Ateísmo

As noites na cidade pequena eram quentes. Desde que ganhou alguma consciência, com ela veio a sensação de que a cidade tinha paredes. Às vezes, como naquela noite, sentia que as paredes da cidade apertavam o cerco em torno de seu corpo de criança. E o calor aumentava, arrancando toda a água de sua pele. Tornava-se um planeta feito só de continentes.

Quando o sol baixava, derrubando toda a esperança, ela sentia o pânico apertar sua garganta. O pânico era um bicho que se enrolava em suas cordas vocais até que não havia como gritar. Sentia um medo de quase morte e se aconchegava no sofá da sala, com os olhos arregalados. À espreita. Tentando adivinhar quando o bicho das noites quentes a atacaria.

Devagar o ruído dos habitantes da casa ia se aquietando. E ela sabia que chegaria o tempo das horas eternas, quando estaria sozinha vigiando seu medo. A mãe a mandaria para o quarto. E ela agarraria mais uma vez o volume cinco das maravilhas do mundo e tentaria de novo e de novo apagar seu inferno interior com as neves do Himalaia.

Havia as noites piores. Nela, as baratas ignoravam as receitas de veneno caseiro sobre rodelas de pepino da mãe e penetravam em seu quarto pelas frestas. Apavorada, na cama, agarrada ao livro e estrangulada pelo bicho, ela ouvia o silêncio das baratas.

Se dormisse, elas entrariam pela sua boca e fariam um ninho em seu estômago. Um pouco a cada noite ela viraria, de dentro para fora, uma barata devotada a devorar os restos de seu antigo corpo. E ninguém perceberia porque ao amanhecer deixavam-se ofuscar pela luz do sol.

Ela podia sentir nos ossos as noites em que o buraco do mundo se aprofundava. E esta era uma delas. Se nada fizesse não ancoraria ela mesma na manhã seguinte.

Quando fechou a porta do quarto, ajoelhou-se no chão, cravando com força os joelhos no piso porque a avó garantia que deus ouvia quando havia dor. Apertou os olhos com força. Rezou com o fervor das beatas viúvas que via na igreja com véus negros sobre a cabeça.

Implorou a Deus que tirasse as baratas do quarto. Que a mantivesse a salvo. Só por aquela noite já bastava.

Ouviu o barulho das asas antes de abrir os olhos. Vrrrrrrrrrrrrrrr. Quis acreditar que Deus ouvira suas preces e lhe mandara um anjo exterminador. Não pôde mais. Abriu os olhos e a maior barata que já vira passou voando rente à sua cabeça. Sentiu o vento nos cabelos.

Daquele segundo em diante soube que estava só na máquina do mundo.

A mãe órfã

Lutos mal elaborados também matam

Nesta semana, publiquei uma reportagem na revista impressa chamada “O filho possível”. Eu e o fotógrafo Marcelo Min contamos a história – e as histórias – de uma UTI neonatal que também cuida dos pais. A Divisão de Neonatologia do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism), da Universidade de Campinas (Unicamp), é talvez o único berçário do Brasil que pratica os cuidados paliativos. Como toda unidade neonatal, trabalha com algo ao mesmo tempo terrível e delicado: a morte de quem acabou de nascer. O fim abrupto de uma vida que existia no imenso desejo dos pais – e que não teve tempo de se realizar.

Na maioria das unidades neonatais do país, como na maioria dos hospitais gerais, os profissionais acreditam que seu trabalho termina quando não há como curar um paciente. Na neonatologia do Caism, a equipe de saúde acredita que cuidar da saúde é bem mais do que curar. Muitas vezes não dá para curar. Mas sempre dá para cuidar. E cuidar também salva.

Salva a vida breve do bebê que se vai, ao empreender todos os esforços para que não sinta dor, ao suspender qualquer tratamento invasivo e desnecessário, ao permitir que fique no colo da mãe, do pai, da avó. E salva a vida dos que ficam, ao compreender a dimensão dessa perda para cada família. Ao cuidar com delicadeza dessa morte – e do luto.

Essa prática de saúde entra oficialmente na agenda da medicina brasileira nesta semana. O novo Código de Ética Médica inclui os cuidados paliativos entre as normas que devem ser seguidas pelos médicos no exercício da profissão. É o início de um caminho de retorno a uma medicina que enxerga uma pessoa – e não uma doença. Capaz de reconhecer limites e suspender procedimentos invasivos quando eles só servem para causar dor aos pacientes ou lhes roubar a consciência. Os profissionais perdem onipotência – e ganham humanidade.

Os cuidados paliativos surgiram na Inglaterra nos anos 60. No Brasil, é um movimento cada vez mais forte, levado adiante por um punhado de médicos, psicólogos e enfermeiros idealistas, mas ainda distante do cotidiano da maioria dos hospitais. As equipes que trabalham nessa perspectiva cuidam, em geral, de pacientes adultos com câncer e outras doenças com escassas chances de cura.

Em unidades neonatais, é uma raridade. Se é difícil enfrentar a morte no fim da vida, o fim da vida logo no início é dor condenada ao silêncio. A forma que a sociedade encontra para mascarar seu horror é minimizar a importância dessa perda, dizendo às mães variações de frases como estas: “Não se preocupe, logo você vai ter outro filho” ou “Ainda bem que não deu tempo de se apegar, assim você supera rápido”.

O que pouca gente parece compreender é que a vida do bebê, para os pais, não começou no seu nascimento. Iniciou muito antes, quando aquele casal sonhou com um filho, concebeu sua existência. E nele depositou suas melhores esperanças e desejos de continuidade. É uma vida muito mais longa do que horas, dias, semanas, meses. Antes de um bebê existir como indivíduo, para os pais ele já é. E é da forma mais cara para os humanos – como desejo. Quando tudo isso é arrebentado por uma morte precoce, se a família não é bem cuidada, ela se arrebenta inteira.

Para fazer a reportagem, acompanhei famílias nesse processo da doença e da perda. Escutei também mães e pais depois de alguns anos dessa tragédia pessoal. Queria compreender esse momento para poder dar aos leitores a dimensão da importância de cuidar bem do luto. E entender a diferença que a prática dos cuidados paliativos pode fazer nesse fim precoce da vida. O que significa para uma família sepultar um bebê e como uma equipe de saúde pode ajudá-la a seguir adiante.

Na reportagem, contei a história de outros. Aqui, conto a minha. Acredito que nós, repórteres, que pedimos aos outros a generosidade de compartilhar suas histórias mais íntimas e dolorosas com o mundo, temos de ter a grandeza de nos expor em nossa própria humanidade doída. É o exercício que faço algumas vezes nesta coluna.

Algumas pessoas acham que me exponho demais. Eu sempre pedi aos outros que se expusessem demais. Não saberia como continuar fazendo este pedido se não fosse capaz de retribuir a generosidade. Não faço pedidos que não possa fazer a mim mesma. Não peço a ninguém algo que eu mesma não possa dar. É como estabeleci meus limites na profissão.

Sou filha de uma família profundamente marcada pelo luto de uma morte precoce. Minha irmã, a terceira filha dos meus pais, depois de dois meninos, morreu aos cinco meses. Sobre esse momento, minha mãe sempre diz. “Eu chamei o pai para vê-la brincando no banho à tarde. À noite ela estava com febre e com manchas pelo corpo. No outro dia, estava morta”.

Acho que hoje, prestes a completar 75 anos, minha mãe ainda não compreende como é possível perder uma filha assim. Ainda mantém no rosto aquela expressão confusa, de alguém que, de repente, teve uma parte de si mesma roubada com uma violência desproporcional. No velório, ela surpreendia a si mesma olhando no relógio para ver se não estava na hora da mamadeira. Só então se dava conta de que era seu bebê que estava no caixão.

Minha irmã esteve neste mundo, de fato, por cinco meses – mas sua morte vive com minha mãe e com todos nós há quase cinco décadas. Eu fui a quarta e última filha. Não conheci minha irmã. Para mim, ela sempre pareceu mais viva do qualquer outra pessoa. Penso, com tudo o que sei hoje, que esta presença tão forte foi causada por um luto insepulto. Minha irmã morreu de meningite meningocócica. Mas o diagnóstico só chegou dez anos depois de sua morte. Até então, os médicos não entendiam o que a havia matado. De repente, tão rápido.

Minha mãe passou anos se perguntando o que havia feito de errado. Hoje, ao conversar com mães que perderam seus bebês, percebo que elas também se perguntaram. E se culparam. Só superaram porque tiveram a sorte de encontrar profissionais conscientes de seu lugar nesse luto. Uma das missões mais importantes de uma boa equipe de saúde é exatamente dar acesso a todos os exames e a toda possibilidade de investigação, para que não paire nenhuma dúvida sobre o diagnóstico. Esclarecer a causa da morte com o maior número de informações qualificadas é fundamental para que a perda possa ser superada. E que culpas infundadas não se instalem como pedras pelo resto da vida.

Em Ijuí, no início dos anos 60, os médicos não tinham nenhuma ideia do que havia acontecido com minha irmã. E a cidade pequena, como a literatura conta tão bem, pode ser o mais cruel dos mundos diante da fragilidade do outro. Logo circularam pela cidade as mais variadas versões sobre o que tinha matado minha irmã. Em uma delas, minha mãe havia deixado leite estragado na mamadeira. Como se não bastasse toda a dor e as perguntas sem respostas, minha mãe era apontada como culpada por alguns. Permaneceu mais de um ano em depressão profunda.

Quando o diagnóstico finalmente chegou, já era tarde para preencher o buraco que se abriu dentro dela. E nós, que sobrevivemos, estávamos acostumados demais a conviver com uma filha para sempre perfeita que, infelizmente, nunca teve a chance de errar. A dor dos irmãos daquele que morre ainda é um capítulo nebuloso na história do luto. Ainda hoje, eles são esquecidos na hora de cuidar da família. Nasci com a missão impossível de apagar a dor da minha mãe, de todos. Logo eu, tão imperfeita. Passei boa parte da vida culpada por fracassar e sobreviver.

Acho que só agora, depois desta reportagem, compreendo minha mãe por inteiro. Ela foi massacrada demais para ter a chance de sepultar minha irmã. Da forma que lhe foi possível, empreendeu seus melhores esforços para mantê-la viva. O que aconteceu com nossa família ainda acontece muito nos dias de hoje, nas pequenas e nas grandes cidades. Acontece sempre que a dimensão dessa perda não é compreendida ou tratada. Sempre que uma equipe de saúde se equivoca – e pensa que seu trabalho acaba quando o bebê morre, apesar de todos os esforços de cura.

Numa visão mais larga da saúde, a função de uma equipe é ajudar essa família a sepultar – também simbolicamente – esse bebê. É importante que essa vida seja não esquecida – mas lembrada como uma história que, apesar de curta, teve bons e maus momentos, como todas as vidas. Lembrada em fotos e recordações como parte da trajetória daquela família. Uma trajetória que segue.

Para isso, é necessário abarcar a dimensão dessa perda. Passei parte da minha vida sem entender como alguém que só tinha vivido cinco meses, que morreu antes de falar uma única palavra, pudesse ser tão importante. Quando, depois de adulta, testemunhei amigas que perderam seus bebês, ainda na gravidez, também não entendia por que sofriam tanto. Afinal, aquela criança nem tinha existido.

Só agora alcanço o tamanho da minha ignorância. A vida de um bebê começa sempre muito antes, na cabeça de cada pai, de cada mãe. E inicia por suas mais caras esperanças. Quando termina, é óbvio que só pode ser avassalador. Se esses pais, essa família, não forem cuidados, perdem partes essenciais de si mesmos – partes sem as quais não conseguem viver por inteiro.

Sempre acreditei que meu pai havia sofrido menos que minha mãe por essa morte. Ele raramente falava no assunto. Minha irmã não parecia tão presente em sua vida, o que me dava enorme alívio. Há dois anos, resolvi registrar a história dos meus pais. Eles me contam a vida, eu gravo. Tenho feito descobertas extraordinárias nesse processo. Uma delas foi a dor do meu pai.

Ele me contou, rosto contraído e voz embargada, que o maior sofrimento de sua vida foi a morte da minha irmã. Fiquei paralisada. Aquele homem, que ficara órfão de pai e mãe antes dos 15 anos, que havia perdido quatro irmãos ainda na infância, me dizia que a maior dor de sua vida foi perder seu bebê.

Só então comecei a compreender. Ao fazer esta reportagem, testemunhei o lugar ambíguo dos homens na morte de um bebê. Há um reconhecimento social de que, por ter gerado, a mulher é, se não a única, a maior sofredora. Muitas vezes seu sofrimento é tão aniquilador que não deixa espaço para a dor do homem, do pai daquele bebê.

O homem, que foi educado para suportar a dor em silêncio, para proteger a mulher, para ser o provedor e o esteio – e ainda hoje estes papéis são mais cimentados do que parece – aceita esse lugar menor no luto. Como dor não se joga para debaixo do tapete impunemente, essa incompreensão mútua costuma gerar muita confusão e conflitos. E às vezes até o fim do casamento.

Acho que meu pai, à sua maneira, deu um lugar para essa morte, para o seu luto. Ele tem uma caixinha de madeira, com chave, bem antiga, onde mantém a salvo pequenas preciosidades de uma vida inteira. Dia desses descobri que lá dentro, junto com as medalhas do colégio, ele guarda a participação de falecimento da minha irmã. Impecavelmente recortada e até hoje em perfeito estado, como tudo que é dele. Minha irmã é lembrança, parte de sua travessia.

Ao terminar esse texto, enviei aos meus pais para que eles me autorizassem a contar uma história que também é minha – mas é deles. Algumas horas depois meu pai me ligou. Profundamente comovido, ele queria me contar um pouco mais. Para que eu pudesse alcançar. “Na noite após o enterro houve um temporal terrível em Ijuí, com raios e trovões”, disse. “Nós queríamos protegê-la e não podíamos. Ela estava lá, sozinha, e não podíamos cuidar dela”. Prestes a completar 80 anos, meu pai ainda sofre com sua impotência diante da morte da filha. Seu bebê enterrado, debaixo da tempestade.

Conto tudo isso aqui porque acredito que, se minha família tivesse tido a chance de ser bem cuidada na sua perda e no seu luto, teríamos sido poupados de muita dor e desencontros. Ao fazer a reportagem, não pude deixar de pensar como nossa vida teria sido diferente se, num rasgo do tempo e do espaço, tivéssemos encontrado a pediatra Jussara Lima e Souza, da neonatologia do Caism, e a equipe dos cuidados paliativos.

Destinos são alterados para melhor quando uma equipe de hospital compreende que saúde é algo bem mais amplo do que tentar curar alguém de vírus, bactérias, tumores e doenças variadas. Infelizmente, a medicina nunca vai conseguir curar tudo. Médicos honestos sabem que se cura muito pouco ainda. Infelizmente, homens e mulheres, a cada ano, vão continuar perdendo bebês. Se, depois de todas as tentativas, não houver como salvá-los, é preciso compreender que, pelo menos, é possível salvar aquela família. Cuidando dela.

Conto esta história na esperança que, agora e no futuro, homens e mulheres possam ter a chance de ser compreendidos na enormidade da sua perda e fazer um luto que torne possível seguir a vida. Transformar a dor em algo ativo é parte da superação da perda. De certo modo, é o que tento fazer aqui. Escrevo para transformar. E sou transformada pelo que escrevo. Pego meu luto por tantos desencontros e o transformo em história contada, na esperança de dar a contribuição que me é possível para o início de uma mudança mais profunda do nosso olhar sobre a morte. E sobre a vida.

(Publicado na Revista Época em 12/04/2010)

O filho possível

Acompanhamos uma UTI neonatal que trabalha com cuidados paliativos. Nela, a medicina faz diferença mesmo quando não há cura

AMOR DE MÃE  Cristiane Nascimento e seu filho Lucas, na UTI da Divisão de Neonatologia do Caism, na Unicamp. Ela sussurra palavras de amor, e o coração dele acelera (Fotos: Marcelo Min)

AMOR DE MÃE: Cristiane Nascimento e seu filho Lucas, na UTI da Divisão de Neonatologia do Caism, na Unicamp. Ela sussurra palavras de amor, e o coração dele acelera (Fotos: Marcelo Min)

A fotografia acima mostra Cristiane Nascimento minutos depois de saber que não há cura para seu filho. Lucas tem câncer. O tumor no cérebro nasceu com ele. Na cirurgia, não foi possível arrancá-lo por completo. No dia desta foto, 22 de janeiro, Lucas completava 2 meses. As imagens eternizam sua história. Não a história com que Cristiane sonhou. Mas a história possível.

Ao dar à luz, mulheres como ela precisam se desprender do filho sonhado para alcançar o filho real. Com a ajuda da equipe de cuidados paliativos, Cristiane aprende a valorizar cada detalhe da vida de seu bebê, não importa o tamanho que ela tenha. Como neste momento, ao aconchegar o filho no colo e sussurrar que o ama. O aparelho da UTI mostra que, mesmo em coma, ao ouvir a voz da mãe o coração do filho bate mais rápido.

Lucas está numa UTI diferente. A Divisão de Neonatologia do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism), da Universidade de Campinas (Unicamp), pratica os cuidados paliativos no tratamento de bebês malformados ou com doenças graves. Todos os esforços são empreendidos para curar. Quando não é possível, a equipe suspende tratamentos invasivos e dolorosos – e amplia os cuidados com a família e com o luto. Cada bebê tem uma história. E é preciso cuidar bem dela.

Nesta semana, entra em vigor no Brasil o novo Código de Ética Médica. Pela primeira vez, a prática dos cuidados paliativos foi incluída entre as normas que os médicos devem seguir na profissão. Se é novidade no tratamento de doentes terminais adultos, nas unidades neonatais a prática dos cuidados paliativos é uma raridade ainda maior. A experiência da Unicamp tem derrubado preconceitos – e alterado destinos.

A cada ano, 45 mil brasileiras perdem seus filhos antes que eles completem 365 dias de vida. A essas mulheres, os profissionais de saúde costumam afirmar, com a força das verdades absolutas: “Você é jovem, vai ter outro filho”. Ou: “Você nem teve tempo de se apegar, vai superar”. Parentes e amigos repetem a toda hora essas frases. Omitem- se de escutar a dor. E calam o luto de quem precisa vivê-lo para seguir adiante.

A morte nos assombra a todos. Mas a perda de um bebê é o avesso da lógica. Ninguém espera que quem acabou de nascer possa morrer. Um filho não é apenas uma combinação única dos genes dos pais, mas a soma de seus melhores desejos de continuidade. Isso faz com que essa morte seja a menos aceita – e a mais silenciada.

Até 2001, a neonatologia do Caism era mais uma das unidades do país a acreditar que a função de profissionais de saúde limitava-se a curar doenças. Centro de referência para 42 municípios paulistas, ele acolhe os casos mais graves de malformação fetal e bebês prematuros. A morte, portanto, não é uma estrangeira em seus corredores. Mas só por descuido da recepcionista os médicos encontravam-se com os pais após a perda dos filhos. Era no setor de óbito que a família recebia a notícia, da boca de desconhecidos.

Quem mudou essa prática e transformou a unidade em algo novo no Brasil foi um bebê. Ele parava de respirar dezenas de vezes por dia. A cada uma, era preciso reanimá-lo. A equipe passou a conviver com a iminência de sua morte – e com o medo do plantonista de não conseguir revivê-lo. Não havia cura. Mas ninguém queria que ele morresse em seus braços.

Como cuidar desse bebê? Deveriam parar de reanimá-lo ou continuar prolongando seu sofrimento? A quem caberia decidir? E como conversar com os pais? As perguntas infiltraram-se no cotidiano da enfermaria. Tanto que exigiram respostas que ninguém ali tinha, apesar dos muitos diplomas e das décadas de experiência.

Sem poder conviver com tantos pontos de interrogação, a equipe buscou ajuda. Convidou a psicóloga Elisa Perina para dar uma palestra sobre a morte. Elisa trabalha há quase 30 anos no Centro Infantil Boldrini, em Campinas, uma referência no tratamento de crianças e adolescentes com câncer. É uma das precursoras da prática dos cuidados paliativos no Brasil.

Com Elisa, a equipe descobriu que a questão era mais difícil do que poderiam supor. Os profissionais não poderiam lidar com a morte de um bebê se antes não lidassem com a perspectiva da própria morte. “Antes de abrir espaço externo, é preciso abrir o interno”, diz Elisa. Foi um longo caminho até a equipe estar preparada para cuidar de bebês como Lucas para além da perspectiva da cura.

A conversa de Cristiane

Cristiane torce as mãos, nervosa. Na sala a esperam duas pediatras, psicóloga e assistente social. Estão ali para explicar a Cristiane que o câncer de Lucas não tem cura – e que a família pode contar com elas para garantir conforto. Não apenas emocional, mas prático.

A primeira preocupação da equipe é iluminar as dúvidas da mãe, para que a dor não seja agravada por incertezas de diagnóstico. É importante que a família esteja segura de que todos os recursos da medicina foram usados na tentativa de curar o bebê. A certeza de ter feito tudo o que era possível é essencial para a saúde dessa família no presente – e no futuro.

Cristiane faz muitas perguntas. Todas são respondidas com informação – e com afeto. “Se não tiver jeito de curar, eu e meu marido preferíamos que nosso bebê não fizesse outras cirurgias”, diz ela. E engole soluços.

Ela conta que não consegue cuidar de seu filho mais velho. Que tem poupado os familiares das informações mais duras e sente que pode implodir de dor. Que o marido tem vindo pouco ao hospital porque estava desempregado e só tinha conseguido trabalho fazia duas semanas. Que a vida está muito, muito difícil.

A pediatra Jussara de Lima e Souza, coordenadora do grupo, diz: “Você precisa deixar os outros cuidarem de você. Você está cuidando de todo mundo, e eles não sabem quanto você está sofrendo. Sem saber, não podem ajudar. Nós podemos cuidar para que o Lucas não sinta dor, mas não podemos fazer com que sobreviva. O que podemos é ajudar você e sua família a passar por isso”.

A conversa dura duas horas. Cristiane decide levar o filho mais velho ao hospital, para que ele possa conhecer o bebê e entender aonde a mãe vai todos os dias. Até então, o menino pensa que a mãe o abandona para se divertir com um irmão desconhecido. A assistente social coloca-se à disposição para conversar com o patrão do marido e encontrar uma forma de liberá-lo por algumas horas. A mãe pode passar a noite num dos alojamentos quando quiser ficar mais com Lucas. Cristiane é estimulada a pensar sobre tudo o que lhe daria conforto. Médicos, enfermeiras, assistentes sociais e psicóloga podem ser contatados a qualquer momento.

É uma conversa entre uma equipe de saúde e a mãe de um bebê com câncer. É uma conversa entre pessoas dispostas a alcançar a dor do outro. A informação mais importante para Cristiane é que ela não está sozinha. “Você está cuidando do Lucas da melhor maneira possível”, diz a assistente social Elaine Salcedo. “Vocês têm uma história, que vai ficar com você, seja o que for que aconteça.”

Quando a conversa termina, Cristiane decide almoçar. Nos últimos dias, só comia quando passava mal. A equipe mostra a ela que precisa comer para ser capaz de cuidar de Lucas. E que é importante – e não errado – cuidar de si mesma.

Cristiane coloca Lucas no colo. É a foto que abre esta reportagem. Lucas morreu em 15 de março. Esta foto é, para Cristiane, a lembrança de que ele viveu.

Duas histórias de vida

filho possivel 6

DEPOIS DO LUTO: Janaína Bueno de Moraes perdeu suas gêmeas, ambas chamadas Vitória. Ela afirma só ter conseguido superar o luto e seguir em frente pela forma como foi tratada no hospital. Hoje, Janaína é mãe de Gabriel

No Caism, os pais podem ficar o tempo que quiserem com seus bebês, dia e noite. Aprendem a cuidar deles, a ministrar os medicamentos. O toque e a voz são estimulados. Os bebês ouvem, sentem, às vezes melhoram com esse contato tão próximo. “É importante que as mães possam se sentir mães – e não visitas. Os bebês estão doentes, mas não são nossos. São dos pais, da família”, diz Jussara. “Quando têm pouca chance de cura, não há nenhuma razão nem para procedimentos invasivos e dolorosos nem para não permitir que a família fique com eles no colo pelo tempo que quiser. Permitimos que os irmãos visitem, para que possam entender o que está acontecendo e também construir suas lembranças. É uma história de vida, não importa o tamanho que essa vida tenha. Nosso trabalho é cuidar bem dessa história. Da vida.”

Em 2004, Janaína Bueno de Moraes teve duas Vitórias. Perdeu ambas. Hoje, aos 27 anos, ela tem um bebê de 1 ano, Gabriel. “Só consegui seguir adiante por causa do cuidado que tiveram comigo”, diz. “Foi uma experiência muito dolorosa. Ao mesmo tempo, eu me sentia amparada, respeitada, ouvida. Pude cuidar das minhas gêmeas. E ensinar outras mães a cuidar de seus filhos.”

Júlia Vitória e Jaíne Vitória nasceram com 25 semanas de gestação. Janaína já tinha perdido, ainda na gravidez, outros dois bebês. Na cesariana, o médico disse: “A chance de gêmeas nascerem vivas com esse tempo de gestação é de uma em 1 milhão”. A primeira Vitória, com 580 gramas, morreu com 29 dias. A segunda, com 640 gramas, resistiu até os 8 meses.

Janaína viveu as mortes das gêmeas em mundos distintos. Testemunhou as duas formas de tratar a perda de um bebê no sistema de saúde. A primeira Vitória morreu na Unicamp. A segunda permaneceu lá por oito meses, mas morreu seis dias depois de ser transferida para outro hospital de referência. Janaína viveu dois lutos, duas lembranças. Esta é a primeira delas:

– Quando cheguei à UTI, o médico disse que minha filha estava morrendo. Outra médica perguntou se eu queria pegá-la. No meu colo, a Júlia abriu aquele olho pequeno e me olhou. Eu disse que ela fosse em paz, que tudo o que tinha de fazer na vida da mamãe e do papai já tinha feito. Fiquei segurando a mão dela. Depois, desci para um culto. Quando voltei, ela estava morta. Eles puseram roupinha nela, a botaram num bercinho e a deixaram numa sala, para que a gente pudesse se despedir. Parecia que estava dormindo. Precisei contar para a Jaíne que sua irmã tinha morrido, porque ela começou a ter uma parada cardíaca atrás da outra. Eu disse: “Você está sentindo falta de sua irmãzinha, né, fia? Sabe o que é? Lá no céu precisavam de mais uma florzinha. Jesus veio buscar a Júlia porque lá não tinha uma tão bonita. Só deixou você porque, se levasse as duas, a mamãe ficaria muito triste”.

A segunda lembrança de Janaína é de quase oito meses mais tarde:

– A Jaíne foi transferida para um hospital de Ribeirão Preto, mais perto da minha cidade. Ela não enxergava, mas, quando ouvia a minha voz, mexia a mãozinha. Acho que não tinha morrido ainda porque eu não a entregava. Eu falava assim: “Você vai ficar bem, você é a Vitória da mamãe”. Quando chegamos ao outro hospital, não me deixaram cuidar dela. Eu tinha sido treinada para cuidar dela. Então fui explicando os medicamentos para a médica, os procedimentos todos. Mas só me deixavam ficar uma hora com a minha filha. O resto do dia eu passava lá fora, angustiada. Só nos chamaram quando ela estava morrendo. Botei a mão sobre ela e entreguei minha filha a Deus, disse que ela fosse em paz. Quando acabei, uma lágrima rolou do olho dela. Eu disse a meu marido: “Você está vendo, ela estava se segurando aqui por nossa causa”. Então nos mandaram sair. Quinze minutos depois, ela morreu. Quando meu marido foi buscar nossa filha, ela estava no necrotério. Nua, com etiqueta e código de barras. Como se fosse mercadoria. Meu marido tirou a camiseta do corpo e enrolou a filha nela.

Quando foi buscar o atestado de óbito, Janaína exigiu falar com o responsável.

– Para mim, não adianta mais. Mas vocês precisam ter cuidado para lidar com a morte. Minha filha estava nua, no necrotério, com etiqueta e código de barras.

O médico respondeu:

– Calma, mãe, você é jovem, vai ter outro filho.

– Não é essa a questão – disse ela. – A questão é que eu tenho sentimentos. Minha outra filha também morreu. Mas, na Unicamp, puseram roupinha nela, botaram num bercinho. Nós nos despedimos.

– Mas lá é um hospital escola…

– É escola para que vocês possam aprender. Como você acha que vou me lembrar de minhas filhas? Da que morreu lá, eu me lembro dela dormindo, em meu colo. Da que morreu aqui, lembro com uma etiqueta e um código de barras. Como vou viver com essa imagem?

Os pais nascem antes

A cada bebê que nasce, nasce também uma família. Poucos percebem, porém, que homens e mulheres se tornam pais e mães bem antes do nascimento do filho. “É preciso entender o que significa a perda de um bebê para ser capaz de cuidar da família. Aquela criança não viveu apenas aquelas horas, dias ou meses”, diz a psicóloga Elisa. “Para os pais, no momento em que conceberam a possibilidade de um filho, ele passou a existir. Já contém nele a continuidade de um projeto de vida. É uma história mais longa que parece. Quando é rompida por uma morte, a perda é enorme.”

Ao compreender a dimensão dessa perda, o grupo de cuidados paliativos criou um espaço para a despedida. Ali, a família começa a viver seu luto com privacidade. Só depois o corpo segue para o necrotério.

A equipe procura mostrar às mães e aos pais que eles estão construindo uma história com seus bebês. Com momentos de dor e de alegria, como são todas as vidas, curtas ou longas. As mães são estimuladas a prestar atenção também a outras dimensões do cotidiano. Ir ao cinema, jantar com o marido, arrumar o cabelo, passear com os outros filhos. A perda é elaborada para transformar-se naquilo que é: numa história, parte da travessia daquela família.

Aos 34 anos, Luciana Roberto recorda o dia mais feliz de sua vida: “Foi quando eu trouxe o Lucas para casa pela primeira vez”. O menino era fruto de sua quinta gestação. Nas outras quatro, perdera os bebês na gravidez. “Eu queria muito ser mãe”, diz ela. Ao saber que o bebê nasceria com o intestino exposto e que ela entraria em coma no parto, desejou-o mesmo assim. “Pelo menos, eu saberia o que é ser mãe.”

Luciana viveu mais de um ano no hospital. Lucas passou por dez cirurgias. Um dia a equipe fez uma surpresa. Pagou uma enfermeira para que ela pudesse passar o Dia das Mães em casa, em Itu, no Estado de São Paulo. “Era um dia tão ensolarado, eu pude mostrar tudo a ele: ‘Olha, filho, este é o céu. Olha, filho, isto é uma árvore. Olha, filho, estamos chegando a Itu’”, diz ela. “Era a primeira vez que meu filho sentia o sol. Mostrei a ele o bairro onde nasci, a cidade que amo. Minha família nos esperava. Foi muito grande isso para mim.”

Lucas morreu nos braços de Luciana, com 1 ano e 4 meses. Na pequena casa onde vive com a filha de 3 anos, nascida depois do luto, ela guarda sua história com o filho em fotografias. “Olha, aqui fizeram uma festinha para ele no hospital, com bexiga e tudo”, diz. “Ele colocou um cateter, muito difícil de conseguir, que vinha lá dos Estados Unidos. Pôde então tomar nutrição parenteral. Todo mundo comemorou.”

A trajetória narrada por Luciana não é uma vida em suspenso, à espera da cura ou do fim. É um dia de cada vez, uma história em movimento. É importante que a vida de Lucas tenha se transformado em lembranças, guardadas num álbum de fotos, para que sua mãe possa viver no presente.

Conflitos no limite da vida

Não se veem muitos pais entre os berços aquecidos. As mães estão por toda parte. Com as mais variadas justificativas, a maioria dos homens deixa suas mulheres lidar com o cotidiano da UTI. Eles assumem – por pressão social, mas também por vontade própria – o lugar tradicional do homem, ao cuidar da vida prática e da vida pública. Deixam a mulher lidar com a vida privada, não mais no lar, mas no hospital.

Às vezes, a dor da mãe é tão avassaladora que não deixa espaço para o sofrimento do pai. É como se, por ter gerado o filho, a mulher tivesse um lugar maior – e fosse natural que sofresse mais. Aos pais, restaria calar uma dor supostamente menor. As mães procuram ajuda para seus dilemas, a maioria dos pais não. Se o casal consegue conversar sobre suas dificuldades e amparar-se mutuamente, tem mais chance de superar o sofrimento. Mas a doença de um bebê, seguida ou não de morte, às vezes pode levar ao fim do casamento. “Se o casal já estava fragilizado antes da doença e da perda, há um risco grande de separação”, diz a psicóloga Elisa. “Se já não dava conta das dificuldades cotidianas, na hora de uma adversidade tão profunda, o laço pode se desfazer.”

Ao falar de seus sentimentos, algumas mulheres afirmam-se não mais como um ser humano inteiro, com várias dimensões na vida, mas reduzidas a “um útero defeituoso”. “Eu sentia que havia falhado como mulher. Nem conseguia mais transar com meu marido”, contou uma mãe. “Também sentia vergonha de minhas amigas que tinham filhos saudáveis. Me sentia menor.”

Na outra ponta, alguns pais tomaram a iniciativa da separação depois da doença do bebê. Em geral, com a justificativa de ter se apaixonado por outra mulher. Uma que pudesse lhes dar filhos saudáveis. Foi o que fez o marido da mulher citada no parágrafo anterior. Além de assumir uma suposta culpa pela morte do filho, ela achou que, ao deixá-la, o marido teria razão. Afinal, ela não era uma “mulher completa”.

Enquanto algumas mulheres assumem a “responsabilidade” pelos problemas congênitos do bebê ou da gestação, há homens que parecem se eximir de qualquer participação na existência de um bebê que, em vez de alegria, causa dor. Para alguns, gerar um bebê malformado põe a masculinidade em dúvida. A saída óbvia, já que lhes faltam recursos psíquicos para resolver a questão de forma mais sofisticada, é abandonar a mulher que lhes faz lembrar o assunto. E provar, por meio de outra, que são potentes.

Uma das mães descobriu no enterro do filho que, enquanto estava no hospital, o companheiro teve um caso. Outra soube, por meio de um telefonema anônimo, que o marido mantinha uma relação fora do casamento – e que a amante estava grávida. Ela o perdoou. Mais tarde, diria: “Não há nada mais triste que ver seu marido com um filho morto nos braços”.

Não se trata aqui de generalizar. Nem de julgar os homens que traíram ou se separaram depois da doença ou da perda de um bebê. É preciso, apenas, apontar a importância de um espaço para tentar lidar com os conflitos e a dor. Esse é também o papel dos profissionais quando se olha para a saúde de uma forma mais ampla.

Numa conversa entre uma mãe e a equipe, ocorreu um episódio significativo. A mãe contava que o marido queria fazer sexo, e ela não tinha vontade, massacrada pelo cotidiano na UTI. Sentia-se ofendida pelo desejo do marido. Levou a questão até para o pastor de sua igreja. “Como é que pode?”, disse ela à equipe. “Não se preocupa. Não é só seu marido, são todos. Ouvimos muito isso aqui”, afirmou a pediatra. E a assistente social esclareceu: “São só maneiras diferentes de lidar com a dor. Para você e a maioria das mulheres, é preciso estar bem para transar. Para seu marido e a maioria dos homens, é preciso transar para ficar bem”. Era um momento terrível. Quando perceberam, estavam todas, inclusive a mãe, quase chorando. Desta vez, de tanto rir.

A dor do pai

Quando a família perde o bebê, o desafio da equipe de saúde é, ao mesmo tempo, ajudar no luto e garantir acesso aos exames que podem detectar as causas dos problemas. Informação qualificada é a melhor maneira de eliminar culpas imaginárias e de garantir que a próxima gestação, se houver, sofrerá um risco menor de repetição.

O grupo de cuidados paliativos faz uma reunião com os familiares depois de três meses da perda. Nela, os exames são discutidos com os médicos, e as dúvidas são eliminadas. O espaço também é usado para que os pais possam falar sobre suas dificuldades e ser encaminhados para tratamento psicológico ou algum outro tipo de assistência cuja necessidade seja detectada.

O empresário Antonio Bastos, de 46 anos, marcou a equipe pela presença. Sua filha viveu menos de três dias. Nesse tempo tão curto, mas intenso, Antonio foi um ótimo pai. “A dor para o pai é tão grande quanto para a mãe. Ou maior”, diz. “Porque nós, pais, não geramos. Então, me parece que perdemos mais. Minha mulher sentiu nossa filha se mexer dentro dela, mas eu só podia conversar com a barriga.”

Quando a menina morreu, Antonio pegou-a no colo. E a beijou muito. Olhava para o bebezinho com um amor tão profundo que ninguém será capaz de esquecer a cena. “Foi uma alegria poder tocar em minha filha. E uma tristeza saber que ela não vai viver com a gente”, diz ele. De mãos dadas com a mulher e o filho, Antonio rezou em torno do berço da UTI até que, 15 minutos depois, sua filha cessou suavemente de respirar.

Na reunião do luto, três meses depois, Antonio e sua mulher precisavam compreender. “Como o problema era na placenta, minha mulher ficava se perguntando se tinha feito algo errado”, diz ele. “Tirar todas as dúvidas foi muito importante para nós. Por saber que fizemos tudo certo, dá para seguir vivendo. Esquecer, jamais. Superar, sim.”

A fotografia

A foto que encerra esta reportagem foi uma escolha difícil. Ela simboliza um profundo respeito pela morte – e pela vida. O retrato mostra o casal Josiane e Giovani Pereira ao se despedir da filha que acaba de morrer. É um momento triste, mas digno. A cena revela a diferença entre uma UTI neonatal com cuidados paliativos e outra sem. Se fôssemos registrar a prática tradicional, a imagem seria mesmo impublicável: um bebê nu, com uma etiqueta, numa mesa de necrotério.

A fotografia é uma prática cotidiana da neonatologia do Caism. No início, os pais ficam surpresos com a oferta de fotografar seus bebês. Depois, trazem sua própria câmera. “Incentivamos os pais a tirar fotos dos filhos. É uma forma de entender que é uma história. Alguns bebês poderão ver as fotos mais tarde, outros não”, diz a pediatra Jussara Souza. “Quando a história não continua, para os pais é uma lembrança desse filho que teve uma vida curta, mas ainda assim uma vida. Nunca tivemos nenhum pai arrependido de ter tirado uma foto. Só pais que se arrependeram por não ter essa lembrança.”

Quando as mães perdem um filho, costumam dizer: “Deus me tirou um filho”. Jussara responde: “Sim, mas antes de tirar ele deu”. Essa é a função da fotografia como registro. “As pessoas precisam lembrar que tiveram um bebê”, afirma Jussara. “Mesmo que seja por um período curto, elas foram pais e mães, cuidaram do seu filho, fizeram todo o possível. E há uma imagem desse amor.”

A foto de adeus mostra por que a morte deve ser tratada como parte da vida. “A morte de um filho é uma ferida. Ela dói. Se cuidarmos dela, vai virar uma cicatriz. Vai continuar lá, como lembrança do vivido, mas não vai mais doer”, diz Jussara. “Mas, se não tratarmos dela, vai se tornar uma ferida incurável, para sempre aberta. Quando não conseguimos curar o bebê, temos de cuidar da ferida. Não posso ser Deus, como me ensinaram na faculdade de medicina. Mas posso ser humana e cuidar.”

A fotografia é o final de uma história. Não a história sonhada, mas a possível. E o possível nunca é pouco.

RETRATO DE ADEUS  Josiane Pereira despede-se de sua filha Ana Luiza. A menina viveu apenas sete horas. Na sala de luto, na unidade de neonatologia, o marido, Giovani, a ampara e acaricia. É dele a mão que afaga  (Foto:Marcelo Min)

RETRATO DE ADEUS
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Depois de cinco meses de UTI, Luciana levou sua filha prematura para casa

MÃE DE UTI  Durante cinco meses esta foi uma cena corriqueira na enfermaria: Luciana Patrício com as mãos pousadas sobre seu bebê, prematuro e com complicações de saúde. Hoje, ela cuida de Marcela em casa (Foto: Marcelo Min)

MÃE DE UTI: Durante cinco meses esta foi uma cena corriqueira na enfermaria: Luciana Patrício com as mãos pousadas sobre seu bebê, prematuro e com complicações de saúde. Hoje, ela cuida de Marcela em casa (Foto: Marcelo Min)

Quando viu Marcela pela primeira vez, Luciana Patrício, de 35 anos, sentiu medo. “Ela era tão frágil, parecia que não ia aguentar”, diz. Moradores de Sorocaba, ela e o marido alugaram uma quitinete perto do hospital. E Luciana não saiu mais de perto da criança. A qualquer hora do dia, lá estava ela. Sempre com a mão sobre seu bebê. Pareciam carnalmente ligadas, ela e a filha. A mão substituindo o cordão umbilical, rompido de forma abrupta.

Luciana passava os dias na UTI. As noites ficava sozinha. Teve um pesadelo. Nele, um gato entrava e pegava a filha. “Ela é tão pequena.” A certa altura, chegou a pensar que o melhor para Marcela seria morrer. Não suportava a ideia de ter colocado um bebê no mundo para ser espetado por agulhas. Religiosa, entregou a filha a Deus.

Quando Marcela piorou, a equipe de cuidados paliativos conversou com Luciana. “Eu precisava decidir o que fazer se a situação dela se agravasse. Eles queriam saber se eu queria que entubasse, se queria que ela fosse reanimada”, diz. “Foi importante falar sobre isso. Se a situação piorasse, eu não queria que ela sofresse mais. Eu tinha uma ideia diferente dos cuidados paliativos. Achava que não investiriam mais na minha filha. Pelo contrário, continuaram fazendo tudo o que era preciso.”

Marcela começou a melhorar. Luciana passou para a próxima etapa. Dentro da unidade, há um apartamento onde as mães ficam com seus filhos perto de ter alta. Lá, começam a cuidar dos bebês sozinhas, mas, a qualquer aperto, podem pedir ajuda. É uma forma de adquirir segurança para um momento tão desejado, mas difícil. “Foi maravilhoso saber que ela iria para casa, mas também deu muito medo. Ela precisa de muitos cuidados”, diz Lucia-na. “É estranho, mas eu sinto saudade do hospital. Por muito tempo, a equipe foi meu pai, minha mãe, meu marido, meus amigos, minha família, tudo. Se eu não estivesse num lugar assim, teria enlouquecido.”

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A auxiliar de enfermagem tem um pacto com a eternidade: ela captura a vida dos bebês em imagens

Tia Edna acha que os bebês têm uma natureza de arco-íris. Ela havia acabado de sair do trabalho, na Unicamp, quando apareceu um – lindo – no céu. Procurou sua câmera fotográfica. Nada. Havia esquecido no hospital. “Era único. Perdi. Nunca mais vi aquele arco-íris”, diz ela, ainda triste. Os bebês são assim. Únicos. E a cada momento diferentes. Uma mão na boca, uma carinha risonha. Se Tia Edna não se apressa, perde. Por isso, guarda a câmera em seu carrinho de enfermagem. E clica. Eterniza.

Edna Sueli Silva do Nascimento, de 49 anos, começou a fotografar há mais de duas décadas, em 1987, com a câmera da filha. Queria registrar sua história, já que passava mais tempo no hospital que em casa. Ela trabalhava na limpeza, mas adorava aquelas “coisinhas pequenas”. Foi estimulada a terminar o ensino médio e a fazer o curso de técnica em enfermagem. Fez. Há pelo menos uma década, Tia Edna é a encarregada de encontrar as veias quase invisíveis dos bebês e de consumar o impossível: espetá-las com delicadeza. Tia Edna diz às mães para pousar suas mãos sobre os filhos: “A quentura que elas passam acalma o bebê”. E espeta.

Esse é seu trabalho oficial. O outro não é menos importante. Tia Edna transformou a câmera fotográfica num objeto tão corriqueiro quanto uma seringa na neonatologia do Caism, da Unicamp. Por intuição de contadora de histórias, ela começou a fotografar o cotidiano da equipe, dos colegas distraídos às festas natalinas. E, claro, os bebês. Sempre com suas mães, pais, irmãos, para saber quem são. Hoje, a fotografia ocupa um lugar estratégico na promoção de saúde da unidade que trata de bebês graves, muitos prematuros ou com malformação.

Por que a foto é importante? Tia Edna responde: “A mãe quer tanto aquele filho. Mas às vezes há um probleminha. Pela foto, ela tem uma recordação de que foi mãe um dia. Mesmo que ele tenha nascido e morrido logo depois, ela teve o momento dela de ser mãe. Algumas pessoas dizem: ‘Ah, mas quem vai querer um bebê desse jeito?’. Ah, mas ela quer o bebê. Não importa como ele seja, ela quer o bebê. E esse momento é único. Então, eu tiro a foto dela com seu bebê. E ela tem uma lembrança para sempre”.

Num lugar onde tantos morrem tão cedo, Tia Edna captura momentos fugazes e os transforma em eternidade. Muitas vezes, não há como salvar a vida dos bebês. Mas, da forma como lhe é possível, Tia Edna salva sua história.

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A FOTÓGRAFA  Edna Sueli Silva do Nascimento (à dir.) registra a história da unidade em imagens. A foto ao lado é dela. É um exemplo de uma vida contada por pequenos detalhes

A FOTÓGRAFA
Edna Sueli Silva do Nascimento (à dir.) registra a história da unidade em imagens. A foto ao lado é dela. É um exemplo de uma vida contada por pequenos detalhes (Foto de Edna: Marcelo Min)

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