A santa

Desejou o homem desde que o viu na cruz pela primeira vez. Aquela nudez tão diferente dela, ao mesmo tempo tão entregue. Tão dela. Esse deus que revelava a divindade que também nela habitava.

A mãe ficou encantada quando ela, a quem ainda faltava a completude dos dentes de leite, pediu um crucifixo em vez de uma Barbie no nascimento de seu primeiro e, tinha certeza, único amor de quantas vidas tivesse. Desde aquele Natal, para sempre citado na crônica familiar, ela carregava seu próprio divino homem para sua cama de menina e se sentia una, para além de todas as tentações da carne que não fossem a carne em chagas dele.

Lambeu cada uma de suas feridas e secou seu sangue com os cabelos, dia após dia. Noite após noite. E sua devoção era tanta que a família logo entendeu que à obra ela pertencia. Entendeu e se orgulhou daquela que havia saído de um ventre pecador para uma pureza para sempre intocada.

Transferida à casa das moças que só amavam o homem divino, ela trouxe com ela uma paixão tão feita carne que a superiora temeu. Era tão poderosa sua transfiguração durante o ritual sagrado que outras moças queriam seguir seus passos para também alcançar aquele olhar esgazeado que era o primeiro sinal do corpo dela alterado pelo amor divino dele.

Nos intervalos das aulas um grupo de jovens mulheres reunia-se em torno dela para testemunhar o momento em que proferia votos eternos de amá-lo com a força de tudo o que era. Seu corpo estremecia inteiro, e ela desmaiava enquanto suas seguidoras choravam diante da inteireza daquela fé.

Quando a superiora a recolhia do chão, tentava lhe mostrar que a fúria desse amor deveria ser guardada para si. Ainda suja de terra e suor, ela gritava: “Aniquilar-se por amor é o mais elevado que existe!”.

Agarrada à imagem do homem seminu, alcançava o centro do pátio e declamava. “Oh, Deus, tu que te derramas em teu dom. Tu que fluis em teu amor. Tu que ardes em teu desejo. Tu que te fundes na união com tua amada. Tu que repousas entre meus seios. Sem ti não posso ser.”

Já não sabia onde acabava ela, onde terminava ele. Entregara-se ao amor que a tudo redimia. E tamanho arrebatamento alcançava que expressá-lo com seus beijos e seus líquidos já não era suficiente.

Agora não ia mais ao pátio, uma notícia que muito alegrou a superiora. Deitada em seu leito, os olhos postos no teto e o rosto transmutado em felicidade, ela balbuciava para uma plateia cada vez mais numerosa. “O amor cuja força infinita dilata minha essência, até o ponto em que me entrego toda ao seu nobre renascimento.”

E entregava-se, diante dos olhos de todas. E ao redor delas muitas e cada vez mais tombavam com os olhos vidrados. Como vitrais da igreja que é cada corpo.

A fama desse amor tão grande e de tão elevada felicidade ultrapassou as pesadas paredes da casa e ganhou o mundo. Diante dos portões era cada vez maior o número de mulheres em busca de beber desta mesma fé. Já não eram mais apenas as jovens de alma tenra, mas também senhoras casadas de há muito, mães de filhos em idade escolar, até avós.

Basta, disse a superiora. Chamou a família da devota, que nada entendeu, orgulhosa que sempre esteve dessa filha tão entregue ao amor do único homem puro neste e no outro mundo. Levem-na. É louca.

Quando a arrastaram da cama, ela se desviou de seu deslumbramento para dizer à superiora com uns olhos que para sempre causariam pesadelos na mulher de carne tão dura. “Ó, amado, que dirão as gentes da religião? Declaram que me extraviei. A verdade se declara ao meu coração. Sou a amada de um só. Este dom mata meu pensamento com as delícias de seu amor. Delícias que me exaltam e me transformam por união no gozo eterno de ser do divino amor.”

Cala-te, herege, bradava a superiora. E ela continuava, e atrás dela uma fileira de disciplinadas religiosas caía. “O divino amor me disse que entrou em mim, de modo que pode tudo o que quiser. A ele estou consagrada. Ele quer que eu o ame, de modo que o amarei.”

Rubra de vergonha e ódio, a superiora expulsou a ela e a família, que rubra de vergonha e ódio confinou aquela que havia sido motivo de orgulho e de suas melhores esperanças na casa de loucos da cidade grande.

Desde que lá pisou as insanas e também as doidas não mais precisaram de remédios, e até os funcionários começaram a cair de bem-aventurança pelo chão. A ponto de a diretora sobressaltar-se e chamar sua família para que a levasse dali o mais rápido possível. Apenas tirem-na da minha frente, berrou, fora de si. A família recusou-se, partiu em busca de seus direitos e os achou na forma de uma liminar judicial obrigando a instituição a mantê-la ali até o julgamento do caso.

Enquanto o processo tramitava em muitos escaninhos, ela morreu incinerada em um incêndio que consumiu apenas a ala por ela habitada. A polícia nunca descobriu a causa. Nem a família a pressionou para isso. Tampouco o Ministério Público achou que deveria mexer em tal coroa de espinhos.

A última funcionária a vê-la contou que morreu devorada por línguas de fogo gritando o nome do amor a quem se entregou também nas vidas feitas de pequenas mortes. Não parecia sofrer, garantiu.

O que não contou é que havia tanto êxtase no rosto e no corpo que se contorcia entre as chamas que não pôde esquecer. À noite, quando a funcionária se deitou com o homem que era seu, a lembrança do martírio fez nela o primeiro de muitos milagres.

O insustentável peso do ser

Quando emagrecer é perder mais do que quilos

Volto ao tema do que é ser gordo neste mundo porque tenho cada vez mais convicção de que compreendê-lo é chave para acessar nossa época. Somos aturdidos, invadidos e bombardeados por reportagens sobre dietas, conversas sobre dietas, receitas de dietas, livros de dietas, profissionais especializados em dietas e, agora, reality shows com gente tentando emagrecer e eventualmente fracassando. Quando olhamos para alguém, comece a reparar, nosso primeiro ou no máximo segundo olhar avalia se a pessoa é gorda ou magra. Quando descrevemos alguém – e também quando criticamos ou xingamos –, a gordura é um dos primeiros tópicos. Se tivéssemos acesso às promessas feitas hoje a santos ou outras entidades místicas, eu apostaria que a maioria está com a agenda lotada de pedidos de devotos implorando pelos milagres dos quilos a menos.

Pense por um segundo: o quanto estar ou não acima do peso ocupa suas conversas com amigos e familiares, as preocupações do seu cotidiano, o tempo da sua vida?

Queremos acreditar que é uma obviedade desejar ser magro. Que não há outro jeito de ser na vida. E que é “natural” nossa preocupação com o peso e com as dietas. Será? Desde que nos tornamos uma espécie inscrita na cultura, não há nada de natural em nós, exceto o funcionamento biológico do nosso corpo – pelo menos até onde a ciência ainda não conseguiu interferir. Se assim é, o que o valor da magreza, que vai muito além de um padrão de beleza, diz sobre nós? Ou, visto pelo avesso, o que a rejeição à gordura significa?

É muito menos óbvio do que parece. O argumento da saúde é sempre o primeiro a surgir, por ser supostamente indiscutível e vir embalado nas melhores intenções. Mas, acredite, nem todos os gordos são doentes. Ou obesos. Alguns exibem ótimos exames de colesterol e triglicérides, tem pressão normal e bom funcionamento do coração. Nem toda gordura é doença. E, mesmo quando se torna doença, a saúde não é a única medida para avaliar a qualidade de uma vida humana.

Para ampliar nossa compreensão sobre algo que perpassa nossa vida, entrevistei uma mulher vista como “gorda”. Há algumas semanas, ela iniciou uma dieta. Neste momento, emagrecer é um projeto em curso em sua vida. Ela tem 37 anos, 1m69 de altura e pesava 84,5 quilos quando iniciou o regime. É bem sucedida no que faz e tem amplo reconhecimento profissional. Exames médicos mostraram que não tem nenhum problema de saúde ligado ao peso. Quis entrevistá-la porque ela ousa ir além do lugar comum e faz uma reflexão profunda sobre as implicações de sua decisão de emagrecer.

Para esta mulher, fazer dieta é uma forma de violência. Mesmo assim, procurou uma nutricionista e seguiu em frente. Com generosidade, ela nos explica suas razões. E o que nos diz fala não só dela, mas de todos. Fala não apenas de gordura e de dieta, mas de aceitação. Do lugar do outro na nossa vida – e da complexidade do olhar que nos reflete, mesmo quando não nos enxerga ou só enxerga uma parte de nós.

Esta é uma conversa sobre escolhas. E um convite para aumentar o número de pontos de interrogação no nosso jeito de ver o mundo.

Eu: Quando começamos a conversar, você falou que acha assustador ser tratada como obesa mórbida – e isso usando uma calça 44. Como é isso?
Ela: O nível de magreza esperado hoje é tão elevado que, por vezes, sou cobrada como se meu peso ultrapassasse os 100 quilos e eu sequer conseguisse comprar roupas em lojas não especializadas, o que está bem longe de ser verdade. Outro dia estava no telefone com uma prima que comemorava a minha iniciativa de fazer dieta e exercícios físicos. De repente, no meio da conversa, ela diz: “Ainda bem que agora você resolveu emagrecer num projeto de longo prazo. Porque, se você chegasse aos 40 anos desse jeito, estaria fodida! Fo-di-da, entendeu?”.Fiquei pensando que estaria fodida se não soubesse quem eu sou e qual o meu eixo nessa existência. Estaria fodida se não tivesse uma profissão que adoro, que ajuda a mudar o mundo – para melhor – e que me permite sustento próprio e alheio desde os 21 anos. Estaria fodida se não tivesse pais amorosos e amigos tão queridos para partilhar a vida. Estaria fodida se vivesse na miséria, em condições indignas, sem acesso à educação e à saúde, como boa parte da população brasileira. Estaria fodida se não tivesse experimentado um casamento bacana ou se, depois de divorciada, tivesse me metido em relações de afeto abusivas, como não é raro acontecer com mulheres carentes. Estaria fodida se não tivesse equilíbrio emocional ou se passasse fome ou se tivesse sido vítima de violência física ou se fosse alguém sem um pingo de caráter. Por qualquer dessas coisas eu realmente estaria fodida. Agora, fo-di-da por pesar 80 quilos? Como assim, gente?

Eu: Você se descobriu gorda na universidade. Como foi lidar com o sofrimento das primeiras rejeições?
Ela: Foi ruim, como não é difícil imaginar. Quando você ainda é insegura sobre “o que é” ou sobre “quem está se tornando”, e alguém a rejeita pelo fato de ser gorda, a sensação é de que você toda não tem valor algum. É quase impossível entender o quanto de dificuldade do outro tem ali, o quanto não é possível dar ao outro o poder de definir quem você é e outras coisas que na vida adulta tornam-se claras. Quando se é jovem, um minuto de rejeição reduz você a um monte de massa gordurosa amorfa… A grande dificuldade é construir uma identidade sobre a tal massa. O sofrimento pode até não ser enorme, nem destruidor para algumas pessoas – meu caso. Mas um tanto dele é inevitável.

Eu: Qual foi a primeira humilhação por causa do peso?
Ela: Lembro especificamente de uma. Considero que, na época, não estava realmente obesa. Devia pesar uns 70 quilos. Viajei para a praia, com duas amigas. Um dia, saímos de carro para dar uma volta, era eu quem dirigia. Chegaram dois rapazes próximos da janela, e começamos a conversar. De repente, um deles olha pra mim, aponta e diz: “E essa barriguinha sobrando aí?”. Os dois deram uma bela gargalhada, com um prazer irônico e meio sádico. Não deixei ninguém perceber, mas me senti um lixo.

Eu: Como é ser olhada como se tudo o que há em você fosse excesso de peso, como se gorda fosse tudo o que você é?
Ela: A minha sensação é de estranheza total, de não entendimento real desse modus vivendi. Não há empatia que eu tente que me faça absorver o peso como critério de exclusão de pessoas. É tão absurdo quanto a discriminação por raça, dinheiro ou religião. Não consigo aceitar. No caso do peso, posso até me render aos efeitos da discriminação e emagrecer, mas dentro de mim não consigo aceitar esse critério de exclusão. Lembro de uma história que foi muito marcante. Um tempo depois de me divorciar, cheguei ao trabalho e ouvi dois colegas conversando sobre mim, sem que se dessem conta da minha presença. Um deles disse: “Se ela emagrecesse uns dez quilos, não ficaria nem um segundo solteira no mercado…” Fiquei arrasada. Saí de fininho, com um nó na garganta e pensando: “Que desgraça de mundo é esse em que vivo?”

Eu: E como é não ser olhada com desejo por um homem?
Ela: Recentemente um cara, inteligente e muito divertido, depois de algumas cervejas soltou esta: “De onde saiu uma mulher como você, criatura? Meu Deus…” (com ar de interesse e até meio embasbacado). E, em seguida: “Agora, me diz por que a gente não consegue tudo em uma mulher só? No fundo, eu sonho com uma mistura de Catherine Deneuve e Simone de Beauvoir…” Bem. Não preciso dizer que eu era a Simone de Beauvoir da história, certo?

Eu: Aconteceu de você desejar muito um homem e claramente ele não conseguir ficar com você porque você é gorda?
Ela: Já aconteceu de reencontrar uma antiga paixão, com quem havia retomado contato por MSN, telefone e email. Ficou claro que queríamos nos encontrar pessoalmente, com os típicos e deliciosos jogos de sedução em andamento. Ele resolveu ir até a minha cidade, com a desculpa de visitar um amigo. Menos de três horas depois que havia chegado, já estávamos almoçando juntos. E esta foi a última vez em que nos encontramos durante os dias em que permaneceu aqui. Ele é um cara muito bonito. A última vez que havia me visto eu estava com uns 10 quilos a menos e, não tenho a menor dúvida, me dispensou por estar acima do peso. Estar gorda destruiu as chances de reaproximação, não importa o quanto tenha sido boa, sedutora e divertida a conversa pessoal. O sentimento é de raiva. E de indignação. Que culminam numa grande “menos valia”. Uma mulher pode até ser forte. Mas não é deus.

Eu: Você fala neste primeiro olhar, que acontece numa festa, na boate, em algum lugar público. O olhar do desejo, antes de saber se a pessoa é legal ou não, inteligente ou não. Como é para você? Você tem desejo por um homem acima do peso estabelecido como normal? Ou, parodiando seu exemplo, você também quer uma mistura de Jean-Paul Sartre com Alain Delon? Você se sentiria atraída por Sartre antes da primeira palavra trocada?
Ela: Meu último namorado era mais gordo do que eu e tinha uma respeitável barriguinha. Meu ex-marido era magro. Já fiquei com gordos, obesos, magros, magérrimos. Não tenho preconceito quanto a isso. Tenho cá meu fraco por sedutores (e não é exatamente o peso que importa nesse caso), o que venho mantendo sob estrito controle racional. Numa boate, o tipo que primeiro chama minha atenção, antes de conversar, é, em geral, um homem moreno ou negro, com traços fortes e não perfeitos. O que é capaz de definir campeonato é o fato de ele ser espirituoso e com alguma “pegada”. Não é um Sartre que procuro. Ele não foi nada bacana com a Simone… Quanto a Alain Delon, confesso meus pré(e pós)-conceitos: homem muito bonito, em regra, tem de se esforçar pouco e, com isso, não desenvolve ao longo da vida habilidades importantes. As eventuais exceções só justificam a regra.

Eu: Como é estar comendo um doce e sentir o olhar repressor do outro?
Ela: Já experimentei de tudo, desde o olhar materno até o do vizinho de mesa no shopping… Os olhares desconhecidos não têm importância. Mas a reprovação de alguém querido é sofrida.

Eu: Por que você acha que a sociedade tem tanta dificuldade com as pessoas acima do peso estabelecido como normal?
Ela: Acho que todas as sociedades sempre tiveram um padrão de beleza estabelecido e sempre foram cruéis com quem não atende a este padrão. A exclusão com o diferente-marginal não é algo privativo do mundo contemporâneo. A questão é que, hoje, na classe média e alta da maioria dos países ocidentais, o belo equivale essencialmente à magreza. Ser gordo significa se tornar alvo da exclusão do diferente, que é própria das organizações sociais. Algo cultural e praticamente inevitável. Em regra, o ser humano, quando se depara com a diferença, se sente ameaçado. “Se ele está certo e é diferente de mim, isso significa que estou errado?”. Esta é a pergunta que o consciente ou o inconsciente das pessoas faz. E é isso que as impulsiona a tentar mudar ou até destruir o diferente. É muito difícil que lidem bem com a possibilidade de vários certos, a partir de várias escolhas, próprias de diversas realidades. São estas dificuldades individuais com a diferença que, reunidas, formam um coletivo de exclusão, em determinados extratos sociais. Neste espaço, o coletivo excludente recai, também, sobre os obesos.

Eu: Você já se sentiu menor por ser grande?
Ela: Já me senti uma mulher invisível. Grande, gorda e invisível…

Eu: Como é isso? Me fala um pouco mais como é ser grande, gorda e invisível…
Ela: Você está com mais três amigas em uma boate. Duas delas são magras. Você e a outra amiga não são obesas, mas estão claramente acima do peso. Os homens passam e só olham, conversam ou coisa que o valha, espontaneamente, com as mulheres magras. Para você e a outra amiga conseguirem contato é preciso que uma conversa entre todos se dê ou alguma coisa semelhante. Aí pode vir à tona algum tipo de qualidade sua que chame a atenção. Bom humor, inteligência, simpatia… Caso contrário, é como se nós, as mulheres gordas, não existíssemos. Os homens não olham, nem falam, nem se interessam por sua existência terrena. Eles, nos próximos dias, podem até passar horas falando para os próprios amigos ou familiares que não se importam se uma mulher é gorda ou não, que querem uma mulher “real” e gente boa, que paqueram todo tipo feminino em bares e boates, mas a verdade é que, se você é gorda, o universo masculino de classe média/alta não percebe sua existência. Como eu disse: grande, gorda e invisível.

Eu: Como você sente o olhar do outro sobre você, no cotidiano?
Ela: Especificamente sobre o olhar masculino, é ruim não senti-lo sobre o meu corpo com desejo.

Eu: Como é não sentir este olhar de desejo? Tente me contar, descrever isso…
Ela: A sensação é de não existir. Não é que você não seja aceita, nem amada o suficiente. Você não é sequer vista como mulher. Não há um olhar masculino que a espelhe. Sem alteridade, como é possível ter o mínimo de certeza de que uma parte do feminino realmente permanece ali, onde você sente estar?

Eu: Qual é a sua relação com o espelho?
Ela: Gosto de me olhar no espelho. Porque, sem meias palavras ou falsa modéstia, me considero realmente uma mulher bonita. Não maravilhosa ou estonteante. Mas bonita. Não é isso o principal que me define enquanto mulher. Mas faz parte do meu feminino ser bela. E gosto dessa parte. Gosto até quando estou com um vestido velhinho, meio mal arrumada… Mesmo quando estou assim, meio enfraquecida, ainda vejo algo bacana espelhado. O que me assombra é a incapacidade de as pessoas verem. Mesmo porque eu consigo ver isso nos outros, nas circunstâncias as mais variadas possíveis.

Eu: Você acha que é mais difícil para você tirar a roupa quando transa com alguém? O que passa na sua cabeça nesses momentos?
Ela: Curiosamente, não tenho a menor dificuldade com esse momento. O que é ruim é quando o homem desaparece depois. Tenho a impressão que foi insatisfação com o meu corpo. Aí é duro de aguentar. A reação imediata é subir os muros de proteção. Haja apoio de amigos e terapia para lembrar que sair do mundo não é a melhor solução.

Eu: Se você fosse definir como, em geral, as pessoas a enxergam, que olhar seria este?
Ela: Como pessoa, o mundo me enxerga com admiração e carinho. Mas, insisto em dizer que os homens, em regra, não me enxergam como mulher desejável. Sempre que emagreço isso muda. Por mais que me esforce, não consigo realmente entender o porquê.

Eu: Como você reage ao sentir este não-olhar de desejo masculino?
Ela: Eu passei a fazer dieta e atividade física regular para sentir o olhar de desejo.

Eu: Você já consegue sentir a mudança de olhar e de postura com relação a você desde que começou a emagrecer?
Ela: Bem aos poucos. Emagreci apenas quatro quilos e meio, estando acima do peso ainda. De todo modo, olhares começaram a mudar. O interessante é que a minha postura não mudou em nada. Está aqui a mesma mulher que tenta equilibrar delicadeza e força, que aprendeu a seduzir com inteligência, que é bem humorada e, para os próprios padrões de julgamento, bonita. A diferença é que, agora, até na balada tem gente cogitando dar uma chance a ela. Há tempos eu sabia que seria assim. Sempre soube que era balela aquela história que “a obesidade está na sua cabeça e quando você emagrece fica mais autoconfiante e é por isso que os homens te olham mais”. Balela. A autoconfiança sempre esteve no mesmo lugar: no próprio eixo, nos valores, na certeza interna de que 15 quilos a mais não mudam quem você é ou o quanto você se sente feminina. Muda, sim, o olhar do mundo. Só quem se sabia antes mulher e ainda se sabe depois é que pode afirmar isso. São tão poucas assim, que a teoria do “tudo está na sua cabeça” acaba prevalecendo. Mas eu sabia que não era coisa da minha cabeça, mas do espaço em que vivo. Exatamente por ter certeza disso e pelas facilidades que me render a isso traz, estou indo em frente.

Eu: A saúde é uma preocupação sua, com relação à gordura, ou não?
Ela: Ainda não tive problemas de saúde em razão da gordura. Devo me preocupar, por fazer parte de uma família de cardiopatas, com pressão alta. A questão é que, apesar da gordura, decorrente mais da quantidade do que como e menos da qualidade dos alimentos escolhidos, estou com a saúde, do ponto de vista médico, em dia. Então, não posso fingir que estou emagrecendo por “uma questão de saúde” ou que seja realmente “por mim”. Seria mais fácil e legítimo. Mas não é verdade. (A verdade) é muito menos nobre. Eu emagreço para atender a uma exigência externa, social, de um padrão de magreza. Consciente que não é um desejo próprio genuíno, nem uma prioridade interna, nem qualquer demanda de saúde. Foi uma vontade que surgiu para atender a algo que me é totalmente externo e um tanto frívolo. Repetir isso não é fácil. Mas é honesto.

Eu: Na sua decisão de emagrecer é possível saber o quanto é desejo seu e o quanto é necessidade de ser aceita?
Ela: Estou realmente cansada da rejeição, principalmente a masculina, por não ter o peso que se considera adequado. Correndo o risco da generalização, acho que, se um homem estiver diante de uma mulher bacana e gorda e de uma mulher com mais dificuldades emocionais e magra, ele escolherá a segunda. Também estou cansada da reprovação familiar e social por estar gorda. Eu quase posso ler nos olhares amigos: “Mas como alguém como você, disciplinada e dedicada, não emagrece logo e se mantém magra?”. Gordura tornou-se sinônimo de indolência, preguiça, pouca confiabilidade e quase falta de caráter, em determinadas esferas sociais. Neste contexto, minha escolha é 100% decorrente da necessidade de ser aceita. Na verdade, eu escolho dar este poder ao mundo em que vivo e atendê-lo. Não é um desejo meu, desejo aqui entendido como algo que vem dos próprios valores, do inconsciente, do centro. É uma escolha para facilitar a aceitação externa.

Eu: O que você perde por ser gorda?
Ela: Perco, principalmente, o olhar de desejo masculino. E “ganho” o olhar de reprovação familiar, dos amigos, conhecidos…

Eu: E o que você perde, ao tentar emagrecer, além de quilos?
Ela: Poderia dizer que perco algumas coisas como: 1) a maior disponibilidade de tempo que tinha para minha família (agora que priorizei fazer atividade física frequente, os horários ficaram mais apertados); 2) os convites para tomar cerveja (não consigo tomar refrigerante zero, então prefiro não aceitá-los para evitar a tentação “que desce redondo”); 3) os jantares mensais realizados em casa para os amigos, verdadeiros encontros gastronômicos; 4) a leveza com que sentava a qualquer mesa para comer (agora passo os dias contando calorias e concentrada em evitar excessos). Mas não é isso o principal. Eu perco principalmente a sensação de que guio a minha vida pelos meus valores. Perco uma das coisas que me é mais cara: a fidelidade àquilo em que acredito. E eu acredito que magreza é uma das características mais irrelevantes de uma pessoa. Acredito que usar meu precioso tempo para investir em algo tão irrelevante é um verdadeiro absurdo, com tantas outras prioridades e demandas mais importantes na vida. Acredito que a sociedade atual perdeu a noção do que é básico indispensável e do que é absolutamente supérfluo nos seres humanos. Apesar de pensar todas essas coisas, eu traio aquilo em que acredito. Torno-me parte de um conjunto burguês, oco, superficial, vazio e – por que não dizer? – até medíocre. E finjo que estou extremamente feliz, e só feliz, por emagrecer. Afinal de contas, quem é que vai acreditar na maluquice de uma mulher se sentir mal pelo simples fato de se render à pressão externa, se ela está mais magra e, teoricamente, “mais bonita”, com todos os ganhos que isso implica? Ninguém acreditaria que, no lugar de uma felicidade plena pela “beleza-magra adquirida”, eu esteja sentindo que perder a mim mesma não é nada fácil.

Eu: Se há tantas perdas, por que emagrecer? Você me escreveu que algo de você “já começou a morrer”. O que? Que luto é este?
Ela: É o luto de quem entrou para a manada. De quem perdeu a própria individualidade, que não está na gordura, mas na capacidade de ser fiel aos próprios valores e prioridades. O luto de quem desistiu de defender a multiplicidade pós-moderna – onde haveria espaço inclusive para os obesos, ou seja, para existências e escolhas as mais diferentes possíveis – e se rendeu à verdade única moderna: a magreza. É o luto de me ver misturada a valores que sempre considerei de segunda linha, como a valorização excessiva da imagem – o que parecemos – em vez daquilo que de fato somos. Há algo da minha alegria genuína que vai se perdendo nesse processo. É como se eu pensasse: “Tudo bem, pessoal, vamos lá. Serei uma de vocês. Dá mesmo muito trabalho sustentar ser eu mesma nesse mundo”. Há algo de muito triste nessa experiência que, aliás, tem muito de desistência. E não adianta dividir essa tristeza, porque todos julgam esse sentimento como uma “defesa inconsciente típica do gordo” que, com base nela, vai acabar achando um jeito de “boicotar o emagrecimento e voltar ao lugar triste da obesidade”. Na verdade, não vou boicotar, não. Dá vontade de dizer: “Respirem aliviados e não gastem saliva. Serei magra e farei tudo para me manter assim. Estará tudo bem em algum tempo. Estaremos do mesmo lado”. Já entendi que, no meio social em que vivo, é o único jeito de não sofrer significativas sanções de exclusão.

Eu: Mas, vou insistir. Se é um processo tão violento para você, por que emagrecer?
Ela: É verdade que dieta é uma violência com relação a tudo o que eu acredito. Talvez soe até bobo e infantil reclamar da escolha de emagrecer. É provável até que não faça sentido e que o sentido aparente termine sendo o amoroso-sexual. Sem dúvida, este ganho está presente. Mas há outros. E não é que eu não consiga viver sem estes outros ganhos. Consigo, tanto que vivi, e bem, até aqui. A questão é que estou exausta do esforço que é preciso para isso. Eu não quero ouvir dicas sobre a importância de emagrecer, correr, fazer dieta, a cada telefonema, a cada encontro, a cada email. Diante do meu pedido expresso para que isso não ocorra, não quero ver o melhor amigo passar os meses se segurando, com grande esforço, para não terminar cutucando o assunto de forma impiedosa. Não quero ouvir alguém que pesa mais de 120 quilos gritar que “não há ninguém no mundo que seja feliz sendo gordo!”, me acusando de mentir para mim mesma, quando afirmo que magreza não é exatamente um valor próprio. Não quero ser ignorada na boate porque estou gorda, nem ouvir que estou solteira porque estou gorda, nem perceber os colegas fiscalizando o tamanho do meu prato, nem ver condenação estampada nos olhares que me rodeiam. Este massacre pelo emagrecimento me encheu tanto que prefiro virar uma “paty-tamanho-40”, com um sorriso no rosto sujo por uma folha de rúcula e por um tanto de covardia. Eu realmente estou cansada de, tendo de lidar com tantas coisas difíceis no cotidiano, ainda aguentar os olhares que me dizem o quão imperdoável é estar acima do peso. Veja bem: Não é que seria impossível aguentá-los. Mas é preciso esforço demais… E a vida já anda com desafios significativos. Declino da batalha e entrego os pontos.

Eu: Você me disse que emagrecer é uma espécie de “se perder e se prostituir”. Por quê?
Ela: Como eu disse, emagrecer foi uma escolha para atender algo que não é fruto do meu próprio desejo. Eu, que me considero tão centrada, tornei-me refém de valores que jamais serão meus, não importa o quanto os siga, por fraqueza ou por covardia. Especificamente sobre a sensação de estar me “prostituindo”, é como se o pagamento pelo esforço em emagrecer se desse em olhares de admiração e de tesão. Às vezes parece um preço alto e absurdo demais para este estranho sexo social. Quando penso que estou usando uma parcela da minha vida para lidar com isso e, no mesmo instante, no mesmo país, há alguém faminto, me sinto uma verdadeira aberração. Tenho receio de terminar esse caminho meio perdida, sem saber direito aquilo em que acredito, nem muito bem o que desejo. Tenho receio de uma nostalgia saudosa do gozo assumido e inteiro, muito mais suave, a que estava acostumada. Porque podia até não ser perfeito, mas eram escolhas inteiras. Sempre achei que estar íntegro no erro é melhor do que alienada em eventuais acertos exógenos. Por outro lado, atendendo a essa exigência social, a vida no meio em que me relaciono pode se tornar mais fácil. Estar acima do peso dificulta bastante os dias numa terra de mulheres deslumbrantes, bem cuidadas e magras. E há um momento da vida em que você descobre que, se já superou tempos difíceis, tem direito à sua cota mínima de covardia e futilidade nessa existência. Estou exercendo minha cota. Covarde demais para me manter quem eu era, me rendi ao mundo e estou fazendo sacrifícios para emagrecer. Não falo isso como uma grande vítima. Mas como uma mulher adulta, como um sujeito de escolhas conscientes e incoerentes.

Eu: É uma escolha sua ou do mundo?
Ela: A escolha, eu acho, é minha. Porque é lógico que eu poderia continuar gorda. Dentre as mulheres gordas que conheço, talvez eu fosse daquelas que realmente sustentaria, razoavelmente feliz, ser quem é. Quer saber a razão de eu não fazer isso? É lógico que quero, e muito, como todo ser humano, ser aceita e amada. Mas, mais do que isso e principalmente: eu quero uma vida mais fácil. Simples e fútil assim. Estou cansada de batalhar por valores que as pessoas, inclusive as muito queridas, sequer entendem. Juntar-me ao todo dá uma sensação de alívio coletivo e este alívio faz com que me deixem em paz, que é exatamente o que eu desejo e preciso agora. Então eu tomo só um chope pequeno, num dia de calor insuportável, em que não haveria nada demais tomar os três habituais. E volto caminhando para casa para queimar as calorias. No dia seguinte, não como duas fatias de pão integral light, mas só uma. Por fim, confesso o pecado para a nutricionista, que me absolve, com um ato de contrição que exclui queijo amarelo por dois meses. Saí mais cedo do bar e perdi as últimas gargalhadas para não correr o risco de tomar mais um chope. Fiquei com fome durante toda a manhã e sonho, há dias, com requeijão derretido no micro-ondas. Mas tudo bem.

(Publicado na Revista Época em 26/04/2010)

Humanidade

A mesa era redonda. O círculo igualava a todos. Segundo as mais novas diretrizes do programa avançado de melhores empresas para trabalhar. Ou, como o diretor-geral preferia, best places to work in. A igualdade de posição fazia com que os funcionários ficassem mais criativos, propensos a se arriscar na reunião de trabalho. Segundo o mais recente best-seller coorporativo, be equal, earn more. O diretor-geral gostava de estar conectado às teorias avançadas de psicologia de gerenciamento. Que elas fossem inspiradas em uma lenda medieval, era detalhe. Segundo Arthur e a Távola Redonda, autor desconhecido.

Secretamente, ele se sentia um guerreiro feroz ao vestir sua armadura Armani diante do espelho do closet. Rrrrrrrrrrr rangia os dentes de novíssima porcelana. Só de tratamento estético dentário tinha dentro da boca um ano de salário de sua secretária trilíngue. Perfeito. Seu sorriso era perfeito. Como ele.

Cumprimentou os fellows, já sentados ao redor da mesa, com suas xícaras de café. Outra de suas mudanças. Ou melhor, inovações. Xícaras de verdade. Um exemplo de sustentabilidade ambiental. E sem gasto, já que as xícaras deveriam ser trazidas de casa pelo funcionário, personalizadas. Uma concessão à individualidade. Um passo adiante na busca do melhor ambiente coorporativo.

A secretária correra na frente para instalar seu capuccino fumegante em seu lugar. A mesa era redonda, mas, ele não sabia por que, gostava de se sentar sempre no mesmo lugar. Nenhum problema. Os fellows entendiam, já que era um lugar igual a todos os outros, apenas que, por alguma razão subjetiva, ele preferisse a todos os outros. Sentou-se em sua cadeira. Ligeiramente mais alta que as outras, mas apenas porque ele tinha uma hérnia de disco na cervical, como explicou cúmplice na estréia da moderna távola redonda empresarial. Por coincidência, sua xícara era quase um palmo maior que as outras. Nenhuma referência à sua posição. Desde pequeno, ele gostava de tomar café em xícaras grandes, como sua mãe gostava de lembrar. Que ele não apreciasse nada pequeno era uma singularidade que os subordinados precisavam respeitar, como ele tolerava seus piercings e o péssimo gosto para gravatas.

Detalhes. Para aquela segunda-feira, ele havia preparado um lance de total genialidade. Planejara por vários dias. Pensava que poderia ele mesmo escrever um best-seller de gerenciamento de pessoas depois daquele momento. Um divisor de águas na psicologia coorporativa. Nenhum outro diretor-geral jamais ousaria tanto. Soltaria uma bomba de altíssimo Q.I. bem no meio da mesa.
•••

As segundas-feiras eram o pior dia da sua vida. Não porque eram o pior dia para todo mundo. Mas porque eram piores para ele que para todo mundo. Desde que aquela mesa redonda aterrissou no meio da sala de reuniões, ele não conseguia dormir de domingo para segunda. Antes, podia ser esquecido numa quina. Agora, parecia que havia um neon em seu terno cinza-chumbo. Sentia-se sempre no centro, exposto como uma cereja falsa.

A ideia de que o diretor-geral esperava um acréscimo brilhante de sua boca o aterrorizava. Não é que não fosse inteligente, apenas não suportava a pressão de ser obrigado a exibir sua perspicácia daquele ponto de vista redondo. E, o pior. Sabia que seu rosto pegaria fogo e ele gaguejaria. Sempre gaguejava quando esperavam algo dele. Desde pequeno era assim. Fosse para puxar um pai-nosso na igreja ou uma hola no estádio.

Naquela manhã, especialmente, um brilho estranho no olhar do diretor quando pegou a xícara o colocou em alerta máximo. Havia algo nele. Seu joelho operado depois de uma entrada violenta sofrida no futebol de sábado latejava. O que ele planejava? Será que faria alguma piada com sua gravata de elefantinhos? Ele a achava ridícula, mas sua mulher a comprara na loja de um dos expoentes da nova geração de estilistas e jurara que elefantes davam sorte na Índia. Não seriam vacas, ele ainda perguntou? Ela ficara em dúvida. Disse que também havia gravata com vacas. Ele se adiantou, numa agilidade impressionante para seus padrões, e garantiu que acabara de lembrar ter lido na The Economist que, sim, os elefantes davam sorte na Índia.

Como passaram o fim de semana, fellows?, começou o diretor. E, antes que alguém respondesse: Quem começa a reunião de hoje? O diretor já havia começado, mas alguém precisava demonstrar sua pró-atividade e lançar a primeira ideia reluzente diretamente no meio da mesa. O jovem promissor do piercing na sobrancelha, com dois MBAs em Harvard, abriu a boca, mas o chefe arreganhou seus dentes espantosamente brancos e quase berrou. Se vocês me permitirem, hoje começo eu.

Dava para fazer um bochecho com a quantidade de bile na sua boca. Algo estava bem errado naquela segunda-feira. Era fundamental para o script funcionar que um subordinado começasse. Estava no quinto parágrafo do segundo capítulo do livro — The meeting, The soul. O diretor ajeitou uma mecha do belo cabelo prateado e disparou, em sua voz de tenor italiano.

— Eu tenho uma dúvida.
•••

Sentiu o gerente de procedimentos escancarar os olhos. Pensando bem, o homenzinho estava com uma cor cinza. E uma gravata estranha. Seriam rinocerontes? Passou os olhos numa trajetória circular perfeita. Podia tocar a perplexidade de seus colaboradores. Eles pareciam ter suspendido a respiração. O gerente de tráfego coorporativo chegou a abrir a boca e imediatamente fechou. Sim, sim, dessa vez eles não se arriscariam.

Continuou. Vocês se acostumaram a me ver como uma fortaleza em meio a um oceano de tubarões. Ou talvez como um leão na selva. Por um minuto, divagou. Os leões habitavam as selvas ou as savanas? Não importa. Tinha mais imagens eloquentes na manga de sua camisa tecida em fio egípcio. Alexandre, O grande na conquista da Pérsia. Droga, este era pederasta, mais uma divagação. O que estava acontecendo com ele? Será que havia ficado em dúvida mesmo?

Enfim, vocês se habituaram a me ver como um poço de certezas… um oráculo! Mas é preciso que me enxerguem como um homem. Mais brilhante, rápido e poderoso que a maioria, é verdade, mas ainda assim um homem. E este homem se apresenta diante de vocês, de peito aberto, dizendo: eu tenho uma dúvida.
•••

Sentiu seus olhos lacrimejarem. Era isso mesmo? Ele, o homem do ano, segundo a revista Power&Money, estava confessando ter uma dúvida? A declaração estaria no próximo minuto no blog dos colunistas financeiros de maior prestígio. Quase podia ouvir o som das teclas dos blequibeuris e aifones. Traiam-no, os desgraçados. Os fellows atiravam-no às hienas do mercado. Ele tinha de fazer algo por aquele chefe que finalmente se igualava a mortais como ele. Desta vez, sim, se sentia um Lancelot.
•••

Seus olhos varreram a mesa em mais uma trajetória circular. Será que já estava na hora de desfazer o mal-estar de seus subordinados? Ria secretamente com sua cartada de mestre. Mestre, não, isso já era coisa de um deus. Sua próxima frase os deixaria para sempre embaixo da sola de seus sapatos italianos feitos sob medida. Finalmente calava a todos. Nem mesmo o gerente de estratégia avançada se arriscava a dizer alguma coisa. Aquele projeto de macho alfa, jovem e cheio de dentes, tão voraz que às vezes chegava muito perto de interrompê-lo, finalmente se mostrava indeciso sobre a coisa certa a dizer.

Então viu o sujeitinho da gravata ridícula abrir a boca, o rosto agora tomado por um vermelho-cardeal. O que esse pigmeu pensava que estava fazendo? Só não o havia demitido ainda porque, apesar de francamente insignificante, ele era incrivelmente eficiente. Dois advérbios de modo. Onde mesmo havia lido que os advérbios não eram de bom-tom? Não! A pessoinha pretendia mesmo estragar seu show, seu tapete vermelho para o panteão dos gurus internacionais.
•••

Percebeu que o diretor-geral tinha os olhos cravados nele. O big boss compreendera que era o único em quem podia confiar. Sim, ele estenderia a mão. Salvaria o grande homem. Faria mais que isso. Seria o funcionário do momento. Finalmente deixaria um obscuro papel secundário para tornar-se protagonista. Levantou a mão com a aliança, a mesma em que ele e a mulher tinham gravado uma lua e uma estrela, em sinal da eternidade de seus sentimentos. Impediu o chefe supremo de falar com esse gesto peremptório. Viu que ele empalidecia, coitado. Comovido, certamente. Interrompeu o diretor-geral antes que ele se afogasse em mais uma frase absurdamente humana.

Pela primeira vez numa reunião de segunda-feira, sua voz soou firme. Quase grossa. Batendo a xícara na mesa, comprada na loja do seu time do coração, espalhou café para todo lado e gritou.

— Eu tenho pau pequenoooooooooo!
•••

Até hoje, sua demissão por justa causa é, para ele, humanamente incompreensível.

Memento mori

O rei, os sapatos de salto e as meninas de Velázquez

Na Roma antiga, quando um comandante ganhava uma batalha importante, percorria a cidade num ritual que historiadores chamam de “triunfo romano”. Era um momento de glória suprema, talvez próximo à reconstituição dos filmes feitos por Hollywood. Atrás dele, para que não esquecesse que toda ascensão contém uma queda, um escravo sussurrava no ouvido do vitorioso: “Memento mori”. Em tradução do latim: “Lembra-te de que és mortal”.

O memento mori é citado por alguns historiadores, mas sempre com a ressalva de que não há comprovação documental de que isso realmente tenha ocorrido e que esta tenha sido a frase exata. De qualquer modo, me parece brilhante. E deveria ser reeditado com os poderosos de todas as épocas, seja da política ou do show business. Não mais por um escravo, claro, mas alguém bem pago para trazê-los à terra quando a tentação humana da divindade comichasse a ponto de se tornar irresistível.

Se na Roma clássica o fato realmente ocorria da maneira sugerida, penso que o comandante ficava com muita vontade de dar um peteleco no escravo que o lembrava de sua morte no ápice de sua vida. Ou quem sabe enfiar sua honrada espada bem no coração do sujeito, para que ele não ousasse mais lembrar a morte alheia. Sendo ou não factual, o conceito memento mori contém uma verdade profunda. E serve para todos nós.

Enxergar alguém como se o pedestal fizesse parte do corpo é a melhor maneira de não enxergar coisa alguma. Pior ainda quando escorregamos na tentação de enxergar a nós mesmos dessa maneira. Acho que a vida de todos, tenha maior ou menor quantidade de glória, se beneficia muito quando mantemos o memento mori vivo dentro de nós.

Pensei muito nisso nos últimos dias. Fui a Madri receber um prêmio de jornalismo chamado “Rey de España”. O prêmio é entregue pelo próprio rei Juan Carlos, durante uma cerimônia em que comparece gente de todas as áreas da sociedade madrileña, da política às artes. Toda viagem, seja curta ou longa, para perto ou para longe, é sempre para dentro da gente. Abre uma possibilidade única de nos enxergarmos – e aos outros – com olhos novos. Esta viagem, tão singular, me deu a chance de viver muitos memento mori. A maioria deles bem prosaicos.

Eu nunca tinha conhecido um rei. E estava muito excitada com a possibilidade. A ideia de um rei é um tanto estranha para a maioria de nós, brasileiros. Eu conhecia a história do rei Juan Carlos, que desempenhou um papel decisivo na democratização da Espanha, depois da sangrenta ditadura de Franco. Conhecia também aquela parte da vida contada pela “prensa del corazón” (como os espanhóis chamam o jornalismo de celebridades). Mas eu queria saber como é ser rei mesmo – ter nascido com um destino mais traçado que o da maioria de nós.

Quando participo desse tipo de cerimônia, que envolve uma programação de vários dias, em que você e outros estão no centro das atenções, fico exausta. Acho muito difícil representar a mim mesma. No final do dia, estou uma uva passa. Fico então bem quieta por algumas horas, sem falar nada, para me rearranjar. Era o que me chamava atenção na história do rei. Como deve ser difícil representar o tempo inteiro. Não só a si mesmo, mas todo o delicado equilíbrio de um país como a Espanha.

Se já é difícil representar a nós mesmos, em nossos diferentes papeis – e quantas vezes ficamos sem dormir porque achamos que na hora mais importante vamos falhar –, dá para imaginar o que é representar um rei. Sim, porque Juan Carlos, como todos nós, ao mesmo tempo é e representa ser.

Na véspera de receber o prêmio das mãos desse rei que me deixava tão curiosa, tive pesadelos a noite inteira. Acho que minha expectativa era tão grande que tinha medo que não acontecesse. Meus pesadelos têm mania de grandeza. Nunca é algo simples, do tipo estava andando na Calle Mayor e torci o pé. Nada. Minha noite foi uma série de catástrofes que envolviam a humanidade inteira.

Lembro de duas. Uma avalanche de neve parava a cidade de Madri em plena primavera. A outra era ainda mais acachapante. Uma hecatombe nuclear acabava com o mundo inteiro. Em vez de receber o prêmio no Palácio de Linares, lá estava eu, me decompondo numa versão chinfrim dos filmes-catástrofes de Hollywood.

Acho que meus sapatos tinham a ver com isso. Eu estava ali, prestes a receber um prêmio importante, mas só pensava nos meus sapatos. Cometi uma extravagância e comprei o sapato mais bonito da minha vida para a cerimônia. Só que eles tinham 15 centímetros de salto. E eu nunca fui capaz de andar de salto alto sem parecer uma garça. Com este, era pior. Ele era tão alto que eu só conseguia andar aos pulinhos. Não caminhava, saltitava. Por mais que me esforçasse, eu estava a anos-luz do andar estiloso da Gisele Bündchen.

E se eu caísse na frente do rei? E se eu, já mais pesada por causa dos tantos jamóns e Riojas, desabasse em cima de sua majestade e a matasse? Pensariam que sou do ETA e me colocariam numa prisão espanhola para sempre. Meu sapato lindo de morrer poderia transformar um minuto de glória numa desgraça que duraria a vida inteira. Foi, na minha opinião, um memento mori. Quando despertei da hecatombe nuclear que havia reduzido a humanidade a pó, eu sabia o que tinha de fazer: aceitar o meu real tamanho e enfiar minhas velhas sapatilhas.

Foi o que fiz. Quando o rei chegou, levei um susto. Ao vivo, ele era a cara do meu tio Tarquínio, já falecido. A semelhança me deixou mais sossegada, já que este tio era o mais querido dos irmãos do meu avô. Juan Carlos, agora quase da família, estava também com a barba por fazer, possivelmente deixando crescer como vi em algumas fotos. Portanto, era um rei quase demasiado humano.

Interrompi esse curso de pensamentos tranquilizadores ao lembrar que eu apertaria a mão do rei e da rainha. Isso poderia resultar em uma pequena catástrofe. Como gaúcha eu aprendi que o aperto de mão revela o caráter da pessoa. Se alguém oferece uma mão mole, não confie nele. Se der uma mão suada, é possivelmente egoísta, porque não pensou em você. Enfim, fui educada para dar um aperto de mão bem forte, seco e agradável.

Quando me mudei para São Paulo, percebi que a cultura dos paulistanos era um pouco diferente. Mais de uma vez captei, com o canto do olho, a pobre pessoa que havia acabado de apertar a minha mão massageando-a com uma expressão que misturava dor e revolta contida. Compreendi que, para os padrões paulistanos, eu esmagava os ossos do interlocutor. Comecei a mentalizar um aperto de mão nem mole nem triturador nos soberanos dedos. Mas tinha certeza de que na hora esqueceria por causa do nervosismo.

Estava nesse ponto quando outro pensamento terrorífico cruzou meu cérebro. Minhas mãos estavam geladas. Não por causa do frio, mas do nervoso. Eu não queria oferecer uma mão em temperatura de freezer às figuras mais próximas de um conto de fadas que eu tive a chance de conhecer. Mesmo no verão, minhas mãos podem ser usadas para gelar cerveja. Se mais gente tivesse mãos na temperatura das minhas, o aquecimento global poderia ser revertido.

Comecei a esfregar furiosamente as mãos na pashmina que eu tinha achado no fundo do armário lá de casa e só trazido para uma emergência, no caso de ter de tirar meu estupendo casaco. Era preta. E, descobri naquele momento, de qualidade duvidosa. As palmas das minhas mãos estavam agora mornas. Porém negras como as asas da graúna.

Então anunciaram meu nome. E lá fui eu, toda feliz. Esquecida dos mais recentes tormentos. É possível que, de volta ao palácio real, suas majestades tenham se perguntado sobre aquela mancha preta nas mãos. Posso até imaginar doña Sofia comentando com o marido: “Juanito, cariño, siento un dolor extraño en los dedos de la mano derecha…”. E Juan Carlos: “Curioso, guapa, siento lo mismo en estos dedos… Y mira esta mancha: que raro, verdad?”

Espero que não relacionem os sintomas à única brasileira entre os premiados. Agradeci em espanhol, e Juan Carlos me deu os parabéns em português. A vida seguiu. E com ela a cerimônia. Quando vi, já estávamos tirando fotos com o rei. Duas colegas argentinas imediatamente se postaram, uma de cada lado do corpo real. Por supuesto, minha porção zagueira de futebol de várzea achou difícil resistir em dar uma cotovelada nas chicas. Mas eu estava no meu dia de princesa.

De repente, o rei começou a hablar comigo. Não me ocorreu nada inteligente para dizer. Eu queria muito perguntar como era ser rei, como era ter vontade de fazer xixi e não poder sair correndo para o banheiro mais próximo, se ele tinha algum complexo por ter falhas na barba. Juro, só me ocorriam coisas assim. E se ele dissesse: “Por qué no te callas?”. O rei já estava hablando em outro lugar antes que eu conseguisse fazer uma pergunta que coubesse no protocolo.

Pronto. Tudo terminado. À noite, eu já estava num boteco espanhol, diante de um chorizo e uma taça de vinho, dizendo com os olhos marejados: “Este é o meu Prado!” . Comer, para mim – seja um prato de feijão com arroz, um chorizo ou um dos banquetes da programação – é sempre uma experiência artística. Como ao fruir uma grande pintura, depois de um chorizo perfeito sempre me torno uma pessoa melhor.

No dia seguinte, no próprio Museu do Prado, eu tive meu memento mori máximo. E foi uma experiência que me marcará para sempre. Me postei diante de “As meninas”, a obra-prima de Diego Velázquez (1599-1660). As meninas estão para o Prado como a Mona Lisa para o Louvre. Quando estive diante da Mona Lisa, me faltou conhecimento – ou coração – para compreender por que aquela era a mais famosa pintura do mundo. Preferi outras, mais obscuras.

Diante das meninas de Velázquez, porém, tive uma epifania. Para quem não conhece a obra, vale a pena buscá-la na internet. A cena mostra a infanta Margarita, da Áustria, com suas damas de companhia, um cachorro, uma criança e uma anã, figura corriqueira na corte da época. Ao lado da menina, o próprio Velázquez aparece pintando uma cena que está fora do quadro. Lá atrás, na parede da sala, há um espelho onde vemos refletido o casal real. Pelo reflexo, portanto, descobrimos que é o casal que está sendo retratado pelo pintor da tela. Atrás da parede do espelho, há um empregado abrindo uma porta. Ou seja: Velázquez conseguiu fazer uma pintura que, por ser aberta, é um mundo fechado. Há alguém, o empregado, que entra no quadro, para onde não mais enxergamos. E há o casal retratado, fora do quadro, que só vemos pelo reflexo no espelho.

Parte da genialidade da obra está no fato de que ela nos inclui. Quando nos postamos diante do quadro para admirá-lo, nos colocamos na exata posição do casal retratado. De dentro do quadro, Velázquez olha para nós. Ele nos pinta. Quando compreendemos nossa posição, o espelho não é mais um espelho, mas um retrato do casal real congelado no passado. Nós, os espectadores, temos nossa posição invertida: é o quadro que nos pinta. E nos observa.

Neste lugar, percebi que o quadro formado por mim e pela pintura nunca mais se repetiria. Aquela cena era efêmera e, de certo modo, já estava morta. Nos tantos séculos que se passaram, milhões de pessoas formaram um novo quadro com a obra pintada por Velázquez. Da forma que só a arte permite, ele criou uma obra que para sempre seguirá pintando.

A cada espectador que se coloca no lugar de retratado, Velázquez inverte sua posição. Naquele instante em que o quadro se completa, é ele que está vivo. Ao pintar-se, Velázquez imortalizou-se. E nós, os vivos pintados por ele, estamos a um minuto de sair do quadro, desse pequeno pedaço de eternidade. E seguir pelo corredor do museu, rumo ao resto de nossas vidas.

Tive de me sentar num banco próximo para chorar pela cena que havia acabado de morrer. Depois, lembrei da minha vida breve e – mais viva do que antes de conhecer Diego Velázquez – fui tomar una copa de vino con jamón.

(Publicado na Revista Época em 19/04/2010)

Ateísmo

As noites na cidade pequena eram quentes. Desde que ganhou alguma consciência, com ela veio a sensação de que a cidade tinha paredes. Às vezes, como naquela noite, sentia que as paredes da cidade apertavam o cerco em torno de seu corpo de criança. E o calor aumentava, arrancando toda a água de sua pele. Tornava-se um planeta feito só de continentes.

Quando o sol baixava, derrubando toda a esperança, ela sentia o pânico apertar sua garganta. O pânico era um bicho que se enrolava em suas cordas vocais até que não havia como gritar. Sentia um medo de quase morte e se aconchegava no sofá da sala, com os olhos arregalados. À espreita. Tentando adivinhar quando o bicho das noites quentes a atacaria.

Devagar o ruído dos habitantes da casa ia se aquietando. E ela sabia que chegaria o tempo das horas eternas, quando estaria sozinha vigiando seu medo. A mãe a mandaria para o quarto. E ela agarraria mais uma vez o volume cinco das maravilhas do mundo e tentaria de novo e de novo apagar seu inferno interior com as neves do Himalaia.

Havia as noites piores. Nela, as baratas ignoravam as receitas de veneno caseiro sobre rodelas de pepino da mãe e penetravam em seu quarto pelas frestas. Apavorada, na cama, agarrada ao livro e estrangulada pelo bicho, ela ouvia o silêncio das baratas.

Se dormisse, elas entrariam pela sua boca e fariam um ninho em seu estômago. Um pouco a cada noite ela viraria, de dentro para fora, uma barata devotada a devorar os restos de seu antigo corpo. E ninguém perceberia porque ao amanhecer deixavam-se ofuscar pela luz do sol.

Ela podia sentir nos ossos as noites em que o buraco do mundo se aprofundava. E esta era uma delas. Se nada fizesse não ancoraria ela mesma na manhã seguinte.

Quando fechou a porta do quarto, ajoelhou-se no chão, cravando com força os joelhos no piso porque a avó garantia que deus ouvia quando havia dor. Apertou os olhos com força. Rezou com o fervor das beatas viúvas que via na igreja com véus negros sobre a cabeça.

Implorou a Deus que tirasse as baratas do quarto. Que a mantivesse a salvo. Só por aquela noite já bastava.

Ouviu o barulho das asas antes de abrir os olhos. Vrrrrrrrrrrrrrrr. Quis acreditar que Deus ouvira suas preces e lhe mandara um anjo exterminador. Não pôde mais. Abriu os olhos e a maior barata que já vira passou voando rente à sua cabeça. Sentiu o vento nos cabelos.

Daquele segundo em diante soube que estava só na máquina do mundo.

Página 1 de 3123