Eu não estou com TPM!!!

Ele me olha. Sinto que quer que eu pergunte. E só isso já me irrita. ~Uhrrrrrrrrrrr. (Isso me irritou mais profundamente. O desplante do teclado de não grafar um til com u embaixo dele. Passo um tempão imaginando como é que eu faço uma onomatopéia do meu grunhido e aí ele diz que não posso botar til com u. Se recusa. Tento três vezes e ele só aceita ao lado. Não é o fim do mundo? Ou o início da revolução das máquinas? Os maiores massacres da humanidade começaram por algo que passou despercebido pela sua insignificância.) E ele ali, me olhando. E com aquele sorrisinho de quem sabe algo que eu não sei. O que foi?, não aguento e pergunto. ~Uhrrrrrrrrrr. “Você parece o Clint Eastwood naquele filme do chinês.” O Clint Eastwood tem 80 anos e não era um chinês, mas um coreano. “Whatever”, ele diz. E continua me olhando com aquele sorrisinho superior. O QUE FOI???? ~U (um embaixo do outro) hrrrrrrrrrrrrr. “Você está com TPM, né?!”

Não tem este ponto de interrogação aí de cima. Ele faz uma afirmação bem categórica, mas disfarça encostando um ponto de interrogação. Babaca covarde!!! EU NÃO ESTOU COM TPM. Pronuncio bem as letras. E penso na perna dele voando como no último filme do Tarantino a passar por aqui, na hora em que o Kurt Russell mata a primeira vadia. Ah, eu adorei este filme ruim do Tarantino. Ele não tem noção, nenhuma noção. Faz um hihihihihihi, que nem o Muttley, o cachorro do Dick Vigarista na Corrida Maluca.

É IMPRESSIONANTE COMO VOCÊS SÃO. POR ACASO VOCÊ VIROU UM MALDITO MANUAL DE AUTO-AJUDA? ACHA QUE O OBJETIVO DA VIDA É A BUSCA DA FELICIDADE? ACHA QUE EU TENHO DE ESTAR SEMPRE FELIZ, SALTITANDO PELA CASA ALEGREMENTE COMO UMA GAZELA THOMPSON NUM PROGRAMA DA NATIONAL GEOGRAPHIC? E QUANDO NÃO ESTOU FELIZ E SALTITANTE É TPM? TODOS OS MEUS SENTIMENTOS MAIS PROFUNDOS, MINHAS CRISES EXISTENCIAIS, A SHIT DESTA VIDA PEQUENO-BURGUESA, TUDO REDUZIDO A UMA MALDITA SIGLA INVENTADA POR MÉDICOS IDIOTAS E DIFUNDIDA PELA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA PARA FATURAR EM CIMA DE MULHERES IMBECIS?????

Ele está um pouco magoado, só um pouco infelizmente. “Eu já te disse que não sou VOCÊS.” QUER PARAR DE ME INTERROMPER? EU ESTOU QUIETA AQUI NO MEU CANTO, AÍ VOCÊ ME PROVOCA E DEPOIS NÃO QUER ME ESCUTAR? POIS VAI ESCUTAR, SIM SENHOR. E vejo a cabeça dele explodindo no painel do carro. Ahhhhhh. Quase me sinto bem.

EU NÃO SOU UM CORPO BIOLÓGICO QUE SANGRA TODO MÊS. SOU UMA MULHER COMPLEXA, COM QUESTÕES COMPLEXAS, NA PORRA DE UMA ÉPOCA COMPLEXA. Ele se aproxima com o rabinho entre as pernas. Passa a mão na minha bunda. !!!!!!!!!!!!!!!!! Fico muda de ódio. É tão absurdo que me faltam palavras. A adrenalina congela nas minhas veias. Não é possível que em dez anos de casamento ele não tenha entendido nada. Acha que passar a mão na minha bunda é uma boa ideia NESTE momento. Corto eu mesma o seu pinto em pedacinhos minúsculos (mais minúsculos hahahaha) e jogo para o cachorro que me olha com olhos esbugalhados do sofá azul. Muito mais inteligente o cachorro, que tem o bom senso de não esboçar nenhum latido.
PRIMEIRO ACHA QUE TODO O MEU SENTIMENTO DE MAL-ESTAR NO MUNDO É TPM. DEPOIS ACHA QUE SER COMIDA VAI ME TRAZER FELICIDADE. VOCÊ ACHA QUE SEU PINTO É DE OURO???? E TIRA ESTE VIRALATA PULGUENTO DO SOFÁ!!!!

Começo a chorar sem parar. Soluço tanto que me engasgo. Ele chega devagar, um pé dá um passo para trás, o outro para frente. “Quer que eu faça alguma coisa?” Sim, soluço. Compra uma caixa de Ponstan, outra de Buscopan e uma lata de leite condensado.

Ele pega a chave da moto. Eu agora o amo. Sinto tanto amor por ele que me dá vontade de chorar mais. “Você quer só isso mesmo? Não quer também que eu passe na banca e compre uma revista?”. Ele não ousa dizer o nome da revista, afinal eu estou lendo o conceito de angústia em Kierkegaard. Não precisa, eu soluço. Mas, olha, eu só queria deixar claro: EU NÃO ESTOU COM TPM!!!! EU SÓ ESTOU TRISTE PORQUE A VIDA É …. A VIDA É ….

Ouço o barulho do elevador descendo. E fico com medo que um carro feche a moto e ele morra despedaçado antes que eu possa pedir desculpas e dizer que o amo. Agora rolo no chão de tanto chorar.

Palmada na lei

Ao propor a proibição da palmada, o Estado infantiliza os pais

Tento me mover pela vida a partir das dúvidas. Mesmo quando acho que tenho uma razoável certeza sobre algum tema, me pergunto várias vezes: “será?”. E guardo uma parte de mim sempre aberta para mudar de ideia diante de algum fato novo ou argumento bem fundamentado. É o caso da lei da palmada, que me parece desde sempre um total disparate. Ao constatar que o projeto de lei enviado pelo presidente Lula ao Congresso em 14 de julho é apoiado e defendido em entrevistas e artigos por pessoas cuja inteligência e atuação pública tenho grande respeito, me forcei a um questionamento ainda maior. Será que palmada é crime e eu não estou percebendo algo importante?

O projeto, que ficou conhecido como “lei da palmada”, se propõe a alterar o artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nele, fica proibido o uso de castigos corporais de qualquer tipo na educação dos filhos. O castigo corporal é definido como “ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso de força física que resulte em dor ou lesão à criança ou adolescente”. Li, pesquisei, estudei e continuo achando um total disparate. Não encontro um único argumento que me convença de uma lei proibindo palmadas.

Antes de seguir, quero deixar muito claro que, obviamente, espancamento é crime. Seja dos pais ou de quem for. Palmada não. E nada me convence de que precisamos de mais uma lei, já que a legislação existente pune o espancamento e demais agressões físicas. Nada tampouco me convence de que o Estado deve interferir neste nível na vida privada, na maneira como cada um educa seus filhos. Não por uma postura liberal, mas por algo bem mais sério que vou abordar mais adiante.

Um dos argumentos em defesa da nova lei é de que as pessoas não saberiam a diferença entre uma palmada e um espancamento. Acredito que a maioria das pessoas sabe muito bem a diferença entre dar um tapa na bunda de uma criança e espancar uma criança. Não vale como estatística, mas nunca conheci ninguém que não soubesse, exceto pessoas com distúrbios muito graves, que também não sabiam a diferença entre quase tudo. Quem espanca não acha que está dando uma palmada. Tem certeza de que espanca e quer espancar.

Outro argumento é de que a suposta violência começaria com uma palmada e evoluiria para um espancamento. Não me parece que temos provas de que isso seja um fato verídico. É verdade que temos, infelizmente, um número elevado de crianças espancadas no país – no caso de crianças espancadas, queimadas e agredidas de todas as formas qualquer número acima de zero é elevado e vergonhoso e seus autores devem ser punidos com as penas previstas nas leis que já existem. Mas não é a maioria nem é uma regra evolutiva. Não vejo pais dando palmadas nos primeiros dois anos de vida e no terceiro e no quarto espancando. E no quinto e sexto matando? O espancamento de uma criança quebra tanto o consenso social que provoca horror e espanto.

Me parece muito perigoso tachar de criminosos pais que dão palmadas. Por vários motivos. O primeiro deles é a injustiça da afirmação. Crime é algo muito sério e algo com que o Estado e todos nós precisamos nos preocupar porque rompe e ameaça o tecido social, portanto a sobrevivência de todos. Não pode e não deve ser banalizado. Chamar de criminoso um pai ou uma mãe que dá uma palmada na criança na tentativa de educar é, além de um equívoco, um flagrante abuso.

Me preocupa muito, por exemplo, o fato de demorarmos a agir no caso das denúncias de espancamentos e de agressão sexual. Assim como me preocupa a falta de instrumentos de proteção efetivos para amparar as crianças violadas de todas as formas. Quem trabalha com a prevenção da violência contra crianças sabe que há escassez de assistência. Isso resulta em traumas físicos e psicológicos para as vítimas e impunidade para os agressores. Quando o Estado coloca a palmada e o espancamento no mesmo nível, como se fosse a mesma coisa, todas as lacunas de prevenção, assistência e repressão podem se tornar ainda mais largas.

Se o Estado se propõe a entrar na casa das pessoas e fiscalizar se todos os pais do Brasil estão dando ou não palmadas em seus filhos, em vez de concentrar seus recursos e esforços naquilo que é importante – a prevenção do espancamento e a punição dos espancadores, assim como dos abusadores de todo tipo – temo que o tiro possa sair pela culatra, com o perdão do clichê. Acho que na vida, seja para um governante, um legislador ou um cidadão comum, é importante ter foco.

Este tipo de debate é rico porque todos têm suas próprias experiências. E eu acredito muito na experiência. Vivemos numa época em que a tradição foi desmoralizada e a maioria corre para especialistas de todo o tipo para saber como deve agir ou pensar. Não confia nem na soma de experiências próprias e dos que acertaram e erraram antes – nem em seus próprios instintos. Uma pena, porque perdemos muito. Todos nós perdemos muito. E, talvez, mais que todos, nossas crianças.

Espancamento, ouso dizer que a maioria de nós não experimentou. Mas palmadas quase todos conhecem na pele. Eu nunca fui espancada pelos meus pais, mas recebi várias palmadas. E todas elas, na minha percepção, foram atos de amor e de educação. Eu nunca espanquei minha filha, mas dei várias palmadas nela. E também foram atos de amor e de educação.

Quando eu era criança, só conheci um colega que era espancado pela mãe. Numa ocasião, esta mulher entrou na escola onde estudávamos com um pedaço de pau e deu uma surra pública no meu amigo. Para nós aquilo foi algo totalmente apavorante. Tínhamos oito anos e não sabíamos que os pais eram capazes de tal violência. Sabíamos perfeitamente a diferença entre aquela surra sangrenta que testemunhamos e o que acontecia dentro da nossa casa quando aprontávamos alguma arte. Lembro que nos reunimos para conversar. Estávamos assustados e precisávamos explicitar e assegurar a diferença para termos certeza de que nossos pais nunca fariam algo assim. A forma que encontramos foi cada um contar como os pais procediam quando faziam algo errado. Rememorar os limites era a única maneira de nos tranquilizar diante daquela cena de horror.

O curioso é que, nervosos, cada um queria se exibir mais do que o outro. Minha mãe corre atrás de mim e me dá palmadas, a maioria dos meus colegas dizia, orgulhoso. Tinha um que se gabava de que o pai lhe dava umas cintadas na bunda. Me senti um pouco inferiorizada porque apanhava pouco. Então exagerei dizendo: “Minha mãe me dá muitas chineladas e dói bastante”. Pronto. Todos nós reafirmamos que éramos amados. Não éramos e não seríamos espancados, mas éramos amados o suficiente para que nossos pais se preocupassem de nos punir por coisas erradas que fazíamos. Confiávamos que nossos pais nunca superariam este limite. E, depois desta sessão espontânea de terapia coletiva, fomos convidar nosso machucado colega para brincar.

Passei a infância com uma inveja manifesta dos meus irmãos que um dia apanharam de cinta do meu pai. Meu pai explicou calmamente porque eles apanhariam, perguntou se tinham entendido bem as razões e as circunstâncias e começou a bater pelo meu irmão mais velho, por causa de outra regra muito clara: como ele era o mais velho, deveria dar exemplo aos mais novos. Como eu nasci muitos anos mais tarde, meu pai já tinha delegado esta tarefa à minha mãe e perdi esta parte. Seguiu mantendo uma autoridade que nos impunha tal respeito que bastava cravar em nós “aquele olhar” para pararmos a traquinagem no meio do movimento. Mas eu me sentia roubada – e desconfiava secretamente que meu pai me amava menos. Meus irmãos até hoje rolam de rir desta surra ritual de cinta nos encontros familiares – e eu não tenho nada para contar. Lembro de um dia ter me enchido de coragem e perguntado ao meu pai: “Por que eu nunca apanhei de cinta?”. Não lembro a resposta.

Quando chegou a minha vez de ser mãe, busquei as referências na minha própria educação. Minha opinião era a de que eu tinha apanhado pouco e deveria ter sido mais reprimida sob certos aspectos. Não havia a menor chance de que eu, como mãe, fosse permitir algumas petulâncias que meus pais engoliram de mim como filha. Fui uma mãe bem mais dura do que meus pais foram comigo, o que implicou em um número maior de palmadas e de regras. E, claro, me esforcei para desenvolver aquele olhar que emana da autoridade – e não do autoritarismo – no qual meu pai era mestre. Não fiquei traumatizada pelas palmadas que recebi dos meus pais – nem minha filha ficou traumatizada com as dadas por mim. Ainda ontem telefonei para ela, hoje com 28 anos, para me certificar. Não, ela definitivamente não ficou traumatizada.

Li num artigo de jornal a seguinte afirmação de uma psiquiatra: “Crianças que sofrem palmadas são induzidas a pensar que podem dar palmadas nos outros, que a violência é a maneira de resolver as coisas, e se tornam agressivas na escola”. Me parece um pensamento bastante inconsistente. Nunca achei que pudesse dar palmadas em ninguém nem permiti que outros que não fossem meus pais me dessem palmadas. Era muito claro que esta prerrogativa, a de me dar palmadas para me educar, era só dos meus pais. E que eu só as teria quando fosse mãe. Assim como era muito claro para mim e para meus irmãos que a violência não era a forma de solucionar conflitos. Possivelmente porque nós – e a maioria das crianças ao nosso redor – não decodificavam a palmada como violência. Nunca conheci nenhuma criança que saísse dando tapas nos outros porque recebia palmadas em casa. Vi, sim, especialmente em trabalhos de reportagem, crianças espancadas que se tornaram muito agressivas ou totalmente alheias. Garanto: é de outra ordem.

Outro argumento que aparece neste debate é o da desproporção. Não há comparação entre a força de um adulto e a capacidade de se defender de uma criança, entre o tamanho da mão que aplica a palmada e a mão de quem a recebe. É verdade. E não vejo como poderia ser diferente. Não compreendo como poderia existir um processo educativo que não parta de uma desproporção. Se eu tenho condições de ser mãe é justamente porque assumo a desproporção. Para me tornar mãe ou pai, eu preciso antes acreditar que tenho o que transmitir ao meu filho e tenho meios para educar. É minha esta responsabilidade. E dá um trabalho enorme – muito maior do que deixar para lá e não colocar limites, como se vê cada vez mais por aí.

É a consciência da desproporção que faz com que eu controle minha força se for dar uma palmada. E controle minha “força” também para não impor as minhas respostas e, assim, impedir meu filho de fazer sua própria busca pelo conhecimento. Com a minha orientação, sim, mas não com os meus dogmas. Ser pai ou mãe é se responsabilizar pelo seu poder, em todos os sentidos. Quando a gente se responsabiliza fica muito mais difícil se exceder em qualquer aspecto – seja físico ou psicológico.

Mas o aspecto que mais me preocupa se este projeto de lei for aprovado é o de reforçar aquele que me parece ser – este sim – um dos grandes problemas atuais: a dificuldade dos pais de educar seus filhos. Não me parece que o problema da maioria das crianças hoje seja a palmada que eventualmente recebe dos pais. Mas o fato de não receber limites de seus pais, de não ser efetivamente educada.

Boa parte dos pais me parece completamente perdida. As crianças gritam, as crianças querem porque querem, as crianças interrompem às vezes aos berros quando o pai conversa com outra pessoa, as crianças não cumprimentam ninguém nem na chegada nem na saída, fazem exigências como se o mundo e todos os adultos dentro dele existissem para servi-las, testam e testam para ver se alguém vai fazê-las parar, botar algum limite, e nada. Basta sair na rua para testemunhar cenas lamentáveis em restaurantes, shoppings, cinemas e lugares públicos protagonizadas por pequenos déspotas diante de pais infantilizados. Pais esvaziados, inseguros sobre sua capacidade de educar o filho que botaram no mundo e que parecem duvidar que têm algo a ensinar àquelas crianças. Pais sem nenhuma autoridade.

O que uma parte destes pais faz quando se torna insuportável viver com estes filhos? Leva para um especialista que diagnostica a criança como a mais nova portadora da epidemia da moda: a tal da TDAH – Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. E dá-lhe medicamento cada vez mais cedo. Como boa parte das crianças ao redor já foi diagnosticada com a “doença” esta, ninguém acha suspeito. Imagino que, quando parte desta geração crescer, o rito de passagem vai ser apenas mudar o medicamento: aos 18 anos ganha um carro e sua primeira caixa de antidepressivos.

Pobres pais? Não! Pobres crianças que visivelmente estão cada vez mais infelizes porque ninguém nasce sabendo sobre seus limites e todo o resto. Um filho precisa que os pais sejam pais. Diante deste quadro, o que o Estado faz? Infantiliza e esvazia de autoridade ainda mais estes pais ao se meter na vida privada e dizer como eles devem educar. Ou que eles não podem tocar nos seus filhos para educar sob pena de serem tratados como criminosos ou párias. Ou, talvez o pior: tratados como maus pais.

Na escola, os professores já choram diante de crianças e adolescentes que desafiam sua combalida autoridade dizendo: “Você não pode me mandar fazer nada porque quem paga o seu salário é o meu pai”. A tradução é: portanto, eu mando em você e, portanto, não há educação possível a partir desta premissa. Se a lei da palmada for aprovada, é possível imaginar as variações dentro de casa: “Se me bater eu te denuncio para o conselho tutelar”.

Não estou fazendo aqui nesta coluna uma apologia da palmada. Há pais que educam sem bater – e conheço alguns. Há outros que educam dando palmadas quando outras tentativas se esgotam. Os que não batem não são melhores pais porque não batem – e vice-versa. Cada relação é uma relação. Cada filho é diferente do outro. E com cada filho seremos pais diferentes, porque cada um deles nos trará demandas diferentes. Quem tem mais de um filho sabe bem disso.

Não tenho dúvida de que os autores e apoiadores da lei são bem intencionados. Mas acho que se equivocaram e erraram o alvo. Uma lei como esta desautoriza os pais – e o faz numa época em que eles mesmos, por diversas razões, já desautorizam a si mesmos. Ao exercer sua autoridade de forma abusiva, o Estado esvazia de autoridade e infantiliza seus cidadãos. Isto é grave. Embora eu tenha poucos motivos para confiar neste Congresso que aí está, espero que vozes com bom senso se ergam para impedir este projeto de virar lei. Se virar, como todas as leis sem lastro na realidade, não será cumprida. E isto desmoraliza a democracia.

(Publicado na Revista Época em 26/07/2010)

A costureira

Acho que nunca a vi ereta. Por isso sempre pensei que era uma espécie de anã. Só muito mais tarde me dei conta de que ela havia sido moldada pela sua máquina de costura. Tanto tempo sobre ela que não sabia andar sem estar sobre ela. Não sabia ser sem ser sobre ela. Mas quando percebi já era muito tarde.

Lembro que minha mãe me levava até sua janela quando precisava fazer barras, remendar camisas, e depois espichar barras, voltar a remendar camisas e uma vez, só uma, para um vestido novo. Chamava-a na porta e ela vinha lá de dentro em forma de arco. Antes dela um barulho abafado de seus chinelos evoluindo com dificuldade pelo chão. E depois ela, com uma espécie de touca antiquada na cabeça e um vestido disforme de florzinhas lilases. Tinha dois olhos pequenos e sempre bondosos. Quase não falava. Só o inescapável. E o fazia com uma voz que pedia desculpas. Depois voltava no dia marcado e toda a cena se repetia ao contrário. Parecia ter vergonha de cobrar, e eu tinha vergonha da minha mãe que fazia sempre a mesma cara de que o valor era alto demais. E eu sabia que não era. Ela enfiava o dinheiro num bolso invisível na frente do vestido e esboçava seu tímido sorriso sem dentes. Nela, os dentes apareceriam como uma nudez demasiada.

As cenas, a de ida e a de volta, se repetiam em quatro ou cinco ocasiões por ano, toda vez que minha mãe tinha de fazer nossas roupas durarem porque em nosso mundo só havia roupas para vestir, nunca para exibir, e elas tinham de durar. E era ela que fazia esse milagre de nos tornar apresentáveis, mesmo com uma barra de outra cor. Ela fazia com que as descombinações parecessem propositais e nos salvava do ridículo. Fazia isso por boa parte da cidade que passava pela sua janela, em troca de uma cara feia pelos poucos trocados que cobrava, que todos nós sabíamos que eram poucos porque sua casa ainda era mais pobre que a nossa e às vezes parecia que o vestido dançava em seu corpo na magreza sem jeito dos que passam fome um pouco por dia.

Numa manhã eu havia brigado na escola, sim, porque eu brincava com os meninos e brigava como um deles. E numa dessas refregas no recreio, rolando pela areia da pracinha, eu rasguei meu casaco de frio bem no meio das costas. Furiosa não sei se comigo ou porque não tinha dinheiro para outro casaco, minha mãe me arrastou na mesma hora até a casa dela. E quando voltamos lá no dia seguinte porque eu só tinha aquele casaco e todos os dias de inverno eram frios naquele tempo, ela havia passado a noite em claro para que eu pudesse ter casaco para a escola e não precisasse inventar uma doença inexistente para esconder em casa o que me faltava. Naquele dia, com a geada enfiando sua mão gelada pelas nossas pernas, quando minha mãe chamou na janela ela veio de lá com uma rapidez que não era dela. E com um brilho no olho que não era seu apresentou o casaco com um arco-íris de retalhos de diferentes texturas nas costas. Eu nunca tinha visto nada tão lindo em toda a minha vida. Mas minha mãe fechou a cara e disse que a filha era pobre, mas não era palhaça. E ela pediu desculpas com sua voz sem voz e seus olhos voltaram para dentro. Eu espichei os meus dois olhos até o seu rosto na tentativa de tocá-la e mostrar a ela que era a coisa mais linda que eu já tinha visto, mas ela já tinha entrado para dentro de si mesma. E não pude mais achar a porta para ela. No dia seguinte, quando voltamos lá ela entregou o casaco com uma listra da mesma cor nas costas e não quis cobrar mesmo que tivesse passado duas noites em vigília. Minha mãe ainda saiu batendo os pés na geada com seu descontentamento, embora eu adivinhasse ou queria adivinhar que tinha ali um pouco de tristeza por não ter entendido o que entendia.

Daquele dia em diante eu nunca mais quis acompanhar minha mãe até a casa dela. No ano seguinte se instalou na cidade a primeira loja de confecções populares e com o tempo passamos a ter roupas que não eram só para vestir, mas também para exibir. E naquela fartura de tecidos ordinários em cortes sem capricho eu ficava imaginando como ela se virava agora que nosso arcaico pedaço de terceiro mundo finalmente entrava no universo volátil das mercadorias. Sem nunca, porém, ter a coragem de me debruçar sobre sua janela.

Os anos passaram levando com eles uma sucessão de invernos e geadas e um dia, quando eu já vivia na capital, minha mãe me telefonou com uma voz excitada. Denunciada pelo cheiro da morte, a costureira fora encontrada sobre sua máquina de costura. Tinha costurado com linha e agulha a própria boca. E suas mãos sobre ela. Desde então, penso que grito tão perigoso era aquele que ela temia escapar de sua garganta. Quando uma vizinha caridosa foi preparar o corpo para o velório, arrancou a touca da costureira e descobriu embaixo dela uma selvagem cabeleira vermelha que lhe ia até os pés.

Desconhece-te a ti mesmo!

Desconhecer-se pode ser o início de uma busca estimulante

Uma amiga me contava na semana passada que iniciou uma nova aventura psicanalítica. Depois de anos, ela encerrou uma análise que lhe permitiu desatar muitos nós de sua vida e iniciou uma nova jornada no divã de outro psicanalista. Não foi uma troca de profissionais. Apenas o reconhecimento de que uma boa história havia se encerrado e o desejo de começar outra. O novo psicanalista perguntou a ela: “O que você espera desta análise? ”. Minha amiga respondeu: “Eu quero me desconhecer”.

Achei uma excelente resposta. Ou uma ótima pergunta sobre si mesma. Na mesma semana, conversando com outro amigo, de uma área bem diferente, ele me contava que não consegue mais se sentir estimulado pelo que durante as primeiras décadas da sua vida profissional lhe deu grande prazer e reconhecimento. Está mais interessado nos meandros de um novo esporte que começou a praticar do que nos temas que sempre o interessaram. Só que toda a sua vida adulta e sua estabilidade financeira foram construídas sobre aquilo que hoje não lhe dá mais tesão. Ou, seria mais exato dizer, não lhe dá mais tesão fazer do jeito que fazia antes e que deu certo no passado, mas que hoje não faz mais sentido para ele.

A mesma questão tem aparecido em conversas com outros amigos. Por alguma razão – e não exatamente a faixa etária, porque a primeira amiga tem 30 e poucos e o segundo mais de 50 –, estou cercada de pessoas que vivem um momento de vazio. Eu incluída. Quem me acompanha sabe que em março deixei meu emprego na revista Época, mantendo apenas esta coluna, e comecei uma vida sem carteira assinada nem estabilidade e com dinheiro apenas para o básico. Naquele momento, quando escrevi sobre a minha escolha num texto chamado “Escrivaninha Xerife”, eu dizia que meu desejo era me reinventar. Hoje, passados quase cinco meses dessa mudança, descubro que, para me reinventar é preciso antes me desconhecer.

Foi uma surpresa para mim – como, por outros caminhos, está sendo para meus amigos tão diferentes do início deste texto. Hoje, não basta saber quem eu sou. É preciso também saber quem eu não sou. Para, então, saber quem eu posso ser. Vou tentar explicar melhor. Para nos estabelecermos na vida adulta precisamos construir um personagem. Não com a total liberdade com que muitos sonham e alguns se iludem que têm, mas com algum grau de livre arbítrio. Embora variem as nuances do que as pessoas pensam sobre cada um de nós, há algo que é geral, que emana desse personagem que criamos. E, aqui, quando me refiro à personagem, não há nenhuma relação com falsidade ou simulação. É tão verdadeiro quanto qualquer coisa pode ser verdadeira.

Na medida em que esse personagem se torna convincente, no sentido de ser bem-sucedido na sua relação com as várias esferas sociais, ele nos dá possibilidades e também nos tira possibilidades. Ele nos dá estabilidade, segurança, certezas, reconhecimento. Mas ele contém em si uma armadilha. Do tipo: “Bom, então é isso o que eu sou e esta é a minha vida, daqui em diante é só navegar”. Este tipo de conclusão pode se tornar uma prisão se você achar que esse personagem é tudo o que você é. Ou que tudo que havia para ser decidido na sua vida já está dado. Neste caso, a natureza fluida que nos habita vira cimento. E a busca, que é a matéria que move nossa existência, termina.

O que descubro – e que tem se mostrado um caminho bem mais difícil do que eu imaginava que seria – é a necessidade de se manter, pelo menos em parte, estrangeiro à própria vida. Manter algo de si no vazio, uma parte de nós capaz de olhar para o todo como terra desconhecida, aberta para o espanto de nós em nós. Ou seja: é preciso ser capaz de olhar para nós mesmos com estranhamento para que possamos enxergar possibilidades que um olhar viciado tornaria invisíveis. Este é o processo de se desconhecer como uma forma mais profunda de se conhecer. Para novamente se desconhecer e assim por diante. Exige muita coragem. Porque dá um medo danado.

Ao mudar minha vida para me reapropriar do meu tempo, um dos meus planos era me dar ao luxo de ficar olhando para o teto, por exemplo, sem fazer nada que pudesse ser considerado útil ou produtivo. Queria ser um pouco perdulária com o meu tempo num sentido novo. Em vez disso, tratei de ocupar todas as minhas horas com tarefas minhas, mas tarefas. Em vez de acordar às 6h30, como fazia quando tinha emprego e salário, passei a acordar às 4h30. Eu tinha tanto medo do vazio que resolvi preenchê-lo todo, a ponto de quase não dormir. Descobri que precisava abrir mão da covardia de não querer ter tempo para tudo o que não sei o que é. Demorei meses, me angustiei bastante, mas consegui me lambuzar de uma liberdade nova.

Descobri também que deveria fechar algumas portas – e não mais abri-las. Passei boa parte dos últimos anos abrindo portas e experimentando o que havia do outro lado. Isso me levou a experiências ricas e me ajudou a construir o momento em que pude começar a fechar portas. Descobri então que tão importante quanto abrir é ter a coragem de fechar. E fechar é muito mais difícil. Quando quase tudo está em aberto, é preciso ser muito seletivo com relação às portas. O que eu quero, o que eu não quero. O que é importante, o que não é importante. O que é bom para mim, o que não é. As pessoas com quem vale a pena compartilhar projetos, as que não quero manter perto de mim. O que me leva a algum lugar novo ou a alguma forma nova de ver o mesmo lugar, o que me traz de volta ao mesmo ponto.

Recebi convites de todos os tipos, alguns bem inusitados. Para ganhar muito mais dinheiro do que jamais ganhei, para não ganhar nada, para fazer o que nunca fiz, para fazer o que sempre fiz. Tive de parar e pensar que naquele momento eu tinha de recusar tudo porque ainda que algumas propostas fossem quase irrecusáveis, eu precisava ficar no vazio e me desconhecer para ser capaz de fazer escolhas mais verdadeiras. Eu precisava me desintoxicar de mim para poder ser mais eu mesma.

Descobri ainda que é preciso resistir também às certezas que as pessoas têm sobre nós. Há gente de todo o tipo. E alguns ficam muito desorientados se a gente muda, se qualquer coisa ao redor deles muda. Querem desesperadamente que voltemos a ser um clichê seguro. Quando você abre mão do seu clichê, o clichê que mora em alguns começa a coçar. Desinteressei-me de alguns amigos que queriam porque queriam que eu dissesse que sentia falta da vida que tinha, muito parecida com a deles. Percebi que torciam menos secretamente do que gostariam para que meu projeto desse errado, para então continuar vivendo em paz com certezas sobre as quais, ao que parece, têm muitas dúvidas. Do mesmo modo que guardei apenas um olhar de Mona Lisa para aqueles que adoram teorias conspiratórias e queriam saber “de verdade” o que tinha acontecido, porque lidam melhor com fofocas velhas do que com fatos novos. Fechar portas é também virar as costas para quem exige que sejamos sempre os mesmos para sua própria comodidade.

Mas, mais difícil do que resistir à necessidade de certezas de quem está ao nosso redor, é resistir à nossa própria necessidade de certezas – abrir mão de nossos clichês pessoais. Me descobri agarrada a todos os meus como um daqueles náufragos de histórias em quadrinhos boiando sobre destroços em mar aberto. Nos primeiros tempos, ficava muito desorientada com uma pergunta recorrente que me faziam: “Mas você deixou de ser repórter?”. Não! Eu não deixei de ser repórter, gosto cada vez mais de ser repórter. Mas ser repórter não é tudo o que eu sou. Boa parte das pessoas entende muito bem quando você não dá certo no que faz e tenta ser ou fazer outras coisas. Mas acha inadmissível que você dê certo e também tente ser ou fazer outras coisas. Não negando a sua história, pelo contrário. Mas a usando para criar outros eus possíveis.

Descobrir as outras possibilidades do que sou é, neste momento, minha maior tarefa. Para chegar a isso preciso me perder de mim, me desconhecer. Neste sentido, hoje minha reportagem mais difícil é a busca destes outros personagens que moram no universo sem limites definidos do que sou. E que são tão verdadeiros quanto a repórter que sou. E que me tornarão melhor repórter do que pude ser antes de construir a chance de viver a verdade dessa busca.

Um momento de vida que é apenas um momento que também deve ser superado para que outros possam vir, já que não me interessa sair de um escaninho para cair em outro. Nada impede que amanhã eu descubra que ter um emprego e um formato de vida mais estável é o melhor para mim – ou que não, eu continue achando mais divertido viver com mais autonomia e menos dinheiro. Ou que invente um jeito novo que serve para mim, mas pode não servir para mais ninguém. O contrato que assinei comigo mesma é o de seguir coerente com a necessidade de me buscar.

Quando minha amiga repetiu para mim o que disse ao analista – “Estou aqui porque quero me desconhecer” –, ela me ajudou a compreender melhor o meu momento. E eu pude dizer a meu outro amigo que ele precisa ter a coragem de se manter sem saber quem é por um tempo, para poder então descobrir o que quer fazer com seu desejo. Conto esta experiência aqui porque acredito que outras pessoas possam estar vivendo algo parecido, por caminhos e circunstâncias próprias – e acho importante refletirmos juntos. Manter parte de nós no vazio gera muito angústia, mas, se tivermos a coragem de aguentar um pouco, nos leva a lugares desconhecidos e excitantes de nós mesmos. Não é nem que as perguntas mudem, mas é o jeito de fazê-las que precisa ser novo para que possamos alcançar respostas mais estimulantes. Tenho para mim que as grandes perguntas de todos nós são sempre as mesmas, o que muda é como buscamos as respostas.

Acho que se desconhecer é sacudir o cimento que há em nós, colocado por nossas mãos e também pelas mãos ávidas dos outros. E isso vale para tudo, até para coisas muito triviais. Como aquelas frases: “Fulano não come peixe” ou “Sicrano detesta sair de casa”. Se o fulano acredita que porque não comia peixe aos dez anos não vai comer aos 30, nunca vai saber o gosto de um tambaqui. Assim como nenhuma pequena ou grande aventura acontecerá ao sicrano que não se arrisca além da porta da rua porque está esmagado no sofá da sala pelo dogma que criou para si e que os outros ajudaram a cimentar. Porque é só o começo. Destes pequenos dogmas se passa para outras verdades absolutas que dizem respeito a todas as áreas da vida. “Fulano é assim”, portanto fulano é imutável e, portanto, fulano está morto, mas não sabe.

Meu conselho é fugir de frases do gênero: “Eu sou um tipo de pessoa que…” ou “Deixa eu te contar que tipo de pessoa eu sou…”. Suspeito que quem diz essas coisas não sabe nem o caminho de casa. Acho que as buscas mais interessantes começam com frases como: “Não sei mais quem eu sou” ou “Não tenho ideia de quem eu sou”. Ótimo, podemos dizer que começamos a nos conhecer. Claro que só para nos perdermos logo adiante. Afinal, para que mais serve a vida?

(Publicado na Revista Época em 19/07/2010)

Cidadão paulistano

João Barbarengo tem uma boa imagem de si mesmo. Ótima, até.

Casado com uma mulher inteligente e descolada que trabalha com moda, um casal de filhos que estuda numa escola alternativa da Vila Madalena, um emprego criativo numa agência de publicidade. Ele enfrenta o trânsito de São Paulo a bordo de um 4X4 porque é um cara que gosta de aventuras. Está na pauliceia desvairada mas acredita que poderia estar avançando por uma picada nos confins da Amazônia. Sua mulher tem o mesmo espírito aventureiro e um 4X4 de outra marca já que ela sempre preferiu a tecnologia coreana. João Barbarengo reclama do trânsito e da poluição do escapamento dos carros e caminhões velhos que circulam pelas ruas com o frentista que lhe enche o tanque e de quem se despede com uma gorjeta e um tapinha cúmplice nas costas. Ele gosta de manter relações amistosas com todas as classes porque detesta gente metida a besta e até troca umas ideias de vez em quando com um poeta da periferia para quem conta que quando tinha vinte anos tomou daime no Acre numa viagem muito louca com dinheiro e com documento. Quando vai ao supermercado João Barbarengo compra produtos orgânicos sem precisar se preocupar com o fato de que são muito mais caros. Acha que se todo mundo só comprasse produtos orgânicos, o mundo seria um lugar melhor mas os pobres ainda precisam ser educados para o consumo consciente. Carrega tudo numa sacola ecológica comprada em sua última viagem ao East Side novaiorquino. No seu apartamento em Higienópolis desenhado por um arquiteto dos anos 50 ele é um dos mais assíduos colaboradores da reciclagem de lixo. Enche os latões com embalagens plásticas e latas de alumínio importadas todo dia. Não exatamente ele porque quem separa e armazena é Francisca Catuleia da Rocha, uma maranhense que trabalha em sua casa e faz uma espetacular moqueca de camarão mas se ele ou a mulher não ficam de olho é capaz de botar uma garrafa no lixo comum só para não ter de lavá-la. A cada eleição João Barbarengo tenta votar nos candidatos que defendem a causa do meio ambiente porque se preocupa com o planeta e tem medo do aquecimento global. Aos domingos, único dia em que almoçam todos juntos, se esforça para explicar aos filhos que é muito importante não desperdiçar água, afinal não custa nada fechar a torneira enquanto escovam os dentes ou desligar a TV dos respectivos quartos quando estão nos respectivos computadores ainda que ele já tenha perdido a esperança de fazê-los assistir televisão na mesma peça. Depois, João Barbarengo relaxa num banho de banheira. Dentro da água tépida, entre sais franceses, enquanto o motor da hidromassagem ronca como um angorá satisfeito ele se satisfaz em pensar que é um homem bom, um cidadão consciente, um pai responsável. Só é um tigre no mercado, pensa com um tapinha na barriga de academia. Quando sai do banho, muito mais leve, convida a todos para gastar um pouco no shopping Cidade Jardim porque as crianças estão entediadas. João Barbarengo gosta de pensar que assim movimenta a economia, gastando seu dinheiro ganho honestamente como diretor de publicidade. É um árduo defensor da ética na profissão e se orgulha de nunca ter feito comercial de cigarro e em todo o resto tem certeza de que não enganou ninguém porque ele é da elite que faz da publicidade não uma venda vulgar mas arte contemporânea. Depois, ele insiste, quer que assistam juntos a um documentário sobre o massacre no Sudão, afinal faz questão que seus filhos não sejam como Paris Hilton, que quando criança achava que todo mundo morava em mansões. Para que aceitem a proposta promete que na saída passam na loja da Apple onde elas podem escolher um acessório mas com limite de cem dólares porque ele não é daqueles pais que não sabem se impor ou que deixam os filhos tomar conta. Sim, João Barbarengo é um homem bom.

E agora está de férias. Como pessoa bacana que é, pai de uma família bacana, marido de uma mulher bacana, escolheu um lugar bacana para seu merecido descanso. Ele e seus amigos acham ridículo esse povo que vai fazer viagens de 10 países em 20 dias. Também acham ridículo quem vai para o litoral lotado ou resorts da moda. João Barbarengo escolheu uma praia deserta, de pescadores, onde aluga todo ano uma casa envidraçada com vista paradisíaca de um conhecido que comprou o terreno quase de graça de um ex-pescador que agora mora na Zona Leste. Passa duas semanas de pés descalços sem parafernália eletrônica nem mesmo um Ipad. Gosta de dizer que para onde vai não pega celular nem precisa trancar a porta só para ver nos olhos dos colegas a inveja que sentem de seu desprendimento. Sim, nem Lula nem Obama, ele é o cara. Livre como aquele anúncio genial de sua adolescência, a liberdade é uma calça Lee desbotada. Acaba de ter um insight e nem precisa mais daquele psicanalista que dá entrevista no Jô Soares. Interrompe o insight para distribuir gratuitamente alguns bons conselhos aos pescadores, gente boa mas tão gananciosa, para que nunca permitam asfaltar a estrada que leva até o vilarejo ou comecem a abrir pousadas que vão enfarofar o lugar e acabar com um dos poucos refúgios da natureza que ainda resistem no país. Deixem tudo como está para que João Barbarengo e uns poucos amigos sigam sendo os únicos a ter acesso a um paraíso que só eles sabem valorizar. Ele pensa que assim está dando mais uma contribuição inestimável à preservação do meio ambiente, mudando o mundo à sua pequena maneira.

João Barbarengo é um bom cidadão paulistano. Ótimo, até.

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