Como eu encontro a Poesia?

Um filme nos dá pistas para buscar uma das grandes respostas da vida

Quando Mija tinha 16 anos, um professor disse a ela que seria poeta. Nós a conhecemos quando ela tem 66. Quem é Mija agora? É uma mulher que ama as flores e parece mais gentil e mais feliz do que sua vida permitiria. É a doméstica de um homem solitário que teve um derrame e que só consegue tomar banho com sua ajuda. É a avó de um neto adolescente que quase não fala com ela e que vai ser acusado, junto com outros cinco garotos, de ter violentado sucessivas vezes uma colega de escola no laboratório de ciências. A menina, a pobre filha de uma camponesa sem marido, suicidou-se mergulhando no rio. Os pais, o diretor da escola e até a imprensa querem sepultar a história bem fundo, manter o corpo submerso com pedras de dinheiro envolto em silêncio. Mas o corpo está lá, na superfície. Quando a vida desta Mija que gosta de flores está neste ponto ela descobre que sofre do Mal de Alzheimer. “Você vai esquecer primeiro os substantivos”, diz a médica. “Mas os substantivos são os mais importantes”, retruca Mija.

Ela se matricula num curso de poesia. Mija, que começa a esquecer – “como é mesmo o nome daquele lugar de onde saem os ônibus?” – enrosca no dedo aquele fio lá de trás, de 50 anos, e decide encontrar as palavras que dão sentido à sua vida. Enquanto os substantivos lhe escapam pelas frestas de um cérebro que a trai, Mija decide buscar as palavras que são suas. Mesmo que para isso tenha de penetrar fundo. Mija percebe que antes de esquecer quem é, ela precisa primeiro saber quem é. E só pode fazer isso pela palavra – na busca da poesia. Não qualquer uma ou a de outro, mas a poesia dela.

O tortuoso percurso desta mulher em busca da poesia que está dentro e fora ao mesmo tempo é um dos filmes mais belos que já vi. Como boa parte dos filmes que perturbam, transformam e nos fazem diferentes ao final da sessão, “Poesia” mal chegou e está quase indo embora dos cinemas, sem grandes arroubos de público. É o que acontece também com “Inverno da Alma”, talvez o melhor e mais surpreendente concorrente ao Oscar. Quando um diretor consegue fazer um filme como “Poesia” e temos o privilégio de assisti-lo em uma sala de cinema, desta vez sem pipoca nem conversas paralelas, tenho a impressão de que algo muda no andar do mundo. Pelo menos no andar do meu mundo muda. É o que a arte faz com a gente. É o que a poesia faz com Mija.

Yoon Jeong-hee, que interpreta Mija, é a grande dama do cinema da Coreia do Sul. Como Fernanda Montenegro é a nossa. Ela não filmava havia 15 anos. Foi convencida a voltar à telona pelo diretor Lee Chang-dong ao ser tomada pelo roteiro escrito para ela. Sua atuação é mais do que esplêndida. E eu ficaria aqui por mais duas linhas desfiando adjetivos, mas como Mija bem disse à médica: são os substantivos que importam.

Como eu encontro a poesia? Era a pergunta que Mija fez a muitos, sempre com uma caderneta na mão para anotar as palavras que tinha esperança de encontrar pelo caminho. Sem saber muito bem de onde viria a poesia, se os versos cairiam maduros na sua cabeça antes de se esborracharem no chão. A sua pergunta é a mesma de todos nós. É, talvez, a grande pergunta. Como encontrar beleza na bestialidade das horas que nos consomem e nos levam à morte e ao esquecimento? Alguns de nós conhecem a pergunta, andam às voltas com ela pelos dias. Outros, apenas intuem. E outros ainda preferem ignorá-la por inércia. Mas as perguntas definidoras da vida bóiam para sempre no leito de nosso rio, como o corpo da menina morta. Querendo ou não, mesmo para quem finge não ver.

Ao percorrermos com Mija a sua trajetória descobrimos que a poesia só existe encarnada na vida. Ao ser confrontada com a sordidez da realidade, ela tenta de todas as maneiras proteger a pureza da poesia. Mas não é possível. Mesmo a troca de olhares entre ela e a mãe da menina morta é carregada de compreensão, mas também de dor. Como é assinalada pela beleza a cena em que o policial joga peteca com Mija em frente à casa dela. Ainda assim, não há como ela esquecer que o policial chegou até ali por causa do crime do neto. E a felicidade de Mija era justamente ver este neto comer. Este neto que por muito tempo era para ela toda a pureza.

O mundo pisoteia as flores de Mija a todo momento, do mesmo modo que faz com cada um de nós. E Mija precisa encarar toda uma travessia para compreender que a poesia só é poesia porque contaminada. Só se torna poesia ao se diferenciar. Mas para se diferenciar precisa antes se enfiar inteira nas tripas do mundo. A poesia é primeiro uma escolha. De Mija e de cada um.

Mija descobre que a poesia que busca – e finalmente encontra – resiste na brutalidade do cotidiano – misturada, infectada e conspurcada, mas ainda assim íntegra à maneira que só a poesia pode ser ao dar sentido a uma vida pela palavra. É aos poucos, bem aos poucos, que Mija percebe que a poesia dela só pode ser achada nas escolhas duras que precisou fazer no momento final.

Sempre me perguntam por que me tornei repórter, e eu sempre dou a mesma resposta: para descobrir o que dá sentido à existência de cada um e para compreender como cada pessoa – em geral com muito pouco – reinventa a sua história. Só depois de assistir a este filme e ser tomada por ele, eu percebi que como contadora de histórias reais o que busco é a poesia – singular, única e intransferível – que cada um arranca dos dias, da máquina de moer carne humana que é a vida, mesmo que às vezes não saiba.

Em uma das tantas cenas lindas do filme, o professor pede a cada aluno para contar o melhor momento da sua vida. São todos adultos, em geral sofridos, e estão lá em busca de sentido. Uma mulher conta que sua memória mais feliz foi ensinar sua avó a cantar antes de morrer. Mija descreve a cena da infância na qual descobriu que era amada pela irmã. Um homem diz que teve uma existência muito dura e sem nenhum episódio feliz. Então ele lembra que por décadas viveu num porão e agora, quando se transferiu para a cidade, alugou um apartamento barato e ficou lá rolando pelo chão. Havia sido, sim, um momento muito feliz.

Acho que esse exercício pode nos ajudar a perceber a poesia que dá sentido à vida dentro de nós.

(Publicado na Revista Época em 14/03/2011)

Anônima fama

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Como eu faço para ser um homem comum? É o que ele se pergunta diante do computador. Ele não dá conta dos emails, não tem nenhuma ideia genial para o twitter, não sabe o que fazer com os amigos do facebook. O celular toca sem parar, os torpedos se sucedem aos minutos. Desconhecidos querem saber o que ele pensa da revolução no mundo árabe ou sobre o antissemitismo de Galliano. Ele não sabe o que pensa. Ele prefere às vezes nem pensar, ele não sabe o que pensa de quase nada. Ele não sabe nem o que pensa da própria vida. Ele não sabe nem se pinta a parede da cozinha de branco ou bege.

Ele não sabe como escapar, o mundo avança sobre ele por frestas virtuais, as pessoas o alcançam quando querem, não há mais portas, ele está acuado. E quando vai dormir o mundo acorda dentro do cérebro dele e ele já não consegue dormir. Porque todas as respostas que não deu e todas as perguntas que sabe que chegarão no dia seguinte falam dentro da sua cabeça. Ele não dorme com esse barulho que acorda também o seu coração que dispara e aí sim que ele não dorme porque pensa que vai enfartar sem ter colocado os emails em dia.

Pelo amor de deus e ele nem acredita em deus que o paraíso não tenha internet nem celular nem câmeras nem nenhum tipo de tecnologia. Que o Clint Eastwood esteja totalmente errado e que ninguém tente lhe contatar no além. Silêncio por favor! Mas não morre. Depois de muitas horas com as unhas cravadas no teto como numa tirinha do Angeli ele dorme e acorda com o computador avisando que o antivírus foi atualizado e ele está seguro.

Todo dia todo dia todo dia o mundo arranca nacos dele com dentes cibernéticos. Ele é só um homem com um passado mais ou menos comum e com um presente mais ou menos comum e com um futuro de incerteza mais ou menos comum. E os analistas todos do mundo e os psicanalistas do mundo e os filósofos do mundo e os nerds do mundo e o dono do bar da esquina comemoram que agora o homem comum pode falar e contar a sua vida e dar o seu depoimento e principalmente a sua opinião porque a internet realizou o lema da revolução francesa. E ele não sabe como contar que suas opiniões são do senso comum ainda que ninguém mais seja comum.

Para para para. Ele não consegue parar. Ele não quer nada disso. Ele só quer ser comum e anônimo e não ter de dar resposta sobre nada para ninguém e não ter de ser engraçado e não ter de ser inteligente e não ter de ser ácido e não ter de ser politicamente incorreto ou correto ou crítico ou progressista. Ele não quer ser seguido no twitter porque nem sabe para onde vai. Ele não quer ter amigos no facebook porque não conhece esses amigos nem conseguiria dar atenção a tanta gente. Ele não quer ter de gravar nem filmar nem fotografar nem denunciar nada. Ele não quer principalmente ter opinião sobre porra nenhuma.

Ele só quer ser o que é, que ele não sabe. E não ter de falar sobre isso.

Mas ele não sabe como parar nem o que fazer se parar. Então ele tuita seu dilema, ganha mais 203 seguidores no twitter e 135 novos amigos no facebook e dá sua opinião engraçadinha sobre Kadafi e brinca com os nomes do Gadafi e segue sua rotina taquicárdica até morrer anônimo e comum e deixar como marca virtualmente nada porque o mundo já tem outros assuntos e outros mortos.

Duas mulheres indomáveis

Aos 102 anos, Aracy e Margarethe encerraram uma vida de cinema

Margarethe Bertel Levy (à esq.) e Aracy Guimarães Rosa

Margarethe Bertel Levy (à esq.) e Aracy Guimarães Rosa

Quando Margarethe morria no hospital, em casa a respiração de Aracy começou a falhar. Como o da amiga, também o seu pulmão ameaçava afogar-se. Maria Margarethe Bertel Levy morreu no dia 21 de fevereiro – e Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa na madrugada de 3 de março. Ambas tinham 102 anos. E uma história espetacular. Aracy, funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo, havia salvado Margarethe de morrer num campo de concentração nazista. Uma brasileira e a outra judia alemã, as duas belíssimas, iniciaram sua amizade ao tornarem-se duas mulheres contra Hitler. E fizeram dela um laço inquebrantável ao viverem no Brasil que para Aracy era a terra natal, para Margarethe a rota de fuga. Quando a morte tentou separá-las, fracassou como todos que antes tentaram obstruir o caminho destas duas. Morreram quase juntas, com diferença de dias. Deixaram como legado uma vida de cinema.

Conheci essas duas mulheres três anos atrás. Quando tinham apenas 99 anos. Aracy Guimarães Rosa, como o sobrenome revela, foi o grande amor do escritor João Guimarães Rosa. Grande Sertão Veredas, talvez a maior obra-prima da literatura brasileira, foi dedicado a ela. “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. Em cartas para Aracy, Rosa revela um furor sensual que ninguém diria ao olhar apenas para seu aprumo de diplomata. Como ao escrever: “Antes e depois, beijar, longamente, a tua boquinha. Essa tua boca sensual e perversamente bonita, expressiva, quente, sabida, sabidíssima, suavíssima, ousada, ávida, requintada, ‘rafinierte’, gulosa, pecadora, especialista, perfumada, gostosa, tão gostosa como você toda inteira, meu anjo de Aracy bonita, muito minha, dona do meu coração”. Para Aracy, o escritor que criou um mundo e reinventou a língua portuguesa era o seu “João Babão”.

Mas Aracy não era apenas – e não que isso fosse pouco – a mulher por quem Rosa se apaixonou e com quem viveu até a sua morte. Aracy foi autora e protagonista de seu próprio romance na vida real. Tornou-se o “Anjo de Hamburgo” – a funcionária do consulado brasileiro que salvou dezenas de judeus do nazismo ao contrariar a política de Getúlio Vargas, enganar o cônsul e dar vistos para o Brasil antes que fossem presos em campos de concentração de onde jamais sairiam vivos. Seu nome está em Jerusalém, no Museu do Holocausto, como “justa entre as nações”, a mesma honraria com que foi reconhecido Oskar Schindler, cuja história foi contada em “A Lista de Schindler”, blockbuster de Steven Spielberg.

Eu a conheci para escrever uma reportagem que se chamou A lista de Aracy. Na matéria conto o que aconteceu com homens e mulheres que puderam tecer uma vida – e gerar uma descendência que, sem Aracy, não existiria. Um deles, Günter Heilborn, deu o nome de Aracy à primeira filha mulher e o nome de sua mãe, Selma, queimada num forno nazista, a uma orquídea de pétalas brancas e amarelas que criou como botânico amador. Há um mundo inteiro que só existiu porque Aracy existiu. E teve a coragem de fazer o certo – contra quase todos.

Ao buscar Aracy, alcancei Margarethe. Estas duas mulheres se encontraram no consulado brasileiro de Hamburgo em 1938. Aracy para salvá-la, Margarethe para ser salva. Em comum tinham a beleza e o fato de não seguirem a cartilha feminina da época. Eram ambas indomáveis. Ninguém podia com elas. Aracy, por exemplo. Era desquitada, no Brasil dos anos 30 (!!!). Fluente em várias línguas, tivera o desplante de, aos 26 anos, pegar o filho de cinco anos pela mão e rumar para a Alemanha para construir uma nova vida.

Sozinha com um menino pequeno, estrangeira num país à beira da insanidade e da guerra, ela teve a ousadia de desafiar a política do seu próprio país e enganar o próprio chefe. Armou uma pequena rede clandestina com arianos contrários à perseguição aos judeus que envolvia até o dono da autoescola onde tinha aprendido a dirigir seu Opel Olympia. Chegou a passar a fronteira com um judeu no porta-malas do carro com placa diplomática. E no meio dessa confusão teve tempo para viver um tórrido romance com Guimarães Rosa, o cônsul-adjunto que havia deixado no Brasil a primeira mulher, duas filhas e uma ainda incipiente estreia literária.

Margarethe tampouco era uma judia comum. Filha de pais ricos e liberais, passou boa parte da infância e da juventude viajando. Falava sete línguas. Seduzira Hugo, seu marido, (ou foi seduzida) na cadeira de dentista. Apaixonaram-se enquanto ele, 16 anos mais velho, cuidava da bela paciente. Com a ajuda de Aracy e de vários clientes arianos, Margarethe e Hugo conseguiram embarcar no navio Cap Ancona e chegar ao Brasil com a fortuna intacta. Não faltaram nem mesmo as jóias de Margarethe. Viveram em São Paulo sem maiores relações com a comunidade judaica. Hugo teve uma sólida clientela formada entre famílias alemãs. E Margarethe seguiu com sua vida cosmopolita.

Depois que Guimarães Rosa morreu, Aracy continuou vivendo no apartamento do casal no Rio. Em 1968, ela escondeu nele o compositor Geraldo Vandré, perseguido pela ditadura militar por causa da canção “Caminhando (Pra não dizer que não falei de flores)”. No prédio, próximo ao Forte de Copacabana, moravam vários oficiais. Enquanto a repressão caçava Vandré, ele compunha no sofá de Aracy. Depois, seu neto, Eduardo Tess Filho, levou Vandré para São Paulo numa Kombi. E de lá para o exílio.

Aos 80 anos, Aracy acabara de retirar dinheiro no banco quando tentaram lhe arrancar a bolsa. Deu tantas bolsadas no ladrão que o deixou estirado na calçada de Nossa Senhora de Copacabana. Daquele dia em diante, porém, a cidade foi assolada por uma guerra que ela não tinha mais idade para combater. E ela acabou resignando-se a morar em São Paulo com o único filho, o advogado Eduardo Tess. Aos poucos, bem devagar, foi perdendo os fios de sua memória.

Depois da morte de Hugo, há cerca de 20 anos, Margarethe ficou só. Enquanto pôde, manteve a independência e dirigiu seu Corcel até os anos 90 pelas ruas de São Paulo. Sem filhos seus para apoiá-la na velhice, foi o de Aracy que a adotou, em mais uma delicadeza dessa história cinematográfica. Margarethe seguiu vivendo em seu próprio apartamento, mas amparada pelo carinho da família Tess, que a chama de “Margarida”.

Quando conheci estas duas mulheres, Aracy parecia não estar mais aqui. Margarethe pouco caminhava, tinha dificuldade para enxergar e quase não ouvia, mas mantinha a mente límpida. E afiada. Foi ela quem me disse: “Entre mim e Aracy foi um golpe de amor. Só que entre duas mulheres”. Perguntei a ela como era na juventude. “Eu era sexy”, disse. E Aracy? “Muito sexy, linda, provocante, um corpo maravilhoso, os moços saltavam.”

Do tanto que tinham em comum, elas só não compartilhavam a fé. Aracy era uma católica fervorosa. Margarethe uma judia sem religião. “Eu não tenho esse apoio (da fé). Nasci judia e vou morrer judia, mas não sei nada de religião”, afirmou. Quase virando um século de vida e ela era o que era, sem concessões.

Aos 99 anos, Margarethe me olhou com olhos que supostamente não me viam e disse: “Pegaram minha mãe em Varsóvia. Puseram minha mãe no forno. Ela queimou”. E acrescentou: “Com o tempo, a gente não esquece”. É uma grande frase, à altura desta mulher única.

Margarethe já não podia mais alcançar Aracy nas visitas que fazia a ela nos derradeiros anos de vida. A amiga parecia não reconhecê-la. Mas o laço invisível que as unia de algum modo seguia lá, intacto. Há tantos anos alheia de tudo e também de si mesma, de algum modo Aracy pressentiu que Margarethe estava partindo.

Pode ser apenas coincidência, afinal elas tinham 102 anos e Aracy completaria 103 no próximo 20 de abril. Mas prefiro acreditar que não. Na madrugada de domingo para segunda (21/2), Margarethe morria e Aracy, que até então estava muito bem, sentiu a respiração falhar. “Tiveram a mesma morte”, me disse Beatriz Tess, a nora de Aracy, que cuidou das duas como se fossem suas próprias mães. “A gente pensava que não, mas de algum modo Aracy sabia”.

Ao contemplar Aracy imóvel em sua morte, um século de história inscrito no corpo envelhecido, me emocionei ao pensar que poucas mulheres podem afirmar terem vivido com tanta intensidade. Com tanta aventura, tanta paixão, tanto risco. Tanta verdade. Por causa de Aracy, Margarethe teve pelo menos mais 70 anos de uma vida que ela soube honrar vivendo com voracidade. Seu testemunho foi decisivo para que Aracy ocupasse seu lugar no Museu do Holocausto. E quando a amiga desligou-se do passado e também do presente, era na memória de Margarethe que ambas viviam.

Conhecendo um pouco a biografia destas duas mulheres extraordinárias, que não se renderam nem aos costumes nem aos preconceitos e nem mesmo a Adolf Hitler, gosto de pensar que elas não se deixaram vencer nem pela morte que as separaria. Posso imaginar Aracy pensando: “O quê? Se Margarethe se vai, eu vou com ela”. E tratou de morrer. Do mesmo jeito. Na hora que quis. Juntas, menos pelos dias que separaram a partida de uma e de outra, mais pela inteireza de uma amizade que redime o mundo.

(Publicado na Revista Época em 07/03/2011)

O tempo escorrido

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

A primeira coisa que me chamou a atenção foram as mãos pousadas na mesa do bar. Não sei como não tinha percebido antes. A pele era fina, e a luz da vela as fazia amareladas. As longas unhas vermelhas da manicure não ofuscavam as primeiras manchas da idade. E as veias saltadas de verde. Eu sabia que me pertenciam, eram minhas as mãos daquela velha. Mas era uma informação racional. Naquele instante as estranhei. Não são minhas. Quem roubou as minhas mãos e deixou estas no lugar? Levantei e derrubei a bolsa da cadeira, fazendo um barulho que chamou a atenção dos outros para mim. E as mãos foram comigo, percebi quando as torci pela vergonha de me tornar o centro das atenções.

Deixei-as ali, sobre o colo, embaixo da mesa, onde nem mesmo eu pudesse vê-las. E senti pena das minhas mãos que a vida levou. Um fio vagaroso, mas ininterrupto, escorregou dos meus olhos, e eu me desesperei por causa do rímel que abria na minha face um leito negro de rio.

Então eu o vi. O homem do piano entrava no palco. Eu havia vivido com aquele homem há muito, muito tempo. Quando minhas mãos eram brancas e marcadas apenas pelas minhas sardas. E as unhas roídas. Ele estava lá o homem do piano, com uma barriga nova e a cabeça desescondida pelos cabelos que a vida tinha levado junto com as minhas mãos. Mas as mãos do piano eram as mesmas que no passado percorreram meu corpo com timidez e nenhuma técnica. Os dedos que me amaram agora percorriam o teclado com técnica e métrica. E amor. Não mais meu.

Percebi naquele instante que a velha que eu sou amava o jovem que ele já não é com um amor tão pungente. A vida é assim. Impossível.

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