aprimorar meu humor-negro. Eu só queria assistir ao filme. E não podia por causa dos cochichos, das risadas, das luzes dos celulares piscando, às vezes até do som dos celulares e blequibeuris e aifones e não sei mais o que tocando, latindo, buzinando, fazendo ola. Eles estavam roubando o meu cinema com a sua voz.

Quando algumas redes inventaram o lugar marcado, entrei em pânico. Tentei despertar em mim poderes paranormais, na tentativa de adivinhar quais poltronas desenhadas na tela do computador os blábláblás não ocupariam. O sucesso era aleatório. A vida selvagem dos cinemas só piorava.

Ainda tentei uma última tática. Passei a frequentar as sessões matinais. Só assistia a filmes que passavam no cinema antes do meio-dia. Eu havia descoberto que os blablablás não gostam de cinema vazio. Eles querem casa cheia. Incomodar pouca gente não tem graça. Mas, com isso, fui perdendo muitos filmes, que só passavam em salas com sessões a partir do início da tarde, um horário proibitivo para quem gosta de cinema. E, assim, fui me exilando.

Os blablablás venceram. Percebi que o fenômeno era só a parte mais evidente da falta de limites que viceja por todos os espaços públicos. Você está no restaurante e alguém está falando aos berros. Essa pessoa acha que você foi até ali na esperança de encontrá-la e ouvir suas histórias fascinantes. Você está experimentando roupas numa loja e um garotinho muito bem vestido invade o seu provador porque está brincando de esconde-esconde com a irmã. A mãe acha graça, eu devo achar também. Eu rosno como o personagem de Clint Eastwood em Gran Torino, ela acha ruim.

Mal posso esperar para essa geração crescer, filhos desses pais incapazes de botar limites porque também não têm limite algum. Ao ser obrigada a estudar os hábitos dessa nova espécie de vírus cinematográfico, percebi que eles pensam que fazer o que querem é um direito seu. Respeitar o direito do outro é algo para losers. Gente que se dá bem só faz o que quer. Não liga para os outros. É esse o arcabouço ético que transmitem aos seus filhos, formados à sua imagem e semelhança, enquanto devoram um saco gigante de pipoca de boca aberta. Para fazer mais barulho, claro.

Eu não sou da tribo que acredita que até a pipoca deve ser banida do cinema. No meu ponto de vista, a pipoca tem sua hora e seu lugar. Mas como de boca fechada, pegando com a ponta dos dedos para não incomodar ninguém. E não amasso o saquinho no final para, claro, fazer um pouco mais de barulho. Nem tomo o suco ou o refrigerante arranhando o canudo para, claro, fazer ainda mais barulho.

A blablablalogia – ciência que estuda o fenômeno dos blábláblás – aventa a hipótese de que eles são o resultado da cultura dos videocassetes e dos dvds. Acostumaram-se a assistir a filmes em casa, fazendo o que querem e falando alto. Levaram o (mau) comportamento para o cinema. Pode ser. Mas acho que é um pouco mais complexo do que isso. É uma crise de valores, mesmo. De cegueira para a existência do outro, de indiferença para o destino do outro. Quando falam no meu ouvido, batem o pé na minha cadeira ou são malcriados quando eu reclamo, o que estão dizendo é que o outro não importa. Só o eu importa. Não se trata mais do eu e suas circunstâncias, mas do eu e suas vontades. Sempre absolutas.

A trajetória se inverteu. Eu, que adoro o cinema e o ritual do cinema, fui apartada dele. Encurralada até me refugiar em minha própria casa, no meu próprio dvd, que assisto com as cortinas fechadas e no mais absoluto silêncio. Mas não é a mesma coisa. Ao me tirarem o cinema, roubaram muito de mim. Roubaram toda uma possibilidade de encantamento. E de me sentir comungando com gente com quem nunca troquei uma palavra, mas troquei muito, ali, na sala escura, chorando, rindo e sonhando com os olhos imersos na tela.

Não sei se ainda tem jeito. Essa coluna é uma tentativa. Talvez você tenha perdido o cinema como eu, talvez você tenha uma ideia do que fazer. Parece brincadeira, mas é sério. Já pensei em distribuir panfletos na porta dos cinemas, com algum apelo comovente. Pensei em escrever para todos os colunistas do país e fazer uma campanha nacional pela volta do silêncio na sala escura. Cogitei falar com os donos dos cinemas para exigir que os blablablás fossem retirados das salas, se não atendessem à primeira advertência. Como o seriam se estivessem em qualquer outra sala de espetáculos. Estudei a volta dos lanterninhas, mas cheguei a conclusão que esse tipo de gente provavelmente lincharia os pobres homens. “Imagina! Pedir para o meu bebê calar a sua boquinha linda!”.

Não sei. Estou beirando o desespero. Se você tiver uma ideia ou uma história para contar, conte. Quem sabe a gente não consegue fazer algo com isso. Acho que nós, que queremos apenas assistir a um filme sem ouvir conversas paralelas, precisamos nos unir.

Eu não gosto de desistir. O cinema é parte do que sou. Muitos foram os filmes que moldaram meu caráter. Muitas foram as vidas da tela que ajudaram a dar sentido à minha. Devo muito ao cinema para desistir dele. Talvez ainda seja possível lembrar que a experiência do cinema é individual, mas não é do indivíduo. Ser cinema é ser parte. Da mesma mágica, para além de todas as diferenças. Encantado pela vida na tela, com respeito pela vida ao seu lado.

(Publicado na Revista Época em 10/08/2009)

O céu nos espera

O que o universo conta sobre mim e você

Quando eu era criança, queria ser astrônoma. Na verdade, como muitos, eu queria mesmo era ser astronauta, para chegar mais perto das estrelas. Meu irmão mais novo me garantiu que, para ser astronauta, eu precisava ser astrônoma. Então, eu repetia para todo mundo que era essa profissão insondável que queria ter. Depois, esse mesmo irmão, que mais tarde se tornaria um físico brilhante, me explicou que para ser astrônoma eu teria de estudar muita matemática. Ele estava certo, mas foi assim que meu sonho foi se apagando e eu acabei virando jornalista. Nas redações por onde andei, os colegas costumam dizer que estou sempre em outro mundo. Nessa perspectiva cosmológica, pode ter um fundo de verdade.

Nas noites estreladas, e na minha cidade pequena havia muitas delas, minha família e eu sentávamos no retalho de quintal que nos cabia, esparramados em preguiçosas, só para ver as estrelas. Ficávamos horas por lá, abismados com o universo. Nenhum de nós possuía o mínimo conhecimento científico sobre o que se passava acima de nossas cabeças, mas tínhamos algo importante: um sentimento de pertencimento, de conexão. O universo estava em nós, como nós estávamos no universo. Do nosso modo simples, ignorante mesmo, nos víamos refletidos em cada estrela do céu, reconhecíamo-nos no firmamento. O mistério não nos afastava. Pelo contrário.

Em algum ponto da vida adulta perdi minha conexão com as estrelas. Não só desisti do desejo de vê-las de mais perto, como aceitei que elas ficam longe de mais. Pior que isso, percebo agora. Deixei de achar o universo fascinante. Não que não o ache, em tese, mas foi me parecendo tão inescrutável, impossível de alcançar não pela distância em anos-luz de quase tudo que nele habita, mas por curto que são os meus neurônios, que abandonei o sonho de compreendê-lo. Seja com a mente, seja com a intuição da alma de criança que já tive. Começo a ler as reportagens sobre as novas descobertas, os enigmas, a tal da matéria escura, e em algum momento me perco das letras, não consigo entender nem me reconheço. É tão grande, tão incompreensível, e eu sou tão pequena, tão limitada, tão carente de matemática e física.

Primeiro, parei de olhar para as estrelas. (Até porque há quase dez anos vivo numa cidade onde é difícil enxergar uma delas no céu.) Depois, parei de ler sobre as estrelas. Por fim, só raramente lembro que elas existem. Escrevo esse texto e me horrorizo com a descoberta da minha cegueira. Há quanto tempo eu, que sonhava em alcançar as estrelas, não busco uma estrela no céu? Não lembro. E o que meu desligamento do universo diz sobre a minha vida?

Só voltei a pensar nisso nos últimos dias, quando comecei a ler um livro muito especial, chamado Panorama visto do centro do universo – a descoberta de nosso extraordinário lugar no cosmos (Companhia das Letras, 2008). Eu tropecei nesse livro na redação da Época. Alguém resolveu passá-lo adiante e o deixou numa mesa pública, onde colocamos tudo aquilo que não queremos mais e pode servir para outro. Passei, olhei, segui adiante. Voltei. Folheei. Segui adiante. Dei uns três passos. Voltei. Peguei. Comecei a ler. Fiquei encantada.

E voltei a olhar para o céu. Claro, chovia sem parar em São Paulo na semana passada e teria sido mais apropriado ter tropeçado num livro sobre a vida dos anfíbios. Não enxerguei nada, nem mesmo o firmamento em si, mas pelo menos lembrei que há algo maior do que esse mundinho cada vez mais tacanho e encolhido que tenho habitado. Algo muito maior ao qual eu também pertenço. Descobri também que meu pescoço ainda consegue fazer esse movimento de olhar para cima, a memória das noites estreladas da minha infância permaneceu gravada na parte do cérebro que manda no meu pescoço. Ainda tenho salvação, portanto.

O livro foi escrito por um casal de americanos, esboçado enquanto cozinhavam e conversavam noite adentro com amigos cientistas. Joel Primack é astrofísico e Nancy Ellen Abrams uma advogada especializada em políticas científicas. A obra, uma delícia de ler, até mesmo para uma astronauta sem nenhum futuro como eu, parte de uma premissa fascinante. Pela primeira vez temos telescópios poderosos e conhecimento científico para começarmos a saber como é o universo na realidade. Não saber o que o universo não é, como os cientistas do passado, mas ter as primeiras pistas sobre como ele pode ser. Nunca, porém, tivemos tão apartado dele. Essa desconexão faz com que percamos a melhor parte de uma história que está acontecendo hoje, agora: o que o universo fala sobre a nossa vida quando, pela primeira vez, temos instrumentos para entender o que ele nos diz.

“O que emerge (da cosmologia atual) é a primeira representação humana do universo como um todo que até poderia ser verdadeira. Incontáveis mitos da origem do universo existiram, mas este é o primeiro que nenhum contador de histórias inventou – somos todos testemunhas cheias de expectativa” – os autores escrevem. Ou pelo menos deveríamos ser testemunhas cheias de expectativa. Mas os antigos, que tiveram de criar uma mitologia para o cosmos, já que não tinham nenhuma informação científica disponível, eram muito mais conectados do que nós.

O que aconteceu com nossa relação com o universo? Durante séculos, cristãos, judeus e muçulmanos acreditaram que a Terra era o centro do universo e que tudo o mais girava em torno de nosso planeta, em torno de nós. Quando cientistas como Galileu (1564-1642) provaram, há 400 anos, que a verdade era muito diferente da crença, algo foi aos poucos se perdendo para a maioria de nós. Ao descobrir que habitávamos um dos menores planetas que giravam em torno de uma entre bilhões de bilhões de estrelas de uma das bilhões de galáxias, nossa desimportância parece ter nos acabrunhado. Aos poucos, o universo se tornou algo insondável, povoado por corpos igualmente insondáveis, no qual não tínhamos a mínima relevância. Melhor seria ignorar “esse vazio sem fim salpicado de estrelas”.

Como lembram Joel e Nancy, o primeiro cientista a expressar o efeito deste “mal-estar cósmico” causado pela nova ideia de universo pós-Galileu, foi o francês Pascal (1623-62), físico, matemático e monge: “Me sinto engolfado na imensidão infinita de espaços sobre os quais nada sei e que nada sabem de mim. Estou aterrorizado”. Do universo medieval, dizem os autores, compreendido como uma catedral magnífica e com pé-direito alto, Pascal se sentiu jogado num universo científico que era frio, disforme e imenso para além da compreensão. Nele, seres humanos sentiam-se insignificantes. Essa é a impressão do universo que dura até hoje.

Ao nos levar pelas páginas do livro, os autores nos lembram do nosso extraordinário lugar no cosmos. Um extraordinário que nada tem a ver com uma noção medíocre de importância, mas sim com a grandeza de quem compreende que só com muita imaginação é possível alcançar a realidade.

Essa resumida trajetória do sentimento humano diante do universo lembrou minha pequena história pessoal. Eu vivi esse desencanto da minha maneira. Imagino que cada leitor tenha a sua memória dessa relação com o firmamento. Quando eu nada sabia sobre o céu acima da minha cabeça, era capaz de me encantar com seu mistério. O não-saber não me afastava das estrelas, pelo contrário. Me permitia imaginar e criar enredos, já que tudo era possível. Foi minha fase medieval, digamos.

Quando meu irmão me informou que para alcançar as estrelas era preciso não desejo, mas matemática, o universo começou a se afastar de mim. Quanto mais eu crescia e mais informação tinha, em livros, revistas e programas de TV, mais longe ele me parecia. Senti o mesmo terror de Pascal. Mas, ao contrário dele, que era um grande homem, resolvi meu medo da pior forma: passei a olhar cada vez mais em linha reta, perdendo os ângulos mais amplos da existência. Desgarrei-me das estrelas sem entender que, ao fazê-lo, perdia algo de essencial de mim mesma. Não no sentido metafórico, mas literal. Que direito tenho eu agora de reclamar quando olho ao redor de mim e só vejo paredes cinzas?

O que eu perdi? O que nós perdemos? É disso que Joel e Nancy nos falam. “Cosmicamente desabrigada, nossa cultura ao longo dos séculos minimizou a importância de ter um lar cósmico”, dizem eles. “O universo no imaginário popular se tornou pouco mais do que um espaço disforme ou um cenário de fantasia para ficção científica, nenhum dos quais parece ter muita importância no que as pessoas chamam de mundo real. Hoje é normal considerar que gente mais preocupada com a realidade cósmica do que com ganhar dinheiro é sem noção ou irrealista. Esta é possivelmente nossa maior deficiência mental em resolver problemas globais”.

O livro nos mostra que vivemos por séculos num filme preto-e-branco. E agora o grande filme da evolução do universo está entrando em foco. “É como de repente ver em cores, e isso muda não só o que está longe, mas o que está bem aqui. O universo está aqui, e é mais coerente e potencialmente significativo para nossa vida do que se pode imaginar”, afirmam os autores. Joel e Nancy nos levam à compreensão de que não estamos no centro do universo, até porque não existe centro geográfico num universo em expansão, mas somos centrais de várias formas inesperadas. “A história do universo está em cada um de nós. Cada partícula em nosso corpo tem um passado de um multibilhão de anos, cada célula e cada órgão do corpo têm um passado de um multimilhão de anos, e muitas das nossas formas de pensar têm passados com multimilhares de anos. Cada um de nós é um tipo de centro neural onde essas várias histórias cósmicas se cruzam. O tempo é uma chave para apreciar o que somos”.

Adoro a imagem – real – da Terra vista do espaço. Ela não nos mostra países, nações, grupos raciais, étnicos e religiosos. Só porções de terra, oceanos e nuvens. Precisamos sair e nos olhar do outro lado da rua para perceber que pertencemos a um planeta indivisível. Todo o resto, que nos faz guerrear, o que nos separa e também o que nos dá aquele tipo de importância que só existe na comparação à desimportância de um outro, é arbitrário. Inventado. De um certo modo, não é real. Só é real por que tornamos essa arbitrariedade mais real que todas as outras.

Ainda não cheguei ao fim do livro, mas Joel e Nancy prometem mostrar que diferença tudo isso faz para cada um. “Para a vasta maioria das pessoas ocupadas, não há por que aprender um monte de ciência a não ser que você possa fazer algo com esse conhecimento que tenha valor para a sua vida. Queremos mostrar que você pode”. Quero muito saber como “pensar cosmicamente poderia nos ajudar a vivenciar o que significa ser a parte humana do universo”, como entender o universo ajuda a me entender. E, principalmente, uma ideia que me move na vida e no exercício da reportagem, como contadora de histórias reais: o resgate do extraordinário que nos habita.

Por me dedicar às trajetórias não dos planetas, mas de homens e mulheres, compreendi que não existem vidas comuns. Só mesmo nossa cegueira sobre os outros e sobre nós mesmos nos separa do extraordinário do que somos. Desconheço o cosmos, mas conheço (um pouco) o humano. Com a ajuda desse livro e de alguns outros que vieram antes, começo entender onde essas pontas se encontram. Compreendo por que Carl Sagan dizia que somos o universo compreendendo a si mesmo. Como poeira de estrelas – um fato científico, além de uma imagem poética – somos pedaços brilhantes do universo.

Como deixar-se apequenar na vida depois disso? Como pedaços brilhantes do universo, seres feito de estrelas, ousam deixar-se mediocrizar a cada dia, perder-se em pequenezas cotidianas? Querendo ou não, nossa matéria é a das grandes aspirações. Não as ditadas pela moda do momento, pela lógica política e econômica de uma ou outra época. Mas algo mais profundo, algo que é nosso e ninguém pode nos tirar. Um sentido do extraordinário que é parte de nós, tanto quanto são as nossas células repletas da memória do big bang.

Acabo de perceber que, de certo modo, ao contar histórias de gente, acabei encontrando meu próprio caminho para as estrelas.

(Publicado na Revista Época em 03/08/2009)