Devemos ter medo de Dilma Dinamite?

As mulheres que a primeira presidente prefere não escutar

Antonia Melo é uma mulher forte, reta. O Brasil não sabe, porque ela vive bem longe do poder central, mas todos nós temos uma dívida histórica com Antonia que há décadas luta pelos direitos humanos e pelo desenvolvimento sustentável em uma das regiões mais conflagradas da Amazônia. Hoje, Antonia é uma das principais vozes contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte – a maior e mais controversa obra do PAC. É neste ponto que a história de Antonia Melo cruza com a de Dilma Rousseff, que mesmo antes de ser presidente era chamada por Lula de “mãe do PAC”.

Em 2004, as lideranças da região do Xingu, na Amazônia, foram surpreendidas pela informação de que os boatos eram verdadeiros: apesar do compromisso assumido no programa do candidato Lula e contra todas as promessas de campanha, o projeto de Belo Monte estava na mesa de Dilma Rousseff, ministra de Minas e Energia. O deputado federal Zé Geraldo (PT-PA) convidou então um grupo de lideranças para uma audiência com a ministra, em Brasília, onde poderiam expor suas preocupações. Lula havia sido eleito com o apoio maciço do movimento social do Xingu e, neste momento, era fácil acreditar que seriam bem recebidos. E, principalmente, escutados.

Antonia Melo preferia declinar do convite porque, naquele período, estava em curso o julgamento do caso dos meninos emasculados de Altamira, no Pará. E ela havia dedicado mais de uma década da sua vida à luta para que os assassinos fossem descobertos e punidos. Mas a insistência foi grande, e Antonia viajou a Brasília para compor o grupo de lideranças que se encontraria com a ministra. O que aconteceu ali eu escutei da sua boca, recentemente, quando estava na sua casa, em Altamira, para entrevistá-la. Os olhos de Antonia se encheram de lágrimas e sua voz embargou. Fiquei pensando no que poderia causar tanta dor àquela mulher que enfrentava grileiros de peito aberto, já havia sido ameaçada de morte e perdera vários companheiros assassinados por pistoleiros. Só depois de ouvir o relato compreendi que, para alguém com a dignidade de Antonia Melo, o sentimento de ser traída poderia ser devastador. Foi isso que ela me contou, enquanto um dos seus netos pequenos dormia no quarto.

– Quando chegamos à audiência, a Dilma demorou um pouco para aparecer. Aí veio, com um cara do lado e outro do outro, como se fosse uma rainha cercada por seu séquito. Nós estávamos ali porque, se era desejo do governo estudar esse projeto, queríamos ter certeza de que seria um estudo eficiente, já que sabíamos que todos os estudos feitos até então eram uma grande mentira, sem respeito pelos povos da floresta nem conhecimento do funcionamento da região. Então, já que o governo queria estudar a viabilidade de Belo Monte, que o fizesse com a seriedade necessária. A Dilma chegou e se sentou na cabeceira da mesa. O Zé Geraldo nos apresentou e eu tomei a palavra. Eu disse: “Olha, senhora ministra, se este estudo vai mesmo sair, queremos poder ter a confiança de que será feito com seriedade”. Assim que eu terminei essa frase, a Dilma deu um murro na mesa. Um murro, mesmo. E disse: “Belo Monte vai sair”. Levantou-se e foi embora.

Quando Antonia Melo terminou seu relato, compreendi que sua emoção se devia à lembrança da humilhação sofrida e à descoberta do autoritarismo do governo que ela tinha apoiado. Mesmo assim, Antonia só se desfiliaria do PT cinco anos e muitas decepções depois, em 2009.

Lembrei-me deste episódio ao ler a reportagem da revista americana Newsweek, da semana passada, que tem Dilma Rousseff na capa, fato amplamente comemorado como um triunfo feminino. Na chamada de capa, o título é: “Dilma Dinamite: Onde as mulheres estão vencendo”. Dentro, o perfil da presidente brasileira tem o seguinte título: “Não mexa com Dilma”. Ao ver Dilma Rousseff discorrendo na ONU, em Nova York, sobre as vantagens da ascensão das mulheres ao poder, pensei imediatamente nas mulheres que a presidente não escuta no Brasil. Entre elas, as mulheres do Xingu.

Sobre Dilma Rousseff, a editora-chefe da Newsweek, Tina Brown, disse à coluna de Monica Bergamo, na Folha de S. Paulo. “Dilma, e não Lula, é hoje o político alfa do Brasil”. Como mulher, esse papo de “alfa” me dá um pouco de sono. É tão masculino, não no sentido dos homens interessantes que estão surgindo nesta época, mas no sentido John Wayne dos trópicos. Na cultura colaborativa que está nascendo, nada menos moderno do que achar inovador uma mulher alfa. Quando as empresas e também os governos têm o desafio de se horizontalizar, valorizar os aspectos autoritários de uma liderança, seja ela um homem ou uma mulher, é manter o debate em marcha a ré.

Reconheço o valor de Dilma Rousseff ser a primeira mulher na presidência do Brasil e a primeira mulher a abrir a Assembleia Geral das Nações Unidas como líder de uma nação. Mas este fato só ganha densidade se o discurso abandonar os velhos chavões sobre o feminino – e a prática se afastar do autoritarismo no país que essa mulher governa. O que se passou foi o contrário disso. As partes interessantes do discurso de Dilma – como puxar as orelhas das nações que geraram a mais recente crise econômica global e a defesa do estado palestino – nada tem a ver, pelo menos diretamente, com o fato de Dilma ser mulher.

Já quando a presidente se refere ao protagonismo feminino, desde a campanha o discurso é uma coleção de clichês distanciados da realidade. Por exemplo. “Na língua portuguesa, palavras como vida, alma e esperança pertencem ao gênero feminino. E são também femininas duas outras palavras muito especiais para mim: coragem e sinceridade”. Truque pobre de retórica, já que as palavras morte, tortura e violência, assim como covardia e mentira também pertencem ao gênero feminino na língua portuguesa. E todas essas palavras pertencem de fato aos homens e mulheres encarnados na vida, independentemente do gênero.

Antes, em evento na ONU sobre a participação das mulheres na política, ao lado de Hillary Clinton e Michelle Bachelet, Dilma afirmara: “As mulheres são especialmente interessadas na construção de um mundo pacífico e seguro. Quem gera vida não aceita a violência como meio de solução de conflitos”. Com todo o respeito que Dilma merece como presidente legitimamente eleita, assim como por várias qualidades e aspectos de sua trajetória, isso é uma enorme bobagem. Alguém acredita que as mulheres são menos violentas que os homens?

Podem ser, por questões históricas e culturais, violentas de uma forma diferente. Mas até isso não é muito preciso. E mais estranho soa quando é dito por uma mulher conhecida por destratar seus subordinados a ponto de levar alguns às lágrimas e dá murros na mesa como qualquer chefe bruto que ninguém quer ter não por ser exigente, mas porque berrar com alguém é desrespeitoso – e, como as empresas já começam a aprender, improdutivo. E, neste caso, pouco importa se o destempero seja praticado por um homem ou uma mulher. Há um bom tempo, esse tipo de comportamento deixou de ser confundido com firmeza e autoridade, independentemente de gênero.

Outro aspecto raso dessa afirmação sobre as mulheres e a geração da vida se evidencia no fato de que vivemos um momento histórico onde os homens estão sendo chamados a ocupar seu lugar na educação e no cuidado dos filhos. Neste momento, valorizar a biologia na gestação da vida como algo que tornaria as mulheres mais aptas a governar apenas por serem mulheres é um tanto arcaico. Gerar a vida vem ganhando significados mais profundos no mundo complexo e com fronteiras menos definidas em que temos o privilégio de viver.

É bonito quando Dilma Rousseff diz no seu discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU o seguinte: “O desafio colocado pela crise é substituir teorias defasadas, de um mundo velho, por novas formulações para um mundo novo”. Dilma refere-se à crise econômica global gerada pela Europa e pelos Estados Unidos. Mas seria importante que olhasse para dentro do país que governa e percebesse que não há nada mais velho do que a sua política para a Amazônia, muito semelhante à política da ditadura que ela combateu, tanto nas obras monumentais quanto na maneira autoritária como têm sido impostas à população brasileira e aos povos diretamente atingidos.

A maior obra do PAC, a hidrelétrica de Belo Monte, financiada em grande parte por dinheiro público, está a anos-luz de qualquer exemplo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia. Isso dito não por mim, mas pelos maiores especialistas brasileiros na área. Sem contar que Belo Monte tem sido imposta não só aos povos da floresta, mas a todos nós, ameaçando uma das mais ricas biodiversidades do planeta, estratégica para o futuro da humanidade, e também condenando à destruição a cultura e a vida de indígenas, ribeirinhos e agricultores.

A truculência no trato de Belo Monte está mais próxima das práticas do “velho mundo” do que das “novas formulações para um novo mundo”, para usar a expressão da presidente. A política do governo tem um bom exemplo neste vídeo em que o atual presidente do Ibama, Curt Trennepohl, deixa claro o modus operandi do Planalto – seu antecessor, Abelardo Bayma, aliás, pediu demissão por não suportar a pressão da Eletronorte para liberar Belo Monte sem o cumprimento das exigências da lei. Vale a pena assistir ao vídeo: é curto e contundente.

Quando estive na região que será alagada pela hidrelétrica, na Volta Grande do Xingu, deparei-me com a cena abaixo, protagonizada pelo Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM), formado, convém não esquecer, por estatais como Eletrobrás, Chesf e Eletronorte, fundos de pensão e de investimento, como Petros, Funcef e Caixa FIP Cevix, construtoras como OAS, Queiroz, Galvão e Mendes Júnior, entre outras. Até a Vale entrou no consórcio por pressão do governo. A foto abaixo seria cômica, não fosse trágica. Revela a ideia que o Consórcio faz da nossa inteligência. Sim, sim, a Norte Energia destrói a floresta amazônica, mas recicla lixo.

Visão ambiental na Amazônia. (Foto: Eliane Brum / Arquivo Pessoal )

Visão ambiental na Amazônia. (Foto: Eliane Brum / Arquivo Pessoal )

A mesma presidente que enalteceu as vantagens da liderança feminina na ONU não recebeu as mulheres do Xingu que, com grande esforço, viajaram até Brasília para levar a sua voz e as suas reivindicações. Para quem viaja de ônibus, o percurso do interior dos travessões da Transamazônica até Brasília é muito mais penoso do que pegar o avião presidencial rumo a Nova York. A história do encontro que não houve me foi contada pela principal liderança feminina de Cobra Choca, comunidade de agricultores da Volta Grande do Xingu que tem colaborado para transformar o Brasil num dos maiores produtores de cacau do mundo – e fazem isso mantendo boa parte da floresta em pé.

Ana Alice Santos migrou do Paraná, onde trabalhava como doméstica desde os 6 anos de idade, para a Amazônia, onde se tornou agricultora. Ela me contou sua experiência com Dilma Rousseff comendo um cacau diante de sua casa cercada por floresta. E em nenhum momento foi possível esquecer que, se a sociedade não se fizer ouvir, toda a vida ali será afogada em breve por Belo Monte.

– Eu votei na Dilma. E a maior decepção que eu tive foi o diálogo que ela não teve com a gente. Em março, no mês das mulheres, nós fomos até Brasília: 1.800 pessoas. E ela não nos recebeu. Mostrou que não dá importância nenhuma para as mulheres da Amazônia. Chamaram até a tropa de choque, mas a gente saiu pacificamente. Fomos para conversar, não para brigar. Saímos derrotadas, mas tentamos de novo entre o final de abril e o início de maio. E ela mandou alguém da Casa Civil pegar o documento que trazíamos. Viajamos três dias e duas noites. E a presidenta não nos escutou. Foi quando decidi não votar mais. Não compensa você votar em quem não te representa. Não compensa votar numa presidenta que é uma vergonha para as mulheres. Porque nós, mulheres, tínhamos de fazer a diferença. E como a Dilma está fazendo a diferença? Matando as mulheres da Amazônia? Matando os seres humanos que aqui sobrevivem? Matando a nossa floresta, as nossas espécies dentro do rio? Esta presidenta mulher está matando a nossa vida ao matar o Xingu.

Em seu discurso histórico na ONU, Dilma Rousseff afirmou: “Junto minha voz às vozes das mulheres que ousaram lutar, que ousaram participar da vida política e da vida profissional, e conquistaram o espaço de poder que me permite estar aqui hoje”. Ao ouvir essa parte do discurso, pensei que era de mulheres como Antonia Melo e Ana Alice que Dilma falava em sua retórica politicamente correta. E que deveria dar minha contribuição para que essas vozes que tentam alcançar Dilma, mas que por ela têm sido repelidas, pudessem ser escutadas – se não pela presidente, pelo menos pela sociedade brasileira.

Vozes das mulheres do Xingu, cuja vida, a cultura e o futuro dos filhos estão ameaçados pela política para a Amazônia da “mãe do PAC”. Como mulher urbana, moradora de São Paulo, que compreende que o que acontece na floresta repercute não só no Brasil, mas no planeta, diz respeito não só aos filhos e netos delas, mas também aos nossos, compartilho da mesma angústia ao testemunhar a imposição de Belo Monte e o início do rastro de destruição que ela já começou a provocar.

Gostaria que a primeira mulher presidente botasse em prática no Brasil o que disse nos Estados Unidos: “Quem gera vida não aceita a violência como meio de solução de conflitos”. Não por ser mulher, mas porque dignidade não depende de gênero.

(Publicado na Revista Época em 26/09/2011)

A perna fantasma

Uma história sobre nomes, partidas e chegadas

Acabo de chegar de viagem. E as viagens têm esse poder de iluminar as paisagens internas. Pegamos ônibus, trem, avião e, de repente, descobrimos que atravessamos o Atlântico não só fora, mas dentro de nós. Aconteceu comigo desta vez. Voei sobre o oceano para falar sobre a “palavra” na Itália. E descobri o mistério do “m” do meu sobrenome. Fiz uma volta completa para compreender mais de um século da história da minha família. E deste “m” que me constitui e do qual não consigo me livrar.

Explico. Pietro Brun, meu tataravô, embarcou em um navio no final do século 19, como tantos italianos pobres expulsos pela fome e atraídos pelas promessas de terra na América. Pietro queria terra, sim. Mas o ímpeto feroz que o movia era salvar um território de outra ordem. Ele queria salvar seu nome, encarnado naquele momento na figura de meu bisavô, Antônio. Pietro fora obrigado a servir o Exército como soldado por anos e lutou na guerra austro-prussiana nas fileiras da Áustria. Ele conhecia a sorte que tinha de ter sobrevivido não só às batalhas todas, mas também aos invernos e à falta de comida. Não queria que Antônio tivesse o mesmo destino, porque o mais provável para um soldado naquela época era morrer – e não viver. Havia chegado a hora de Antônio se alistar, e o pai decidiu que não perderia seu filho. Fugiu com ele e com a filha Luigia para o sul do Brasil. Como desertava, meu bisavô Antônio foi levado em um bote até o navio que já se afastava do porto de Gênova, para embarcar como clandestino.

Meu tataravô Pietro tinha um motivo muito forte para salvar seu último filho homem – e sua descendência. Giuseppe, seu outro filho, fora estrangulado. O menino de 15 anos se distraiu pastoreando, e os animais comeram o pasto de um vizinho. Motivo suficiente para perder a vida. Sua mãe, minha tataravó Thereza, morreria de tristeza mais tarde. Os tempos eram assim.

Pietro queria terra, portanto, para plantar um filho. E um nome. E para isso separou a família já destroçada pela tragédia. Em Udine, na região italiana do Friuli, ele deixou seus mortos e as filhas mais velhas. Foi assim que os Brun, a árvore que me constitui como nome, se separaram. Não como um adeus, mas como um esquartejamento. Se as mãos que estrangularam um menino haviam despedaçado simbolicamente a família, o oceano era a faca que separaria literalmente suas partes. A mãe permaneceu com o filho morto, o pai fugiu com o filho vivo.

Quando desembarcaram no Brasil, em 10 de fevereiro de 1883, o funcionário do governo, como aconteceu tantas e tantas vezes, registrou o nome conforme ouviu. E foi assim que, no mundo novo, nos tornamos Brum – com “m”. Meu pai, Argemiro, filho de José, neto de Antônio e bisneto de Pietro, pegou para si a missão de resgatar essa história e documentá-la. É este afinal o sentido da literatura da vida real. Ou pelo menos um deles. Tentar amalgamar pela palavra o que foi separado pela carne. Missão impossível, porque a palavra é para sempre insuficiente para abarcar a vida.

Há uns 20 anos pensamos em reivindicar a cidadania italiana. Temos todos os documentos, cuidadosamente organizados em uma pasta. Mas havia esta mudança de letra entre nós. Antes de ingressar com a documentação, seria preciso corrigir o erro do burocrata do governo imperial que substituiu um “m” por um “n”. Um segundo ele deve ter demorado para nos transformar, e com certeza morreu sem saber. E se soubesse não teria se importado porque, afinal, era apenas o nome de mais um imigrante destituído de tudo, até de pátria.

Cabia a mim levar essa empreitada adiante. E não pude. Assim como nunca fui capaz de alcançar Udine e tentar descobrir o que aconteceu com os membros que permaneceram, embora já tenha estado na Itália quatro vezes. No ano passado, estive a meia-hora de trem de lá. E não peguei esse trem. Há uma semana, estive quase ao lado. E não fui. O que pode haver lá para mim, quatro gerações depois?, eu pensava. Se encontrar algum parente, podem até achar que quero dinheiro ou hotel de graça. Sinto uma tristeza irritada por aqueles descendentes de italianos que colocam adesivos nos carros: “Sou italiano graças a Deus”. Escrito em italiano, claro. Afinal, seus antepassados foram praticamente expulsos da Itália que tanto louvam – e foi no Brasil que reinventaram suas vidas.

Eu sou brasileira. Mas carrego essas partes mortas como vida, essa amputação transmitida pela oralidade e há duas gerações convertida em palavra escrita. E toda vez tenho de dar explicações sobre por que não tenho cidadania italiana. Como explicar o que nem eu compreendia muito bem? Só sabia que não podia simplesmente voltar a ser o que nunca fui: uma Brun.

Compreendi nesta última viagem por que não conseguia mudar a letra. A palavra é o corpo que eu habito. Eu não sei se existe vida após a morte. Desconfio que não. O que sei é que não existe vida fora da palavra escrita. Só sei ser – por escrito. Se no meu corpo carrego todas as minhas marcas em forma de cicatrizes, manchas de sol e agora algumas rugas, no meu nome carrego o que sou e o que não sou, sustento o que busco e não alcanço, e também o silêncio que grita como aquilo que para sempre será incapturável em mim.

Existe uma autonomia na forma como damos carne ao nosso nome com a vida que construímos – e não com a que herdamos. E existe aquilo que deve permanecer porque é história que veio antes. Podemos desconhecê-la, mas de algum modo ela ainda estará lá. Por isso eu sempre escolho a memória. A desmemória assombra porque existe e não a nomeamos, respira em nós como fantasma. A memória, não. A memória é uma escolha do que esquecer e do que lembrar – e uma oportunidade para ressignificar nossas lembranças. As vividas por nós – e as da tradição familiar.

Ao fugirem para o Brasil, literalmente esquartejados, os Brun ganharam uma perna a mais no nome. O “n” virou “m”. Mas esta perna a mais era um membro fantasma, um ganho que assinalava uma perda. Esta perna a mais era Giuseppe assassinado por estrangulamento, era Thereza morta de tristeza, era uma pátria perdida, um estar no mundo que já não podia ser. Passou despercebido para os que aqui chegaram porque eram analfabetos. Ao se alfabetizar, ganhar uma existência nas letras, meu pai descobriu que era um nome errado. Se alfabetizar, reconhecer-se na palavra escrita, como sabemos, é, ao mesmo tempo, redenção e maldição.

Não pude entrar com uma ação judicial, relativamente simples, para corrigir o nome, porque não é possível para mim eliminar essa cicatriz que assinala tanto uma presença quanto uma ausência. E presença e ausência é, afinal, a essência de todos os nomes. Seria só uma mudança no documento, me dizem, mas para mim nada que é documento e nada que é escrito pode ser “só”.

A perna a mais que o Brasil nos deu é tanto, demais. Eliminá-la seria como apagar toda uma jornada que vai muito além do Oceano Atlântico. Porque essa perna a mais é ao mesmo tempo perda e ganho. A perda de tudo o que ficou e o ganho de tudo o que aconteceu depois, o velho e o novo. Não posso simplesmente apagá-la ou corrigi-la porque para mim não é erro – e sim marca. Uma marca que diz mais de mim do que as letras que sobreviveram incólumes à mudança de mundo. Uma marca que, se for eliminada, se converterá em falta.

Quando Pietro Brun atravessou o mar deixando mortos e vivos na margem que se distanciou, ele não poderia ser o mesmo ao alcançar o outro lado. Ele tinha de ser outro, assim como todos nós que resultamos dessa aventura desesperada. Era imperativo que ele fosse Pietro Brum – e depois até Pedro Brum. Como não há rastro do funcionário displicente que errou o nome do imigrante ao registrar sua chegada nos papéis do governo, posso dar um outro significado mesmo a este homem que possivelmente fazia o seu trabalho com a mesma dedicação empreendida por grande parte dos funcionários públicos de hoje.

Agora sei que não tenho um nome errado, mas um nome assinalado pelo que viveu. Há uma semana dei a essa perna não mais o lugar de membro fantasma, mas de travessia. E agora me dedico a inventar um funcionário público melancólico e solitário, que à noite devorava livros em um quartinho de pensão no Rio de Janeiro do final do século 19, espantando a caspa que caía sobre as páginas gastas pelo uso. Diante de mais um imigrante estropiado e destituído de letras, amputado por uma separação e uma saudade, ele pensou: este homem vai precisar de mais uma perna para conseguir inventar uma vida no Brasil. E, poderoso assim de repente, molhando a pena no tinteiro e a empunhando com brio, como eu agora o invento, naquele momento ele inventou um “m” para mim.

(Publicado na Revista Época em 19/09/2011)

Cabul, Jane Austen e Harry Potter

Quando as palavras são a própria história

No momento em que o talibã agarrou com rudeza o braço do fisioterapeuta Alberto Cairo, no centro ortopédico da cidade afegã de Cabul, ele pensou: “Jane Austen não aprovaria”.

Em sua infância no Congo, o escritor Alain Mabanckou acreditava que sua mãe conhecia todas as línguas e os segredos do mundo. Não era assim. Ou era?

Enrico Varesco, o tradutor, fala cinco idiomas além do italiano. Mas teme perder a memória. Por quê?

Estas três histórias reais foram contadas no Festival de Literatura de Mantova, na Itália, no percurso de um dia pelas ruas da cidade. Elas falam da palavra, daquilo que nos faz humanos ao transformar nossa vida em narrativa. Participei na semana passada do festival que transforma por cinco dias a pequena Mantova numa biblioteca profana onde escritores e leitores se encontram em todos os espaços disponíveis, de igrejas a jardins.

Em uma praça, falei sobre “A palavra que falta”. Em um teatro belíssimo, inaugurado por Mozart quando ele tinha 13 anos, fui entrevistada sobre a vida cotidiana no Brasil, num evento intitulado “O gigante do sul”. Os italianos queriam saber principalmente sobre a nova classe média brasileira e a hidrelétrica de Belo Monte. Nos bastidores, perguntavam por que Lula tinha sido tão desrespeitoso com a Itália, ao libertar e acolher “o assassino Cesare Battisti”. Eu não soube responder.

Foi assim que conheci Enrico Varesco, um tradutor que traduz mais do que a palavra. Depois encontrei Alberto Cairo, um fisioterapeuta com uma aparência monástica que há mais de 20 anos vive em Cabul, no Afeganistão, trabalhando na Cruz Vermelha para dar novas pernas e braços a homens, mulheres e crianças que tiveram partes de seu corpo estilhaçadas na explosão de minas e bombardeios. E também Alain Mabanckou, um congolês – do Congo-Brazzaville, não da República “Democrática” do Congo. Alain é um negro alto e encorpado, que é possuído por ternuras quando fala de seu país, de sua infância e de sua mãe.

Mas chegarei à sua história daqui a alguns parágrafos. Primeiro, Alberto Cairo, um fisioterapeuta italiano mais parecido com a figura imortalizada de Dom Quixote do que com um personagem do Decamerão. Este homem com perfil de vírgula desembarcou no Afeganistão em 1989, com duas valises em que carregava os sete volumes do “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust. Uma amiga sempre insistia para que ele os lesse e Alberto pensou que, finalmente, nas noites solitárias de Cabul, teria tempo para empreender esta pequena epopeia literária.

Proust é raro, mas ler seu romance não é uma tarefa muito fácil. Nem mesmo para alguém que estava ali para dar dignidade em forma de próteses de pernas e braços a uma população devastada até hoje por habitar uma geografia que é ao mesmo tempo “riqueza e maldição”. Quem controla o Afeganistão, controla uma posição geopolítica estratégica. E Alberto já sabia o que os russos e depois os americanos descobriram a um custo incalculável de vidas: “Conquistar o Afeganistão não é difícil, controlá-lo é impossível”.

Enquanto tentava ler Proust, Alberto conheceu Mamud, um afegão que perdera as duas pernas e um braço sem jamais ter empunhado uma arma, como sempre acontece nestas guerras em que a população civil é a vítima de ambos os lados. E a perda de suas vidas é catalogada com um eufemismo: “danos colaterais”. Ah, como é preciso ter cuidado com palavras como estas, que se revelam mais ao mentir.

Todo dia Mamud atravessava o front sobre um carrinho, num malabarismo quase miraculoso na medida em que o empurrava com apenas um braço, o mesmo que dava a mão ao seu filho pequeno. Enquanto tentava devolver a Mamud o impossível em forma de duas pernas e um braço sem carne, Alberto descobriu Jane Austen. E se apaixonou perdidamente por ela, porque naquele mundo em que as pessoas falavam tão de perto, em que o inquiriam sem rodeios sobre tudo, em que não havia centímetros entre a pele do outro e a sua, em que o sangue, o suor e o cheiro de corpos arrebentados colavam no seu próprio, Jane Austen o carregava para uma Inglaterra onde o mal era consumado em frases cheias de voltas sem um único toque.

Depois de passar o dia lidando com feridos de uma guerra interminável, Alberto se refugiava na sutileza ao mesmo tempo precisa e asséptica de Jane Austen. E nem se importou quando sua casa foi assaltada, e um ladrão improvável levou dois dos sete volumes de Proust. Que ladrão seria este que roubou dois livros em outra língua, mas deixou outros cinco para que sua vítima não ficasse à deriva?

No dia em que um poderoso talibã o agarrou pelo braço com violência no centro ortopédico, Alberto achou que devia isso a Jane Austen. Com o braço livre, empunhou um dedo acusador e pronunciou com firmeza: “Que vergonha! Não vê meus cabelos brancos? Por acaso trataria assim o seu próprio pai? Vergonha!”. E viu o hirsuto talibã encolher-se diante dele, enquanto agradecia mentalmente a Jane Austen.

A vida seguiu. E para Alberto seguiu com “A Balada do Café Triste”, de Carson McCullers, livro de contos sobre o amor com enredos muito peculiares e personagens um tanto soturnos. O melhor deles dá titulo ao livro e conta a história de uma mulher de uma pequena cidade americana, Amélia, que acaba com o seu casamento dez dias depois da cerimônia. Em seguida, ela acolhe em sua casa um estranho que se diz seu primo e traz no corpo uma deformação. A mulher já se apaixonara por ele quando o marido reaparece. E desta vez é o estranho que se apaixona pelo marido. Envolvido pela história, Alberto cometeu a gafe de contá-la para uma companheira de trabalho afegã, uma sociedade em que as mulheres têm mobilidade restrita e o amor é um percurso acidentado de uma maneira diversa da que estamos acostumados. Ela esboçou seu escândalo com constrangidos “sim, sim, sim”… E em seguida, penalizada, o presenteou com outro livro.

Quando Mamud já tinha duas pernas e um braço artificial, procurou Alberto: “Você me ensinou a caminhar. Obrigada. Mas não quero mendigar e envergonhar meu filho na escola. Ajuda-me a não mendigar!”. Alberto não sabia o que fazer, temeroso de que na linha de produção Mamud pudesse atrasar o processo e se sentir humilhado. Sem contar que, como grande parte da população afegã, Mamud era analfabeto. Mas arriscou. E em uma semana colegas de trabalho começaram a reclamar que Mamud era rápido demais, e a produtividade aumentara em 25%. Nesse momento, Alberto estava lendo Harry Potter.

Alberto Cairo já implantou mais de 100 mil próteses de braços e pernas e foi cogitado para o Nobel da Paz. Mas ainda não terminou “Em busca do tempo perdido”. Abandonei-o quando começou a dar autógrafos e atravessei a rua. Pronto, tinha deixado Cabul e Alberto para trás. Diante de mim estava Alain Mabanckou e um mundo que eu só conhecera até então na literatura de Joseph Conrad. “Atravessei a infância com a certeza de que minha mãe sabia ler e conhecia todas as línguas do mundo”, disse o congolês depois de alguns goles de água. Quando voltava da escola, a mãe corrigia suas lições passando uma régua onde a caligrafia entortava e as palavras tinham invadido territórios proibidos. Alain declamava Victor Hugo, e a mãe, postada ao seu lado, o interrompia quando algum verso não soava bem. Só bem mais tarde, Alain descobriu que sua mãe era analfabeta. A mesma mulher capaz de explicar que o mar era salgado por causa do suor dos escravos não sabia nem ler nem escrever.

Desde seu primeiro romance, “Vermelho, branco e azul”, traduzido em várias línguas, Alain dedica seus livros a ela: “Mãe, tenho certeza de que você escreveria um livro melhor. Mas tenho feito o melhor que posso. E só faço isso porque sou seu filho”.

Em seguida, uma senhora da plateia perguntou a Alain por que ele escreve em francês e não em uma língua do Congo. Alain respondeu: “Eu respiro em sete línguas congolesas. Mas todas elas são orais. Então, para dizer por escrito que respiro em sete línguas, preciso do francês”.

Lembrei-me de colegas jornalistas afirmando que a linguagem poética não tem precisão nem objetividade suficientes para expressar a realidade e sorri como uma Mona Lisa. Mas, como nas madeleines de Proust, a frase de Alain me levou a Enrico Varesco, o homem que me deixou respirar dentro dele. Tradutor do português para o italiano nos dois eventos em que fui protagonista, Enrico apareceu sem alarde, como se estivesse se materializado das pedras da rua, e eu temi o que aquele homem descolorido faria com as minhas palavras tão escolhidas.

Não poderia estar mais enganada. Começamos lado a lado e, aos poucos, percebi que Enrico não apenas traduzia minhas palavras, mas eu inteira. Em instantes ele incorporou o ritmo da minha fala, assim como as minhas pausas, os meus arroubos e até os meus sorrisos ou o meu franzir de testa. Ele era eu em italiano. A certa altura achei até que, por causa de Enrico, em italiano eu soava melhor.

Quando se acabaram as palavras minhas nele, Enrico retornou ao silêncio e ao seu esforço bem sucedido de desaparecer dentro do próprio corpo. Só mais tarde descobri que falava cinco línguas além do italiano – português, alemão, francês, espanhol e inglês. E que temia perder a memória e não saber mais de si, ele que era sempre um outro. “Você jamais terá problemas na velhice com o cérebro tão afiado”, alguém comentou. E Enrico contestou com uma informação que eu jamais ouvira. “Há muitos casos de Alzheimer na nossa profissão. Treinamos e exercitamos a memória de curto prazo. Temos de lembrar rapidamente de trechos curtos. E precisamos imediatamente esquecê-los, para que outros possam ser memorizados e imediatamente esquecidos.” E se foi num passo intraduzível.

Não sei se a informação tem base científica, além da experiência concreta do mundo peculiar de Enrico. Mas os dias se passaram, e eu não consegui me esquecer do tradutor que se deixou possuir por mim. E que lembra para esquecer, lembra para esquecer, lembra para esquecer. Senti então que deveria lembrar Enrico por escrito para que ele não fosse esquecido. Nem desaparecesse como memória.

Assim é a palavra escrita. Uma geografia onde a memória é aprisionada para que o homem possa se libertar.

(Publicado na Revista Época em 12/09/2011 e atualizado em 12/10/2011)

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