O depressivo na contramão

O que a depressão pode nos dizer sobre o mundo em que vivemos?

Em seu último livro, O Tempo e o Cão – a atualidade das depressões (Boitempo, 2009), a psicanalista Maria Rita Kehl nos provoca com uma hipótese sobre a qual vale a pena pensar: a depressão, que vem se tornando uma epidemia mundial desde os anos 70, pode ser a versão contemporânea do mal-estar na civilização. Ela teria algo a dizer sobre a forma como estamos vivendo e sobre os valores da nossa época. Para além da patologia, a depressão pode ser vista também como um sintoma social.

O que nossa época nos exige? Euforia, confiança, velocidade. Temos de ser pró-ativos. O que ela nos promete? Se soubermos traçar nossas metas e construir nossa estratégia, atingiremos o sucesso. Se produzirmos e consumirmos, alcançaremos a felicidade. Ser feliz deixou de ser uma possibilidade esporádica para se tornar uma obrigação permanente. Para nós, seres desta época, nada menos que o gozo pleno. Fora disso, só o fracasso. E o fracasso, este é sempre pessoal. Se não alcançamos o que nos prometeram no final do arco-íris é porque cometemos algum erro no caminho. E fracassar, como sabemos, passou a ser não um fato inerente à vida, mas uma vergonha.

O depressivo, neste contexto, é a voz dissonante. É o cara na contramão atrapalhando o tráfego, como na letra de Chico Buarque. Como diz Maria Rita, é aquele “que desafina o coro dos contentes”. Ela afirma, logo no início do livro: “Analisar as depressões como uma das expressões do sintoma social contemporâneo significa supor que os depressivos constituam, em seu silêncio e em seu recolhimento, um grupo tão ruidoso quanto foram as histéricas no século XIX. A depressão é a expressão do mal-estar que faz água e ameaça afundar a nau dos bem-adaptados ao século da velocidade, da euforia prêt-à-porter, da saúde, do exibicionismo e, como já se tornou chavão, do consumo desenfreado”.

Neste sentido, a mera existência do depressivo aponta, nas palavras da psicanalista, a má notícia que ninguém quer saber. Se basta ser pró-ativo, bem-sucedido e saudável, por que tantos e cada vez mais, como mostram as estatísticas, são classificados como depressivos?

“A depressão”, diz Maria Rita, “é sintoma social porque desfaz, lenta e silenciosamente, a teia de sentidos e de crenças que sustenta e ordena a vida social desta primeira década do século XXI. Por isso mesmo, os depressivos, além de se sentirem na contramão do seu tempo, vêem sua solidão agravar-se em função do desprestígio social da sua tristeza”.

Cada época cria seus proscritos. Na época da euforia e da velocidade, nada mais desafinado do que um depressivo. Se, em vez de hoje, o depressivo, então chamado de melancólico, vivesse no romantismo do final do século XVIII, “estaria tão adequado à cultura e aos valores de sua época quanto um perverso hospedado no castelo do marquês de Sade”.

Hoje, porém, os depressivos parecem ser não só o portador de uma má notícia, mas de uma doença contagiosa. Quem quer ter por perto alguém que sofre em um mundo cuja existência só se justifica pelo sucesso e pela felicidade plena? Num mundo em que todos têm de estar “de bem com a vida” para merecer companhia?

O depressivo não apenas sofre, mas silencia num mundo em que as pessoas preenchem todos os espaços com sua voz. E não apenas silencia, mas em vez de preencher seu tempo com dezenas de tarefas, uma agenda cheia, se amontoa no sofá da sala e nada quer fazer. Não só é lento, como chega a ser imóvel. Sua mera existência nega todos os valores propagandeados dia após dia ao redor de nós – e também pelo nosso próprio discurso afirmativo e de auto-convencimento.

Ao existir, o depressivo faz uma resistência política passiva ao establishment. Obviamente, ele não é um ativista nem tem consciência disso e preferiria não sofrer tanto. O que Maria Rita nos propõe é enxergar a depressão para além dos aspectos clínicos. Enxergar também como sintoma da sociedade em que vivemos. Como a ótima psicanalista que é, o que ela nos propõe é ouvir. Neste caso, ouvir o que a depressão tem a nos dizer quando escutada como sintoma social, como expressão de um mal-estar no mundo.

Os medicamentos podem fazer enorme diferença nas depressões graves num primeiro momento, para arrancar da apatia e possibilitar uma elaboração dessa dor que permita lidar com a vida de uma forma menos paralisante. Inclusive para romper com o imobilismo e buscar uma escuta pela psicoterapia ou pela psicanálise. Os medicamentos antidepressivos têm sua hora, seu lugar e sua importância. Mas acreditar que a medicação resolve tudo é calar a dor de quem a vive. E, no âmbito social, é ignorar o que ela diz sobre o que há de torto em nosso mundo.

Afirmar que a indústria farmacêutica resolve tudo é silenciar o impossível de ser silenciado, como prova a escalada das estatísticas da depressão. Na esfera social, significa dizer que é uma ótima vida correr desde que acorda até a hora de dormir, sem ter um minuto sequer para elaborar o que de bom e de ruim viveu naquele dia. Sem tempo para viver a experiência. Ou, como diz Maria Rita, vivendo no tempo do Outro.

Acreditar que a epidemia mundial de depressão pode ser erradicada com pílulas é afirmar que no nosso mundo nada falta. E um pouco mais grave que isso: é acreditar não apenas que é possível atingir uma vida em que nada falte, como atingi-la é uma mera questão de adaptação, pró-atividade e saúde.

No âmbito do indivíduo, tratar a depressão apenas com medicamentos é tornar ilegítima a sua dor. É dizer ao depressivo que o que ele sente não merece ser ouvido porque é produto apenas de uma disfunção bioquímica. É reforçar a crença de que o depressivo não tem nada a dizer sequer sobre ele mesmo. É cristalizar o estigma. Sem contar que tentar calar os sintomas da depressão à custa de remédios leva ao embotamento da experiência, ao esvaziamento da subjetividade. O que se sente é silenciado – e não elaborado. E, ainda que alguém achasse que vale a pena se anestesiar da condição humana, o efeito do remédio, como bem sabemos, é temporário.

Para algumas pessoas, encontrar médicos que resolvem tudo apenas com pílulas vai ao encontro de suas próprias crenças – e de sua necessidade de proteção. É mais fácil acreditar ser vítimas de uma doença, uma disfunção que está fora deles, a pensar que é um pouco mais complexo e mais difícil de lidar do que isso. É mais fácil do que aceitar que ele, como sujeito psíquico, está implicado neste mal-estar. Eu tomo remédio e não preciso pensar que algo me incomoda. Eu engulo uma pílula e não preciso lidar com a inadequação que me faz sofrer.

É possível compreender que, para quem já está na contramão do mundo e é visto muitas vezes como um estorvo, ajuda não ter ainda mais essa “culpa”. Tranqüiliza pensar que aquela dor que está sempre ali foi causada por uma disfunção involuntária dos neurotransmissores. E que pode ser resolvida com um comprimido.

O problema é que a realidade mostra que não é tão simples assim. Quem já fez tratamento com antidepressivos sabe que “curar” uma depressão não é o mesmo que tratar de uma micose ou mesmo de uma pneumonia. Não basta tomar remédio: é preciso expressar a dor, é necessário elaborar o sofrimento e, em geral, mudar a vida ou a forma de olhar para a vida e para si mesmo.

Ao conversar com minha filha, também psicanalista, sobre esse tema, ela fez um comentário que cabe neste contexto. “É curioso como os filmes de ficção científica sempre usaram aquela imagem terrorífica de seres humanos levando uma injeção na nuca e se tornando embotados. Isso era assustador e nos assustava”, disse. “Agora, o que assustava passou a ser a vontade das pessoas. Elas querem tomar uma pílula, ou uma injeção na nuca, e ficar embotadas.”

Maria Rita sugere que vale a pena para todos – e não apenas para os depressivos – pensar o que a depressão está nos dizendo sobre nosso mundo. É isto ou continuar assistindo, impotentes, ao crescimento da epidemia, que atinge não apenas adultos, mas adolescentes e crianças, cada vez mais cedo. É preciso prestar atenção nesse mal-estar no mundo, escutá-lo, de verdade e com verdade, sem cair nos contos de fadas contemporâneos que transformam todos os monstros em déficits bioquímicos. Ao contrário de todas as profecias, a indústria farmacêutica não vai nos salvar de uma vida sem vida.

O livro de Maria Rita Kehl é complexo e vai muito além destas minhas primeiras interpretações. Uma das questões mais originais é a relação entre a depressão e o tempo. O depressivo seria também aquele que se recusa a se inserir no tempo do Outro. O nome do livro – O Tempo e o Cão – vem da experiência pessoal da psicanalista, ao atropelar um cachorro na estrada. Ela viu o cachorro, mas a velocidade em que estava a impedia de parar ou desviar completamente dele. Conseguiu apenas não matá-lo. Logo, o animal, cambaleando rumo ao acostamento, ficou para trás no espelho retrovisor.

É isso o que acontece com as nossas experiências na velocidade ditada pela nossa época. Diz Maria Rita: “Mal nos damos conta dela, a banal velocidade da vida, até que algum mau encontro venha revelar a sua face mortífera. Mortífera não apenas contra a vida do corpo, em casos extremos, mas também contra a delicadeza inegociável da vida psíquica. (…) Seu esquecimento (do cão) se somaria ao apagamento de milhares de outras percepções instantâneas às quais nos limitamos a reagir rapidamente para em seguida, com igual rapidez, esquecê-las. (…) Do mau encontro que poderia ter acabado com a vida daquele cão, resultou uma ligeira mancha escura no meu pára-choque. (…) O acidente da estrada me fez refletir a respeito da relação entre as depressões e a experiência do tempo, que na contemporaneidade praticamente se resume à experiência da velocidade”.

Por coincidência, estava zapeando na TV ontem à noite (domingo), quando encontrei a psicanalista no Café Filosófico da TV Cultura, um dos melhores programas da TV aberta. Lá, ela fez algumas considerações muito interessantes. Anotei duas delas para acrescentar a esta coluna. “Nos dizem que ‘tempo é dinheiro’. Ora, tempo não é dinheiro. Dizer que tempo é dinheiro é uma violência”, afirmou Maria Rita. “Tempo é o tecido de nossas vidas”. E um pouco mais adiante: “Em qualquer sociedade, o poder se instaura por alguma forma de controle do tempo”.

Quem quiser ler o livro de Maria Rita Kehl precisa saber que é um livro difícil. Não se lê fácil como uma daquelas obras de auto-ajuda. Exige tempo, parada, reflexão. Para quem é leigo, é preciso ler e reler alguns trechos, voltar. Talvez até pular algumas partes que, depois de ler e voltar e reler, ainda assim não alcançamos. Mas vale todo o esforço.

Aprendi algo sobre isso, na semana passada, ao ouvir Benjamin Moser, autor da recém-lançada (e excelente!) Clarice, (CosacNaify, 2009), uma biografia de Clarice Lispector. Ele contou que os livros que mais gosta da escritora são os mais difíceis, aqueles que teve de ler para escrever a biografia, e não os primeiros que leu e compreendeu de imediato. Então, disse algo mais ou menos assim: “Os escritores têm de nos alcançar, mas nós também temos de alcançar os escritores”.

Achei genial. E acho que é isso. Vale a pena essa busca para alcançar alguns escritores e suas vozes a princípio obscuras. Alcançar alguém é sempre uma experiência rica – e intransferível. O livro de Maria Rita Kehl, assim como os livros mais estranhos de Clarice Lispector, vale porque ao final deste esforço há uma voz original, dissonante de todas as mesmices que ouvimos – e eventualmente repetimos.

Para mim, que acordo todos os dias – e especialmente na segunda-feira – pensando em como não sentir mal-estar em um mundo tão brutal, que exige uma velocidade que me rouba a vida, fez todo o sentido. Só consigo viver por que a cada dia minha questão crucial não é me adaptar a um tempo que não é o meu. Mas encontrar formas de me recusar a viver segundo valores que para mim não fazem sentido. É esta busca – e esta insubordinação – que me mantém em pé, ainda que cambaleando, às vezes, como o cachorro atropelado por Maria Rita, e até caindo, de tempos em tempos.

Dias atrás, ao conversar com meu amigo Toco Lenzi, um homem que como poucos recusa os valores e a velocidade desta época, ele me contou uma história de sua última passagem pelo Saara, na Mauritânia, que cabe aqui. Toco atravessa o Saara a pé, da Mauritânia a Tunísia, em etapas e sem nenhuma pressa, com nenhum outro objetivo além de viver a experiência de atravessar o Saara a pé. Eu o acompanhei na primeira parte desta jornada para escrever um livro que ainda está no começo.

Toco conheceu um tuaregue que havia deixado o Saara e vivido – muito bem – na Europa. Apesar do que teria sido considerado um sucesso pela maioria de nós, ele resolveu voltar ao deserto e ao antigo modo de vida. Toco perguntou a razão. Ele respondeu: “Vocês têm relógio, nós temos tempo”.

(Publicado na Revista Época em 30/11/2009)

O homem sem conflitos

Sou escritor, ele disse, quando a conheceu. Mas ninguém quer editar meus livros. Grande novidade, ela pensou. Bem-vindo à torcida do Corinthians. Pensou, mas não disse. Metade das pessoas que ela conhecia queria publicar um livro. Mudou de assunto, com um sorriso complacente.

Ele tinha visto todos os filmes do mundo. E discorria sobre filosofia desde os pré-socráticos até Foucault. E tinha feito metade do curso de Direito no Largo São Francisco. E um curso inteiro de cinema em Nova York. E Relações Internacionais em Londres. Falava alemão. E um pouco de mandarim. E quando andavam de mãos dadas pela rua, ele parava e dizia: olha lá. Ela olhava, mas nada via. Lá, ele dizia, com um sorriso de gente encantada. Ela continuava não vendo. Até que ele mostrava a ela uma joaninha que caminhava sobre uma folha com uma carapaça tão classuda que poderia estar num desfile de Coco depois de Chanel. Ou uma flor tão delicada que ninguém poderia tocá-la sem que desaparecesse no ato. Ou o formato de uma pedra em que ele enxergava uma nuvem.

Ela às vezes só fingia ver, porque tinha nascido com uma visão de grande angular. Não conseguia enxergar detalhes. Ela via o todo. E ao ver o todo que ele era se encantou pela soma das partes dele.

Então quis saber por que alguém tão somado de tudo não conseguia escrever um livro que prestasse. Meus personagens não têm conflitos, ele disse. Ela riu. Está nos manuais clássicos: uma história precisa de um conflito. Eu não tenho conflitos, ele repetiu. Ela riu um pouco mais. Não consigo ter conflitos, ele insistiu. O riso dela ficou nervoso.

Nessa noite ela não dormiu. Atravessou a madrugada no computador dele, lendo um projeto de livro atrás do outro. Os personagens dele eram todos extraordinários. Como ele. Mas não havia o antes, só o felizes para sempre. Ele não sabia que os livros de fadas nunca contavam o que acontecia no viveram felizes para sempre porque não havia o que dizer. Não é que não fosse possível o felizes para sempre, apenas que era chato demais para valer a pena ser contado. A questão não é que a felicidade não exista, apenas que é um porre.

Quando Branca de Neve se sentava na varanda com seu príncipe, enquanto os anões cantavam alegremente indo e vindo, todos eles sentiam saudades da bruxa má. Mas não na história dele. Na dele, eles apenas sentavam-se na varanda e olhavam para o vazio sem medo do vazio. Ele era assim. A total ausência de sentido da vida não o assustava. Ele poderia muito bem passar o resto do ano contando as sardas dela, encontrando uma nuance nova para cada uma das de sempre.

Ela começou a ter medo dele. Da falta de medo dele. Ele percebeu a desconfiança dela, cada vez mais arisca ao toque dele. Pediu. Me ajuda a ter um conflito. Ela se lembrou da carapaça da joaninha e concordou. Naquela noite bateu nele. Mas ele não conseguia bater nela. Na madrugada, arrancou um olho dele com as unhas pintadas com um lançamento da Risqué, Pink Fluor. Pronto, agora você só vai ver metade da joaninha. Mas ele não conseguiu querer arrancar o olho dela enquanto chorava sangue com seu olho vazio. Ela arrancou o outro olho, e ainda assim ele não reagiu para além de chorar mais lágrimas vermelhas. Ela acendeu um cigarro e queimou a planície do corpo dele. E ele nada fez a não ser cheirar a queimado.

Você quer conflito?, ela berrava. Você quer? Eu vou dar conflito a você.

Pegou um picador de gelo que havia comprado mais de uma década antes, ao ver Instinto Selvagem, mas que nunca havia usado porque não conseguia tirar a calcinha. Fincou o picador no peito dele com tanta força e tantas vezes que quando percebeu estava estripando a espuma do colchão.

Ele nada fez. Não se mexia mais. Chorando como uma louca ela abraçou-se ao corpo dele. Arrependida demais para perceber quando o aço foi cravado na jugular dela pela mão vermelha dele.

Afinal, ele tinha um conflito.

No resto da madrugada ele reescreveu seus livros. Virou um milionário excêntrico. Em cada uma de suas mansões em Londres, Nova York, Paris e Berlim existe a mesma coleção de joaninhas. Todas elas espetadas com alfinete.

Dizem que há um espécime de quase 1m70. Mas ninguém nunca viu.

Deus e a Eutanásia

Por que temos tantas certezas sobre o que é melhor para a vida dos outros?

Nesta edição de Época, publiquei uma reportagem sobre o cotidiano de Odele Souza e sua filha Flavia, em coma há 12 anos, desde que seu cabelo foi sugado pelo ralo da piscina do condomínio onde viviam, em São Paulo. Há três anos, Odele criou uma voz para sua filha condenada ao silêncio. No blog flaviavivendoemcoma, ela denuncia o perigo dos ralos de piscina e sua frustração com a Justiça brasileira. Ao conhecer o blog, o que mais me fascinou foi a narrativa do dia-a-dia destas duas mulheres, ligadas uma a outra pela duração de uma existência. Quem quiser, pode ler a reportagem Saudades de sua voz.

Ao acompanhar a rotina de Odele, fui surpreendida por alguns emails que ela recebe, a partir da exposição no blog. Histórias como a dela e de sua filha mexem com medos e convicções profundas de todos nós. Flavia vive à margem da vida, como diz Odele. Mas vive. Ainda que não se saiba se tem algum nível de percepção do que se passa ao redor dela. E ainda que, tanto na Filosofia quanto no Direito, possamos discutir o que faz de uma vida uma vida.

Não posso afirmar o que eu faria se vivesse a tragédia que Odele viveu – e vive – com sua filha. Possivelmente, o mesmo que ela. Só posso dizer que gostaria de ter a coragem e o desprendimento de cuidar tão bem da minha filha como ela cuida da dela. Há certas coisas que só sabemos vivendo. Podemos no máximo especular.

Se um dia eu estiver na situação de Flavia, gostaria de morrer. Como a legislação brasileira não permite a eutanásia, já pensei em várias maneiras de garantir o direito de encerrar minha vida se um dia estiver num coma irreversível, assim como estudo alguma forma de absolver meus familiares da responsabilidade de realizar meu desejo. Esta é uma decisão que não deveria precisar ser tomada por ninguém que ama, embora também possa ser um ato de amor, coragem e cuidado.

Ou seja. Se estivesse no lugar da mãe, faria o mesmo que Odele faz: tentaria cuidar da minha filha da melhor forma possível enquanto ela respirasse. Se estivesse no lugar da filha, preferiria ter outro destino. Entendo que o exercício do amor e do cuidado pode conter as duas possibilidades.

Minha convicção mais profunda é a de que quem vive uma situação como essa – e só quem vive – tem o direito de decidir o que é melhor para si – ou para quem ama e não pode mais responder por si. Ninguém mais: nem os amigos, nem o padre ou o pastor, nem o médico, nem a Lei, nem o Estado. Esta é uma decisão da ordem do privado. E como tal deveria ser respeitada, seja ela qual for.

O que me deixou estarrecida, ao ter acesso à parte da correspondência de Odele, é como existem pessoas que têm certeza sobre o que é melhor para Odele e sua filha, Flavia. Estas pessoas não têm dúvidas, só certezas absolutas. Elas não vivem a experiência sobre a qual disparam sentenças, mas sabem o que é melhor para quem vive. Têm todas as respostas, sempre.

Veja dois exemplos, que Odele me autorizou a publicar:

1) “Eu lhe falava sobre Deus e lhe falava que havia visto muitas curas na igreja onde estou congregando. Na última vez que estive lá, pensei muito em você e na Flavia, pois uma jovem havia sido trazida de volta do coma pelo poder de Deus, pelo poder da fé dos familiares. A justiça dos homens, infelizmente, é tardia, mas a de Deus, jamais. (….) Basta que você confie, sou mãe como você também”.

2) “Dona Odele, por favor: sente-se confortavelmente, mantenha sua coluna ereta, feche os olhos, respire fundo e solte o ar aos poucos. Procure não pensar em nada, a não ser na possibilidade de a sra. estar no lugar de sua filhinha. Com tudo o que a sra. tem observado em Flavia, procure vivenciar se fosse com a sra. Pergunto: Qual seria a sua atitude, desprovida de apego, para com Flavia?. (…) Flavia se transformou em seu sentido de vida, em sua razão de ser. Suspeito que, em suas fantasias, se ela se for, a sra. não sobreviveria à ausência física de sua filha. Em outras palavras, a sra. está vivendo um estado de simbiose assimétrica com sua Flavia. Assimétrica, pois a sra. está viva e lúcida e sua filha somente tem vida vegetativa. Isto não me parece justo. (…) Mas qual seria, a meu ver, seu grande ato de generosidade? Eu respondo: Deixar sua filha partir deste mundo de dor, sofrimento, doença, velhice e morte. Não estou propondo homicídio. Deixe a evolução da moléstia de sua filha tomar seu curso natural. (…) Para o bem de sua filha, e de seu espírito, a sra. receberia grande Luz, se, por exemplo, deixasse de virá-la de posição de 15 em 15 segundos ou de hora em hora, que seja”.

A primeira oferta é de uma mulher que se identifica como uma crente. Ela oferece um milagre. Bastaria levar Flavia à sua igreja que ela despertaria do coma. Em nenhum momento ela pensa no que um milagre não realizado causaria em Odele. A mulher não vacila. Para ela, Flavia voltar de um coma considerado irreversível pela Medicina é apenas uma questão de fé.

No texto de seu email, fica subentendido que, caso Flavia não desperte, a causa seria a suposta falta de fé da mãe. Afinal, a autora havia visto uma menina voltar do coma “pelo poder de Deus, pelo poder da fé dos familiares”. Como ela diz, “basta que você confie”. Podemos supor que, pelo seu raciocínio, todas as tragédias não revertidas acontecem por falta de fé de quem as vive. Este raciocínio me parece muito cruel: se uma tragédia não foi revertida é porque a vítima – ou, no caso sua mãe – não teve fé suficiente. É ela a culpada, em última instância.

A segunda não chega a ser uma oferta. É mais uma tentativa de persuasão – ou de adesão à certeza do autor. Também com base numa suposta caridade, ainda que não a cristã, este homem convida Odele a se colocar no lugar da filha. Ele parte da premissa de que Odele, que cuida de sua filha 24 horas por dia há 12 anos, nunca o tenha feito. Nunca tenha pensado milhares de vezes no que sua filha pode estar sentindo, nunca tenha se colocado no lugar da filha até ele lhe oferecer esse conselho iluminado.

Ele afirma, sem sequer um lampejo de dúvida, que o melhor para Flavia é a eutanásia – ou ortotanásia, como diz em outro ponto. Na parte transcrita do seu email, o que me choca é a arrogância com que ele descreve o que Odele deve fazer para se colocar no lugar da filha. Ele, um estranho, tem a ousadia de dizer a uma mãe, por meio de um email, que seu maior ato de amor seria não virar a filha de lado, para que “a natureza possa fazer a sua parte”.

Esse nível de certeza sobre a vida do outro me soa assustador. Parece-me que as relações humanas, todas elas, se beneficiariam muito da dúvida. E do exercício, sempre saudável, de vestir a pele do outro. Sem, porém, perder o senso de que, por mais perto que consigamos chegar, não estamos nem estaremos naquela pele. E estar, de fato, é diferente de se imaginar nela.

Se ambos os missivistas, uma religiosa, o outro partidário da eutanásia, por um momento tivessem se colocado na pele de Odele, talvez escrevessem com mais humildade – e humanidade. Ou simplesmente se calassem. Ambos têm direito à sua convicção. Seu direito acaba, porém, ao desrespeitar o direito de Odele de ter a sua, mesmo que seja diferente das deles.

A certeza de que a verdade pessoal deve valer para todos é um comportamento corriqueiro. Todos nós sofremos, cotidianamente, com o excesso de certezas dos que nos rodeiam, suspensos alguns metros do chão pelo volume de suas verdades absolutas. A lógica, me parece, é a de que, se alguém conseguir impor sua verdade, não precisará nunca questioná-la. Embutido nesse comportamento, além do desrespeito ao outro, à surdez ao outro, parece estar o terror de ser assaltado por uma dúvida, ainda que bem pequena.

Neste caso, Odele recusou – com educação, mas também com firmeza – as duas alternativas apresentadas para tirar sua filha do coma: o milagre e a eutanásia. Veja os trechos a seguir:

1) O que disse a religiosa no email seguinte:

“Oi, Odele, peço desculpas, mas a sua falta de educação e sua prepotência são tão grandes que só Deus para ter misericórdia de sua vida… ninguém está pregando religião, minha querida, eu estava apenas falando sobre Deus, um Deus que pode curar sua filha porque ela NÃO está morta como a filha de Glória Perez. Mas, infelizmente, apesar de você escrever que tem um amor tão grande pela sua filha, sinceramente acho duvidoso. Uma mãe procura formas de ajudar a quem ama e não discriminar e desistir e esperar apenas a justiça do homem. Muitos ímpios não sofrerão nesta terra. O que falta na sua vida é Deus, um Deus grandioso. Não use de prepotência no problema de sua filha, porque sinceramente é isso que você está fazendo”.

2) O que disse o partidário da eutanásia em outro trecho:

“O que seria o melhor para Flavia? (…) Um paciente em coma, só mantendo vida vegetal, precisa ser regado diariamente várias vezes por dia, senão a plantinha se vai. Como médico, imagino os cuidados intensivos que a sra. deve dedicar à sua filhinha para mantê-la ‘viva’. Coloco entre aspas, pois sua humanidade já se perdeu. Com todo o respeito que esta situação nos obriga a dignificar, eu lhe pergunto: Dona Odele, a sra. a mantém nesta condição, por ela – que se tivesse consciência certamente sentir-se-ia constrangida de assim ser vista por todos – ou pelo seu apego a este corpo material? Não seria melhor mantê-la viva somente em sua própria consciência? O exemplo que a sra está dando é de nobreza duvidosa. Seria isso um verdadeiro amor? Dona Odele, eu sou espiritualista (não-espírita) e não confesso nenhuma religião determinada. Pense no espírito de sua filha aprisionado numa gaiola vegetal. Não seria mais justo e despojado, tanto para sua filha quanto para a sra., libertá-lo?

Desconfio muito das pessoas enormemente caridosas que, neste momento, a enaltecem, lhe dão prêmio internacional, e por aí vai. Talvez seja apenas uma forma de elas jactarem-se de sua capacidade de compaixão. Suspeito também que a sra. corre o risco de deixar-se envolver por este halo de santidade”.

Ao terem suas “ofertas” de algum modo recusadas, ambos sentem-se no direito de desrespeitar e julgar a decisão de Odele. Não são eles os prepotentes, mas ela, ao recusar a generosidade que lhe oferecem com tanto desapego. Ambos lançam mão do mesmo golpe baixíssimo: ao discordar deles, Odele prova que não ama a filha. Não “verdadeiramente”. No primeiro caso, por que ela recusa o milagre do Deus verdadeiro. No segundo, por que recusa a eutanásia.

De novo, vale a pena tentar vestir a pele de Odele ao ler emails como estes. Como se não bastasse a brutalidade de conviver com uma filha em coma, num cotidiano onde nenhuma resposta é fácil, pelo seu computador entram pessoas que nunca a viram, nem à sua filha, mas sabem o que ela sente, conhecem o seu amor (ou a falta dele, como a acusam), e têm certeza – reparem bem, certeza – sobre o que ela deve fazer da sua vida e da vida da sua filha.

Ao ler esta correspondência, me chamou a atenção ainda outro fato: como duas posições diferentes sobre o coma, a princípio antagônicas, a da religião e a da eutanásia, se unem pelo que podem ter em comum: a intolerância. É claro que nem a maioria dos religiosos nem a maioria dos defensores da eutanásia seriam capazes de tal demonstração de desrespeito com a dor – e com a decisão – de Odele. Ou pelo menos espero que não. Mas é curioso como partidários de teses opostas podem ser mais semelhantes que diferentes na intolerância, na certeza de que a sua escolha não é apenas a única possível, mas a única certa.

Cada um sabe da sua dor. Respeitar a escolha do outro, ainda que vá contra a nossa crença, é um ato de amor, de respeito e de dignidade. Parece-me até que se ama melhor quando somos capazes de aceitar que o objeto do nosso amor tome decisões diferentes das que gostaríamos. Discordar, e ainda assim aceitar, é bem mais difícil do que apenas concordar.

Da mesma forma, ao contrário do que tantos pregam, é o número de dúvidas – e não o de certezas – que dão a dimensão da sabedoria de alguém. Todo o conhecimento humano foi construído a partir de pontos de interrogação, não de exclamação. Muito menos de pontos finais.

É fácil detectar o autoritarismo e o desrespeito na correspondência enviada à Odele. São tão evidentes quanto um anúncio em neón. Na nossa vida cotidiana, porém, nem sempre é tão fácil perceber quando saímos por aí disparando nossas certezas como uma metralhadora giratória e infalível. Desde que Odele me presenteou com a confiança do acesso a estes emails, que compartilho aqui nesta coluna, aumentei o número de vezes por dia em que duvido das certezas. Das minhas e das alheias.

Não custa nada – e poupa muita dor a nós e aos outros – parar por um minuto antes de disparar um veredicto. São apenas quatro letras:

– Será?

(Publicado na Revista Época em 23/11/2009)

Saudades de sua voz

A vida cotidiana de Odele e sua filha Flavia – em coma há quase 12 anos, desde que seu cabelo foi sugado pelo ralo de uma piscina

Foto: Marcelo MIn

Foto: Marcelo MIn

Quando Odele sonha com a filha, Flavia tem 10 anos. A menina de cabelos longos, encaracolados nas pontas, fala sem pausas. Gosta de partilhar seu dia, contar as aventuras na escola, tagarelar sobre o futuro precocemente dividido entre uma carreira de administradora e outra de modelo. Abraça e beija muito. Dança, canta e toca teclado. Sua voz povoa o sono da mãe. Quando Odele acorda, porém, o silêncio continua lá.

Deitada na cama do quarto ao lado, Flavia tem os olhos abertos. Não pode mais falar e, embora possa ver, Odele não sabe se vê. A menina calou-se aos 10 anos, quando seu cabelo foi sugado pelo ralo da piscina do edifício onde vivia, em São Paulo. Em dezembro, no mesmo dia do aniversário da mãe, fará 22. Há quase 12 anos, Odele só ouve a voz da filha em sonhos. Agora é a mãe que parece se afogar ao despertar submersa na ausência da filha. “Ela tinha voz de sino”, diz. É dessa voz de sino que Odele sente mais saudade.

Assim se inicia cada dia. E cada dia em que Flavia não acorda é uma perda para Odele. Quem vai imaginar que a voz da filha, que às vezes perturba com sua premência, será um dia a maior saudade da mãe? Que aquelas histórias de criança, contadas quando falta tempo à mãe, seriam pagas com metade de uma vida ou uma vida inteira, se a mãe soubesse que poderia perdê-las?

É uma existência de subtrações e de delicadezas, a dessas duas mulheres. Só faz sentido porque Odele conseguiu fazer da história de dor também uma narrativa de amor.

Flavia abre os olhos durante o dia e os fecha à noite. No coma vígil, os olhos são vigilantes apenas na aparência. Não há consciência da dor ou do prazer. Flavia não se move, mas se sobressalta com ruídos mínimos e esboça sinais de sofrimento. Para os médicos, são apenas reflexos involuntários. Mas como ter certeza sobre quanto ela percebe? Sentiria Flavia, de algum modo, a presença da mãe, o toque da mãe, o amor da mãe? São perguntas que Odele Souza se faz, aos 60 anos. E responde “sim” a todas elas. Como não?

Devastada pelo silêncio da filha, Odele criou uma voz para Flavia. Há três anos ela criou um blog chamado Flaviavivendoemcoma. Não é um nome qualquer. Poderia ser Flaviaemcoma, mas Odele escolheu a palavra “vivendo” para colocar entre o nome da filha e o planeta inalcançável habitado por ela. Mesmo que não a alcance, para Odele sua filha vive. E, quando Flavia sorri, não é um reflexo involuntário.

Centenas de pessoas no Brasil, em Portugal, nos Estados Unidos, na Colômbia, em Moçambique e na Espanha testemunham a delicada tessitura dos dias de Flavia e de Odele pela internet. E preenchem com suas vozes virtuais as paredes reais da casa de silêncios onde vive a “princesa adormecida”. Pelo blog é construída a narrativa amorosa da perda cotidiana de uma mãe diante da ausência do corpo presente da filha. “Construí para minha filha uma vida de detalhes”, diz Odele.

Tempos antes de calar-se no fundo da piscina, de onde foi arrancada pelo irmão, quatro anos mais velho, Flavia soube que a mãe de uma amiga presenteou a filha que menstruava pela primeira vez com um buquê de rosas vermelhas. Pediu: “Mãe, você me dá flores quando eu ficar mocinha?”. Odele prometeu. Imóvel e silenciosa, Flavia virou mulher sobre a cama. Cresceu 12 centímetros. Menstruou em coma, aos 13 anos. A mãe colocou rosas vermelhas a sua cabeceira.

No Dia das Mães, é Odele quem escreve à filha. “Vejo você em sua cama hospitalar, mas não sei onde você está, por isso, como há um ano, estou te escrevendo uma carta neste Dia das Mães em que eu adoraria receber o teu abraço, o teu sorriso, o teu carinho, mas tenho de me contentar com tua presença imóvel e silenciosa. É como se você não estivesse aqui. E lamento muito, filha, por nestes anos todos não ter conseguido entender o mistério do estado de coma, lamento por não entender o que ocorreu em seu cérebro, para saber exatamente onde você se escondeu, um lugar aonde nunca consegui chegar para te falar e fazer entender que, esteja onde estiver, você não está só, e que estou sempre por perto a lhe proteger.”

Há quase 12 anos, por volta das 18h30 de 6 de janeiro de 1998, Odele escrevia no computador quando ouviu os gritos do filho mais velho. Pensou: “O Fernando vai incomodar os vizinhos”. Quando olhou pela janela do 8º andar, viu Flavia estendida no deque da piscina do condomínio. A filha tinha descido duas horas antes, de maiô preto, a toalha sobre um ombro, para brincar com o irmão e alguns amigos na piscina de 95 centímetros de profundidade. A menina tinha 1,50 metro. “Tchau, Mami, tô indo pra piscina”, disse. Foi sua última frase.

Odele desceu pelas escadas. Correndo. Quando alcançou Flavia, ela já não estava lá. Só abriria os olhos 16 dias depois. Nunca mais daria qualquer sinal de consciência.

Meses depois, Odele começou a buscar as causas no fundo da piscina. Dividia seu dia entre os cuidados com a filha no hospital e o posto de secretária executiva numa multinacional. Voltava para casa, vestia um maiô e mergulhava na piscina, em pleno inverno, com uma boneca de longos cabelos. Noite após noite, investigava o ralo. A perícia da Justiça deu razão à mãe: a bomba de sucção instalada pelo condomínio era potente demais para as dimensões da piscina. Odele levou o condomínio e a fabricante do equipamento ao banco dos réus.

Quando a filha completou oito meses de coma, Odele disse ao médico que a levaria para casa. Se Flavia pudesse sentir o cheiro da comida, ouvir a voz do irmão, o som dos chinelos da mãe no assoalho, quem sabe não acabaria por despertar? Nesse tempo, Odele sentia tanta dor que, palavras dela, se confundia com a dor. “Eu era uma dor ambulante”, diz. “Observava o ipê florindo-se de amarelo na janela e sentia raiva. Por que só minha filha não floresceria?”

Odele descobriu que o tempo da solidariedade passara. Não porque as pessoas se tornaram indiferentes, mas porque é difícil suportar uma dor que não acaba. “A dor da gente precisa deixar de ser ostensiva para que não nos tornemos insuportáveis para o outro”, diz. “Depois de dois anos, amigos passaram a atravessar a rua quando me viam. Não eram más pessoas, apenas não sabiam mais o que me dizer.”

Um ano depois do acidente, apareceram os primeiros laudos médicos. E a palavra que, ainda hoje, devasta Odele: irreversível. A mãe recusou-se a aceitar. Iniciou uma busca em que caiu em mãos de todo tipo. Escreveu a um lama do budismo tibetano. Peregrinou por igrejas de denominações variadas e centros espíritas. Passou por médiuns com apregoados poderes de cura e também por médicos que ofereciam tratamentos “revolucionários”. Todos lhe prometeram um milagre, no mesmo tom casual com que garantiriam o nascimento do sol no dia seguinte.

Ao levar a fotografia de Flavia a um médium que diz incorporar um famoso médico alemão, Odele ouviu: “Que menina bonita. Vamos tirá-la do coma”. Ela acreditou. Sempre acreditava. Passou seis meses atravessando a cidade para receber injeções espirituais na nuca. Da médica de uma universidade paulistana, ela escutou: “Em 15 sessões ela já vai dar sinais de retorno”. Não havia “talvez”, “quem sabe”. Só certeza.

A cada sessão, Flavia era espetada com cerca de 30 agulhas de acupuntura. A Odele, a médica pedia que fincasse uma agulha em cada dedo da mão e do pé de Flavia até que brotasse uma gota de sangue: “Energia negativa”. “Eu espetava chorando”, diz.

Quando as 15 sessões terminaram, a médica disse: “E se você parar agora e ela despertar na 18ª?”. Odele já tinha “e ses” demais em sua vida. “E se o prédio não tivesse piscina? E se eu tivesse ido com Flavia tomar sorvete naquela tarde? E se…?” Sem poder suportar mais um, ela seguiu com o tratamento. Um dia a médica provocou uma queimadura na pele de Flavia. Só quando queimou a menina pela segunda vez, Odele entendeu que era hora de parar. Havia sido a 54ª sessão.

Odele parou. “Percebi que não poderia levar minha esperança à insanidade”, diz. “Flavia estava ali, frágil e indefesa, exposta a minhas tentativas de mãe.”

Parar de tentar significava aceitar que a vida possível tinha agora paredes claustrofóbicas e um silêncio sem fim. “Essa dor é pior que a morte, porque é uma perda diária. Essa dor está no meu coração. Eu a sinto no meu caminhar, no fundo dos meus olhos, no meu rosto”, diz.

Odele começou a costurar uma existência em que a esperança resiste nos cantos. Quando Flavia é levada na cadeira de rodas para pegar sol, desce no elevador com a roupa combinando, brincos nas orelhas, presilhas coloridas nos cabelos sempre longos, porque era assim que ela gostava. Flavia pode ver, mas possivelmente nada enxergue. O que não a impede de usar óculos de aros cor-de-rosa quando está sentada. Para ela, a mãe ainda conta as histórias de fadas dos Irmãos Grimm. Mas também lançamentos como Leite derramado, de Chico Buarque, porque agora Flavia já é uma adulta. Cresceu na cama ouvindo Sandy e Júnior. E, agora, é para ela que Roberto Carlos canta suas mais derramadas canções de amor.

“Fá, nem sabe o que aconteceu”, diz Maria José Rodrigues, ou Masé, a técnica de enfermagem que chega. “Morreu o Ghost.” Masé refere-se à morte do astro do filme Ghost, Patrick Swayze, ocorrida em setembro. “Fá, chorei que nem uma besta nesse filme.” Aos 41 anos, Masé cuida de Flavia dia sim, dia não. Entra às 8 horas, depois de completar 12 horas de plantão na UTI de um hospital. Tem pela frente oito horas em que cuida de Flavia com tanto amor que seu próprio filho sente ciúmes. Da rua, ela traz um esmalte rosa-clarinho, transparente, de nome Paraíso, para pintar as unhas de sua “Fafá”. Junto vêm decalques de florzinhas para colar em cada unha esmaltada. Masé tem um lugar especial em uma vida condenada a ser tecida por outros. “Fá, será que um dia eu vou ouvir sua voz?”

Na metade da manhã chega uma das duas profissionais que se alternam de segunda-feira a sábado, em uma hora de fisioterapia. Flavia é colocada numa prancha para que seu corpo fique na vertical, fortalecendo a musculatura das pernas e melhorando o funcionamento dos sistemas digestivo e urinário. Seu corpo é massageado, e por suas mãos passam diferentes texturas para que ela sinta estímulos diversos. Órteses nas pernas e nos braços mantêm mãos e pés na posição correta, já que eles tendem a entortar pela imobilidade. Depois Flavia é acomodada na cadeira de rodas por três horas. Só à tarde volta para a cama, onde é virada a cada duas horas para não ter escaras. “Ela é incrivelmente bem cuidada”, diz a fisioterapeuta Andrea Lotufo. “Nunca vi uma ferida em seu corpo.” O pai da menina, separado de Odele desde a gravidez, sustenta boa parte da cara estrutura que mantém esses cuidados.

Em seu sono, Flavia tem pele de pêssego e cabelos brilhantes, cuidados pelo cabeleireiro Ary Soares, que trata deles desde antes de serem capturados pelo ralo. Não cobra nada. Ninguém toca em Flavia sem dar “oi”, “tchau” e pedir licença. Flavia não fala, mas os habitantes de seu mundo restrito falam com ela. E assim descobre que o esmalte da fisioterapeuta se chama Quinta Avenida.

Embaixo da cama de Flavia, Michele monta guarda. Ela é uma fêmea de poodle branca comprada na esperança de que os latidos despertassem Flavia. Provocam apenas sobressaltos. O nome foi tomado emprestado de uma amiga de Flavia, depois de Odele ter encontrado um bilhete na mochila escolar da filha: “Flavia, eu adoro você. Vou ser sua amiga para sempre. Michele”. Entre as coisas de Flavia, Odele também achou o telefone de uma agência de modelos.

Em sua trajetória, Odele conheceu o pior e o melhor do humano. A ela, nada foi poupado. Ao longo do processo jurídico, até mesmo a inteligência de Flavia foi posta em dúvida. Odele teve de provar que a média de Flavia na escola era 9,3, que aos 10 anos a filha falava inglês e espanhol, tocava teclado e sabia nadar muito bem. Vizinhos disseram que a menina costumava ser negligenciada, na tentativa de isentar o condomínio do pagamento de uma indenização. A fabricante do ralo alegou que a mãe fora “relapsa”. A Justiça de primeira e segunda instância sentenciou Odele como corresponsável pelo acidente, por não estar presente na piscina.

Só mais de uma década depois, em março deste ano, o Superior Tribunal de Justiça rejeitou, por unanimidade, a responsabilidade de Odele. “Essa mãe foi muito injustiçada. Ela nunca poderia responder por deixar sua filha, que sabia nadar bem, como está provado, ir nadar em seu condomínio. Ora, quem de nós não deixa os filhos nadar sozinhos?”, disse o ministro João Otávio de Noronha. O condomínio foi condenado por instalar um ralo incompatível com as dimensões da piscina. A fabricante foi absolvida.

Nestes anos todos, Odele conta que tinha vontade de abrir a janela do apartamento e gritar: “O que eu faço com esta dor?”. “O blog é como uma janela que se abriu. E me arrancou da solidão. Escrever é uma forma de falar de amor e exorcizar a dor. A palavra tem esse poder”, diz Odele. Por essa janela, ela alerta para o perigo dos ralos das piscinas. “Me dizem que não muda nada, mas acredito em exercer a cidadania. Não quero provocar um sentimento de pena, não sou uma coitada. Escolhi lutar”, diz. “Se não tenho poder de mudar, tenho o poder de incomodar. O que aconteceu com Flavia não será esquecido.”

A cada dia Odele realiza a alquimia de transformar dor em indignação para manter-se em pé. “Não há laço mais forte que o existente entre mãe e filho. Por isso, eu achava que o amor de mãe tinha mais poder”, diz. “Não é uma culpa o que sinto, mas uma decepção. Esse amor tão grande não é tão poderoso como eu imaginava que fosse.”

Filha de uma sertaneja nordestina que migrou para São Paulo com os filhos depois de ser abandonada pelo marido, Odele é uma mulher que se fez forte pelo exemplo e pelas agruras. Agora, também pela tragédia. No dia em que Masé está, ela amarra os fios de uma individualidade escassa. Almoça com uma amiga, vai ao cinema, visita exposições, vai ao teatro. Lê muito. E escreve um livro sobre a história de Flavia. “A felicidade já não está a meu alcance, o contentamento sim. Sempre há um jeito de dar um sorriso. Mas, às vezes, o possível para nós é muito pouco”, diz Odele. “Flavia vive à margem da vida. E eu, à margem da liberdade.”

Nos dias em que Masé não está, Odele se dedica a treinar outra cuidadora. Não é fácil encontrar alguém que cuide bem de uma menina em coma. Nem sempre o sono de Flavia é plácido. Seu corpo produz secreções que precisam ser aspiradas uma dezena de vezes ao dia. Pela sonda gástrica, ela recebe as calorias exatas para manter a saúde do corpo sem ultrapassar os 52 quilos. A atenção é constante.

A narrativa fiel desse cotidiano no blog provoca reações extremadas. Desde que passou a habitar a internet, Odele conheceu em profundidade a alma humana. Ela costuma ser alvo de ataques disparados por dois movimentos supostamente antagônicos. Por um lado, defensores da eutanásia lhe dão conselhos. “Deixe de virar sua filha a cada duas horas e a natureza fará seu trabalho”, diz um. “Se você quiser, eu posso aplicar uma injeção”, oferece outro. No lado oposto, religiosos garantem milagres instantâneos se Odele levar Flavia a sua igreja. Basta um domingo, e Flavia sairá andando. Odele recusa ambas as ofertas com firmeza.

Nesse momento as duas pontas se tocam. Ao recusar a eutanásia e o milagre, os discursos se igualam na intolerância. Odele é chamada de “egoísta” e “prepotente”. Ambos os lados acusam-na de não amar “verdadeiramente” a filha. Por meio de e-mails agressivos, estranhos ousam conhecer tanto sua dor quanto seu amor – e sempre acreditam saber o que é melhor para as duas.

Odele está serena quando diz: “Não julgo os pais que optam pela eutanásia, nos países em que ela é permitida. Cada um sabe de sua dor e de suas circunstâncias. Nunca pedi para a minha filha partir. Ela está aqui e, a mim, cabe cuidar para que tenha a melhor vida possível, ainda que o possível seja pouco. Há muito já não acredito em milagres. No meu blog, não permito que falem nem de eutanásia nem de que sua cura depende de Deus. Nem sou santa nem Flavia é. Se eu tivesse permitido, já a teriam transformado numa santinha, e minha casa seria lugar de romaria. Só quero que respeitem meu modo de amar. Para mim, amar é cuidar da minha filha da melhor forma que posso”.

Se as sombras penetram pela janela aberta do blog, é também por ela que entram personagens luminosos de além-mar. Sem muitos amigos reais dispostos a partilhar a vida de uma mulher presa aos horários impostos pelas necessidades de uma filha em coma, Odele fez amizades profundas com gente que nunca tocou. Talvez no mundo fluido, impalpável da internet, seja mais possível alcançar a fragilidade da ausência encarnada de Flavia.

Em torno de Odele e de Flavia foi tecida uma rede que dá amparo e sentido à perda de cada dia. São, em grande parte, amigos de Portugal, que se identificaram com a narrativa de Odele no blog e hoje irrompem pela casa das mais variadas maneiras, espanando as sombras com “coisas ternurentas”. Desde que a medicina encontrou seus limites, é o afeto que salva Odele. Enquanto Flavia dorme em seu casulo, a sua cabeceira nasce uma borboleta pelas fotografias de Nuno Sousa. Outra artista portuguesa, Isabel Filipe, cria novos enredos para a vida de Flavia em fotografias. Mas é um português chamado António Peciscas que as alcança com uma singeleza de sentimentos capaz de redimir a brutalidade daquele sono sem despertar.

De sua casa, no Porto, esse professor sessentão, pai de um filho adulto, envia gravações para Flavia ouvir. Nelas, narra as delicadezas de um cotidiano povoado de banalidades extraordinárias. Pela sua voz, Flavia pode tocar o pelo de uma gata branca que por lá aparece não para comer, mas para receber afagos. “Olá, querida Flavia. Cá está o António uma vez mais…”, inicia ele, como um avô de sotaque português, a voz doce como um pastel de Santa Clara. Grava os sons que se ouvem em sua rua. O sino da igreja, o galo do vizinho e até seus passos apressados sobre as folhas do parque. Nos domingos solitários, a voz de António é a única a quebrar o silêncio da vigília de Odele.

À noite, quando a dor alcança escalas impossíveis, Odele vai para seu quarto e chora. Flavia dorme no quarto ao lado, as portas sempre abertas. “Foi muito pouco o que restou de individualidade para nós”, diz Odele. “Mantemos nossos quartos.”

Ao contrário de todas as mães do mundo, ela tem medo de morrer antes da filha. Odele sabe que ninguém, por melhor que sejam as intenções, será capaz dessa vida de esquecimentos. “A vida me deu muito pouco. Espero que me conceda pelo menos isso”, diz. “Posso morrer no dia seguinte.”

Quando Odele dorme, tem um sonho recorrente. Nele, Flavia dá a mão para a mãe. E elas voam.

(Publicado na Revista Época)

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