O alho-elefante

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ele despontou em casa eufórico vindo do supermercado. Sim, ele ama supermercados e ama mais ainda descobrir novidades no supermercado. Acho que o supermercado, para um homem, cumpre o papel das guerras no passado. Naquele campo de batalha, entre tantas marcas para escolher nas prateleiras, tantas pesquisas de preço a fazer, tantas pessoas conduzindo perigosamente seus carrinhos pelos corredores estreitos, um homem se sente um guerreiro. Mas divago. O que interessa é que ele interrompe a minha leitura no sofá azul para sacudir uma coisa quase do tamanho de uma maçã, só que branca, bem no meu nariz. O que é isso?, eu pergunto, aterrorizada.  “Um alho-elefante”, ele responde, orgulhoso.

Dou uma cafungada cautelosa. Adoro alho. Sou uma comedora compulsiva de alho. Mas detesto cortá-lo. Foi ele também quem aprendeu uma técnica infalível para tirar a casca do alho num programa de culinária na TV. É um marido sempre aberto para a eterna novidade do mundo: o meu.

O alho-elefante, ou seja lá o que for aquela coisa, é enorme. Por exemplo. Eu costumo usar cinco dentes de alho para temperar o feijão. Já com o alho-elefante, basta um dentão. Mas eu sou desconfiada. É chinês, eu digo. De uns tempos para cá fui acometida pela paranoia do meidinchina. Tudo é chinês, de fato. Mas eu não sei como lidar com isso. Para mim, este é o dilema da pós-modernidade.

Desenvolvi uma fobia desde que vi chineses amontoados num contêiner no meio do deserto do Saara quando por lá passava com um cara que puxava um riquixá (outra história, outra história…). Eles eram trabalhadores na construção de estradas na Mauritânia e em outros países da África, mas pareciam escravos. Desde então, não sei como lidar com o fato de que tudo é da China. Neste último inverno comprei cobertores e edredons baratíssimos — da China. Mas toda vez que me cubro com eles, minha alegria de estar enrolada no frio fazendo vzzzzzzzzzz é contaminada pela lembrança da origem. Fiquei paranoica: acho que meus cobertores têm chumbo, mercúrio ou, no mínimo, trabalho escravo. Tudo o que vem da China — ou seja, tudo — eu acho que está contaminado por chumbo, mercúrio e trabalho escravo.

Afasta de mim esse alho-elefante, eu digo, com um safanão. Eu não vou botar no meu feijão essa coisa transgênica feita na China. Ele suspira longamente. Tem uma paciência… “Mas não tem nada aqui dizendo que é da China.” Pior. Estão escondendo. Eles sabem que a gente não quer nada chinês. Lembra das lojinhas lá de Roma? Em Roma era assim. Na frente das lojinhas de bugigangas turísticas, havia um carcamano gritando (claro): “Não é chinês! Não é chinês!”. Só por isso eu comprei um terço de João Paulo II. Eu!

Por fim, ele me convence a pelo menos experimentar. Pego o troço como se fosse um fígado de gente. A coisa não tem cheiro. Onde já se viu um alho sem cheiro? Ele me desfere um olhar pidão lá da ponta da mesa. Por amor, só por amor, boto a coisa no meu feijão. Profano o meu feijão! Um dentão inteiro. E, como eu previa, estraga o meu feijão. Não por algum gosto suspeito, mas porque não tem gosto algum. “Chinês 171!!!”, eu grito pela casa. E ele correndo atrás de mim.

No meio da cozinha, chegamos ao embate final. Eu bufo. Ele espuma. Entre nós o alho-elefante. “Não é que não tem gosto, é só que é mais suave”, diz ele, sem muita convicção. Ora, quem quer um alho suave? Piiiiiiiiiii, faço a buzina do Sílvio Santos. Ou era do Chacrinha?

Você está com bafo? Ele sopra na minha cara. Nenhum bafinho. Nem mesmo uma brisa nefasta. Você acha que dá para respeitar um alho que não deixa bafo?, espeto, precisa como um arqueiro galês.

Meu argumento é irrefutável. E a vitória, acachapante. O alho-elefante é despachado triunfalmente para o lixo tóxico.

E perigoso.

A amnésia dos 40

E o que ela pode nos lembrar

Em uma noite, a inglesa Naomi Jacobs foi dormir com 32 anos. Na manhã seguinte, acordou com 15. Naomi tinha perdido 17 anos de memória em um caso raríssimo de amnésia. Quando despertou, pronta para encontrar as amigas e paquerar os meninos na escola, descobriu que tudo havia mudado. Horrorizou-se com o fato de ainda morar em Manchester, ter se tornado psicóloga e ser a mãe solteira de um filho de 11 anos que não reconhecia. Não tinha familiaridade com celular nem internet, não sabia que o mundo mudara depois do 11 de setembro. Acordou pensando estar no século XX e deparou-se com o século XXI. Despertou pensando que era jovem e tinha todas as possibilidades diante dela. E descobriu que a juventude tinha passado. Em suas palavras:

– Era como se eu tivesse dormido em 1992, como uma garota atrevida e autoconfiante de 15 anos, e acordado como uma mãe solteira de 32 anos. Quando acordei, olhei no espelho e levei o maior susto quando vi uma mulher com rugas me encarando. Não foi engraçado como Michael J. Fox em “De volta para o Futuro”. Eu havia adormecido num mundo de infinitas possibilidades e acordado num pesadelo.

Naomi acordou com uma memória de 15 anos em um corpo e numa vida de 32 no ano de 2008. Mas só agora contou sua história à imprensa britânica. Ela já recuperou a maior parte das lembranças e está escrevendo um livro sobre sua extraordinária – e aterradora – experiência.

Sua história lembra uma tirinha antológica do cartunista Laerte, publicada na Folha de S. Paulo. Nela, uma adolescente entra na tenda de uma cigana para saber do seu futuro. No último quadrinho, a jovem tinha se transformado em uma velha. Este, afinal, é o futuro de todos nós – pelo menos dos mais sortudos entre nós, daqueles não tiverem a vida interrompida por bala perdida, acidente ou doença. E não é necessário nenhuma bola de cristal para saber. Apenas que, para viver, preferimos nos esquecer desta que é uma das poucas certezas com que se pode contar na vida.

Conversando com amigos sobre a extraordinária história de Naomi Jacobs, percebo que o pesadelo é recorrente. Em geral, acho que esse despertar, que ela antecipou com violenta literalidade, acontece por volta dos 40 anos. É quando compreendemos que a juventude se foi. E o que é a juventude? É o tempo das possibilidades. Quando a máquina do mundo está aberta em todo o seu esplendor. E o horror que se oculta nas engrenagens é minimizado pela nossa potência. Aos 15 ou aos 20 anos, tanto a morte quanto a velhice pertencem à vida do outro. Ser jovem é ser imortal. E é tão bom ser imortal. Não faço o tipo saudosista. Mas, se me perguntarem do que tenho saudades dos meus 20 anos, era disso: da ilusão da imortalidade.

Aos 30, começamos a perceber alguns sinais da passagem do tempo. Mas boa parte de nós está ocupada tendo filhos ou lutando para se estabelecer na tal da carreira ou em algum outro lugar simbólico. Acho que a imagem da família doriana, mesmo que ridicularizada aqui e ali, ainda é muito forte. Mas este é um tema para outra coluna.

É nos 40 que a consciência da mortalidade nos assalta. A morte nos chega pelo avesso, ao descobrirmos que já não somos jovens. Um rápido cálculo nos mostra que estamos na meia-idade, isto se acreditarmos que vamos superar a média da expectativa de vida da população do país. Mas não é um meio da vida qualquer, já que a melhor metade, pelo menos para a beleza e a saúde do corpo, já passou. As primeiras dores começam a aparecer, assim como os problemas com colesterol e outras más notícias que os exames de laboratório nos dão. Nosso rosto começa a ser transformado pelas rugas, nossos cabelos já têm mechas brancas e o corpo ganhou quilos que não pedimos. Se exageramos na bebida numa festa, o dia seguinte e talvez até mesmo a semana seguinte estarão perdidos para a ressaca. Mas isso não é nada perto da consciência de que não há mais tempo para ser a primeira-bailarina de algum corpo de baile nem se tornar algum cérebro das ciências modelo exportação.

A juventude se foi aos 40. E parte de nós fica perplexo com essa descoberta anunciada desde sempre, mas que, por sermos jovens, era fácil negar. Testemunho nem uma nem duas, mas várias pessoas perguntando-se, perplexas, sobre o que fizeram entre os 20 e os 40. Ou como não perceberam o tempo passar. Como Naomi Jacobs, parecem ter se esquecido da parte da vida que as deixou ali. E essa “amnésia” – quem é este que ocupa meu corpo ou de quem é este corpo que se diz meu – torna-se, como disse a inglesa, “um pesadelo”. Vejam o que Naomi Jacobs diz:

– Aos 15 anos, eu pensei que teria conquistado metade do planeta quando chegasse aos 30. Foi um choque enorme descobrir que eu era apenas uma mãe comum, dirigindo um velho Fiat Brava.

No caso dela, com sua estranha amnésia literal, é bem fácil compreender o terror de acordar pensando que tem 15 anos e se descobrir com 32 e uma vida construída da qual é preciso dar conta. No caso de muitos de nós, quarentões, o pesadelo é mais sutil e vai se desvelando aos poucos. Mas, seja para Naomi ou para nós, só há um jeito de seguir vivendo: lembrar.

Não deixo ninguém me impingir a balela do “espírito jovem”. Simplesmente porque não quero ter espírito jovem nenhum. Penso que a grande conquista da idade é exatamente o “espírito velho”. E a grande perda é a do “corpo jovem”. Não só pela beleza da juventude, mas porque quanto mais o corpo envelhece, mais perto ele está da morte, e eu adoro viver. Mas espírito jovem, tenha dó. Deu um trabalho danado aprender tudo o que sei até agora, para isso escorreguei um monte de vezes, magoei umas tantas pessoas, fui arrogante e insensível em alguns momentos, passei do medo que paralisa para aquele que move, me libertei de várias neuroses e de outras tantas idealizações e tive de ralar muito para me tornar um ser humano melhor. Assim, deixem meu espírito velho em paz, já que não podem me devolver o corpinho.

Com isso quero dizer que o grande ganho de envelhecer é… envelhecer. É, portanto, a trajetória. Por isso, não há maior roubada do que esquecer o percurso, como fez Naomi, e como fazem muitos de nós, com a pergunta: “Como foi que eu cheguei até aqui? De repente, 40?”. É legítima a pergunta. E ela pode ser muito interessante se não nos paralisar, se for o começo de uma busca por resgatar a travessia. Porque, para seguir em frente, é preciso se apaziguar com o que ficou para trás, mesmo que a gente pense que poderia ter feito mais e melhor.

Para viver não há roteiro nem manual de instruções, estamos cansados de saber. Mesmo que nos bombardeiem de todos os lados e por todos os meios, 24 horas por dia, na tentativa de nos impor um jeito “certo” de estar no mundo, viver é viver. Ou seja, uma parte de escolha, outra de incontrolável. É com as nossas escolhas, mesmo que elas nos pareçam aquém das nossas expectativas, que precisamos ficar em paz. Vejo gente sofrendo porque caiu no conto da família doriana e agora se vê às voltas com a prestação ad eternum do apartamento, com a ex-mulher ou o ex-marido e com filhos que não parecem tão felizes assim. Do lado avesso, vejo gente se lamentando porque não comprou o apartamento com financiamento de 25 anos nem teve o casal de filhos nem deu aquele upgrade na tal da carreira porque ocupou seu tempo com outras aventuras.

Nossas escolhas sempre podem nos parecer insuficientes, porque nossa grande dificuldade é com o luto. E para cada escolha há uma perda. Se fui por aqui e não por ali, perdi tudo o que iria acontecer por ali, mas ganhei o que aconteceu por aqui. E vice-versa. Mas, numa sociedade que vende a falácia do gozo imperativo e absoluto, lidar com as perdas é um tormento. Aos 40, porém, é inadiável a compreensão de que não dá para ter tudo. Escolher é ganhar e perder, ao mesmo tempo. Ou, sendo mais precisa, talvez ganhar, com certeza perder. Dá medo, mas é assim que a gente anda.

Já fiz o exercício Peggy Sue – lembram do filme do Coppola, em que Kathleen Turner volta aos anos de escola depois de um estranho desmaio, com tudo o que sabe na meia-idade? Pois é. Descobri que, fora não cometer um ou outro namoro, no essencial teria de repetir todos os meus supostos erros, porque foram eles que me trouxeram até aqui. Até aqui para tentar outras vidas e me reinventar sempre que sentir necessidade, mas com a compreensão de que a mulher que virá conterá todas as outras que vieram antes. Hoje sou capaz de perceber que, entre os 15 e os 20 anos, fiz coisas incríveis. Menos por ser corajosa, mais por ser irresponsável. Aos 45, eu sigo tentando fazer coisas incríveis – incríveis para mim, claro, não necessariamente para os outros. Umas dão mais certo que outras. E agora não sou irresponsável, o que sou é corajosa.

Portanto, se você está tentado a sofrer de amnésia para não ter de acolher seu percurso, melhor não. Vale mais a pena se lembrar de cada detalhe, assumir suas escolhas pregressas e decidir o que vai fazer daqui para frente, com tudo o que é agora. A maravilha de ter 40, 40 e poucos ou muitos – e possivelmente vou estar dizendo isso aos 60 – é que sempre dá para a gente se reinventar. Dá até para virar bailarina, só por prazer, não por carreira. Ou estudar algo que sempre quis, sem maiores pretensões do que a delícia de aprender. Ou dar uma virada mais radical na vida, usando tudo o que descobriu chegando até aqui.

Foi mais ou menos isso o que a inglesa Naomi Jacobs fez, depois de ter a amnésia mais estranha da história. Recuperou as lembranças e decidiu realizar com elas um sonho de infância: escrever um livro sobre sua experiência. Nas palavras dela:

– Embora tenha sido traumático, eu estou realmente grata. Pude reavaliar minha vida e retomar o sonho de infância de me tornar escritora.

Atenção, porque é aí que está o ponto. Ela só poderá realizar o sonho da infância porque tem uma experiência para contar em livro. Precisou viver, com todas as perdas inerentes à vida – e no caso dela um enorme choque traumático –, para ter o que contar e realizar o sonho da infância.

Porque é isso que acontece por volta dos 40 e, no caso dela, aos 32: não é que perdemos a imortalidade, o que perdemos é apenas a ilusão da imortalidade. O que sempre tivemos, em qualquer idade, é uma vida: limitada, imperfeita, mortal. Mas extraordinária desde que olhemos para ela e para nós mesmos com generosidade e com a coragem de buscarmos o que é singular em nós. Ainda que contra o mundo inteiro. E, acredite, é mais fácil ter coragem com “espírito velho”.

(Publicado na Revista Época em 01/08/2011)

Foi assim que aconteceu?

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