O funk do réveillon

Ficou virando a taça de espumante entre as mãos. Tinham acabado de cear. Na tela de TV, Roberto Carlos fechava os olhos na profunda emoção de todos os réveillons. Mas não havia som, a tecla do controle remoto no mudo. Era só uma imagem familiar de algo que mudava para nunca mudar. No fundo ninguém queria que mudasse nada, só desejava ter forças para encenar por mais um ano um amor que de tão encenado havia se tornado verdade. Estamos juntos. Contra todas as probabilidades.

Era o que a cena parecia dizer. Por um segundo todos os ruídos familiares cessaram na mente dele. O tilintar dos copos, o som metálico dos talheres, as vozes um tom na direção da euforia obrigatória.

Tirou os olhos do líquido dourado quando sentiu suas pálpebras umedecerem-se de ternura por aquele desespero singelo que os mantinha ali, simulando uma felicidade que sabiam frágil. Beijou a cabecinha do filho, a testa arredondada de criança. Ele o havia condenado à continuidade, ao mundo dos primeiros do ano, à vida de datas encadeadas na tentativa de repetir os rituais para escapar da morte. Viu o pai cabecear, tonto de sono. Cabeceando na cabeceira da mesa, um lugar que há algum tempo já o pai sabia ocupar só por concessão.

A cada vez que o pai dormia, agora, parecia morto. Numa manhã ele mesmo havia acordado antes de seu corpo e percebera que começava a ter no sono aquela expressão dos mortos. Também ele começara a morrer à luz do dia. Não eram mais apenas as suas células, os seus neurônios. Era o início daquela expressão que via agora no sono do pai, o princípio da rigidez. A vida se indo, sem alarde. Sabia que não era pelo ano que começava que estavam ali, mas para tentar se enganar que a vida não terminava.

Às vezes achava que o pai quase não se mexia mais por medo que o movimento o denunciasse à moira que tecia o fio da sua vida. Se ficasse bem quieto, quem sabe ela não o notasse e ele estaria ali no próximo réveillon, cabeceando no prato de lentilhas. Como será, ele pensou, ter a consciência de que há uma probabilidade grande de não estar mais ali no ano que vem? Amou mais aquela família reunida com tanta delicadeza uma vez por ano.

Então veio o som. Ele chegou como dor, ao ver o pai abrir os olhos com o corpo todo contraído de susto. Demorou a compreender o que era aquilo. As palavras chegaram como hieróglifos antigos, de uma língua desconhecida.
“Bota na bundinha, bem no meio da bundinha.”

Finalmente compreendeu. Ele não queria, mas entendia aquela língua. Era a língua dele também. Abriu a porta da casa e espiou. Lá estavam eles. Os vizinhos da casa de praia. O capô do carro erguido e aquelas caixas de som enormes ecoando um funk em que os homens enfiavam coisas nas mulheres. E as mulheres tinham coisas enfiadas nelas. E toda a praia precisava ouvir que eles tinham um carro potente com um som potente em que alguém berrava que era potente ao enfiar seu pinto em orifícios que sempre foram usados para este fim sem que ninguém tivesse que alardear coisa alguma. E agora a impotência era tanta que era preciso berrar.

Eles gritavam com suas barrigas balançando, e as mulheres com suas barrigas que também balançavam gritavam, e as crianças deles riam um riso nervoso, e pareciam todos acreditar que estavam muito felizes gritando e ouvindo coisas sendo metidas e enfiadas.

Quando tirou os olhos de fora para voltá-los para dentro soube que estava tudo arruinado. O pai acordara e tinha medo. Seu filho o encarava numa expectativa assustada. Sua mulher esboçava aquela risadinha nervosa que era seu cacoete quando não sabia o que fazer. Seus irmãos e irmãs, os cunhados, a sogra tinham olhos que vagavam pelo quadrilátero da sala. Nenhum deles sabia como lidar com a violência que rompera a camada de gelo fino que cobria o equilíbrio de suas vidas.

Acabara. Caminhou lentamente como um sonâmbulo até a cerca que dividia o terreno entre as duas casas. Por favor, ele disse, daria para baixar o volume? Os homens que balançavam sua barriga e as mulheres que balançavam a sua barriga riram. É réveillon, estamos comemorando, disseram. Você não tem alegria, cara, não sabe se divertir?

E as crianças que riam, excitadas, riram mais. Ele voltou como um sonâmbulo humilhado. Dentro de casa todos fingiam que nada tinha acontecido ou estava acontecendo. Ele tentou tomar um gole de espumante. Mas não pôde ao ver os olhos estalados do pai.

Seus passos agora não eram mais de um sonâmbulo. Abriu a parte superior do armário do quarto e pegou a pistola que havia comprado na primeira vez em que ladrões limparam a casa. Estava carregada. Ninguém tentou impedi-lo. Apenas a mulher o agarrou pelo cotovelo, mas como um reflexo de suas obrigações de esposa sensata. Um gesto para ser ignorado.

Caminhou diretamente para o terreno do vizinho e, empunhando a pistola, ordenou que aumentassem o volume. As barrigas eram ainda mais molengas de perto, pensou. Mandou que entrassem na casa. Ordenou que repetissem o funk. E repetissem. Dentro dele finalmente um profundo silêncio.

Atrás dele, sua família o seguia com os olhos brilhantes. Viu então que um cunhado empunhava um taco de baseball. Desde quando ele jogava baseball, lembra de ter pensado. Seu próprio filho de cabeça arredondada de criança tinha algo na mão.

Ele nunca soube quem começou. Talvez ele mesmo. Quando percebeu o que estava acontecendo tinha as mãos cheias de sangue. E as havaianas nos seus pés chapinhavam em sangue. E ele continuava enfiando, enfiando. Bem no meio da bundinha. E daquele ângulo as barrigas dos homens e das mulheres balançavam ainda mais.
Ao virar a cabeça para se proteger de um jato de sangue que entrava pelo seu olho esquerdo, viu o pai. Enfiando e enfiando. Agora o pai não parecia mais um morto.

Aquele seria um ano bom.

Lula, o filho do Barretão

Os homens são bem mais interessantes do que os heróis – ou os santos

“Não quero que publiquem que eu sou santo. Não sou. Estou cansado que me carreguem no colo, que puxem meu saco. Não encontro textos sérios: ou inventam mentiras para me esculhambar, ou exageram em coisas que não existiram para me transformar num super-homem. Não sou nem uma coisa nem outra. Gostaria que você fizesse um texto ‘científico’ sobre mim, contando as coisas como elas são”.

Esta fala é de Luiz Inácio Lula da Silva e foi transcrita na introdução de sua biografia – Lula – o filho do Brasil (Perseu Abramo) –, escrita pela jornalista Denise Paraná. No surrado sofá vermelho do pequeno apartamento de Denise, então uma estudante vivendo com o dinheiro da bolsa de doutorado em História, na Universidade de São Paulo (USP), Lula contou a extraordinária história de sua vida em encontros que totalizaram cerca de cem horas de entrevistas, entre os anos de 1992 e 1994. Ao contá-la, pronunciou umas duas centenas de palavrões que foram limados da edição da Fundação Perseu Abramo, publicada no final de 2002, ano da primeira eleição presidencial vencida por Lula, depois de três derrotas. A primeira publicação da obra é de 1996.

A biografia, elaborada com os critérios da história oral e apresentada na forma de entrevistas com Lula e seus irmãos, é irretocável. Ao contar a história de Lula de 1945 a 1980, do nascimento no sertão pernambucano à liderança das greves no ABC paulista, Denise Paraná compreendeu que a riqueza do homem era sua complexidade. Foi respeitosa com todas as contradições do retirante sertanejo, operário e líder sindical que se tornaria o presidente mais popular da história recente do Brasil. Como o próprio Lula pediu, ao aceitar contar sua vida, o retrato traçado no livro é fascinante, mas decididamente não é nem o de um herói, muito menos de um santo.

Quando li a biografia, para cobrir a campanha de 2002, às vezes ri muito com Lula, às vezes chorei, em outras achei-o mau-caráter, em alguns parágrafos deu até raiva. Ao final da leitura consegui me aproximar das muitas verdades de Lula, um homem complexo e contraditório como são todos os homens. Ou, como diz Denise na primeira frase da introdução da obra: “Este é um livro sobre um homem controvertido”.

Ao assistir a Lula – o filho do Brasil, o filme, fui surpreendida por um outro Lula. Este me deu sono. Baseado na biografia de Denise Paraná, o filme usou fatos relatados no livro, retocou alguns momentos menos edificantes, mas perdeu o melhor da história: a humanidade do personagem. O Lula do filme é plano, unidimensional. Faz tudo certo sem tropeçar em nenhum conflito, nem mesmo um bem pequeno, em sua trajetória linear. Ao final, ficamos pensando (eu, pelo menos) que aquele cara da tela nunca chegaria a presidente da República. Não chegaria nem a liderar uma greve do ABC. O Lula do filme é raso como o açude seco em que o menino Lula bebia água com o gado.

A história de Lula e de sua família é uma grande história. Contém nela um naco da trajetória do Brasil. O pai migrou para São Paulo com a amante menor de idade, deixando no sertão a mãe grávida de Lula e outros seis filhos. Numa visita, ainda fez uma oitava filha antes de levar um dos meninos, Jaime, com ele para Santos. Dona Lindu vende tudo e vai para São Paulo atrás do marido porque este filho engana o pai, analfabeto, e escreve uma carta muito diferente da que ele ditou. Em Santos, ela tem gêmeos e perde os filhos sem nenhuma ajuda. Muito mais tarde, quando Lula está preso, dona Lindu morreria de câncer.

As irmãs de Lula trabalham como domésticas, um irmão tem doença de Chagas, outro é torturado pela ditadura militar. A primeira mulher de Lula morre no sétimo mês de gestação, junto com a criança, possivelmente por negligência médica. Quando é velada, o chão da casa em que viviam cede com o peso do caixão. O filme conta muitas dessas histórias, mas é uma narrativa sem densidade ou nuances. Não parece uma vida, mas fatos encadeados.

O Lula real era um menino tão tímido que não conseguia vender laranjas na infância por falta de coragem de gritar. O do filme é um vendedor com sacadas publicitárias. No filme, o casamento com Maria de Lourdes, a primeira mulher, é um conto de fadas proletário, com direito à perseguição no varal de roupas. Na vida, o casal voltou antes da lua de mel porque Lourdes só chorava. Quando o sogro de Marisa, taxista, conta a ele sobre sua nora, viúva, Lula estava saindo da casa da namorada, Miriam Cordeiro, e pensa: “Qualquer dia vou comer a nora desse velho”. No filme, ele apenas conta ao taxista, com voz embargada, que perdeu a mulher e o filho. E o taxista diz que também perdeu um filho e mostra a foto da viúva, Marisa, e do neto. O viúvo Lula do filme só chora. O da vida chora, mas depois quer “namorar todo dia e, de preferência, com pessoas diferentes”.

Quando Marisa aparece no sindicato dos metalúrgicos para “pegar o carimbo” necessário para liberar o dinheiro da pensão do marido assassinado, Lula não a reconhece da foto mostrada pelo taxista, como é contado no filme. Lula é chamado para atendê-la porque havia deixado ordens de ser avisado quando aparecesse “uma viuvinha nova”, como conta a própria Marisa no livro. Então Lula mente para Marisa que a lei tinha mudado e a obriga a voltar várias vezes ao sindicato. Depois a chantageia para que lhe dê seu telefone.

E assim por diante. Entre um personagem contraditório e outro com comportamento previsível, mas elevado, a escolha foi eliminar as nuances e ficar com um Lula sem ambivalências. Mais do que um herói ou um santo, o Lula do filme é um sujeito insosso.

Por que uma grande história, um grande personagem e um grande orçamento – R$ 16 milhões, um dos mais caros da trajetória do cinema brasileiro – se transformaram em um filme medíocre?

Só tenho hipóteses. O momento escolhido – com o personagem principal na presidência da República e às vésperas de uma eleição presidencial – pode ter feito mal à obra. O momento pode ter beneficiado a captação de recursos, já que dá gosto acompanhar na tela a lista de empresas sensibilizadas para a necessidade de investir no cinema nacional. Mas pode também ter produzido uma série de auto-censuras.

Como já foi dito pelos realizadores do filme, havia uma preocupação de não apresentar cenas que pudessem ser consideradas piegas ou excessivamente dramáticas, embora verídicas, como a que o pai de Lula se recusa a lhe dar picolé porque diz que ele não sabe chupar sorvete. A mesma preocupação pode ter ocorrido ao preferir não mostrar um Lula mulherengo e às vezes de caráter duvidoso, um Lula mais malandro que bom moço.

Há no filme alguns momentos heroicos, que nunca ocorreram na vida real, como quando o menino Lula se posta na frente da mãe para impedir que o pai, Aristides, batesse nela, dizendo: “Homem não bate em mulher”. Na vida real, contada pelo próprio Lula, é a mãe que não permite que o pai bata em Lula. Por conta disso, Aristides dá uma mangueirada na cabeça de dona Lindu. Do mesmo modo, há episódios em que a índole do personagem foi aprimorada, como quando Lula passa mal ao assistir ao dono de uma fábrica, que havia atirado em um trabalhador durante uma greve, ser jogado do segundo andar e depois linchado. Na vida real, narrada pelo próprio Lula, ele diz: “Eu achava que o pessoal estava fazendo justiça”.

Quando a biografia foi editada na Coreia do Sul, a tradutora passou alguns apertos. Ela não sabia como traduzir a passagem em que Lula fala sobre um costume dos meninos do sertão do seu tempo: a iniciação sexual com animais. A jovem Sophia Cho, que além de terminar a tradução acertava os últimos preparativos de seu casamento, ficou ruborizada. “Ainda que tenhamos permitido a aparição da primeira cantora transexual na TV, senhorita Ja Ri Su, a Coreia continua muito fechada nesse aspecto”, explicou-me, quando a entrevistei. “Como traduzir isso para um país que pratica o confucionismo há 4 mil anos?” Sophia Cho e todos os sul-coreanos poderão assistir ao filme sem sobressaltos. A fita não ruborizaria nem o próprio Confúcio.

Luiz Carlos Barreto, o Barretão, já disse que fez o filme para ganhar dinheiro. Deve ter sido sincero. Mas se o momento histórico é propício para “ganhar dinheiro”, me parece difícil fazer um bom filme sobre um presidente da República que está no poder e iniciará 2010 como um recordista de popularidade. Será que existiriam empresários tão interessados em investir na cultura nacional se o filme mostrasse o jovem Lula anunciando que queria “comer” a futura primeira-dama do Brasil? O fato é que mesmo cineastas brilhantes poderiam derrapar na empreitada. E a cinebiografia do diretor, Fábio Barreto, infelizmente não o inclui nesta lista.

Já me foi dito também que a ideia não era fazer um filme para intelectuais e para críticos gostarem, mas para o povão. Bem, acho que o povo merece um filme bom. E filme bom necessariamente não implica inovações de linguagem ou voos intimistas. Só é preciso contar bem uma história. E nenhuma história é bem contada se o personagem principal não vive um único conflito em sua vida, se é contado apenas pelo que o enaltece, se é, portanto, inverossímil. É curiosa essa ideia de “filme para o povão”. Já a escutei como explicação para tudo – de programas de TV de baixo nível a filmes ruins. Subestimar a inteligência e a sensibilidade do povo brasileiro me parece não só falta de respeito, mas arrogância.

Compreendo, é claro, que o filme é “bom” para muita gente, em vários aspectos que nada têm a ver com cinema. Nesse sentido, o que vai acontecer a partir do lançamento poderá render um outro filme no futuro. Nunca antes na história deste país um presidente teve a chance de poder assistir a um filme sobre sua vida refestelado na poltrona do cinema do palácio do Alvorada. Na condição de observadores da história em movimento, vale a pena acompanharmos de perto o efeito dessa monumental obra de propaganda e construção de imagem. É, sem dúvida, um capítulo novo.

Como brasileira que gosta de cinema e de boas histórias, ao contrário de alguns críticos, eu gostaria de assistir a um filme sobre a vida do Lula. Não agora, mas num momento em que Lula não estivesse tentando fazer seu sucessor na presidência. Um bom filme, que não fizesse dele nem um super-homem nem um santo nem um cara sem sal. Espero que algum cineasta de talento encare essa empreitada daqui uns anos.

Ao transformar Lula nesse cara que não faz nada errado, sequestra-se da história de todos nós um patrimônio fundamental da eleição de Lula para presidente do Brasil: a identificação que a maioria dos brasileiros pobres tem com a trajetória de Lula. Todos nós, mortais, erramos, temos conflitos, somos contraditórios, falamos besteira, derrapamos em covardias, nos arrependemos de muita ou pouca coisa. A identificação de um número significativo de brasileiros com Lula, em parte, se dá por essa certeza de que Lula poderia estar sentado na mesa de bar com cada um, tomando uma, falando de futebol ou de mulher ou jogando truco. Mas também pela possibilidade que ele representa na vida de cada um de superar a pobreza em um país tão desigual e se transformar em presidente com tudo o que é. Quando Lula se transforma em um predestinado, caso do personagem do filme, esse rico patrimônio simbólico se perde.

Prefiro o Lula que disse à Denise Paraná, que acabou assinando o filme como co-roteirista, quando ela pergunta a ele se acredita ter algum tipo de “inteligência especial”: “Eu não me considero burro, tenho clareza de que não sou burro. Agora, que eu não tenho nada de especial, isso eu não tenho. Não tenho, não tenho nenhuma inteligência especial. Eu apenas sei utilizar a minha”.

O maior defeito do filme com estreia prevista para 1º de janeiro, me parece, é não estar à altura da história. Nem à altura do homem. Lula, o filho de dona Lindu, é bem mais fascinante do que Lula, o filho do Barretão.

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Me pergunto se hoje Lula repetiria o pedido feito à sua biógrafa, de contar uma história real, que não lhe puxasse o saco nem lhe sacaneasse, que não o transformasse em santo ou super-herói. Ousaria arriscar que não. Minha hipótese, infelizmente, é de que depois de sete anos no poder, Lula passou a acreditar que é um pouco dos dois, santo e super-herói. E gosta mais do que seria prudente que todos lhe puxem o saco.

Como todo mundo, eu gosto de estar certa. Mas, seria bem melhor para mim e para todos os brasileiros, especialmente para Lula, que eu esteja errada.

(Publicado na Revista Época em 28/12/2009)

Um conto de Natal

Parecia mais um dia igual. Rorix, o duende cor-de-rosa, estressado como sempre nesta época do ano, sacudia-o sem parar. Queria saber se podia pintar os olhos da Barbie Los Angeles de dourado. Sim, sim, pinte de dourado com listras prateadas se quiser, mas me deixe dormir. Virou-se para o lado, não sem certo esforço para ajeitar sua barriga cada vez mais imensa. Hum, eu não devia ter comido aquele chester com damascos no jantar.

Precisava ficar de olhos bem abertos nos duendes que davam acabamento nas Barbies. Eles não conseguiam ficar com aquelas coisinhas deles dentro das calças bufantes. A cada réveillon chegavam mais de um milhão de cartas de mães ameaçando denunciá-lo. Hum.

Logo, porém, sonhou que seu trenó era puxado não por aquelas renas pastelonas, mas por unicórnios. Hum, havia algo errado com aqueles unicórnios. Os chifres eram poás. Rorix, de novo. Desta vez, para avisar que Xiror havia surtado, como de hábito nesta época do ano, e arrancara todas as pernas dos bonecos do Homem Aranha com os dentes. Hum. Lá se foram os unicórnios poás. E lá estava ele naquele lugar nefasto chamado Pólo Norte, os pés gelados como um nariz de morsa, os dedões parecendo salsichas Bock. Ô lugar!

Deve ter sido Átila, o Huno, na encarnação anterior, para merecer morar numa terra daquelas, varrida por ventos, coberta por neves eternas. Dias antes havia enviado um e-mail para a COP15, em Copenhagen, manifestando-se contra a redução de gases de efeito estufa. Ele — como alguns líderes mundiais — era a favor do aquecimento global. Tinha esperança de, no próximo século, estar morando debaixo de uma palmeira, pança lambuzada de bronzeador, vestido apenas com uma sunga de lycra vermelha. Mas não foi levado a sério. Quem leva a sério alguém com um nome como o dele?

E lá estava ele, cada vez mais desesperançado, condenado ao pior emprego do mundo. Ano após ano fazendo o mesmo trabalho burocrático, com os mesmos subordinados sem imaginação e com orelhas estranhas, ouvindo as mesmas músicas insuportáveis, descendo por chaminés cada vez mais inóspitas, cobertas por cercas elétricas, alarmes, seguranças brucutus. Sem falar nos pit bulls e nos skinheads, que corriam atrás dele com bastões chamando-o de veado. Sim, ninguém merecia uma roupa ridícula como aquela, vermelha e com pompons. Que vida, meu Deus, não era à toa que a mulher havia fugido com um vendedor de rum creosotado um século antes.

Levantou-se da cama. Sua barriga fez ruídos tão assustadores que Rorix Xiror Júnior despencou de uma pilha de patins. Algo de cor esquisita escorria da cabeça do duende, mas achou melhor não investigar. Bem que ele havia achado estranho aquele chester ter uma terceira sobrecoxa dentro do peito. Pensara, porém, que era um aprimoramento genético.

Agora, sentia uma pontada no intestino. Ó, céus, como se a vida já não fosse suficientemente difícil nesta época do ano. Ordenou a Xirorix, o cozinheiro, que fizesse um chá de fígado de beluga. Sentou-se em sua cadeira de aço guinzo, diante do computador. Já devia ter terminado há uns dez dias aquele game em que uma das garotas super poderosas, Docinho, provavelmente, tinha de capar o maior número de aliens. Ele sentia um arrepio a cada vez que um alien perdia o pinto, mas uma encomenda era uma encomenda. E a menina havia se comportado direito.

E então a dor dobrou-o em dois. Apertou a tecla errada e os aliens comeram Docinho por trás. Xirorix correu com o chá em sua direção, mas ele deu um tapa na xícara com tanta força que um dos cacos cravou-se na porta da casa da mãe da Björk. Deus, ele estava mal. Colocou as duas mãozonas sobre o barrigão. Havia algo muito suspeito ali. Parecia que algo vivo queria sair do interior de suas entranhas. Seria um bebê?

Pensamento estranho, ele devia estar mais esgotado do que pensava. Então a coisa dentro dele foi toda para um lado. Ele jogou-se para frente de tanta dor. Àquela altura, todos os duendes haviam parado de trabalhar e olhavam para ele com aqueles olhinhos argutos. Voltem ao trabalho, seus merdas, quis gritar. Mas a coisa foi toda para o outro lado e ele foi jogado no chão, esmagando três centenas de Harry Potters e duas dúzias de réplicas em tamanho natural de Edward Cullen, o vampiro vegetariano.

De repente, ele estava com muito calor. Queimava por dentro. Arriscava estar com uma febre de mais de 40 graus. Mandou que Xiror abrisse a porta. Apavorado, segurando uma Barbie Malibu pelos cabelos platinados, o duende obedeceu. Arrastando-se pelo chão, ele conseguiu alcançar o lado de fora. Pela primeira vez, a neve lhe dava uma sensação agradável. Esfregou-se nela como um urso polar. E então a dor foi tanta que desmaiou.

Quando despertou, não sabe quanto tempo depois, a coisa saía de dentro dele. Arrebentara sua carne e levantava-se suja de sangue, tripas e fezes. Então percebeu as letras. O monstro era todo escrito. Tinha perdido os óculos de vista cansada na segunda cólica, mas conseguiu perceber que a coisa era feita de palavras em diferentes línguas e dialetos, boa parte deles africanos. Já tinha visto aqueles garranchos em algum lugar. Mas onde?

Voltou a gelar. Sim, eram as cartinhas das crianças pobres que ele jogara no lixo por falta de leis de incentivo que permitissem atender aos seus pedidos. Quando ainda era jovem havia batido na porta de alguns estadistas na tentativa de obter um financiamento. Depois, desistira. A cada ano, jogava-as direto no incinerador. Como, então, elas foram parar dentro dele? E, pior, viraram aquele monstro dentro dele?

Naquele Natal nenhuma criança ganhou presente. Todas tiveram a mesma festa triste. Como na música de John Lennon, o mundo finalmente era um só.

Segundo Rorix, preso pela imigração num voo para Los Angeles, suas últimas palavras foram:
Ho, Ho, Ho.

Escolha o final

Mesmo nas histórias reais, a verdade nunca é simples

É curioso como acordamos com a ilusão de que sabemos o que vai acontecer. Numa manhã, dias atrás, eu tinha uma série de compromissos encadeados numa série que acabaria só tarde da noite. A parte leve do meu dia era um pit stop para fazer as unhas no salão aonde vou sábado sim, sábado não. Eu tinha acabado de superar o dilema feminino de escolher o esmalte, depois de oscilar entre cores e nomes que só os esmaltes são capazes de ter: Atrevida, Maçã, Paixão e Canoa. De repente, essa rotina segura foi rompida por um grito.

“A mulher está desmaiando”, gritou Elis, a moça que tinge, lava e seca os cabelos. Pela cortina, eu só vi as costas de uma mulher grande, sentada no banco diante da calçada, na Vila Madalena, em São Paulo. Ciça, a dona do salão, amparava o seu corpo. Tatiane, a recepcionista, correu a buscar um copo d’água. Rose, a manicure, arriscou um diagnóstico: “Pressão baixa”. Voltei a ler. A moça estava sendo cuidada. Eu tentava recuperar a palavra interrompida na página do jornal quando ela começou a falar.

O desespero na sua voz alcançou as cutículas da minha alma. Eu não entendia o que ela dizia, só escutava o desamparo. Pela cortina, via seus ombros sacudirem-se num choro convulso. Na porta, Tatiane narrava o que ouvia. Sua história vinha aos soluços, como no twitter. “O marido morreu”. “Ela saiu às 4h da manhã de casa”. “Foi despejada porque não tinha o dinheiro do aluguel”. “Deixou os filhos e suas coisas debaixo de uma árvore e veio procurar trabalho”. “O filho mais velho tem 12 anos e ficou chorando”. “Ela tem gêmeos de nove meses que amamenta”. “A vizinha ficou olhando os filhos”. “Ela está com fome”. “Ela está desesperada”.

No lado de dentro, nós éramos mulheres fazendo as unhas, tingindo e cortando os cabelos, num espaço do feminino distante do feminino dela. A dor da mulher entrava pela porta daquele santuário em que vivíamos nossas delicadezas no meio de uma cidade bruta. Cada uma com problemas que nos tentaculavam como polvos.

Algumas de nós cravaram os olhos em suas revistas de celebridades. Não porque fossem indiferentes ao drama, mas porque era dolorido demais entrar em contato. Tentavam se convencer de que aquilo não estava acontecendo. Se ficassem bem concentradas na polêmica sobre o vestido curto de Juliana Paes na cerimônia do Emmy, a voz terrível do lado de fora acabaria se calando. Uma delas nem percebeu que a revista estava de cabeça para baixo.

A certa altura, todas nós chorávamos. Uma mistura de compaixão e vergonha. Não por chorar, mas por não saber o que fazer. Éramos mulheres que davam duro para ganhar a vida e às vezes nos escondíamos ali para ficar bonitas. Fugíamos não só de nossas unhas roídas, mas da feiúra do mundo. E lá estava ela, à porta de nosso pequeno e frágil universo, chorando de fome e desespero. Cadê os seguranças, as cercas eletrificadas, o porteiro eletrônico, os vidros com insulfilm para nos proteger do desamparo alheio? Não havia.

Com braços espichados, pernas no colo da manicure, eu era um retrato patético da impotência. Depois de alguns minutos eternos consegui romper meu imobilismo. “Tati, quanto é o aluguel dela?”. Tati correu para fora. Voltou. “É cem reais.” A dona do salão ofereceu a ela um emprego em sua casa. Dei a ela o dinheiro do aluguel, para que pudesse reorganizar a vida e voltar a trabalhar.

A mulher quis entrar para me conhecer. O desamparo agora tinha corpo. Era negra, grande, os seios fartos de leite. O conjunto azul de saia e blusa revelava sua tentativa de estar apresentável para bater de porta em porta em busca de um emprego. Sempre me comovi com estes pequenos detalhes. O vestido puído, mas limpo, o paletó curto nas mangas, os sem-tetos que lavam as roupas nos parques para vesti-las embaixo de viadutos imundos.

Nos abraçamos ali, entre escovas, esmaltes e secadores de cabelo. Descobri que eu precisava tanto daquele abraço quanto ela. Duas estranhas abraçadas, cada uma com o nariz enfiado no pescoço da outra, misturando o sal das nossas lágrimas e do nosso suor. Duas mulheres em posições sociais diferentes, mas que se reconheciam no desamparo. Sem cercas para nos apartar, nos enxergávamos.

Quando percebi, eu dizia coisas para ela como: “A vida às vezes é bem dura, mas passa”. Ou: “Come antes de pegar o ônibus para não desmaiar”. Ou ainda: “Paga o aluguel, cuida dos teus filhos e depois volta”. Soube então que seu nome era Eliane. Éramos duas Elianes chorando abraçadas pela dor de ser mulher num mundo tão assustador.

Não era esmola o que dei ali. Nem era esmola o que ela aceitou. Era algo que nos igualava, que permitia que nos abraçássemos e chorássemos juntas. Ela achava que Deus tinha guiado os seus passos. “Eu ia por uma rua, mas Deus me mandou ir por outra”, disse ela. Já eu acredito mais nos pequenos milagres humanos. E acredito que eles acontecem quando vencemos nosso medo e nos reconhecemos nos olhos do outro. Toda violência, acho eu, começa quando deixamos de nos enxergar, erguendo – também literalmente – muros entre nós. Apartados uns dos outros, é óbvio que quando nos encontramos não há reconhecimento, só desconfiança.

Não foi por acaso que ela desabou naquela porta. O salão tem porta para a calçada e um banco onde é possível sentar. Sua arquitetura acolhe, não afasta. Deve ter sido o único banco que Eliane encontrou nos muitos quarteirões por onde andou arrastando a sua dor. Naquele mundo de mulheres ela chegou como estrangeira. Mas suas palavras foram ecoando em cada uma de nós, até que ultrapassaram a soleira da porta junto com ela. Ela então se tornou uma de nós, mulheres tentando desenredar a vida.

Salões de beleza, seja nos bairros nobres ou nas favelas, são universos onde os dramas do mundo feminino se desenrolam. Há uma força poderosa nesse desejo de se embelezar. Somos todas muito parecidas com os pés nus estendidos no colo de outra mulher. Essa trama delicada é tema de um filme bonito que está nas locadoras chamado Caramelo (Nadine Labaki, 2007).

Nele, as vidas de cinco mulheres se entrelaçam num salão de beleza de Beirute, no Líbano. Layale, amante de um homem casado, sonha com o dia em que ele vai se separar para ficar com ela; Nisrine está de casamento marcado, mas não é mais virgem e não sabe como contar isso ao noivo muçulmano; Rima sente atração por mulheres; Jamale tem medo de envelhecer; e Rose cuida da irmã mais velha.

Me senti num filme real naquele final de manhã. Um filme só de mulheres. Quando a outra Eliane partiu, ficamos fungando em silêncio. E Rose terminou de pintar minhas unhas com esmalte Maçã.

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Eliane deveria voltar na terça-feira seguinte para começar a trabalhar na casa da dona do salão. Nunca apareceu.

O que teria acontecido? O final desta história não é simples.

A terça-feira em que ela deveria voltar, 8 de dezembro, foi o dia em que São Paulo parou por causa da chuva. Eliane disse que morava nos confins da Zona Leste. Teria ela sido acossada pela chuva? Ou alguma de suas crianças? Como acontece a cada ano, dezenas morrem de algo tão previsível quanto a chuva no estado mais rico do país. Só naquela terça-feira morreram pelo menos seis na Grande São Paulo. E centenas ficaram desabrigadas.

Fico de olho nas notícias sobre os mortos, mas até agora não encontrei ninguém com suas características. Ela pode estar ferida, o barraco pode ter desabado, um filho pode ter ficado doente. Ela não deixou nenhum endereço. Ficou apenas de voltar com certeza.

Ou seria um golpe? Aceitando essa hipótese plausível, teríamos nós, escoladas moradores da metrópole, caído numa velha pantomina. A favor de nós, para que nos sintamos um pouco menos idiotas, pode-se dizer que ela era uma grande atriz. Sim, porque estava gelada, suava frio, tremia muito e chorava lágrimas copiosas.

Há outras possibilidades. De que ela estivesse mesmo desesperada e com fome, mas precisou contar uma história mais trágica para nos sensibilizar. Ou ainda, que estivesse em síndrome de abstinência de algum tipo de droga, o que explicaria o quase desmaio, os tremores e o suor frio. Mas ninguém lhe daria dinheiro para comprar crack, por exemplo, se falasse a verdade. Neste caso, o desespero seria real, o motivo mentira.

A verdade nunca é fácil nem está toda no mesmo lugar.

Quando fazemos reportagens, precisamos duvidar de tudo. Vamos a todos os lugares, falamos com todos os envolvidos, checamos os documentos, ouvimos o contraditório e relatamos o que encontramos, para que os leitores possam chegar a suas próprias conclusões. Mas, na vida cotidiana, não temos esse tempo. As escolhas, em geral, precisam ser rápidas. Estender ou não a mão a alguém que pede ajuda?

Não há certezas. E, na dúvida, qual é o final que prefiro para esta história?

Por um lado, gostaria de não ter caído num golpe. Ninguém gosta de se sentir idiota. Por outro, se não era um golpe, ela pode estar morta ou ferida o suficiente para não poder ligar pedindo ajuda. Isso seria bem pior, obviamente. Por paradoxal que seja, o melhor é ter sido vítima de um golpe e feito um papel ridículo.

Possivelmente nunca saberei a verdade dela. Mas é importante conhecer a minha verdade. A pergunta que importa agora é: o que eu faria se algo assim acontecesse novamente?

Eu faria o mesmo.

Pertenço à parcela das pessoas que prefere deixar a porta aberta a se trancar atrás dela. Sempre há um risco de entrar um golpista pela porta, mas por ela também entra quem precisa de um colo, entra o novo e até o extraordinário. É uma convicção profunda que me move pela vida. E espero sempre ser capaz de escolher este final para a minha história.

(Publicado na Revista Época em 21/12/2009)

O homem que me ensinou a morrer

Conheça a incrível história de Valentim de Moura, o operário que morreu passarinhando

O mais fascinante da profissão de repórter, na minha opinião, é a possibilidade de bater na porta de tantas vidas e ter uma boa desculpa para entrar. Isso, às vezes, tem um preço alto. Mas, em outras, como na história que vou contar, é um presente. Fui convidada a participar do Profissão Repórter, da TV Globo, sobre a enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual, em São Paulo. O programa foi ao ar nesta terça-feira (15) e pode ser visto neste site. Ao gravar a minha parte, conheci um homem extraordinário chamado Valentim de Moura.

Durante mais de uma semana, acompanhei seu Valentim na vivência de sua morte. Nestes tempos estranhos que vivemos, em que a morte é um tabu, o mais radical é morrer com serenidade, sem medo. Por absurdo que pareça, morrer com naturalidade tornou-se um ato revolucionário. Foi assim com seu Valentim: ele encerrou sua vida em paz. Para ele, não havia nada mais natural do que chegar ao fim de sua trajetória e morrer cercado por quem amava contando histórias da sua vida.

Nós, repórteres, sempre sofremos com as histórias que apuramos e não couberam no texto – ou, neste caso, no programa de TV. Trabalhamos limitados pelo número de páginas, pelo tempo do programa. A história de seu Valentim não pôde ser contada. O inusitado ali era a naturalidade da morte. E o fato de uma morte serena ser algo tão subversivo me fez pensar bastante. Como estes acontecimentos ficaram tatuados na minha alma, quis contar aqui para que mais gente pudesse ter a chance de aprender com seu Valentim. Não queria me beneficiar sozinha de uma experiência de vida tão larga.

Ele sabia que morreria de câncer. Era tratado na enfermaria de cuidados paliativos, um lugar onde cuidar é mais importante do que curar. Lá, doentes com escassas chances de cura são acompanhados por profissionais da saúde com uma convicção diferente da difundida pela prática médica tradicional. Eles acreditam que seu papel é amenizar os sintomas, escutar muito, cuidar das feridas invisíveis para que os pacientes possam viver intensamente, até o fim. A vida não é nem abreviada, nem prolongada por tratamentos dolorosos e invasivos. Cada paciente é visto como a pessoa singular que é, e sua história é tão determinante na hora de tomar as decisões quanto os aspectos médicos.

Durante o tratamento, seu Valentim piorava e passava alguns dias internado na enfermaria, até estar bem e voltar para casa. Quando novamente piorava, voltava para o hospital. Até o dia em que sentiu que, quando voltasse à enfermaria novamente, não mais retornaria para casa. Reuniu a mulher, dona Geralda, os seis filhos, e pediu que lhe comprassem um túmulo. Queria que fosse branco, mas os filhos acharam que sujaria muito. Concordaram então em pintar da cor do céu. Ele pediu também que plantassem muitas flores no jardim. Seu Valentim pertencia à natureza.

Quando o túmulo ficou pronto, ele anunciou que havia chegado a sua hora. “Minha casa agora vai ser esta nova que vocês fizeram para mim”, disse. “Quero ir para aquela enfermaria cheia de moças bonitas, onde me tratam muito bem.”
No caminho, exigiu uma parada no cemitério. Vistoriou seu túmulo, seu jardim, e disse: “Muito bonito”. Entrou no carro satisfeito e foi para o hospital. Lá, contou-me que era metalúrgico e, como o presidente Lula, também teve o dedo engolido por uma máquina. De dentro do lençol, puxou uma mão magra para mostrar-me a ausência que marcava sua vida de operário. Ao lado, o cunhado lembrava dos tempos em que seu Valentim tocava sanfona e havia se apaixonado por dona Geralda. Enquanto ele morria, ouvia histórias. Em todas, era ele o protagonista.

A cada dia seu Valentim ia nos deixando um pouco mais. Mas sem pressa. Nenhuma. “O tempo é o dele”, disse a chefe da enfermaria, Maria Goretti Maciel. “Não temos nenhuma necessidade de intervir. Ele está vivendo o fim da vida. E o médico não deve se intrometer nisso. Só precisamos caminhar ao lado dele, para ajudar no que for preciso. Este é um caminho que tem de ser vivido.” Logo depois, com aquele jeito manso de Goretti, ela suspirou: “Não parece a morte que a gente gostaria de ter?”

Parecia. Desrespeitamos tanto o tempo na nossa vida, não esperamos o tempo de nada, atropelamos o tempo de tudo, não temos nem sequer minutos para elaborar os tantos acontecimentos vividos. Que pelo menos esperemos o tempo da morte. Resolvi até sentar-me um pouco no corredor para gastar tempo refletindo sobre o tempo sem me preocupar em gravar coisa alguma.

Nos últimos dias seu Valentim não falava mais. Só olhava, para longe e para dentro, na mais absoluta serenidade. Parecia que às vezes ele mesmo se surpreendia de acordar e ainda estar neste mundo. Já tinha deixado a casa que construiu, despedindo-se da família que criou com dona Geralda, falado de amor para a mulher com quem viveu 45 anos. Estava pronto para ir embora.

Numa manhã, partiu. “Passarinhando”, resumiu Goretti. Simplesmente parou de respirar, silenciou e se foi.

No dia seguinte foi enterrado em um cemitério chamado Saudade, acompanhado pela mulher, os filhos, os netos, os colegas de trabalho, os companheiros de sanfona, os amigos de uma vida inteira. Foi um enterro do jeito dele. Enquanto o cortejo evoluía pelo cemitério, eu escutei mais meia dúzia de histórias do seu Valentim. Quando todo mundo se calou por um instante, soubemos que dezenas, talvez centenas de passarinhos moravam nas árvores perto de seu túmulo.

Ao me despedir de dona Geralda, descobri porque aquele casamento tinha dado tão certo. Ela disse, depois de dar adeus ao homem com quem tinha dividido a maior porção da vida: “Ele está bem guardadinho ali no barraquinho dele”. Estava mesmo. E estava tudo certo.

Em um vídeo, que mostramos aqui, há uma pequena amostra do material gravado com seu Valentim. Dá para ter uma ideia deste homem e sua morte tão subversiva para os tempos atuais. Dizem que nome é destino. Às vezes, como agora, até acredito.

Se seu Valentim soube morrer sem drama, eu também quero me despedir dele sem choro. Só quero dizer: “Muito obrigada, seu Valentim, por me ensinar a morrer”.

(Publicado na Revista Época em 16/12/2009)

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