A vida na “Tumorlândia”

O grande polemista Christopher Hitchens conta, com a inteligência e a ironia que marcaram a sua obra, como é a vida no mundo novo e muito peculiar no qual são lançadas as pessoas a partir do diagnóstico de um câncer

Li o último (e aqui o último tem um sentido maior) livro do britânico Christopher Hitchens durante um voo de Porto Alegre para São Paulo, na semana passada. Quando acabou, a experiência da leitura tinha dado ao voo curto uma extensão inusitada. Sentada na janela, esperando os outros passageiros desembarcarem, eu me sentia de luto por alguém que nunca vi. Como disse Graydon Carter, editor da Vanity Fair, revista americana na qual Hitchens travou alguns de seus mais ardorosos embates, a capacidade de produzir a certeza de que ele escrevia diretamente para cada um de nós era um de seus trunfos. Em seus artigos, Hitchens ofertava-se por inteiro, com o ímpeto desassombrado e feroz que provocou amores e ódios, fez amigos e inimigos. Sempre parecendo estar muito satisfeito pela chance de enveredar por alguma polêmica cabeluda, ao atacar personagens tão diversos quanto Henry Kissinger e Madre Tereza de Calcutá. Tão destemido para escrever quanto era para beber e fumar. Não é diferente neste Últimas palavras (Globo), livro no qual Hitchens espeta seu olhar afiado na convivência com o câncer que acabaria por matá-lo, aos 62 anos, em 15 de dezembro de 2011. Ao desembarcar do avião e do livro, descobri que estava dolorida. Não apenas pelo que ele tinha vivido, não apenas porque ele tinha morrido, mas por uma razão bem egoísta: já não haveria textos de Christopher Hitchens para ler.

Provocar essa sensação no leitor ao final de um livro no qual narra o fim da própria vida mostra o enorme poder de Christopher Hitchens como escritor. O mais provável, neste tema, seria evocar pena, compaixão e lágrimas. Ou, no caso de seus numerosos opositores, uma sensação de vingança saciada pelo sofrimento ao qual foi submetido – seguido pela morte da qual não pôde escapar.

Hitchens, porém, não permite nem piedade, nem vingança. Ele termina sua vida por escrito com uma inteligência e uma honestidade intelectual tão luminosas que só conseguimos lamentar nossa orfandade de suas letras. Em suas últimas palavras, ele consegue escrever sobre si mesmo com o olhar agudo de quem escreve olhando para um outro – mas sem apartar-se de si. Olha de fora e de dentro – ao mesmo tempo.

Há quem possa se chocar quando ele trata o câncer, talvez a palavra mais intoxicada de sentidos do nosso tempo, com tanta sem-cerimônia. Mas não é desrespeito pela dor, nem a sua nem a do outro. Pelo contrário. Vale a pena perceber o quanto é importante que alguém possa olhar para o câncer que o consome também com ironia, até mesmo com humor – não porque é uma experiência menor, mas justamente porque é grande. E poucos seriam capazes dessa ousadia além de Christopher Hitchens.

Nos 19 meses entre o diagnóstico de câncer no esôfago e a sua morte, muitas foram as apostas sobre quantos dias ou semanas ele demoraria antes de capitular e sucumbir à religião – ele, que foi um dos mais dedicados defensores do ateísmo. Contra todos os prognósticos, Hitchens morreu sem perder a coerência. Como ele mesmo diz, diante da expectativa explícita de seus adversários: “Imaginar que eu descarte os princípios que sustentei por toda a vida na esperança de conseguir favores no último minuto? Espero e confio que nenhuma pessoa séria ficaria impressionada com tal escolha barata. O deus que iria recompensar covardia e desonestidade e punir dúvida irreconciliável está entre os muitos deuses em que não acredito”.

Até o fim, um tipo de cristão – mais comum do que todos nós, religiosos e não religiosos, gostaríamos – atacou-o com ódio. Como nesta “contribuição” pinçada por Hitchens na internet, entre tantas: “Quem mais acha que Christopher Hitchens ter câncer de garganta terminal (sic) foi a vingança de Deus por ele usar sua voz para blasfemá-lo? Ateus gostam de ignorar FATOS. Gostam de agir como se tudo fosse uma ‘coincidência’. Verdade? É apenas ‘coincidência’ (que) de todas as partes do seu corpo Christopher Hitchens tenha conseguido um câncer na única parte de seu corpo que usou para blasfemar? Tá, continuem acreditando nisso, ateus. Ele vai se contorcer de agonia e dor e se reduzir a nada, e depois ter uma horrível morte agonizante, e ENTÃO vem a parte realmente divertida, quando ele é mandado para sempre para o FOGO DO INFERNO, para ser torturado e queimado”.

Hitchens escuta e responde mesmo a estas demonstrações de ódio – para além de qualquer mágoa que pudesse sentir por um outro ser humano desejar-lhe tanta dor pelo simples fato de não compartilhar de suas crenças. Como fará durante todo o livro, ele desnuda cada argumento. A começar por esclarecer o crente vingativo de que blasfemou também com outras partes do seu corpo, não atingidas pelo câncer. Entre várias observações, aponta: “Por que não lançar um raio sobre mim, ou algo similarmente assombroso? A divindade vingativa tem um arsenal tristemente pobre se a única coisa em que consegue pensar é exatamente o câncer que minha idade e ‘estilo de vida’ sugeriam que eu pudesse ter”.

Se Hitchens tivesse abdicado de suas convicções no percurso do morrer, nenhum de nós deveria julgá-lo. Do mesmo modo que jamais devemos julgar alguém que tenha delatado seus companheiros durante uma sessão de tortura. A tortura e a doença letal têm causas e implicações diversas, mas compartilham de uma premissa: são dois momentos cuja dimensão e intensidade só são alcançadas por quem os experimenta – e ninguém pode garantir qual será o seu comportamento antes de ter vivido um ou outro. Podemos apenas desejar manter-nos fiéis aos nossos princípios, mas garantir jamais.

Fico contente, porém, que Hitchens tenha conseguido viver até o fim com tudo o que era. Sua coerência deu vigor a suas últimas palavras. E por causa dela ele tornou-se capaz de escrever sobre a vida no que chamou de “Tumorlândia” – como nomeou o mundo novo e muito peculiar no qual são lançadas as pessoas que descobrem um câncer. Importa menos concordar ou discordar de suas ideias – e importa mais a lucidez com que ele tratou o momento possivelmente mais difícil da vida de um homem. Suas últimas palavras constituem um ensaio valioso sobre o morrer – de câncer, no Ocidente, no início do século 21.

Selecionei aqui algumas de suas observações mais provocativas, para nos ajudar a pensar sobre como lidamos com a doença e a morte:

1 – Manual de etiqueta do câncer

Numa sessão de autógrafos, Hitchens foi abordado por uma mulher com “estilo maternal”. Ela multiplicou o tempo de espera de quem estava atrás na fila ao lhe contar uma história escabrosa, arrematada por um “entendo exatamente o que você está passando”. A partir do episódio, Hitchens começou a pensar na conveniência de um pequeno “Manual de Etiqueta do Câncer”. A obra seria destinada “aos doentes e também aos simpatizantes”.

Hitchens explica: “Meu manual teria de impor deveres a mim, bem como àqueles que falam demais, ou de menos, na tentativa de disfarçar o inevitável constrangimento nas relações diplomáticas entre Tumorlândia e seus vizinhos”. Ele gostaria de lembrar às pessoas, em geral, que não circulava por aí com um enorme broche de lapela no qual estava escrito: “PERGUNTE-ME SOBRE CÂNCER DE ESÔFAGO EM METÁSTASE NO QUARTO ESTÁGIO E APENAS SOBRE ISSO”.

No manual, as pessoas seriam orientadas a contar sua história com mais parcimônia, tenha ela um final triste ou feliz, e a permanecer atentas à possibilidade de a plateia não estar interessada. Na posição de “doente de câncer”, ele também se compromete a não desfiar a série de misérias cotidianas que passaram a fazer parte da sua vida diante de um corriqueiro “como vai?”. A melhor resposta para esta pergunta tão educada quanto banal não seria discorrer longamente sobre o funcionamento bipolar do seu intestino. Para conhecidos e estranhos, ele sugere: “Ainda é cedo para saber”. Para a equipe médica: “Pareço ter um câncer hoje”.

Hitchens também sugere aos muito, muito íntimos, que não se precipitem na abordagem da morte, dizendo coisas como esta: “Imagino que chegue uma hora em que você precisa considerar que tem de partir”. Ao escutar isso de alguém, ele ficou chocado. Estava pensando nisso, sabia disso, mas preferia ser ele a dizer, e não um outro, por mais próximo que fosse. A estas pessoas, ele diz: “Eu me preocupo em encarar os fatos difíceis, obrigado”.

2 – Se conselho fosse bom…

Ao ser assolado por todo tipo de conselho bem-intencionado, Hitchens lembrou de um ensaio no qual a crítica de cinema Pauline Kael descreveu Hollywood como “um lugar onde se pode morrer de encorajamento”. E completa: “Na cidade do tumor você às vezes sente que poderia expirar apenas por conselhos”.

Hitchens foi aconselhado, entre outras coisas, a ingerir essência granulada de caroço de pêssego (“ou seria damasco?”), tomar grandes doses de testosterona, abrir seus chacras para adotar um “estado mental receptivo”, adotar dietas macrobióticas e vegetarianas, congelar-se por criogenia.

Com a ironia habitual, ele apreciou apenas o conselho de uma amiga cheyenne-arapaho, que rabiscou num bilhete algo assim: “Todos os meus conhecidos que apelaram para remédios tribais morreram quase que instantaneamente. Se te oferecerem qualquer remédio nativo americano, mova-se o mais rápido possível na direção oposta”.

3 – Ah, os eufemismos…

Hitchens aponta a tendência da medicina moderna de usar eufemismos ao lidar com pessoas com câncer, dando destaque para a palavra “desconforto”: “Como estamos indo hoje? Algum desconforto?”. Diz ainda que “uma avenida de eufemismos” foi aberta pela abordagem empresarial: “Já se encontrou com nossa equipe de ‘gestão da dor’?”.

Sobre os eufemismos, ele afirma: “Assim que você ouve isso da forma errada, pode parecer um eco da prática do torturador de mostrar à vítima os instrumentos que serão usados nela, ou descrever a gama de técnicas e deixar que essas ameaças façam a maior parte do trabalho. (Galileu Galilei teria sido exposto a isso enquanto passava pela pressão gradual que acabou convencendo-o a se retratar)”.

Como jornalista, Hitchens submetera-se à tortura do waterboarding (“afogamento simulado”). No pós-11 de Setembro, comprovou-se que a CIA estava usando esse “método de interrogatório” em suspeitos de terrorismo. Diante da reação chocada de parte dos americanos, o governo de George W. Bush convocou especialistas para afirmar que não se tratava de tortura. Ao assumir a presidência, Barack Obama baniu o “procedimento”.

Durante a controvérsia, Hitchens foi afogado em segredo por membros das Forças Especiais, nas montanhas da Carolina do Norte, por vontade própria. Ele queria provar aos leitores da Vanity Fair que não era uma simulação, mas afogamento de fato. A experiência de ser torturado lhe deixou sequelas e, sempre que aspirava algum tipo de umidade, corria o risco de um ataque de pânico. Ao longo do tratamento do câncer, mostrou-se difícil para ele receber alimentação líquida através de um tubo, ou mesmo ser banhado.

Em seu livro, ele diz: “Há práticas médicas e hospitalares cotidianas banais que lembram às pessoas da tortura praticada pelo Estado. (… ) Mesmo a ideia de algumas aplicações malfeitas de água ou gás, com a intenção de hidratar e nebulizar, para combater problemas respiratórios, são mais do que suficientes para me deixar gravemente doente”.

4 – O Cristo crucificado pode não ser uma visão tranquilizadora

A exibição de crucifixos na parede dos quartos de hospital tem sua desaprovação, com base no que chama de “associações sadomasoquistas pregressas”. Hitchens lembra que os condenados nas guerras religiosas e na Inquisição eram submetidos à visão compulsória da cruz até a morte. “Em algumas das pinturas fervorosas dos grandes autos de fé, não excluindo, acho, alguns dos queimados vivos pintados por Goya na Plaza Mayor, vemos a chama e a fumaça se erguendo perto da vítima, e a própria cruz suspensa sinistramente diante de seus olhos fechados.”

5 – “O que não me mata (NÃO) me fortalece”

Hitchens discorda da frase famosa, atribuída ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Na sua experiência com o câncer, descobriu que aquilo que não o mata o enfraquece – e a fraqueza em geral é cumulativa e tem um final previsível. A partir dessa constatação, ele passou a refletir sobre a obstinação terapêutica dos médicos ou o que tem sido chamado aqui de “tratamentos fúteis”. E faz observações muito interessantes sobre este, que é um dos dilemas contemporâneos: se o avanço tecnológico assegurou vários benefícios à saúde e ampliou as possibilidades da medicina, teve como efeito colateral o prolongamento doloroso e inútil da vida.

Entre os exemplos trazidos por ele, há a extraordinária história do filósofo Sidney Hook, que morreu em 1989, mas gostaria de ter morrido antes. Depois de um angiograma ter provocado nele um derrame, numa experiência extremamente dolorosa, ele descobriu-se “na meca médica de Stanford, na Califórnia” e às voltas com o seguinte paradoxo: tinha à disposição um nível de cuidados sem precedentes na história e, ao mesmo tempo, era exposto a um grau de sofrimento que as gerações anteriores poderiam não ser capazes de suportar.

O filósofo pediu ao médico que suspendesse os mecanismos de sustentação da vida, com base em três argumentos: outro derrame doloroso poderia atingi-lo, obrigando-o a sofrer tudo de novo; sua família estava sendo obrigada a passar por uma experiência infernal; recursos estavam sendo investidos à toa. O médico recusou sua reivindicação, usando a seguinte frase: “Algum dia você perceberá a falta de sentido do seu pedido”. O filósofo cunhou então uma expressão poderosa para explicitar a situação a que a medicina condenava pessoas como ele: viver em “túmulos de colchão”.

Hitchens descobriu que algumas pessoas tinham não mais o desejo de morrer com dignidade, mas o desejo de já ter morrido.

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Estas são algumas das observações feitas por Christopher Hitchens sobre viver com câncer. Progressivamente, escrever foi se tornando uma conquista arrancada com muita dificuldade dos dias e das dores. A certa altura, ele viu sua poderosa voz, com a qual travou debates inesquecíveis, ir minguando, calada à força pelo tumor. Descobriu então – e este é um dos momentos mais belos do livro – que não tinha uma voz, era uma voz. Assim como não possuía um corpo, era um corpo. Do mesmo modo que não somente escrevia, mas era palavra escrita. “Escrever não é a apenas a minha forma de vida e de ganhar a vida, mas minha própria vida. (…) Sinto minha personalidade e minha identidade se dissolvendo enquanto contemplo mãos mortas e a perda das correias de transmissão que me ligam à escrita e ao pensamento.”

Christopher Hitchens morreu sendo por inteiro, mesmo que literalmente estivesse aos pedaços. A prova é que, como último ato de vida, ele escolheu pensar sobre a morte.

(Publicado na Revista Época em 24/09/2012)

Sorrindo pelas costas

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Enfiou uma mão por dentro da blusa para puxar o sutiã, cuja alça direita tinha dobrado. No gesto, sentiu seu indicador roçar alguma coisa. Uma pedra no meio do seu caminho? Retrocedeu com os cinco dedos. Sentiu de novo. Apalpou. Parecia uma bola entre as suas costelas. Apertou. Não doía. Coçou. Não coçava. O que era aquilo? Correu até o banheiro da firma. Tirou a blusa, torcendo para que ninguém entrasse e a visse seminua. Torceu-se toda para olhar no espelho. Havia uma bolota vermelha e perfeitamente redonda ali. Não perfeitamente, olhando melhor. Apalpou de novo. Não sentia nada. Coçou. Não coçava nada. Como não tinha visto aquela bolota antes?

Ligou para o consultório médico. Há uma bolota nas minhas costas, anunciou à secretária. Não posso esperar um mês por uma consulta. Maldito plano de saúde vagabundo. Você sabe, uma bolota nem sempre é uma bolota, insistiu. Vou falar com o doutor para marcar um encaixe, a moça prometeu.

Naquela noite sonhou que a bolota tinha um rosto. Como a carinha do smiles. Mas era uma carinha má. A bolota ria dela. Antes de lhe cravar os dentes. Agora ela tinha certeza de que aquela bolota não era inofensiva. Nas noites seguintes teve medo de dormir. Era como se uma estranha estivesse acordada sem que ela pudesse enxergar seus olhos abertos. Uma estranha íntima dando dentadas na sua carne. E rindo, rindo muito. Rindo pelas suas costas.

Hum, disse o médico. Hum o quê? Não estou gostando do aspecto dela, mas não posso confirmar nada antes da biópsia. Pode não ser nada. Quando apareceu? Não sei, só vi na semana passada. Deve estar aí há algum tempo. Como você não viu? A pergunta a deixava nervosa. Eu não sei, não sei como eu não a vi antes. Eu deveria tê-la apalpado no banho, pelo menos, mas não senti. Simplesmente não senti. Não se preocupe, faremos a biópsia e tudo ficará esclarecido. Ela nem sabia se queria esclarecer alguma coisa. Eu não tenho material para fazer aqui, mas basta ir ao laboratório, seu plano cobre esse exame. É um procedimento de rotina. Da rotina de quem, ela gostaria de ter perguntado. Mas se calou.

Sentada na sala de espera do laboratório em que arrancariam um dente do sorriso das costas dela, ela estava longe. Não só de suas costas, mas dela inteira. Fora. Estava fora. Nem registrou a dor. Sentiu algum desconforto?, perguntou a moça. Desconforto, que palavra era esta? Doeu menos do que depilar a virilha com cera, ela disse.

Cinco dias depois, a secretária do médico ligou porque ele queria vê-la. Ela foi, mas permaneceu onde estava. Longe. Nem ouviu a palavra quando o médico a pronunciou. Simplesmente não a interessava. Tudo o que ela conseguia pensar é que ninguém a amava o suficiente para acariciar as suas costas. Ninguém a amava o suficiente para descobrir que havia uma bolota ali antes que fosse tarde demais.

Perdida

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Meu deus!, viu-se dizendo em voz alta. Ela não era religiosa, mas a frase alojara-se na sua boca desde que as tias solteiras a repetiam pela casa da sua infância, diante de cada pequena catástrofe doméstica. Da polenta queimada a um fio puxado na meia de náilon.

Desta vez, a catástrofe era dela. Lembrou-se de súbito que deixara o filho pequeno dormindo, trancado no apartamento, para fazer uma compra rápida no supermercado. E o esquecera por completo. Pensando bem, ela nem fora ao supermercado.

Onde estou agora?, olhou para os lados. Estava num café de shopping, daqueles de rede americana, tomando um cappuccino e comendo um croissant borrachento. Como eu vim parar aqui? Duas vistosas sacolas de loja estavam acomodadas na cadeira vaga da sua mesa. De quem é isso? Olhou para os lados, de novo. Só um casal e uma moça abduzida diante do computador. Nenhum deles parecia notar a sua confusão. Espiou dentro das sacolas, constrangida, como se elas não lhe pertencessem. Mas pertencem? Dentro, um vestido, um jeans e um sapato de salto. Quem comprou tem bom gosto, pensou. E eram do seu número, constatou.

Estou ficando louca, e um soluço estrangulado saiu dela. Meu deus, eu preciso correr. Meu deus, eu saí de manhã de casa. O Pedro acordou, deve ter chorado até se afogar. Morreu de asfixia. O Pedro acordou, está morrendo de fome e de sede no berço. Será que os vizinhos ouviram os gritos e chamaram os bombeiros? Meu deus, eu sou uma péssima mãe, uma mãe doida, do tipo que vira manchete de jornal. Vão me apedrejar como fizeram com os Nardoni. Como eu pude?

A enormidade do seu ato, do seu esquecimento, do seu desvario desabaram sobre ela. Seu bebê agora poderia estar morto. Ela já queria se matar também. Mas antes precisava ter certeza. Se ele ainda estivesse vivo, ela seria a melhor mãe do mundo, ela acreditaria no deus que invocava, ela seria outra.

Saiu da paralisia e correu a pegar um táxi na frente do shopping. Com as bolsas das lojas. Por que eu estou carregando essas bolsas? Obrigou o motorista a correr, a ultrapassar, a ignorar sinais vermelhos. Meu filho está morrendo, ela dizia, os olhos vermelhos, o rosto vermelho, o suor porejando desespero.

Atirou uma nota de 50 reais, a primeira que achou, e entrou correndo no prédio. Não se ouvia nada, só um funk. Quem é esse doido que escuta som nesse volume? Se eu não tiver matado o meu bebê, eu vou reclamar pro síndico. Socou o botão do elevador. Fora o funk, tudo parecia normal no prédio. Nenhum sinal de polícia ou bombeiros. Nenhum som de bebê, também. Mas como ouviria, com este funk?

Entrou no elevador e descobriu que não tinha luz lá dentro. Se não tiver matado o seu filho, ela reclamaria do zelador relapso. Por sorte, ela lembrava de sempre carregar uma lanterna na bolsa. Derrubou tudo no chão para achar, tateando, mas não fazia mal. Ela precisava subir sete andares. Sete? Percebeu que tinha esquecido o número do seu apartamento. Onde é que eu deixei meu bebê, onde é que eu vivo? Agora o elevador subia para o sete, mas não era no sete. Ela tinha quase certeza de que não era. No quinto, o elevador parou, abrupto. Entrou um morador que ela não conhecia. Poderia também ser uma visita, como saber? Não era uma visita. A senhora está bem? Acho que não, eu esqueci onde eu moro, confessou, encolhida de vexame. A senhora mora no 402. Quer que eu ligue para alguém? A senhora não parece mesmo bem, talvez esteja tendo um AVC. Não, não, eu estou bem. Estou meio atrapalhada, por causa dessa escuridão. Queimou a lâmpada de novo, e o zelador não trocou. Escuro?, o homem perguntou, parecendo perplexo. É, o senhor está enxergando por causa da minha lanterna. Ele abriu a boca para falar, mas fechou. Tem certeza de que a senhora não precisa de ajuda? Estou bem, é só uma enxaqueca. Só preciso chegar em casa e tomar um comprimido. Ela não queria contar que tinha esquecido seu bebê. Antes de ser presa, ela se mataria, abraçada ao corpo do seu bebê. O vizinho desconhecido apertou o quarto andar, e ela desembarcou do elevador tentando aparentar normalidade. Já me sinto melhor, obrigada. Ela não queria que descobrissem logo que era uma assassina. De repente, já começava a pensar que poderia talvez fugir. E imediatamente sentiu a culpa escalar o esôfago com a bílis. Não, ela não viveria com a morte do seu filho. Mesmo querendo, mesmo querendo. Que horror, ela queria. Era uma mãe horrível, mesmo, além de uma assassina.

Vasculhou a bolsa, mas não encontrava as chaves. Deixei no elevador, no chão. Não vi no escuro. Estava parada na frente da porta e só então percebeu que o funk vinha de lá. Da sua casa. Mas como? Suas mãos tocaram o molho de chaves, afinal. Mas qual chave seria? Havia umas dez ali. Ela foi tentando uma por uma, e nenhuma parecia servir. Então, a porta se escancarou. E ela estava diante de um adolescente de cabelos compridos, calça larga, caída até abaixo do ossinho do quadril, tatuagens por todo o corpo e um piercing na sobrancelha direita. Quem é você? O que você fez com o meu bebê?, gritou.

Ele olhou para ela, por um segundo, antes de agarrá-la pelos ombros:

— Mãe, a senhora está bem?

Russomanno e a vulgaridade do desejo

O “patrulheiro do consumidor” lidera em São Paulo porque, se a política é de mercado, ele pode convencer como mercadoria

Como se define um povo? De várias maneiras. A principal, me parece, é pela qualidade do seu desejo. É por este viés que também podemos compreender o fenômeno Celso Russomanno (PRB). Como um homem que se tornou conhecido por bolinar mulheres na cobertura de bailes de carnaval e como “patrulheiro do consumidor” em programa da TV Record, apoiado pela Igreja Universal do Reino de Deus, torna-se líder de intenções de votos na maior cidade do Brasil?

Acredito que parte da resposta possa estar no desejo. Na vulgaridade do nosso desejo. No que consiste o desejo das diferentes camadas da população, seja o topo da pirâmide, a classe média tradicional, o que tem sido chamado de “nova classe média” ou classe C. Para além das diferenças, que são muitas, há algo que tem igualado a socialite que faz compras no Shopping Cidade Jardim, um dos mais luxuosos de São Paulo, ao jovem das periferias paulistanas carentes de serviços públicos de qualidade. E o que é? A identificação como consumidor, acima de todas as maneiras de olhar para si mesmo – e para o outro. É para consumir que boa parte da população não só de São Paulo quanto do Brasil urbano tem conduzido o movimento da vida – e se consumido neste movimento.

Dois textos recentes são especialmente reveladores para nos ajudar a compreender o Brasil atual.

Em sua coluna de 4/9, na Folha de S. Paulo, o filósofo Vladimir Safatle faz uma análise interessantíssima do caso Russomanno. Ele parte do fato de que a ascensão econômica de larga parcela da população no lulismo se dá principalmente pela ampliação das possibilidades de consumo – e não pela ampliação do acesso a serviços sociais de qualidade. Logo, para essa camada da população, os direitos da cidadania são decodificados como direitos do consumidor. Nada mais lógico para representá-la e defender seus interesses do que um prefeito que seja um pretenso “patrulheiro do consumidor”, bancado por uma das igrejas líderes da “teologia da prosperidade”. Russomanno seria, na definição de Safatle, “o filho bastardo do lulismo com o populismo conservador”.

Na ótima reportagem intitulada “O Funk da Ostentação em São Paulo”, o repórter de Época Rafael de Pino conta como se dá a apropriação do funk carioca nas periferias de São Paulo. Preste atenção na abertura da matéria, que reproduzo aqui:

“‘Vida é ter um Hyundai e uma Hornet/10 mil pra gastar, Rolex e Juliet’, canta o paulista MC Danado no funk ‘Top do momento’. Para quem não entendeu, ele fala, na ordem, de um carro, uma moto, dinheiro, um relógio e um par de óculos – um refrão avaliado em R$ 400 mil. Na plateia do show na Zona Leste, região que concentra bairros populares de São Paulo, os versos são repetidos aos berros pelas quase 1.000 pessoas presentes, que pagaram ingressos a R$ 30. O público da sexta-feira é jovem, etnicamente diverso e poderia ser descrito em três palavras: ‘classe C emergente’.”

MC Danado, como nos conta Rafael de Pino, antes de se tornar um astro, trabalhou como office-boy e auxiliar de escritório. Ele diz o seguinte: “Gosto da ostentação, gosto de ostentar. Parte do que canto, eu tenho. Outra parte, desejo e vou conquistar com meu trabalho”. Vale a pena conferir os refrões de outros funkeiros da ostentação, como MC Guimê: “Ta-pa-ta-pa tá patrão, ta-pa-ta-pa tá patrão/Tênis Nike Shox, Bermuda da Oakley, Olha a situação”. Ou MCs BackDi e Bio-G3: “É classe A, é classe A/quando o bonde passa nas pistas geral, tá ligado que é ruim de aturar/É classe A, é classe A/Nós tem carro, tem moto e dinheiro”.

MC Menor, outra estrela ascendente, explica: “Enxergo o mundo como meu público enxerga. Nasci na comunidade, sei que lá ninguém quer cantar pobreza e miséria”. Não por acaso, é em São Paulo que o funk se torna uma expressão do desejo de consumo da juventude emergente das periferias.

Ao ascender economicamente, a “nova classe média” parece se apropriar da visão de mundo da classe média tradicional – talvez com mais pragmatismo e certamente com muito mais pressa. Em vez de lutar coletivamente por escola pública de qualidade, saúde pública de qualidade, transporte público de qualidade, o caminho é individual, via consumo: escola privada e plano de saúde privado, mesmo que sem qualidade, e carro para se livrar do ônibus, mesmo que fique parado no trânsito. O núcleo a partir do qual são eleitas as prioridades não é a comunidade, mas a família.

Se no passado recente o rap arrastou multidões nas periferias de São Paulo com um discurso fortemente ideológico contra o mercado, hoje o espaço é parcialmente ocupado pelo “funk da ostentação” e seu discurso de que uma vida só ganha sentido no consumo. As marcas de uma vida não se dão pela experiência, mas se adquirem pela compra: as marcas da vida são grifes de luxo, segundo nos informam as letras do funk paulista. Alguns dos grandes nomes do rap engajado do passado também podem ser vistos hoje anunciando produtos na TV com desembaraço – o que também quer dizer alguma coisa.

É importante observar, porém, que aquilo que eu tenho chamado aqui de vulgaridade do desejo não é uma novidade trazida pela “nova classe média”. Ao contrário, a influência tem sinal trocado. O que os emergentes da classe C tem feito é se apropriar da vulgaridade do desejo das elites. O funk da ostentação de MC Danado, ao recitar grifes e fazer uma ode ao consumo, pode estar na boca de qualquer socialite que possamos entrevistar agora no corredor de um dos shoppings de luxo.

Neste contexto, a vulgaridade do desejo tem em Russomanno sua expressão mais bem acabada na política. Assim como na religião encontra expressão em parte das igrejas evangélicas neopentecostais e sua teologia do compre agora para ganhar agora. Nesta eleição de São Paulo, testemunhamos uma aliança e uma síntese da nova configuração do Brasil – possivelmente menos transitória do que alguns acreditam ser.

Russomanno não inventou a vulgaridade do desejo – apenas a explicitou e tratou de encarná-la. Seus oponentes têm uma biografia muito mais relevante, assim como partidos mais sólidos. Mas parecem ter perdido essa vantagem junto a setores da população no momento em que se renderem à lógica do consumo e viraram também eles um produto eleitoral. Pela adesão à política de mercado, perderam a chance de representar uma alternativa, inclusive moral.

José Serra (PSDB) tem feito quase qualquer coisa para conquistar o apoio das igrejas na tentativa de vencer as disputas eleitorais. Basta lembrar como um dos exemplos mais contundentes o falso debate do aborto estimulado por ele na última eleição presidencial, na ânsia de ganhar o voto religioso. E Fernando Haddad (PT), que se pretende “novo”, antes do início oficial da campanha já tinha abraçado o velho Maluf. Para quê? Para ter mais tempo de TV – o lugar por excelência no qual os produtos são “vendidos” aos consumidores.

Quem transformou eleitores em consumidores de produtos eleitorais não foi Celso Russomanno. Ele apenas aproveitou-se da conjuntura propícia – e não perdeu a oportunidade ao perceber que os outros reduziram-se a ponto de jogar no seu campo. Afinal, de mercadoria Russomanno entende.

É bastante interessante que entre os mais perplexos diante deste novo Brasil, representado pelo fenômeno Russomanno, estejam o PT e a Igreja Católica. Ambos, porém, estão no cerne da mudança que agora se desenha com maior clareza.

A “era” Lula marcou e segue marcando sua atuação também pelo esvaziamento dos movimentos sociais – e da saída coletiva, construída e conquistada que foi decisiva para a formação do PT. Também estimulou sem qualquer prurido o personalismo populista na figura do líder/pai. Assim como na campanha que elegeu Dilma Rousseff, a sucessora de Lula no governo foi apresentada como filha do pai/mãe do povo. Em nenhum momento, nem o PT nem Lula pareceram se importar de verdade com o fato de que os numerosos militantes que no passado ocupavam os espaços públicos com suas bandeiras e seu idealismo foram gradualmente sendo substituídos por cabos eleitorais pagos, em mais uma adesão à lógica de mercado.

A cúpula da Igreja Católica no Brasil, por sua vez, atendendo às diretrizes do Vaticano, esforçou-se nas últimas décadas para esvaziar movimentos como a Teologia da Libertação, que representavam uma inserção do evangelho na política pelo caminho coletivo e pela formação de base. Esforçou-se com tanto afinco que perseguiu alguns de seus representantes mais importantes – e marginalizou outros. Mas parece que nem o PT de Lula nem a CNBB têm compreendido que o fenômeno Russomanno também foi gerado no ventre de suas guinadas conservadoras – e, no caso do PT, de suas alianças pragmáticas e da sua atuação para transformar a política num balcão de negócios. Sem esquecer, claro, que o PRB de Russomanno é da base de apoio do governo Dilma.

Quando a presidente do país dá o Ministério da Cultura para Marta Suplicy, para que ela suba no palanque do candidato do PT à prefeitura de São Paulo, por mais que os protagonistas aleguem apenas coincidência, é só política de mercado que enxergamos. E tudo piora quando Marta invoca uma trindade político-religiosa no palanque de Haddad: “O trio é capaz de alavancar (a candidatura de Haddad): a presidente Dilma, o Lula e eu. Eu, porque tenho o apelo de quem fez; eu sou a pessoa que faz. O Lula porque é um ‘deus’ e a presidente Dilma porque é bem avaliada. Então, com a entrada desse trio, vai dar certo”.

Diante do que está aí, feito e dito, por que o eleitor vai achar que Russomanno é pior? Ou que as alternativas a ele são de fato diferentes?

O mais importante não é atacar Celso Russomanno, mas compreender o que ele revela do Brasil atual. O fenômeno Russomanno pode ter algo a nos ensinar. Quem sabe sua liderança nas pesquisas eleitorais possa mostrar aos futuros candidatos que ética e coerência na política valem a pena se quiserem se tornar alternativas reais para uma parcela do eleitorado. Ou que se nivelar por baixo em nome dos fins pode ser um tiro no pé – tanto quanto se aliar com qualquer um. E talvez o fenômeno Russomanno possa ensinar aos futuros governantes que um povo se define pela qualidade do seu desejo. E desejo só se qualifica com educação.

Sempre se pode lamentar que o eleitor deseje o que deseja, mas o eleitor – em geral subestimado – sabe o que quer. Se a maioria acredita que tudo o que dá sentido a uma vida humana pode ser comprado num shopping, então São Paulo – e o Brasil – merecem Celso Russomanno.

(Publicado na Revista Época em 17/09/2012)

 

Seu J, o único homem que faz de mim o que quer

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

— Quanto tempo vai durar? — perguntei.

— Um mês — afirmou Seu J, categórico como se expressasse uma verdade tão óbvia quanto absoluta.

— Mas eu quero saber o prazo real, não aquele prazo que depois vira o dobro. Ou o triplo! Eu trabalho bem com a realidade, então preciso que o senhor me diga de verdade quanto tempo vai durar, para que eu possa me programar.

— Um mês dá tranquilo — e explicitou o cronograma como se recitasse uma Ave Maria.

— Vamos precisar sair do quarto?

— Não, imagina, não precisa. Pode continuar a vida normal.

E assim começou a obra do banheiro. No primeiro dia, a banheira aterrissou sobre a cama, de onde nunca mais decolou. No segundo, ele e os ajudantes já deixavam as roupas de trabalho penduradas no cabide. Ao final da primeira semana, não havia nenhuma camiseta, calça ou vestido de dentro do armário que não estivesse coberto por uma larga camada de pó. Para que eu não entrasse muito para espiar o andamento da obra, passaram a trancar-se à chave por dentro.

— Por que estão trancados? — perguntava eu.

— Para que a porta não abra com o vento — dizia-me ele, sorriso de orelha a orelha.

— Ah tá.

Na segunda semana, descobri que Seu J só trabalhava de terça a quinta. Perguntei a razão, e a explicação foi muito racional:

— Na segunda tem rodízio. Não teria cabimento eu vir lá de Francisco Morato depois das dez e ter de sair um tempão antes das cinco.

— Mas o senhor nunca chega antes das 11h…. E sempre vai embora antes das cinco.

— Então, pra você ver como o trânsito é ruim. Imagina com rodízio…

— E na sexta, por que não?

— Não gosto de trabalhar na sexta, nunca gostei. Por isso não sirvo pra ser empregado.

Rendi-me à lógica esmagadora.

Ao final do prazo, perguntei:

— Mas quanto tempo vai demorar ainda?

— A senhora não pode ser impaciente. Cada obra tem o tempo dela. A gente precisa deixar secar cada coisa.

— Mas eu perguntei ao senhor quanto tempo levava…

— Pois não é que eu também fiquei surpreso? Choveu muito, por isso demorou a secar.

— Mas faz mais de mês que não chove em São Paulo, os reservatórios de água estão baixando, a qualidade do ar está péssima…

— Sério? Rapaz, não ouvi nada sobre isso!

Quando completou mês e meio de obra, um estouro anunciou o curto circuito. A obra era de encanamento.

— O que aconteceu? — perguntei pela manhã.

— Pois não é que não sei? Eita trem mais estranho…

— Acho que deve ter sido naquela hora que o senhor puxou eletricidade direto da caixa para aquela máquina barulhenta, aquela que provocou um protesto do condomínio.

— Imagina, não tem nada a ver. Aquela máquina é perfeitamente normal, dá para puxar tranquilo a energia da caixa. Talvez tenha sido quando a senhora usou o secador de cabelo.

— Mas faz sete anos, desde que eu vim morar aqui, que eu uso o secador de cabelo. Mas a sua máquina foi a primeira vez.

— Ah, mas é assim mesmo. Sete anos já é bastante tempo, uma hora a coisa dá problema.

— Não é melhor chamar um eletricista?

— Eu sou eletricista de formação. Faço encanamento porque as pessoas pedem, mas o que eu entendo mesmo é de eletricidade.

— Fiquei muito mais tranquila agora.

— Que bom, fico feliz.

Ele passou o dia mexendo aqui e ali, tirando lâmpada, testando fio. De vez em quando pegava um pedaço de bolo de chocolate, já bem de casa, e ficava matutando, o olhar preso no horizonte, embora não exista isso em São Paulo. No meio da tarde reclamou da qualidade da bergamota (mexerica, para paulistas; tangerina, para cariocas). Expliquei que não tinha achado a que ele gostava, mas que procuraria mais. A noite chegou, e a casa começou a ficar escura.

— O senhor já conseguiu descobrir o que aconteceu? – perguntei de novo.

— Não tenho a menor ideia.

— Mas o senhor não é eletricista?

— Sou, mas tem coisa que acontece e a gente não sabe explicar. A senhora não lembra do ET de Varginha?

Dois meses no calendário. Chamei-o para uma D.R. na mesa da cozinha.

— Seu J, a gente precisa discutir a relação.

— Claro — disse ele. Posso pegar uma banana?

— Sim, sim. Mas, seu J, é o seguinte. Eu moro aqui e também trabalho aqui. Tudo o que eu faço é aqui dentro. E, o senhor sabe, eu ganho a vida escrevendo. Sem contar que estou com rinite alérgica há dois meses! Eu gosto do senhor, gosto do C e do T, sei que são gente boa, fiz até feijão pra eles, o senhor lembra?

— Ah, eles gostaram muito. Quando não tiver mais inspiração pra escrever, a senhora pode começar a cozinhar pra fora.

— Boa ideia, seu J, mas o que eu quero dizer ao senhor é que está muito difícil de escrever e todo o resto com a casa em obra há dois meses! Eu não tenho quarto, eu não tenho escritório, eu não tenho roupa limpa, às vezes eu não tenho nem luz! O senhor precisa botar um fim nisso. Não dá mais pra continuarmos assim. Seu J, eu não aguento mais! — terminei o ponto de exclamação num meio soluço patético.

— Você sabe que eu também escrevo?

— Escreve?

— Já tenho mais de 400 poesias.

— Verdade?

— Eu mexia com arte lá na Paraíba. Aí vim pra São Paulo, casei, vieram os filhos e tive de fazer obra. Mas hoje mesmo me inspirei e escrevi mais uma.

— Que bacana, seu J.

— E já fui Cristo, também, na Paixão de Cristo.

— Nossa, seu J, mas que interessante, um Cristo aqui na minha casa. Um privilégio, mesmo.

— Quer ouvir minha poesia preferida?

— Quero, claro.

E declamou “Versos Íntimos”, de Augusto dos Anjos.

— Acostuma-te à lama que te espera! O homem que, nesta terra miserável, mora entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera…

E sacudia a banana pela metade, quase em êxtase na minha cozinha amarela.

Senti-me vil. Que importância tinha uma reles obra diante dessa cena? Como pude eu me apequenar tanto ao comezinho da vida a ponto de choramingar por toneladas de pó, um banheiro perdido, eletricidade?!

Juntei-me a ele, alteando a voz e subindo numa das cadeira ao redor da mesa.

— Toma um fósforo, acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro.

A mão que afaga é a mesma que apedreja…

No dia seguinte, Seu J não apareceu para trabalhar. Ligou por volta de cinco da tarde.

—Tive um problema… Tô fazendo uma outra obra na Paulista pra uma mulher bem nervosa e ela me obrigou a ficar aqui. Mas, amanhã, oito da matina, eu tô aí….

A manhã chegou. São 10h neste momento. Toca o telefone. Eu sei que é ele. Eu sei!

Pelo menos aqui eu posso botar um ponto final.

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