“Tô mandando o Joaci!”

Terça-feira, 4 de maio, 9h50 da manhã. É quase impossível pegar um táxi em São Paulo nesse horário. Eu já tinha tentado quatro pontos diferentes da vizinhança e só ouvia tu-tu-tu…. Estava atrasada para uma consulta médica. Acordo às 5h da manhã, mas estou sempre atrasada. Na quinta tentativa uma voz atendeu:
— Tem táxi?, pergunto eu.
— Quantos você quer?, ele me devolve.
— Um tá bom.
— Só um, é. Então tô mandando o Joaci.
— Tá, pode mandar o Joaci.
Desço oito andares. Está lá o Joaci.
— Pra onde?
— Rua Duartina, no Sumaré.
— Não conheço.
— O senhor tem GPS?
— Tenho não. Não preciso.
— Então olha no guia.
— Sabe o que é, eu tenho o guia, mas não enxergo.
— Como assim, não enxerga?
— Sabe o que é, meu óculos quebrou. Aí um colega me arrumou esse do Paraguai, mas não funciona. Não enxergo nadinha.
— Como o senhor dirige, então?
— Ah, mas a maioria das ruas eu conheço, fica fácil, a gente vai ali meio no automático. Sabe como é, quase 30 anos de táxi. Sempre digo pra minha mulher, tenho mais tempo de táxi que de casamento.
— Hum.
— O problema é essa rua da senhora aí, que eu não conheço. Mas preocupa não. Vou ligar lá pro ponto e eles me dizem pra onde eu tenho de ir.
Procura o celular no banco. Acha. Começa a teclar.
— Não consigo enxergar os números aqui. Será que dá pra senhora ligar pra mim?
Pego o celular. Ele dita o número. Eu teclo. Devolvo para ele.
— Ô Josimar, tô com uma mulher aqui que vai numa rua que eu não conheço. Acha no guia aí pra mim.
Sacode o telefone. Bate nele.
— Ih, o Josimar não tá ouvindo. Esse celular tá ruim. Tenho de ir lá no meu amigo do Paraguai pra comprar um novo, mas não tô achando tempo.
Eu ligo no meu celular. Passo pra ele.
— Ô Josimar, olha a rua da mulher pra mim aí. Tô com aquele óculos que não enxergo nada. Como é o nome da rua mesmo?
— Duartina.
— É Duatina.
— Duarrrrrtina.
— Sim, isso mesmo. Duatina.
— Duarrrrrrrrrrrrrrrtina.
— E o que é que eu tô falando? A senhora é meio nervosa, né?
Desisto.
— O Josimar tá dizendo que não tem Duatina não.
Suspiro.
— Não é culpa minha não, moça. É do homem que me vendeu o óculos do Paraguai. Preocupa não. Vou dar uma paradinha ali na esquina e saio pra perguntar.
Desisto de novo.
— Moço, tô muito atrasada. Vou ter de procurar um taxista que conheça a rua ou que enxergue. Ou quem sabe hoje não é meu dia de sorte e eu consigo um que enxergue e conheça a rua?
— Tudo bem, se quiser procurar outro, abre a porta aí. Mas que a senhora tá muito errada, ah isso tá. Imagina eu saindo lá da fila do ponto, com a dificuldade toda desse óculos, e agora chego aqui e a senhora não quer a corrida. É o que eu sempre digo pra minha mulher. É muito difícil trabalhar com o público.

Socorro! Tem alguém aí?

Desventuras no admirável mundo novo

Não conheço uma única pessoa que tenha pronunciado alguma vez na vida: “Oba, o telemarketing da empresa tal me ligou oferecendo uma oportunidade maravilhosa!”. Ninguém.

Talvez exista, mas nunca testemunhei. Quase todos que conheço têm estratégias para não ser alcançado por ações desse tipo. E a maioria, quando capturado, é grosseiro com a voz do outro lado. Toda vez que um operador me liga, tento conter minha irritação e lembrar que há um ser humano ali, em algum lugar, ainda que seja num call center em Bangladesh. Esta pessoa possivelmente gostaria de estar fazendo outra coisa, quase certamente ganha muito mal e, mesmo que tenha sido treinada para agir como um robô, deve sofrer com as grosserias como qualquer humano.

Às vezes não consigo fazer esse exercício mental a tempo, sou ríspida e, assim que desligo, fico arrasada. Mas, em geral, consigo. E, já que fui pega de surpresa e não costumo desligar o telefone na cara de ninguém, tento conversar. Mas minha tentativa esbarra na impossibilidade de meu interlocutor entabular qualquer diálogo cujas perguntas e respostas não estejam no manual. Afinal, “para sua segurança, esta ligação está sendo gravada”.

Se, ao contrário, você precisa falar com alguém para reclamar de um serviço ou produto que não funciona ou funciona mal, a dificuldade é a mesma. Primeiro que, para chegar a um alguém, você aperta vários números antes. Você só vai falar “com um de nossos atendentes” se nenhuma das gravações anteriores conseguir resolver seu caso. Tudo desestimula você a isso. Os muitos números do menu principal levam a infindáveis menus secundários. Quando você chega àquele que o leva ao contato com alguém, o alguém demora uma eternidade para atender a ligação. E, quando atende, é como se você falasse com uma máquina.

Por tudo isso, fico pensando: como isso dá certo? De um jeito ou outro, deve funcionar. E ser lucrativo. Já que emprega milhares de jovens pobres que mal estrearam na vida e são treinados a anular sua singularidade para decorar um programa robótico de saudações, perguntas e respostas. Ainda vamos precisar responder pelo aniquilamento de uma geração nesses serviços de desumanização.

O mundo bem estranho em que vivemos nos coloca esta questão ética: como lidar no cotidiano com humanos que são treinados para se parecer com máquinas? Como é ser um humano que, para atingir a perfeição profissional, precisa se tornar o mais parecido possível com uma máquina? E, em seguida, se tornar obsoleto?

Vivemos (ainda) uma fase de transição entre as relações pessoais e as impessoais. Quando nos acostumarmos por completo a sermos atendidos por máquinas humanas, ninguém vai precisar de gente nesse tipo de serviço. Gente, por mais barata que seja, ainda é mais cara que qualquer sistema robótico. E se não faz diferença…

Vivemos uma espécie de versão pós-moderna do Tempos Modernos de Charles Chaplin. Não mais meros apertadores de parafusos de uma engrenagem, mas os próprios parafusos.

A tendência é que tudo se torne ainda mais desencarnado. Vivi um dia no admirável mundo novo neste início de mês, às voltas com o formato mais inovador de companhia aérea. Uma que você não vê, não toca, não alcança. Mas confia sua vida a ela. É considerada um dos maiores “cases” de sucesso da história da aviação europeia.

Foi assustador.

Eu estava em Madri, por razões profissionais, e queria conhecer Londres. Amigos disseram: “Aproveita, é barato viajar de avião dentro da Europa”. Eu pensei: “hum, boa ideia”. Entrei na internet e, especialmente para a volta, achei uma passagem muito barata. Voltar de Londres a Madri, onde pegaria o vôo de retorno para São Paulo, custaria quase o mesmo que viajar de ônibus de São Paulo à minha cidade natal, no Rio Grande do Sul. É supostamente barato porque todo o contato, exceto o avião e a tripulação, é virtual. Eu acabava de embarcar no sistema low cost (custo baixo).

Na véspera de pegar o avião, a bordo dessa novíssima configuração empresarial, li as instruções que recebi por email. Eu deveria fazer o check-in pela internet. Se só pudesse fazer no aeroporto, pagaria 40 libras esterlinas (111 reais). Teria também de pagar pela bagagem, que não poderia passar dos 15 quilos. Se passasse, mais taxa extra.

Entre uma lembrancinha e outra para a família e meia dúzia de livros, eu precisaria despachar uma mala. Fiz as contas. Sim, ainda valia a pena. Entrei numa lan house, para resolver tudo isso com alguns cliques no computador. Nada. Havia três maneiras de fazer o check-in. Tentei todas elas. Em todas aparecia uma mensagem na tela. Em resumo, ela dizia: “Seus dados não foram encontrados”. Eu não existia no sistema, ao que parece, embora o desconto no meu cartão de crédito fosse bem real.

Procurei um telefone de contato. Havia dois. Um deles para prioridades. Se for prioritário, é mais caro. A chamada era tarifada em 1 libra por minuto. Entrei na cabine. Disquei. Tu-tu-tu. Nada. Nem mesmo uma gravação do tipo: “por favor, espere um minuto”. Depois de muitos tututus, desisti.

Mais tarde, tentei de novo. Tudo igual. O sistema não encontrava meus dados e o telefone não atendia. Eu não conseguia encontrar ninguém, nem mesmo uma voz, que me ajudasse a resolver o problema. Nesse momento, eu implorava pela voz impessoal do telemarketing. Nada. Eu estava entregue à virtualidade. Se o sistema online não funcionasse – como não funcionou – eu virava refém. Virei.

A única alternativa era perder o último dia em Londres e chegar bem mais cedo ao aeroporto para resolver tudo isso direto no balcão da companhia. Quando cheguei, procurei o nome da empresa. Não havia nenhum balcão. Só uma moça no check-in, o nome da companhia atrás. Expliquei o caso. Ela disse: “Sinto muito, não posso fazer nada. Eu aqui só faço o check-in”.

Me despachou para outro setor, responsável por cobrar os valores de check-in e bagagem. Expliquei tudo de novo. A moça afirmou: “Sinto muito, aqui só somos intermediários”. Eu insisti: “Mas eu não consigo fazer o check-in. Passei o dia de ontem inteiro tentando fazer o check-in”. Ela: “Ainda dá tempo de a senhora fazer o check-in pela internet”. Eu: “Mas eu já tentei mil vezes fazer o check-in pela internet”.

Ela devia ser nova no setor, porque exibiu reações humanas e fez o impensável: tentou ela mesma fazer o check-in no computador. Não conseguiu. Disse à colega: “Eu mesma não consegui fazer o check-in. O que a gente faz?”. A colega: “Nós somos apenas intermediários. Não temos nada a ver com isso. Se não fizer o check-in pela internet, tem de pagar”.

Constrangida, a moça pegou um pedaço de papel com o telefone da companhia aérea: “Liga para este número”. Eu: “Mas ninguém atende!”. Neste momento, o colega da moça gritou. Outra reação humana. Ele estava furioso porque a colega tinha saído do manual e uma fila atenta se formava atrás de mim. Quando disse a ele que não havia necessidade de ser rude, ele voltou a se tornar um robô. Do gênero “robô intermediário”.

Voltei para a moça do check-in, só para constatar que ela também era intermediária. “Sinto muito, mas não posso fazer nada”. Ok, mas eu quero falar com alguém que possa encontrar uma solução! Não tem ninguém neste aeroporto inteiro que responda pela companhia? A moça voltou ao modo hibernação.

Eu havia deparado dezenas de vezes com esse comportamento pelos telemarketings da vida. Mas nunca tinha conversado com robôs humanos ao vivo. É chocante perceber que a pessoa olha para você com um olhar vazio. É a alienação do trabalho levada ao seu apogeu. Não há ninguém ali.

Ela só sabe repetir frases e não tem respostas que não estejam armazenadas no seu chip. Não tem autonomia para nada. Quando algo fora do roteiro acontece, ela fica repetindo a sua alienação como se esta fosse uma resposta. E parece não perceber o que faz consigo mesma. “Sinto muito, eu não posso fazer nada. Sinto muito, eu só sou uma intermediária. Sinto muito, eu não estou autorizada”. Sinto muito, eu não pertenço à companhia. Não pertence sequer a si mesma.

Todo o raciocínio humano, a capacidade de criar alternativas e resolver questões, todo o capital intelectual e simbólico que nos tornou o que somos de melhor é anulado. Nesse lugar de máquina humana, a pessoa competente é aquela que não faz nenhuma diferença. Será que, quando ela for definitivamente anulada, ou seja, substituída por uma máquina que não seja de carne e osso, mas de silício, vai se espantar?

É o único emprego que ela conseguiu, só está fazendo o que lhe mandaram fazer, não é responsável pelo modo como as coisas funcionam, alguém poderia ponderar. É verdade. Mas arrancar de uma pessoa a capacidade de resistir e criar alternativas para sua vida, ainda que seja difícil, é anulá-la por completo em tudo que é humano. É destituí-la de qualquer potência, é fazer a mesma sacanagem.

Se realizamos um trabalho pelo qual não nos responsabilizamos, aceitamos que nos reduzam a parafusos. E isso vale para qualquer trabalho. Talvez a grande diferença entre um humano e uma máquina seja a capacidade de fazer escolhas. Quando alguém abdica deste bem imaterial – ou reduz suas escolhas a qual marca de sopa industrializada vai comprar para o jantar – está abdicando de ser.

Segui minha desventura pela companhia virtual. Procurei um computador, tentei tudo de novo. Nada. Voltei ao check-in. Outra moça. Diante do meu relato, ela afirmou (adivinha!): “Sinto muito, não posso fazer nada”. Decidi pesar minha mala. Descobri que ultrapassava os 15 quilos. Como não pude pagar pela internet, fui informada de que despachar uma mala me custaria o equivalente a 35 libras (97 reais). Para cada quilo que passasse dos 15, cobrariam 20 libras (55 reais). Por sorte, eu não tinha uma segunda mala. Do contrário, teria de pagar mais 70 libras (194 reais): a segunda é o dobro do preço.

Pagar este valor pela bagagem me parecia absurdo, mesmo que eu tivesse conseguido pagar a taxa mais baixa, pela internet. Mas sobre isso eu havia perdido o direito de reclamar quando dei um clique com o mouse do computador. Quem mandou não ler as letras miúdas? Fiquei pensando em todos os “I accept” (eu aceito) que clicamos na internet, a cada programa baixado ou a cada compra consumada. O que será que eu já aceitei ou com quais absurdos concordei somente neste ano?

“Declaro que estou de ciente que o produto é cancerígeno e a empresa X não tem nenhuma responsabilidade sobre o melanoma que eventualmente desenvolverei no futuro”. Ou: “Declaro que estou ciente de que ao final do programa vou ser esquartejada e ter meus órgãos comercializados sem que meus familiares tenham qualquer direito a uma parte dos lucros obtidos com a transação”. Ou: “Declaro que tenho um desvio patológico de conduta e sou incapaz de gerir meus bens, que devem portanto ser transferidos para a empresa tal”.

Medo.

Paguei. Como eu continuava reclamando, a “intermediária” disse algo que, imagino, não estivesse no manual: “When you choose this company, you sign your life away”. O sentido, em português claro, é: “Quando você escolhe esta companhia, você vende sua alma”. Eu tinha assinado uma versão contemporânea de pacto com o diabo. E era assim que eu me sentia. A empresa era descarnada. Eu tentava alcançá-la, mas só agarrava fumaça.

Tive uma profunda sensação de irrealidade. E se o avião não existisse? E se não tivesse piloto? E se a manutenção da aeronave também fosse virtual? Eu não queria apertar cinto nenhum!

Passou. Apresentei no check-in o recibo da minha impotência. A fila tinha mais de cem pessoas. Quando chegou minha vez, o moço do check-in (outro intermediário) achou minha reserva no computador no primeiro clique. Sim, eu estava lá. Em algum lugar daquele mundo volátil havia um lugar para mim no avião.

Sentei-me aniquilada na sala de embarque. O que eu poderia fazer diante dessa criatura imaterial, mas que tinha ganhos bem concretos? A companhia não tem o menor interesse em resolver as panes eventuais de sistema em casos como o meu. Nem sequer me vêem como uma pessoa. Eu não sou um ser humano com nome, história, desejos. Sou apenas um número de cartão de crédito.

O cálculo é pragmático. Contratar funcionários capazes de resolver problemas numa estrutura própria é muito mais caro que acertar com uma empresa terceirizada, que faz serviços para ela e outras dez, e que se limita a faturar taxas e seguir o manual padrão de perguntas e respostas. Sem contar que qualquer prejuízo não será da companhia, mas do passageiro. Se X pessoas deixarem de viajar porque foram lesadas e não puderam sequer reclamar, tanto faz. Sempre haverá gente precisando viajar barato. Na ponta da calculadora virtual: custa menos dinheiro perder um número X de clientes do que estabelecer um escritório próprio. Pronto. A escolha está feita. Se tudo é fumaça, alguém espera que exista ética?

A companhia trabalha assim porque é má? Não. É a lógica do mercado. E o mercado, dirão os gurus de plantão, não é bom nem mau. Estes são atributos humanos. A longo prazo, o número de descontentes poderia colocar a companhia em risco? Esta é a parte que o marketing tem a missão de resolver.

A ausência física, com todas as violações aos direitos básicos do consumidor que acarreta, é transformada em “diferencial”. O que era ônus, em termos de imagem, vira bônus. Transforma-se num valor. “Usamos a internet para que você possa viajar pelo mundo pagando menos. Nós estamos pensando em você, que antes não podia viajar e, graças a nós, agora pode.” No final desse raciocínio, você quase agradece.

Mas por que tem de pagar pela bagagem? Também há uma sacada de marketing logo ali. É preciso fazer com que você não se sinta apenas um cidadão de terceira classe, viajando barato numa companhia que não responde pelos seus atos e que cobra até pela mala que você carrega. A médio prazo isso poderia trazer prejuízos significativos. Afinal, não se pode esperar fidelidade de clientes sem autoestima.

De fato, você está ali porque não consegue pagar a passagem de uma empresa com reputação, escritórios estabelecidos, onde você é atendido por pessoas que o ajudam a resolver eventuais problemas e viaja numa aeronave com o mínimo de conforto. O que você não sabia é que, ao escolher este inovador sistema de voar, abriu mão dos direitos mais básicos do consumidor.

De novo, é preciso transformar isso em atributo. Em vez de cidadão de terceira classe, você tem de ser convencido que é um cidadão do mundo. Com a ajuda do marketing publicitário, você finalmente compreende que viajar por esta companhia não é apenas pegar um avião, é embarcar num estilo de vida, um jeito despojado de estar no mundo. Se você for um de nós, você sabe que a principal bagagem que carrega está no seu cérebro. Ou no seu coração, para os mais românticos. Portanto, viaje leve. Você não é pobre, você é cool.

Estava neste ponto do raciocínio quando chamaram para o embarque. Chequei se o avião tinha o nome da companhia. Tinha. Achei melhor não investigar se o piloto era “intermediário”. Não tinha assento marcado, então era só dar cotoveladas, correr, saltar alguns obstáculos e sentar onde conseguisse. Se você quiser ser um dos primeiros a embarcar, precisa pagar uma taxa a mais. Claro. Os bancos não reclinavam, para que coubessem mais poltronas. Desconforto? Ganância à custa da sua coluna vertebral? Não. Estilo, claro. Banco reclinável é coisa de gente velha ou fora de forma.

Esta mesma companhia, em mais um lance inovador, vem estudando a implantação de um modelo em que os passageiros viajariam em pé, agarrados a barras de ferro e presos por cintos de segurança. Parece piada, mas não é. O termo usado para anunciar a possível “nova classe” ao público é primoroso: “sentados na vertical”. Numa enquete virtual, a opção foi aprovada por 60% dos participantes (!). A mesma companhia já estudou cobrar pelo uso do banheiro.

No início do vôo, recebi – de graça! – uma revista com os produtos em oferta, com a comodidade de poder comprar ali mesmo. Mais uma prova de que a companhia continuava pensando no meu bem-estar. Vi então a foto do big boss no editorial. Quase duvidei que existisse. Era a primeira imagem humana que eu tinha. Mesmo se fosse falsa, parecia uma pessoa, o que não deixava de ser um upgrade.

Estudei com atenção. A foto vendia o conceito. Nada de terno e gravata ou ambiente corporativo. Nosso “fellow” era um homem com o sorriso confiante do jovem empreendedor arrojado, exibia um bronzeado de surfista e parecia se divertir muito enquanto trabalhava e revolucionava o mundo com a ousadia de suas ideias. Afinal, não é qualquer feito. Ele havia inventado o primeiro pau-de-arara com asas da história da aviação.

Continuei lendo. Descobri que eu era muito importante para eles e que todos os clientes eram tratados como VIPs – very important persons. Os comissários de bordo eram todos jovens, descolados. Cantaram parabéns para um passageiro de aniversário. Xavecaram as meninas que viajavam sozinhas. Passaram o vôo inteirinho tentando vender produtos variados, na maior empolgação, como se fosse um programa de auditório. Parei de escutar quando anunciaram um cigarro que não fazia fumaça nem precisava acender, mas que podia me dar a dose de nicotina necessária para viver, ali mesmo no avião.

Os passageiros aplaudiam. Pareciam muito felizes viajando no desconforto. Porque, afinal, ao contrário de mim, eles sabiam que não era uma simples viagem. Estavam compartilhando e propagando um estilo de vida, um jeito despojado de voar. Tinham, visivelmente, uma sensação de pertencimento a uma tribo privilegiada (?!) de cidadãos do mundo.

Eu queria de verdade que o admirável mundo novo parasse para eu descer e embarcar no velho. Mas, pelo menos naquele momento, a sensação de estar no ar era bem real.

(Publicado na Revista Época em 10/05/2010)

As garotas hihihi

Se você já viajou por aí, deve ter visto uma garota hihihi. Em geral ela tem a constituição de um junco e, como ele, parece que vai quebrar. É branquinha, quase translúcida. Apresenta uns pequenos olhos orientais sempre meio esbugalhados, onde boiam toda a inocência do mundo. E um sorriso de dentes muito alvos que parece depositá-la inteira entre as mãos do interlocutor. A espécie hihihi só tem fêmeas. E ninguém ainda descobriu como se reproduz.

A bordo de sua aparente fragilidade, as garotas hihihi dão a volta ao mundo em passinhos de gueixa, mas enfiadas em tênis aerodinâmicos.

Desde as últimas décadas do século XX, há registro de espécimes hihihis nos cinco continentes. Deserto, mar, montanha. Sol de 40 graus, neve. Onde há viajantes, há também hihihis.

A espécie não se fixa. Está sempre de passagem, fazendo turismo. Tampouco anda em bandos. Seu comportamento é excludente com relação às iguais. Uma hihihi prefere estar sozinha entre nós. Precisa de um território circunscrito para exercer com desenvoltura seu modus vivendi.

Há poucos registros documentados de encontros de hihihis. Testemunhos afirmam que, quando dois espécimes se encontram, não fazem hihihi. Depois de alguma tensão, uma delas se afasta. Hihihis comportam-se como leões. Há apenas um por território. E um bando de não-hihihis ao redor. Nós.

Uma equipe de TV que percorria os caminhos motociclísticos do jovem Che Guevara pela América encontrou uma hihihi no deserto do Atacama. Acampando. Vinha de uma volta ao mundo, sozinha. Só falava umas poucas palavras de inglês, espanhol nem sabia que existia. Era capaz de montar a barraca em cinco minutos, com um bracinho nas costas. Mas quem seria maldoso de permitir que aquelas mãozinhas feitas para desenhar ideogramas pegassem no pesado?

Logo hihihi foi alimentada, afofada, protegida por todos. Diante das câmeras, o jornalista disse: “Você sabia que vai aparecer num programa de TV?”. E ela, com a mãozinha na boca: hihihi. E seguiu pelo mundo, sobre seus pezinhos, muito além do que Che jamais sonhou.

Em um dos muitos contatos documentados de uma hihihi com um membro masculino da comunidade local que ela visitava, na Andaluzia, as observações mostram que o homem a levou do aeroporto até o hotel de graça; carregou a sua mala; estrebuchou-se tentando falar espanglês. A garota hihihi respondeu a todas as indagações com aquele rosto de você-pode-fazer-tudo-comigo-porque-eu-nada-sei-do-mundo-mas-será-uma-covardia-porque-eu-sou-muito-fofa.

Aqui está meu telefone, disse o homem. Hihihi. Você pode me contatar a qualquer hora do dia ou da noite. Hihihi. Se você precisar de mim, é só ligar para este número. Hihihi. Você quer que eu carregue a sua mala de 40 quilos pelos cinco lances de escada? Hihihi.

E lá foi ela, segundo os registros, saltitando atrás do homem que parecia prestes a ter um enfarte. Quando chegou à porta do quarto do hotel, hihihi foi fechando-a na cara dele enquanto dizia docemente: hihihi.

Entrevistado logo depois, o homem se declarou encantado. Se tivesse chance, pretendia pedir a linda mãozinha da hihihi em casamento. Ela não precisaria nem entregá-la, já que as mãozonas do homem poderiam esmagar algo tão delicado. Ele já ficaria feliz para sempre se pudesse carregar a mala dela pelo mundo afora nas costas. Até que a morte (dele) os separasse.

Cinco minutos depois de o homem partir, hihihi saiu do quarto com sua câmera fotográfica e seus olhos esbugalhados. Era eu quem a observava. Em geral, são escolhidas fêmeas para a missão. Embora ainda seja um ponto controverso entre os cientistas, há evidências de que as mulheres sejam (um pouco) menos afetadas. Sobre mim, posso dizer que sou experiente. Ou era. Porque falhei miseravelmente.

Sempre priorizei a imparcialidade do meu trabalho e minha fama de durona. Por alguma razão — e não passa um dia sem que eu rememore a cena para tentar descobrir onde foi que me distrai —, deixei que ela me visse.

Hihihi. Foi tudo o que ela pronunciou.

Enquanto eu pensava se deveria me oferecer para carregar aquela câmera pesadíssima para ela, hihihi desapareceu junto com o elevador que eu tinha chamado. Ainda posso ouvir o som abafado e descendente que a levou para longe de mim.
Hihihi.

Desde então, não durmo mais. De saudades.

A perfeita família Jones

Temos escolha ou apenas ilusões?

Steve e Kate são bonitos, ricos e charmosos. Tem um casal de filhos adolescentes bonitos, ricos e charmosos. Acabaram de se mudar para um daqueles opulentos subúrbios americanos, com ruas arborizadas e casas enormes, onde temos a impressão que nunca faz mau tempo. Desembarcam em sua nova vizinhança a bordo de um carro bonito, caro e recém-saído da concessionária. Quando os vizinhos tocam a campainha para dar-lhes as boas vindas, a imagem atrás da porta que se abre é o clichê da família perfeita.

Só que essa família não existe. Os quatro são funcionários de uma poderosa empresa de marketing que cria famílias perfeitas em diferentes partes do mundo para vender os mais variados produtos, de carros a lingerie. A missão da equipe é tornar-se um modelo a ser admirado, em seguida invejado, finalmente seguido. De tempos em tempos, eles recebem os informes de quanto as vendas de produtos aumentaram com a sua atuação – e são avaliados pelos resultados. Uma sacada genial de marketing – digamos que um passo além dos comerciais e merchandisings a que já nos acostumamos.

Este é o enredo de The Joneses, filme de Derrick Borte, que deverá estrear no Brasil em breve. Demi Moore é Kate, mãe de família e chefe da equipe. David Duchovny, que se tornou conhecido pelo seriado Arquivo-X, é Steve. Jones é um sobrenome quase tão comum quanto Silva ou Souza nos Estados Unidos. Mas “The Joneses” foi escolhido a partir de uma expressão da língua inglesa: “Keeping up with the Joneses”. Significa algo como comprar aquilo que the Joneses compram, fazer aquilo que fazem — manter o mesmo padrão. O filme, claro, é uma sátira à sociedade de consumo. Em pouco tempo, os Jones-pais são um sucesso na vizinhança e os Jones-filhos arrasam na escola. As vendas de tudo o que usam disparam. O capitalismo triunfa.

Depois desse ótimo início, o filme desanda. Poderia ter trilhado muitos caminhos, escolheu o mais pueril deles. Mas a premissa de partida é instigante. The Joneses realiza a teoria da conspiração que nos transforma em marionetes sem almas do mercado. Tudo que desejamos pode ser comprado. Nos escravizamos para ter dinheiro para consumir os objetos de nosso suposto desejo. E, claro, nosso desejo jamais será satisfeito plenamente.

Por que somos seres existencialmente incompletos, a quem sempre faltará algo? Não! Porque não somos capazes de obter o sucesso necessário para comprar TUDO. E, ainda que conseguíssemos comprar tudo, haveria sempre mais para desejar e para consumir. Na lógica capitalista, o que nos falta não é um sentido para a vida, mas um sapato de sola vermelha ou uma TV de última geração para assistir à copa do mundo. Nunca seremos como os Jones, mas eles nos mostram quem deveríamos ser. E teremos alguns momentos de euforia se pudermos pelo menos usar o mesmo jeans ou o mesmo relógio que eles.

Esta é a questão óbvia trazida pelo filme. E que vem sendo dita de várias maneiras – e com muito mais propriedade – pelo menos desde Karl Marx. A denúncia do que nos escraviza tornou-se, há muito, ela mesma um objeto a ser consumido, como esse filme de Hollywood. A própria denúncia é mercadoria do sistema que denuncia. A ponto de se tornar um clichê, que nada mais é do que a mercadoria que se banalizou e vai perdendo valor de mercado.

Clichês podem se tornar armadilhas. Quando ouvimos tanto alguma coisa, deixamos de ouvir. Ela se esvazia de conteúdo e a verdade que dizia não é mais escutada. Porque este também um mundo que consome idéias. Exige novidades o tempo todo, ainda que novidades velhas em roupas novas. E a verdade é que as questões essenciais sobre as quais nos debruçamos na curta história de nossa espécie são poucas – e sempre as mesmas. Quem somos, de onde viemos, para onde vamos, qual é o sentido de nossa vida. E o sentido de nossa vida tem sido consumir – mercadorias cada vez mais voláteis.

Como diz a big boss da corporação a Steve Jones: “Você não vende produtos, mas atitude. Um estilo de vida”. Para cada tribo há uma família perfeita em quem podemos nos espelhar. Ainda que, em determinada comunidade, a família perfeita possa ser um casal gay com um bebê adotado no Sudão, que veste a moda das roupas recicladas, usa bicicletas como meio de transporte e se alimenta de produtos orgânicos.

Se os Jones do filme influenciassem seus vizinhos para consumir valores/produtos “do bem”, ecológica e socialmente sustentáveis, o marketing invisível estaria justificado? The Joneses seriam eticamente defensáveis se falseassem em nome de valores ligados à sustentabilidade ambiental e aos direitos humanos? É o que sempre me pergunto quando vejo o marketing do bem ampliar sua ação simulando uma oposição a um sistema do qual é também produto.

Desde o final dos anos 90, Hollywood tem lançado no mercado alguns filmes inquietantes sobre o sistema do qual é um dos braços mais poderosos e bem-sucedidos. O Show de Truman (Peter Weir, 1998) e Beleza Americana (Sam Mendes, 1999) são dois imperdíveis exemplos. Filmes como Matrix (Andy e Larry Wachowski, 1999) nos confrontam com a questão crucial de um mundo com fronteiras cada vez mais tênues entre o real e a ilusão.

Neo, o personagem principal, vivido por Keanu Reeves, é um dos poucos que tem escolha: ele pode escolher entre tomar a pílula vermelha ou a azul. Se eleger a vermelha, ele verá o mundo como de fato é. Se escolher a azul, seguirá na mesma, vivendo com a ilusão de ver o mundo como ele é. Mas, ainda que escolha a pílula vermelha, como de fato escolheu, como saber que aquele mundo é o real ou apenas mais uma simulação do real? O que é real, afinal?

The Joneses traz essa questão de uma forma mais tosca, mas ainda assim suscita perguntas interessantes. Se a família falsamente perfeita não tivesse aparecido na vizinhança para ditar um estilo a ser consumido, seus vizinhos seriam mais livres? Suas escolhas eram mais amplas antes de serem influenciados por esse poderoso marketing invisível? Ou apenas trocaram de marcas?

Ou ainda: se os Jones se apresentam e são decodificados como uma família perfeita, onde está a verdade e a mentira? Se a família perfeita só pode existir como ilusão, ao apresentarem-se como uma eles estão mentindo? Ou só podem ser verdadeiros mentindo? O quanto eles iludem e o quanto a vizinhança quer ser iludida?

Há muitos Jones na nossa vida, o tempo todo, travestidos das formas mais diversas – travestidos até como anticonsumo ou como reação ao consumo. Se pensarmos em cada objeto que compramos – e este é um exercício sempre interessante –, sabemos dizer de onde veio a vontade, o gosto, a preferência, a necessidade? Tente. Sua última compra. Como chegou a essa escolha? É possível saber o quanto lhe pertence esse ato? Existe, afinal, o desejo de cada um? Ou essa é a grande quimera contemporânea?

O produto mais cobiçado do mercado é justamente aquele que o mercado não tem para oferecer: escolha. E o melhor marqueteiro, publicitário ou vendedor é aquele que nos faz acreditar que temos opção diante de prateleiras e mais prateleiras de ilusões. A garantia de escolha é a grande farsa.

Em Guerra ao terror (Kathryn Bigelow, 2009), Oscar de melhor filme na última premiação, é forte a cena em que o soldado volta do Iraque e tudo o que tem diante de si é uma longa prateleira de supermercado. Em casa, no mundo livre, suas escolhas limitam-se à opção entre dezenas de marcas de cereais. Ele, que na radicalidade da guerra estava encarnado, se desencarna diante da volatilidade desse mundo de mercadorias que defende com o risco de perder a própria vida – e assassinando outras tantas.

Acho que viver nesse mundo de consumo é o tempo todo pensar sobre o auto-engano. Viajei pela Europa por três semanas. Como sigo trabalhando enquanto viajo, fiz meu escritório em uma rede internacional de cafés. É a forma mais prática para quem não tem dinheiro para pagar bons hotéis e precisa estar conectado em algum lugar onde não chove nem faz frio. Sempre que eu precisava, havia um por perto. Eu entrava, procurava uma mesinha com tomada para não precisar gastar a bateria do netbook que andava o tempo todo comigo, na mochila. Me conectava e, pronto, estava trabalhando. E, claro, consumindo café.

Quando entrava num dos cafés da rede, eu ficava contente. Era como chegar em casa. Os atendentes eram jovens, sorridentes, sempre dispostos a ajudar. Estrangeiros, a maioria. No segundo dia já conheciam meu gosto, sabiam se meu café era com ou sem leite sem que eu precisasse dizer. Ao meu redor havia pessoas como eu, mergulhadas no universo privado de seus laptops. Quando chegava a hora de fechar, meus sorridentes novos amigos me pediam gentilmente para cair fora, mesmo que lá fora desandasse uma tempestade. Só então eu lembrava que, afinal, não era minha casinha, mas business.

Logo percebi que eu não estava apenas trabalhando num café wi-fi. Eu “estava entre os meus”. Fazia parte de uma rede, compartilhava e reproduzia “um estilo de vida, uma atitude”. Era, de certo modo, a minha família Jones. Enquanto isso, eu, que nunca gostei muito de café, estava consumindo litros. E bem feliz.

Nessa viagem, não adquiri nada novo. Comprei confecções de uma marca que recicla tecidos e roupas usadas, doadas para este fim. Desse modo, o que eu visto não custa quase nada para o meio ambiente. E o preço que pago, bem menor do que o custo de qualquer confecção nova, é investido em programas de educação e direitos humanos em países pobres. Pode ter algo mais politicamente correto, mais ambientalmente sustentável?

Achei que não. E sigo acreditando que é uma boa opção. Mas não deixei de me sentir parte de uma família Jones, ainda que mais descolada e com valores mais “adequados” às necessidades do planeta. Ainda na ratoeira. Com a velha sensação de claustrofobia. O tempo todo entre as pílulas azuis e vermelhas, com a diferença de que não tenho a ilusão de que a pílula vermelha me ofereça algo que também não desmanche no ar.

Há como viver sem fazer a roda do consumo girar? Há como consumir sem ser consumido?

Acho que, neste mundo, a única pergunta que pode nos devolver a nós mesmos é aquela que nos lança no vazio: Qual é o meu desejo?

Não acho que vá encontrar a resposta. Mas não tenho escolha melhor do que a de seguir buscando.

(Publicado na Revista Época em 03/05/2010)

Página 2 de 212