Sobrenome: “Guarani Kaiowa”

O que move um brasileiro urbano, não índio, a agregar “guarani kaiowa” ao seu nome no Twitter e no Facebook?

No início de outubro, a carta de um grupo de guaranis caiovás de Mato Grosso do Sul provocou uma mobilização, em vários aspectos inédita, na sociedade brasileira. No texto (escrevi sobre isso aqui), os índios, ameaçados de despejo por ordem judicial, declaravam: “Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui”. A carta foi divulgada pelo Twitter e pelo Facebook, gerando uma rede de solidariedade e de denúncia das violências enfrentadas por essa etnia indígena. Desta rede, participaram – e participam – milhares de brasileiros urbanos. Para muitos deles, este foi o primeiro contato com o genocídio guarani caiová, apesar de o processo de extermínio da etnia ter se iniciado muito tempo antes. De repente, pessoas de diferentes idades, profissões e regiões geográficas passaram a falar diretamente com as lideranças indígenas, no espaço das redes sociais, sem precisar de nenhum tipo de mediação. E de imediato passaram a ampliar suas vozes. A partir dessa rede de pressão, as instituições – governo federal, congresso, judiciário etc – foram obrigadas a colocar a questão na pauta. Depois de dias, em alguns casos semanas, a imprensa repercutiu o que ecoava nas redes. Alguns dos grandes jornais enviaram repórteres para a região, colunistas escreveram artigos com diferentes pontos de vista. O movimento de adesão à causa guarani caiová nas redes sociais – sua articulação, significados e consequências – é um fenômeno fascinante. E, por sua força e novidade, traz com ele uma série de questões que possivelmente precisem de muito tempo para serem respondidas – e que não têm uma resposta só.

Esta coluna se propõe a pensar a principal marca desse movimento: a adesão pelas hashtags “#SouGuaraniKaiowa”/“#SomosTodosGuaraniKaiowa” e pelo acréscimo de “Guarani Kaiowa” ao primeiro nome das pessoas no Twitter e no Facebook. Exemplo: “Luísa Molina Guarani Kaiowa”.Hashtag é, na prática, uma espécie de slogan usado para marcar uma posição compartilhada e replicada, indexada pelos mecanismos de busca e medida nos “trending topics” (frases mais publicadas) do Twitter. Sempre começa por “#” e não admite separação das palavras. Nas redes sociais, a grafia de guarani caiová obedece à forma como os indígenas escrevem a sua língua no cone sul – com “k” e “w”, em vez de “c” e “v”.

A frase-conceito “Sou Guarani Kaiowa” se disseminou nas redes sociais e multiplicou-se em vídeos no YouTube. Até mesmo Mia Couto, grande escritor moçambicano, declarou em vídeo, ao passar pelo Brasil semanas atrás: “Venho de muito longe, mas não há longe em uma situação em que um povo está sujeito ao genocídio. Portanto, neste aspecto, eu também sou guarani caiová, sou brasileiro e estou sendo vítima do mesmo genocídio. Não posso ficar calado”.

Algumas pesssoas – tanto públicas quanto anônimas – desqualificaram essa marca como modismo. Consideraram ridículo o fato de brasileiros urbanos e não índios se apresentarem como guaranis caiovás nas redes sociais. Outras querem entender o que isso significa, o porquê de alguém, afinal, passar a dizer que também é índio e colocar o nome da etnia como sobrenome nas redes. Vários leitores têm me indagado neste sentido, com o propósito tanto sincero quanto legítimo de compreender um fenômeno recente do país em que vivem.

A questão é mais complexa do que pode parecer a princípio: afinal, o que é ser ou o que torna alguém um alguém? O que seria, por exemplo, ser brasileiro e o que torna alguém brasileiro? No caso das redes sociais, o que significaria este “Sou Guarani Kaiowa”? Penso que, diante do novo – ou mesmo do velho –, o primeiro movimento para começar a compreender algo é escutar, com muita atenção. Neste caso, o que dizem aqueles que anunciam, de diferentes lugares geográficos e simbólicos: “Sou Guarani Kaiowa”.

Para as primeiras pistas sobre essa questão, convidei pessoas que participaram dessa mobilização nas redes sociais a darem seus depoimentos aqui: Luísa Molina, Eduardo Viveiros de Castro, Marcia Tiburi, Idelber Avelar, Pádua Fernandes, Rita Almeida e Marina Silva. Ou, conforme seus nomes no Twitter: @lupontesmolina, @nemoid321, @marciatiburi, @iavelar, @paduafernandes, @ritacaalmeida e @silva_marina. Eles são alguns entre os milhares que ajudaram a construir os sentidos dessa marca. Sentidos que, claro, seguem em construção.

A seguir, eles respondem a duas perguntas: 1) O que significa dizer nas redes sociais “Sou Guarani Kaiowa”, assim como acrescentar “Guarani Kaiowa” ao próprio nome?; 2) Por que há um movimento tão forte e abrangente nas redes sociais neste momento, quando o processo de genocídio dessa etnia indígena vem ocorrendo há décadas?

Luísa Molina, @lupontesmolina, antropóloga, 24 anos, Brasília:

1) “Tenho 1.352 amigos no Facebook. Quase uma multidão virtual. Se hipoteticamente eu os reunisse na Praça dos Três Poderes, em Brasília, e vestisse uma camisa, carregasse uma bandeira ou mesmo escrevesse no meu rosto ‘Guarani Kaiowa’, haveria tanto estranhamento, tanta reação adversa e alheia ao propósito do meu ato, como há quando mudo o meu nome para ‘Luísa Molina Guarani Kaiowa’ naquela rede social?

Não. E a resposta para isso é muito simples: todos estão acostumados com multidões na Praça dos Três Poderes, camisetas, bandeiras e rostos pintados. Há quantas décadas se vê nas ruas, nas notícias e até nos livros de história manifestações dessa forma? Está nesse caráter ‘costumeiro’, que para mim virou um vício da forma, um dos elementos principais para o estranhamento e as críticas sobre o novo ativismo que têm emergido nos últimos anos, e o lugar das redes no envolvimento de pessoas com ‘causas’ diversas. Mas não se deve concluir daí que uma forma deva ou vá substituir a outra; notemos apenas que algo novo está surgindo – é inegável.

E, felizmente, não é apenas na forma ou nos espaços (praça pública ou rede social) de agir que essa renovação está se dando. Firmar junto ao meu nome e afirmar em meio à multidão virtual ‘Eu sou Guarani Kaiowa’ ou ‘Somos todos Guarani Kaiowa’ é, para mim, a manifestação de uma nova ideia, ainda embrionária, por trás do envolvimento com o que se chama de ‘questões sociais’. Não é uma identidade (eu, branca, agora ‘índia de butique’). É justamente a dissolução de uma barreira velha, produto de outro vício muito arraigado: a redução da reflexão sobre diversidade ao problema da identidade. Este é um ponto crucial para que se entenda o propósito por trás dessas fortes sentenças ‘eu sou’, ‘somos todos’. É com essa força que, com responsabilidade, ‘brincamos’ – para que aqueles que só veem cara, vejam milhares de caras então, como os tantos Guy Fawkes que apareceram em V de Vingança e se proliferaram em grandes manifestações mundo afora. É preciso entender que, neste momento, não é a identidade que importa: os caiovás continuam se entendendo e querendo ser caiovás, e eu continuo sendo branca, sem pretensões de ‘virar índia’, e continuo não tendo pistoleiros à minha porta.

E não preciso ter pistoleiros no quintal para sentir o impacto de saber o que os guaranis caiovás vivem há tanto tempo. Como não preciso ser negra para defender cotas raciais. Equacionar ‘ser’ para ‘poder’, desta forma, além de empobrecer nosso pensamento, nos separa, coloca ‘cada um no quadrado’ de sua identidade e, assim, nos enfraquece. A meu ver, ao afirmar ‘eu sou’, ‘somos todos’, nós conseguimos, em grande medida, inverter essa lógica. E, para mim, usá-la no Facebook é como abordar a política como algo que se faz no cotidiano: pois firmando e afirmando ‘sou Guarani Kaiowa’ eu me posiciono e posso, a partir daí, dialogar com outros. Minha esperança é de que essa nova ideia de ‘somos todos’ derrube de vez o apego aos ícones e às bandeiras – frutos do velho problema da identidade e da separação das causas.”

2) A resposta pode partir do próprio histórico do genocídio: a ação violenta dos brancos do Mato Grosso do Sul, do governo federal (pelo SPI – Serviço de Proteção aos Índios – e mais tarde pela Funai) e do governo local fortaleceram uma postura e um imaginário anti-indígena que vigora até hoje, em maior ou menor grau, a depender da região. E também não é de hoje que o desenvolvimentismo do Brasil atropela o modo de vida de minorias. Além de, na prática, minar e eliminar os indígenas por não vê-los como sujeitos de direitos, e sim como obstáculos para o projeto de nação, o discurso oficial e os seus veículos midiáticos sempre blindaram a possibilidade de se expor de modo democrático e responsável a realidade e o ponto de vista das minorias.

Acredito que essa barreira está sendo furada pelas redes sociais. As múltiplas possibilidades de compartilhar informação permitem, agora, que vozes antes restritas a pequenos grupos circulem amplamente e transponham, inclusive, as fronteiras do país, alcançando outros sujeitos com os quais os indígenas podem dialogar e agir junto. E assim foram realizados dezenas de atos de apoio aos guaranis caiovás, no Brasil e no exterior. Isso não quer dizer, necessariamente, que haja mais consciência hoje sobre a situação dos povos indígenas no Brasil, ou que a população, em geral, esteja mais sensível aos direitos desses sujeitos. Mas acredito que avançamos em termos de possibilidade de informação, apreensão e ação com a participação cada vez mais ampla das pessoas nas redes sociais e das redes sociais na política do dia a dia.”

Marcia Tiburi, @marciatiburi, 42 anos, filósofa e escritora:

1) “Significa, a meu ver, o ato de solidarizar-se com aqueles que são socialmente injustiçados. Os conservadores tratarão isso como ‘modinha’, pois sabem que a solidariedade é perigosa para um sistema baseado na competitividade. A solidariedade não é uma aliança com o simplesmente igual, mas o desejo da diferença, em nome da diferença. Atitudes como essa manifestam um outro desejo, o de fazer comunidade com o diferente. Não com o igual. Em outras palavras, não se trata de defender o próprio direito apenas, mas o direito dos outros com os quais as pessoas se relacionam por ‘não identidade’, mas, ao mesmo tempo, identificando-se com a causa. A meu ver isso é um avanço em nossa sociedade. Assim, as pessoas assumem o nome como quem usa uma tarja, um panfleto de admiração, respeito e de horror à injustiça.”

2) “Somente agora, depois de 30 anos da Abertura política, os brasileiros começam a sentir que podem pensar diferente. Que é possível também dizer o que se pensa quando se faz crítica social. Antes, as condições para a exposição da própria opinião eram ainda mais apavorantes do que hoje. Se hoje há uma ditadura capitalista que se apresenta toda escamoteada, antes havia uma ditadura militar, o que tornava tudo pior. Creio que estejamos entendendo que a liberdade de expressão é para todos. E que, numa democracia, as pessoas podem ficar do lado de quem quiserem.”

Eduardo Viveiros de Castro, @nemoid321, 61 anos, antropólogo, professor do Museu Nacional (UFRJ):

1) “A significação desse gesto é manifestar solidariedade com alguém, pessoa ou comunidade que precisa de apoio e não está tendo seu nome, sua causa ou sua dor devidamente divulgados por quem deveria fazê-lo. É uma forma de protesto, de identificação pública com quem não está sendo ‘publicado’. Um modo de chamar a atenção para uma pessoa, um povo ou uma causa que está sendo deliberadamente calado pela mídia, ou está sendo alvo de uma campanha de difamação. Alguém cujo direito a ser ouvido não está sendo respeitado pelos poderes constituídos.

Pôr o nome dos guaranis caiovás como parte do seu próprio identificador nas redes é como carregar uma faixa. Ou como fazer uma tatuagem. Chamo a atenção para o fato de que a troca de nome entre indivíduos, como modo de instituir uma relação social entre não parentes, marcar a criação de um laço de aliança e amizade, era uma prática comum entre os ancestrais dos caiovás, os povos Tupi-Guarani do século XVI, aqueles que receberam (tão bem, para sua desgraça) os invasores europeus nas praias do Brasil. Uma das etimologias mais prováveis da palavra ‘xará’ é o tupi ichê rera, ‘meu nome’, isto é, diz-se de alguém que tem o mesmo nome que eu, porque eu lhe ‘dei’ meu nome e ele me ‘deu’ o seu.

Compartilhamos nomes porque somos um só, somos a mesma pessoa. O gesto de pôr ‘Guarani Kaiowá’ como parte do próprio nome parece-me assim especialmente significativo, por essa feliz coincidência de que é (ou foi) uma prática especialmente significativa para os próprios índios. Chamar-se ‘Fulano Guarani Kaiowá’ é como pôr os guaranis caiovás como parte da família, ou melhor, ver-se como parte da família dos guaranis caiovás.”

2) “Não é a primeira vez, diga-se, que a causa indígena, a tragédia indígena que é a violação sistemática dos direitos desses povos pelo Estado brasileiro e por seus donos, as elites econômicas e sociais, é encampada pela opinião pública urbana. A criação do Serviço de Proteção aos Índios, em 1910, foi resultado mais ou menos direto da indignação causada por um artigo do diretor do Museu Paulista, Hermann Von Ihering, que pregava a extinção programada dos índios brasileiros. A criação do Parque Indígena do Xingu, em 1961, também teve grande apoio popular. Neste último caso, como aliás no primeiro, o envolvimento positivo da imprensa foi importante.

O caso agora é inverso. O agronegócio, representado no Legislativo pela chamada ‘bancada ruralista’ e nos meios de comunicação por muita gente, é o setor da sociedade brasileira responsável pela campanha negativa contra os indígenas desencadeada nos últimos meses. O que temos hoje, portanto, é o poder das redes sociais: a tomada de novos canais de comunicação, ainda fora do controle imediato do sistema de poder nacional, pelas classes médias urbanas e por frações significativas das classes populares.

Pela primeira vez, esse povo indígena está conseguindo ser visto e ser ouvido diretamente por nós, os distraídos, os transeuntes, os bem-intencionados mas sempre muito ocupados, os cidadãos desse triste Brasil grande e moderno, que ou não sabíamos o que se passava com esses outros brasileiros a quem devemos tanto, ou sabíamos mas fingíamos que não sabíamos, ou sabíamos mas não sabíamos que podíamos fazer alguma coisa a respeito. Agora sabemos.”

Idelber Avelar, @iavelar, 44 anos, professor de literatura na Universidade Tulane, em Nova Orleans, Estados Unidos:

1) “É um gesto bonito, porque pressupõe uma identificação com o outro, uma tentativa, ainda que mínima e simbólica, de colocar-se no lugar do outro. É como se estivessémos dizendo: enquanto estas atrocidades estiverem sendo perpetradas contra os guaranis, todos, inclusive os que lucram com elas, se tornam menos humanos. Lembremos que é um gesto que tem certa tradição na canção brasileira (ver, por exemplo, ‘Tubi Tupy’, de Lenine, ou várias canções de Caetano, entre elas ‘Sou você’, ‘Eu sou neguinha’ e ‘O quereres’). Tem também larga história nos movimentos de solidariedade à Palestina, que foi onde eu o encontrei pela primeira vez. A crítica que normalmente se faz, a de que é uma ‘moda’ que arrasta gente que ‘não sabe nada’ sobre a causa, é tola: o gesto é, também, uma porta de entrada para que muita gente se informe sobre a desesperadora situação no Mato Grosso do Sul.”

2) “É verdade que o genocídio está acontecendo há décadas (há séculos, poderíamos dizer), mas também é verdade que a situação se deteriorou muito nos últimos dois anos, se não no aspecto material – este, para os guaranis, continua tão ruim como antes –, pelo menos nas dimensões política e simbólica. O agronegócio está bem mais ousado em seu ataque aos indígenas. A coalizão que dava sustentação ao lulismo, na qual ainda havia algum espaço para lutar pelos direitos ameríndios, foi substituída por um governo que é claramente hostil aos índios, dado o seu caráter mais tecnocrático e desenvolvimentista. Os casos se acumulam: o ataque da Polícia Federal aos mundurucus; a portaria 303, clara afronta aos povos nativos; a intensificação da obsessão barrageira; a demissão, sem qualquer explicação, do cacique Megaron da Funai; a falta de diálogo com os representantes dos povos indígenas; a completa ausência de consideração pelos seus reclamos no caso da usina de Belo Monte; o visível esforço para se aprovar algo que nem a ditadura conseguiu, mineração em terras indígenas; a troca na direção do Ibama, ocasionada por Belo Monte; entre vários outros exemplos. A solidariedade aos guaranis tem lugar, então, num contexto mais amplo, de recrudescimento da luta.

As redes foram fundamentais neste movimento e têm suprido, já há algum tempo, uma lacuna da imprensa brasileira. Com raríssimas e honrosas exceções, a imprensa tem coberto mal a situação dos guaranis e a realidade dos indígenas brasileiros em geral. As redes possibilitaram, por exemplo, que as próprias lideranças guaranis testemunhassem sobre sua situação e que circulassem notícias, fotos e depoimentos em tempo real, com toda a dramaticidade que isso acrescenta à questão. Como veterano das primeiras gerações de blogueiros, sempre fui entusiasta das possibilidades abertas pela internet, mesmo que o impacto que um dia tiveram os blogues tenha hoje se deslocado para formatos mais instantâneos, como o Twitter e o Facebook. É claro que as redes não substituem a luta presencial, nas ruas, mas não há dúvidas de que oferecem a ela uma ferramenta poderosíssima.”

Pádua Fernandes, @paduafernandes, 41 anos, professor de Direito em São Paulo:

1) “Trata-se de uma atitude de solidariedade e resistência. É certo que a maior parte da população brasileira tem ascendência indígena, como eu mesmo, mas a defesa desta etnia ameaçada não se trata apenas de uma homenagem à nossa formação histórica. Trata-se de uma luta do presente que interessa a todos, pois há um princípio fundamental que está sendo ferido, o da dignidade humana, e há uma enorme riqueza que está sendo destruída em nome do ouro, tantas vezes falso, do agronegócio: a riqueza da diversidade, ambiental e humana. Sem a dignidade e a diversidade, não teremos futuro.
Recentemente, foram veiculados discursos que, contra toda evidência científica, tentam sustentar que os índios não existem mais ou querem deixar a condição indígena, em uma espécie de extermínio simbólico mascarado pela ‘marcha do progresso’, que ocorre paralelamente às mortes no campo. Trata-se de uma propaganda que pressupõe a ideia de que o genocídio dos índios no Brasil já teria se cumprido, numa espécie de gozo perverso pela consumação de um crime contra a humanidade. Afinal, se não houvesse mais índios, já não teria mais sentido a proteção a suas terras dada pela Constituição de 1988, que ficariam livres para a ação de grileiros e empreiteiras. É isso o que se cobiça.

Os ataques às terras indígenas, bem como o alto índice de suicídios nessa população, mostram que continua a ocorrer o crime de genocídio nos termos da Convenção da ONU de 1948 e da lei nº 2889/1956. Lembro aqui que comete esse crime, considerado hediondo pela lei nº 8072/1990, quem, entre outras ações, ‘submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial’. É o que está a ocorrer com a etnia guarani caiová, e é, segundo creio, o que se pretende com Belo Monte.”

2) “A sociedade mudou, o que se deve à ação dos grupos historicamente discriminados. O fato de as ideias eugênicas e racistas, ainda que presentes na sociedade brasileira, não terem mais respeitabilidade intelectual também ajuda. Outro fator positivo é o fato de a esfera pública ser hoje mais livre do que no período da ditadura militar, época em que esses abusos não podiam ser noticiados e a atual mobilização seria considerada um crime contra a segurança nacional.

Devemos lembrar que, durante a ditadura, uma etnia como a uaimiri-atroari foi provavelmente alvo de genocídio, que teria atingido duas mil pessoas do grupo. Devido aos casos de abusos, neste mês de novembro, a Comissão Nacional da Verdade criou um grupo de trabalho, presidido por Maria Rita Kehl, para apurar violações de direitos humanos de pessoas que lutavam pela terra e de grupos indígenas. Essa demanda pela justiça, de que a CNV é um exemplo, é um fator novo e positivo, que denota mudanças na sociedade brasileira.”

Rita de Cássia de Araújo Almeida, @ritacaalmeida, 43 anos, psicanalista, blogueira, trabalhadora da rede CAPS/SUS Saúde Mental, em Juiz de Fora, Minas Gerais:

1) “Decidi mudar meu nome virtual a partir de um convite de mobilização no feicebuque, por meio do qual tomei conhecimento da carta da comunidade guarani caiová para o governo e a justiça do Brasil. O que mais me comoveu na carta foi quando ela diz: ‘Decretem nossa morte coletiva, enterrem-nos aqui’. Sou uma profissional da saúde mental do SUS, lido todos os dias com o sofrimento das pessoas e não é incomum termos que lidar com essa radicalidade que é o desejo ou o ato de uma pessoa de pôr fim à própria vida. E isso sempre acontece quando a pessoa não enxerga nenhum caminho possível para sair do seu tormento. Quando a única saída pensada pelo sujeito é a morte é porque o seu sofrimento é muito, muito intenso, o que torna a nossa intervenção profissional extremamente difícil e delicada, além de nos colocar diante de um enorme sentimento de impotência e desimportância. Então, por me sentir sensibilizada com o sofrimento daquelas pessoas, por pensar que, como profissional da saúde mental, não poderia me silenciar, decidi participar da mobilização que era possível para mim naquele momento: mudar meu sobrenome. A partir desse ato, comecei a me interessar mais pelo tema, discutir e provocar o tema na minha rede de contatos e compartilhar minhas impressões também fora do campo virtual.

Algumas pessoas criticam as relações virtuais porque pensam nelas como uma espécie de fumaça. Como se este tipo de experiência não tocasse nosso corpo, nossa vida, nosso cotidiano, mas que bobagem…. claro que tocam! No ambiente virtual nos apaixonamos, fazemos amizade, criamos conflitos, nos decepcionamos, aprendemos, desaprendemos, no meio virtual podemos ser educados, solidários, perversos, desinteressados, egocêntricos, paranoicos, engraçados… E podemos, sim, fazer manifestações e ativismo. Li, durante as últimas semanas, muitas opiniões, na própria internet, que criticavam essa iniciativa, debochando, menosprezando e até xingando os participantes do que eles chamam ‘ativismo de sofá’ ou ‘ativismo de butique’, como se fosse um ativismo de mentirinha. Já passou da hora de compreendermos que a internet e as redes sociais são formas vivas e legítimas de interação e comunicação, modos de fazermos laço social (como dizemos em linguagem psicanalítica), e, assim como qualquer outra forma de laço, têm suas virtudes e também limitações e mal entendidos. E nesses enlaçamentos podemos, sim, promover, entre tantas outras coisas, mobilizações vivas e potentes, que tanto podem permanecer apenas no campo virtual, quanto transbordar dessa virtualidade e ‘tomar corpo’.

A questão de incluir o sobrenome ‘guarani kaiowa’ não teve pra mim o sentido de identificação. Não sou uma índia, não sou uma guarani caiová, nem saberia ser. Obviamente, tenho consciência disso. Também sei que não sendo um deles não poderia me apropriar do discurso deles. Sendo assim, não me sinto autorizada a discursar por eles, para eles ou sobre eles, mas posso, sim, discursar com eles. Foi por isso que mudei meu nome, para participar da mobilização da maneira que pudesse participar, e porque entendi que, com este ato, poderia estar com eles de alguma maneira, compartilhando seu sofrimento e também sua luta por dias melhores. E afinal, essa também não é a luta de todos nós? Dias melhores?”

2) “Não sei dizer o motivo pelo qual essa mobilização aconteceu agora, talvez seja porque a carta dos guaranis caiovás tenha realmente produzido um impacto, como se ela fosse um grito tão alto que nós não pudéssemos mais fingir que não ouvimos. Isso porque acredito que toda essa mobilização surgiu a partir da divulgação da carta.

Sou militante do movimento anti-manicomial (nascido há mais de 20 anos, quando ainda não havia internet). Durante décadas, os chamados doentes mentais ficaram encarcerados nos hospitais psiquiátricos, sofrendo maus tratos, tratamentos violentos e morrendo de desnutrição e diarreia por não terem direito às condições básicas de alimentação e saneamento. É claro que as críticas e descontentamento com esse modelo de tratamento já existiam, mas, no entanto, foi a partir de um episódio específico que o movimento de luta contra o modelo manicomial tomou corpo. Neste caso, o gatilho disparador foi a divulgação do documentário ‘Em nome da razão’, de Helvécio Ratton, que retratava a tragédia vivida pelos milhares de internos do Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais. O que quero dizer é que, em todo tipo de ativismo e movimento social, pode haver esse momento pontual a partir do qual um gatilho é disparado. Acredito que isso aconteceu também no caso dos guaranis caiovás, a partir da divulgação da carta.”

Marina Silva, @silva_marina, 54 anos, ambientalista, professora de História, ex-ministra do Meio Ambiente, ex-senadora, ex-candidata à presidência da República:

1) “Há poucos dias assinei assim (Marina Silva Guarani Kaiowa) um artigo no qual expliquei o significado que essa ‘identidade’ tem para mim. Comparei com o que fazíamos, nas assembleias do movimento estudantil, nos anos 70, início dos 80, quando respondíamos ‘presente’ sempre que era citado o nome de algum líder assassinado. É uma declaração de que os companheiros permanecem vivos, em nós, que prosseguimos com seu trabalho e sua luta.

São milhares de guaranis caiovás mortos, nos últimos anos, por assassinato ou suicídio. As pessoas estão comovidas com a situação deles, querem declarar que são solidárias, que se ‘identificam’ e se importam com eles. Isso é muito significativo, porque representa uma consciência de que somos um só povo, formado de muita etnias, mas somos todos brasileiros, latino-americanos, humanos, e devemos uma reparação e um desagravo às parcelas que foram historicamente excluídas, oprimidas e humilhadas.

E há mais: essa solidariedade ao povo indígena em situação mais dramática acontece num momento em que mais de 1 milhão de pessoas assinaram o pedido de veto às mudanças no Código Florestal, em que milhares se mobilizaram na defesa da floresta, em defesa das comunidades afetadas pela construção da usina de Belo Monte, além das mobilizações que tivemos durante a Rio+20.

A identidade com os guaranis caiovás, portanto, não é um modismo, é uma demonstração de mudança nos sentimentos e na consciência de uma ampla parcela da população, que está atenta ao que acontece, e se posiciona. Quer dizer que, em situações em que a dignidade humana é ultrajada, a resposta à pergunta ‘por quem dobram os sinos’ continua sendo a mesma dada pelo deão da catedral de Saint Paul: ‘eles dobram por todos nós’.”

2) O que iniciou essa manifestação foi a carta da comunidade de Pyelito Kue/Mbarakay, recusando-se a ser expulsa das margens do rio Hovy, dizendo que ficariam lá até morrer. A carta expõe a situação terrível em que eles se encontram e não é mais alguém falando por eles, um órgão de governo ou uma ONG. São eles mesmos gritando ao mundo por socorro. E o grito deles é comovente, porque vem da alma e do coração, não é um ‘análise’, não é uma política, não é um discurso. É a palavra, ao mesmo tempo sábia e desesperada, de alguém que sabe que vai morrer. ‘Ave Cesar’ foi o que eles nos disseram. E para não ficar no lugar de César, que os condena à morte, queremos ficar ao lado deles.

Por que agora? Porque temos um acúmulo de informação, de consciência. E porque se tornou visível o retrocesso socioambiental promovido pelos setores mais atrasados do ruralismo, com apoio ou conivência do governo. Desfiguraram o Código Florestal, desmontaram programas de controle ambiental, enfraqueceram os órgãos de gestão, negaram os direitos das comunidades tradicionais. Ou seja: estão passando com o trator sobre a floresta e as comunidades que nela vivem. As pesquisas mostram um aumento na consciência e na adesão das pessoas às causas socioambientais. Elas sabem que os grandes desastres que acontecem – as enchentes e secas, furacões e maremotos –são mais frequentes agora por causa do aquecimento global. Sabem também que é preciso prevenir, adaptar-se, socorrer e minimizar as consequências desses desastres. E um número cada vez maior de pessoas passa a compartilhar a ideia de que o desenvolvimento econômico não é um simples ‘crescimento’ – ele pode ser politicamente democrático, economicamente próspero, ambientalmente sustentável, culturalmente diverso e socialmente justo.

O Brasil vive um momento especial, em que o atraso político, com a falência do sistema partidário e a sua corrupção endêmica, torna-se visível para a maioria da população. A internet tem sido importante para que as informações circulem e alcancem um público maior. Então a juventude, sempre querendo dar um passo à frente, usa as redes sociais, blogs, sites e todo o instrumental da internet para focar nas questões que dizem respeito às ameaças que vivemos no presente e ao que podemos fazer para superá-las e garantir que tenhamos um futuro melhor ou, pelo menos, algum futuro.

Como educadora, aprendi uma coisa: só é possível ensinar algo aos jovens se estivermos dispostos a também aprender com eles. O mesmo vale para a sociedade brasileira, que precisa ter humildade para aprender lições essenciais com os povos indígenas. Por isso somos todos guaranis caiovás. Aliás, todos somos, mesmo que alguns não saibam ou não gostem disso.”

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Perguntei ainda ao guarani caiová Tonico Benites, nome indígena “Ava Vera Arandu”, o que significa “ser guarani caiová”. Aos 40 anos, ele é doutorando em antropologia no Museu Nacional (UFRJ) e porta-voz da “Assembleia Geral Aty Guasu Guarani e Kaiowa”. Vive em Dourados, no Mato Grosso do Sul. Tonico Benites/Ava Vera Arandu respondeu: “Ser guarani caiová significa pertencer a determinadas terras específicas e sobretudo ser interlocutor dos guardiões dos recursos naturais, mantendo uma relação de respeito mútuo. Significa ser lutador/guerreiro irrenunciável pelo pedaço de terra antiga em que estão enterrados seus antepassados. E, se for preciso, se sacrificar e morrer com honra pelas terras de seus ancestrais. Ser guarani caiová significa ser um ser insistente que luta pela realização dos sonhos coletivos. Ser guarani caiová significa ser crente e profeta que luta e reza hoje para que o futuro da nova geração seja melhor. Ser guarani caiová significa criar alegria, sorrir muito e se ouvir atentamente. Ser guarani caiová significa se aconselhar de forma repetitiva para não reagir com violência às violências.”

(Publicado na Revista Época em 26/11/2012)

Missão Ebola: “Me reinventei a marretadas”

Débora Noal, psicóloga dos Médicos Sem Fronteiras, conta como é isolar o vírus mais terrível da nossa época – sem isolar a vida

Na manhã de 30 de julho, logo cedo, a psicóloga Débora Noal abriu sua caixa de e-mails depois de passar o café na cozinha do seu apartamento, em Brasília. Ao enxergar na lista o nome da organização internacional humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF), ela teve a sensação de loteria que costuma tomá-la nesses momentos em que ainda não sabe qual será o seu destino, mas tem certeza de que sua vida será alterada radicalmente no segundo seguinte. Desta vez, a proposta tinha um significado ainda mais impactante: “I contact you regarding your availability for ebola emergency in Uganda. Departure is asap. More details will be sent if you are available”. (“Entro em contato para checar sua disponibilidade para uma emergência de ebola em Uganda. Partida imediata. Detalhes serão enviados se sua resposta for afirmativa”. A maioria das pessoas gastaria menos de um segundo para dizer não. Débora sequer hesitou: “Sim”.

Passou mais de dez dias de sobreaviso, com a vida em suspenso, antes de ser informada de que a situação estava sob controle e sua presença não seria mais necessária. Recuperou, então, o mais próximo de uma rotina que um membro de MSF pode ter quando não está em campo – no caso dela, um mestrado no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). Dias mais tarde, ela recebeu um novo e-mail: agora, havia uma epidemia de ebola na República Democrática do Congo (RDC). Três dias depois, em 29 de agosto, embarcou no primeiro da série de voos que a deixaria na cidade de Isiro, perto da fronteira do Congo com Uganda, na África. Ao desembarcar, a equipe abraçou-se pela última vez. Dali em diante, eles não poderiam mais tocar – nem ser tocados.

Débora já tinha atuado em terremotos, conflitos armados, campos de refugiados tanto da guerra quanto da fome, mas era sua estreia numa epidemia de ebola. Para uma emergência de ebola, considerada a missão mais difícil de uma organização especializada em situações desesperadoras, só são chamados os mais experientes. De volta ao Brasil, Débora escreveria: “Voltei pra casa depois de 30 dias na epidemia de Ebola do Congo. E estou com aquele cansaço no corpo de quem passou a noite em claro num velório de 30 noites. Foi uma das missões mais difíceis que fiz. Triste. Muitas mortes. A vida se esvaindo sem dignidade. As febres hemorrágicas jogam na nossa cara a mesma matéria que nos faz viver. Era tanta vida saindo de cena e partindo, que, enquanto eu acordava, às cinco horas da manhã, segui escrevendo na minha agenda de atividades diárias a palavra funeral. E eu, um ser humano destes qualquer, uma mundele, uma mzumgu (branco estrangeiro), que nunca havia dividido os planos de vida com aquelas pessoas, agora era responsável por dividir com os parentes os planos para o último ato. O rito de passagem, funeral, velório, enterro era compartilhado sempre por mim. Queria que nós, humanos, virássemos fumaça, vento, ar. Indigno. Entrar no último ato dentro de um saco plástico lacrado, sem direito a ter sua face exposta. Sem direito ao último toque, à última fala, à última escuta dos votos de cuidado. Como assim? Sentimento de dor, sentimento de querer cuidar do outro. Como cuidar do outro sem tocar? Como abraçar alguém sem usar os braços? Como você acaricia a cabeça de uma menina de dois anos sem usar as mãos? Como dizer pra alguém que você está do lado dele quando precisa se afastar dois metros? Iniciar uma longa viagem sem companhia. Estar só. Logo ali, no último ato”.

Débora ainda estava de luto por um funeral ininterrupto. O ebola, vírus identificado pela primeira vez em 1976 no antigo Zaire (atual República Democrática do Congo), é uma febre hemorrágica frequentemente letal, para a qual ainda não existe nem tratamento curativo, nem vacina. É transmitido apenas pelo contato com os fluidos corporais de pessoas infectadas que já estão manifestando os sintomas da doença (dores de cabeça, inflamações na garganta, febre, vômitos e diarreia; hemorragias internas e externas nos casos mais graves). O ebola não é transmitido pelo ar, como o medo faz muitos acreditarem. Nesta última epidemia no Congo, a organização internou 80 pessoas no Centro de Tratamento de Ebola, das quais 36 foram confirmadas como positivas – 12 morreram. Como medida de segurança, os agentes de MSF são orientados a não terem contato direto nem entre si, nem com a população. Até hoje, nenhum membro da organização foi contaminado por ebola.

Mesmo assim, ao voltar para o Brasil, Débora preferiu passar 21 dias sem toque. Ela não havia sido infectada e não existia nenhum motivo racional para qualquer cuidado. Tinha enfrentado uma epidemia de ebola – e sobrevivido. Mas precisou desse tempo para costurar o vivido. A entrevista a seguir foi realizada em 26 de outubro, alguns dias depois do fim dessa espécie de quarentena que ela impôs a si mesma, no apartamento povoado por lembranças de viagens pouco convencionais que ela divide com o marido, Antonio, um sanitarista. Débora estava visivelmente mais magra, mas não tinha ideia de quantos quilos perdeu. Foram quase seis horas de conversa, interrompida às vezes por Schimia, uma cadelinha da raça Schnauzer (aqueles cachorros com barba e bigode). Nestas quase seis horas, Débora chorou durante a maior parte do tempo. Não um choro soluçado, mas um choro de córrego – lento, suave e intermitente.

Não é a primeira vez que Débora Noal, 31 anos, é entrevistada nesta coluna. Muitos leitores já a conhecem de uma entrevista anterior: “Minhas raízes são aéreas”. Vários deles alteraram suas vidas depois de lerem seu depoimento, por caminhos diversos. Talvez seja mesmo impossível entrar em contato com as experiências de Débora sem ser transformado de alguma maneira.

Nesta entrevista, ela conta como é cuidar sem poder tocar, como é integrar uma equipe de emergência numa das regiões mais miseráveis e violentas do planeta. Conta, principalmente, histórias sobre como arrancar vida no meio da morte, sobre a resistência da delicadeza mesmo nas horas brutas, sobre grandes gestos feitos por quem quase nada tinha além da sua humanidade. Conta ainda como foi assinalada – possivelmente para sempre – pelo que viveu.

Ao longo da sua trajetória, vamos conhecer o primeiro bebê a nascer vivo dentro de um Centro de Tratamento de Ebola. Descobriremos qual foi a solução, quase mágica para os congoleses, para fazer com que a comunidade aterrorizada se aproximasse das pessoas doentes – isolando o vírus sem isolar as pessoas. Saberemos por que um homem desesperado tentou fugir do Centro ao receber uma notícia de casa. E como um pai conseguiu fazer com que a filha morresse em paz, mesmo sangrando por todos os orifícios. Acompanharemos, também, como foi para Débora voltar de uma missão como esta e encontrar o medo no olhar das pessoas, mesmo as mais próximas.

A edição da entrevista respeita a sequência narrativa de Débora, tanto em sua linearidade quanto nos momentos de ruptura. Na anterior, eu mencionei que havia publicado um terço de nossa conversa. Passei meses recebendo pedidos de pessoas que queriam os dois terços restantes. Desta vez, ousei um pouco mais: depois de duas semanas de trabalho meticuloso, consegui reduzir nossa conversa à metade essencial.
Esta é a travessia de uma mulher, ao mesmo tempo para fora e para dentro de si mesma.

Débora Noal registrou muitas imagens durante a epidemia de ebola, na República Democrática do Congo, como parte do ato de cuidar. Mas não registrou a si mesma. Esta foto foi tirada um mês depois da sua volta da Missão Ebola. (Foto: Divulgação)

Débora Noal registrou muitas imagens durante a epidemia de ebola, na República Democrática do Congo, como parte do ato de cuidar. Mas não registrou a si mesma. Esta foto foi tirada um mês depois da sua volta da Missão Ebola. (Foto: Divulgação)

Por que você aceitou a missão de ebola?
Débora Noal – Eu tenho a sensação de que não é uma escolha, é um encontro. Naquele momento eu precisava fazer aquilo. Desde que eu entrei na organização, uma epidemia de ebola é algo que me mobiliza muito. As histórias de quem participa de missões ebola são muitos distintas das histórias de quem participa de um desastre natural ou de uma catástrofe humana, como uma guerra ou um conflito armado. As pessoas lembram de epidemias de ebola mesmo depois de passarem por um terremoto ou outra catástrofe, mesmo depois de muitos anos. Vejo isso nos “debriefings” que eu faço com as equipes, que são reuniões nas quais cada um relata aquilo que está sentindo, o que aconteceu, o que aquela vivência despertou em si, o que poderia ter sido diferente. Nesses encontros, eu avaliava se as pessoas que estavam saindo daquela missão tinham condições emocionais de chegar até sua casa sem precisar de um suporte especializado, se elas estariam em condições de voltar para casa. E percebi que as pessoas que tinham feito parte de missões de ebola tinham muito forte essa sensação de construção e de desconstrução. Ainda era muito forte, mesmo depois de terem acabado de viver experiências também muito fortes, como um terremoto. Então eu sempre quis muito participar de um momento como esse para entender como é que acontecia na prática. Mesmo dentro de MSF, que é a maior organização de emergência do mundo, as pessoas sempre se referem a quem faz parte de uma missão de ebola como alguém muito privilegiado, mas de um jeito particular. Depois que você faz parte uma vez de uma missão de ebola, você entra numa lista. E essas pessoas, normalmente, são as primeiras a serem chamadas. E jamais você vai enviar alguém que está na sua primeira missão, porque é uma missão muito delicada, onde há uma série de riscos à vida de outras pessoas, mas também à sua própria vida. Então, você tem que ter uma trajetória de experiência bem grande para ir. Assim, no momento em que ela me perguntou se eu estava disponível para uma emergência de ebola em Uganda, eu disse que sim, eu estava. Não era um disponível operacional ou um disponível de possibilidade concreta, mas era um disponível de corpo e alma. Estou nessa, estou junto, depois eu vou ver como eu organizo o outro lado da minha vida.

Como foi esse chamado para a missão?
Débora – Normalmente eu abro meus e-mails todo dia de manhã. Deixo o computador ligando, enquanto preparo o café. Antes de tomá-lo, eu vejo se tem algum e-mail urgente. Eles precisam de uma resposta rápida, no máximo algumas horas, para poderem organizar o sistema de envio dos expatriados para o terreno. (Em MSF, há os “expatriados”, profissionais de diferentes países do mundo, deslocados para cada missão; e há a equipe local, recrutada no próprio país no qual acontece a missão.)

Quanto tempo você levou para dar a resposta?
Débora – Dois, três segundos?

E o que fez em seguida?
Débora – Liguei para o Antonio, meu marido, e contei a ele. Ele estava chegando ao trabalho. E falou: “O que é isso? Calma. Como é que você tá me dizendo uma coisa dessas a essa hora da manhã? Eu vou voltar hoje pra casa, e a gente conversa”. Mas não tem esse tempo de voltar pra casa e discutir…

Mas como é isso, Débora? Sempre que você recebe uma missão, é uma coisa que transtorna totalmente a tua vida. Não dá medo disso? De abrir esses e-mails? Qual é a sensação de ligar o computador e encontrar lá na caixa um e-mail desses? E talvez naquele dia você quisesse só ficar quieta na sua casa. Como é não saber o que vai acontecer a cada dia seguinte?
Débora – É uma sensação meio estranha. Tem dias que é uma sensação um pouco como a roleta da loteria, em que as bolinhas ficam todas girando dentro do globo e, de repente, alguém aperta um botão e… zupt… a bolinha é sugada e foi justo aquela bolinha que você tinha preenchido lá no seu cartão de loteria. Acho que você sempre tem uma aposta. E às vezes a aposta era inclusive não ganhar na loteria. Não quero ganhar na loteria porque, se eu ganhar, vou ter uma série de outros percalços na minha vida, e eu não sei se é isso que eu tô querendo agora. Não sei se eu quero ficar rica, não sei se eu quero ficar milionária, não sei se eu quero ter uma série de atribuições de um milionário. E às vezes eu acho que eu tenho um pouco essa sensação de olhar o e-mail e ficar com medo. Será que hoje esse dia vem? Será que que esta é a semana, a semana que eu queria ficar dormindo até mais tarde e tomando água potável e tomando banho de chuveiro e ter uma sensação boa de ter água quente no chuveiro e ter uma cama em que eu não tenho medo que balance durante a noite num terremoto, será que é isso o que eu vou ter durante a semana toda? Tem dias que eu tenho essa sensação, mas não é todo dia. Não é um processo traumático abrir o e-mail. É um processo prazeroso, mas que dá um frio na barriga e um desconcerto interno cada vez que eu olho lá e que tem uma mensagem de MSF Internacional. Já me dá um… sei lá, um… um represamento interno. Como diria um amigo meu, me dá um represamento interno. Tipo: será que eu transbordo ou não transbordo? É uma sensação um pouco estranha, de estar um pouco congelada de frente para a tela. Ninguém está me vendo lá no outro lado, mas eu tenho a sensação de que, naquele momento, estou exposta. Tem um monte de gente esperando por mim, inclusive uma resposta de “sim ou não” que vai desencadear uma série de transformações na minha vida e também na vida de outras pessoas.

Mas é interessante que você fala em loteria, né? Ser recrutada para uma missão de ebola, correndo risco de uma morte bem terrível, é visto por você como uma “loteria”….
Débora – Mas eu tenho um pouco essa sensação. Qualquer outra pessoa podia ter sido chamada para cuidar, sabe? Mas desses milhões e milhões e milhões de pessoas que existem no mundo, sou eu que estou indo para lá. A organização tem 28 mil pessoas trabalhando, mas só uma psicóloga vai para lá. Então, talvez seja mais difícil ainda que ganhar na loteria ser chamada para um espaço desses, em que você tem que ter uma construção que está para além do seu presente. A construção tem que ter sido no passado, não se prepara da noite para o dia. E, naquele momento, alguém achou que eu era a pessoa mais preparada para ocupar aquele espaço. Então é uma sensação mesmo um pouco de ganhar na loteria. É a minha bolinha que saiu. Foi exatamente essa bolinha que eu preenchi lá no cartão da loteria.

E como foi nesse dia? Era uma daquelas semanas em que você queria tomar banho quente?
Débora – Era uma semana talvez pior ainda. Era uma semana em que eu tinha de terminar meu projeto para ser qualificada no mestrado e tinha que terminar outras coisas bem pontuais, com as quais tinha me comprometido. Como eu vivo nessa vida de que nunca sei muito bem o que vai acontecer, sempre vou deixando tudo um pouquinho pronto. Se eu tiver que viajar, eu só dou a última lida, a última revisada e envio. Inclusive já deixo tudo sempre no e-mail, no rascunho, pronto para enviar. Acontecendo uma emergência, eu só clico no “enviar”. Neste caso, como tinha vários compromissos, fiquei de stand by (na espera), e também deixei muita gente de stand by. Passei alguns dias numa correria, até que recebi o e-mail dizendo que a epidemia estava controlada e que não precisaria ir. Entre o primeiro e-mail e este último, demorou mais de 10 dias.

E como foram esses 10 dias? Imagino que, quando você aceita uma missão, uma parte de você já partiu, embora não tenha saído fisicamente do Brasil, da sua casa. Como é ir sem ter ido? E como é voltar, sem ter ido?
Débora – É bem complicado. Quando eu digo que eu fiquei em stand by, eu fiquei em stand by mesmo. Várias coisas na minha vida ficaram em suspenso. Então eu nem estava totalmente em Uganda, mas já estava pesquisando um pouco da cultura de Uganda, como é que eles trabalham, quais são os valores e, ao mesmo tempo, já estava pensando no que fazer, porque eu nunca tinha trabalhado numa missão de ebola. Por mais que eu tenha várias experiências com outras missões de emergência, nunca é a mesma coisa. Terremoto não é a mesma coisa que deslizamento de terra, que não é a mesma coisa que uma guerra. Comecei a ler todos os manuais, os guias técnicos, mas ao mesmo tempo não jogando todas as minhas fichas. Porque, se eu jogo todas as minhas fichas, o nível de frustração também é muito grande, porque aí eu vou ficar 10 dias conectada com aquela missão sem ter a contrapartida do olhar do outro. É o olhar do outro, de quem a gente vai cuidar, que alimenta esse desejo, esse investimento na missão. É meio complexo isso. Então, dez dias depois, eles falaram que “não”. E, bom, agora que eles me falaram “não”, então tudo bem. Fiquei um pouco frustrada, tipo: poxa, eu queria muito ver como se produz cuidado nesse lugar. Mas, ao mesmo tempo, bom, agora eu estou tranquila. Agora que eu já sei que é “não”, eu vou investir em outras coisas. E não demorou nem três dias meu investimento ferrenho nessa outra vida e veio o e-mail para a missão de ebola no Congo. E, aí, mais três dias e eu estava partindo.

Enquanto você espera a confirmação da partida, dá medo?
Débora – Dá, dá bastante medo. Inclusive porque as conversas das pessoas no meu entorno são bem tensionadas. Tipo: “Desta vez acho melhor você não ir. Por que você não pula essa?”. Eu acho também que é difícil para as pessoas entenderem como é que você vai para uma missão na qual não tem medicação apropriada, não tem cura, não tem uma estrutura de suporte que te garanta uma resposta positiva. Só que aí eu fico pensando no que é uma resposta positiva. Para mim, um cuidado paliativo talvez seja tão ou mais importante que um cuidado medicamentoso que pode curar a pessoa. Porque ainda que você prepare a pessoa para morrer com um pouco mais de tranquilidade, um pouco mais de paz, é um trabalho extremamente difícil e denso de fazer, e talvez mais forte, mais condensado ainda do que se a gente tivesse a possibilidade de curar aquela pessoa, de dar uma medicação adequada. Então, para mim, este já é um resultado. Ainda que a pessoa morra, não significa que o trabalho não deu certo. Pelo contrário, sabe? Ajudar alguém a morrer em paz, a morrer com tranquilidade, a morrer com conforto e com a sensação de estar dentro de um entorno acolhedor, este é o meu resultado.

Mas e o seu medo de morrer, como é?
Débora – É engraçado, eu nunca acho que vou morrer assim. Nunca acho mesmo. Talvez isso me dê a possibilidades de poder partir rápido, sem nem pestanejar, porque a morte para mim não é uma coisa sofrida. Mas a indignidade na morte é.

Mas em nenhum momento você teve medo de morrer?
Débora – Tive medo da indignidade da morte, mas não da morte em si. De morrer, de morrer, não. De não estar mais ali, por exemplo, para terminar aquilo que eu tinha como expectativa de fazer na vida, não. Não é esse o medo. Acho que tinha o medo dessa morte sofrida, dessa morte isolada, que é uma morte por ebola. Que não é isolada de todo, mas também não é compartilhada por todo mundo. Você compartilha com um, dois, três cuidadores, no máximo. As pessoas vão te visitar, uma ou duas vezes por dia, e ainda assim não é um processo acolhedor. Você morrer sem ser tocado… Ainda que as pessoas te toquem, elas vão te tocar com uma luva. Ainda que elas te olhem, elas vão te olhar através de uma máscara. Ainda que elas te abracem, elas vão te abraçar com toda a roupa de proteção. E me dá uma sensação ruim, sabe, de não receber mais o toque do outro.

Perfume da missão: “Clorrô zerrô point cinq”

Nem mesmo a equipe pode se tocar, certo?
Débora – Quando eu cheguei lá em Isiro (República Democrática do Congo), a primeira coisa que a equipe que estava junto comigo no avião falou foi: “Vamos se abraçar?”. Eu falei: “Gente, que estranho. Nunca ninguém me propôs isso dentro de um avião”. A gente sabia que, depois que saísse de dentro do avião, ninguém mais ia se abraçar durante longas semanas. E a cara deles refletia um pouco a minha cara, o que eu estava sentindo. Tipo: “Como será que é viver num mundo sem toque?”. Porque você não toca mais. Você passa semanas sem tocar na pele de ninguém. Você passa semanas sem ter um contato corporal que te dê uma sensação de acolhimento. Assim como você corre risco de ser infectado, você corre risco de infectar alguém se você tocar e você estiver contaminado. Então é uma sensação meio estranha de estar dentro de uma bolha, mas sem ver a bolha. É como se você estivesse o tempo todo se cuidando dos outros, mas também cuidando para que os outros não se contaminem com você. Acho que essa é uma relação bem difícil. Como é que você cuida de alguém sem chegar muito perto? Como é que você abraça alguém sem tocar? Como é que você faz um carinho em alguém sem encostar sua pele na pele do outro? E não é fácil de fazer isso, sabe? É uma sensação de o tempo todo estar se policiando. Você está caminhando na rua e você está se policiando, prestando atenção no que você está tocando. Você está entrando na casa de alguém e você está se policiando para prestar atenção em onde você está sentando. Você está prestando atenção até em onde colocar sua mochila, quando você está fazendo o atendimento de alguém e a casa da pessoa está toda contaminada. Você não está contaminada pelo vírus e você tem que falar para aquela pessoa que é importante que ela vá para um centro de cuidado, porque se ela ficar naquele espaço, além de ter o estado de saúde agravado, pode contaminar um número muito grande de pessoas. Porque as pessoas são muito acolhedoras naquele lugar. As pessoas se visitam muito, se tocam muito, se abraçam muito e têm poucos cuidados de higiene. Muito poucos. Porque não tem água potável, não tem sabão disponível para toda a população. Não tem chuveiro, e a latrina é compartilhada por quase toda a comunidade. Então uma pessoa ter diarreia naquele lugar torna a possibilidade de contaminação muito grande. E como você convence alguém de ir para um centro de cuidado de ebola? Com calma, com tranquilidade, sentando num lugar e demonstrando para a pessoa que você está totalmente disponível para ela, ainda que você não encoste nela. E que você não tem medo dela. Porque é muito ruim você olhar no olhar do outro e ver que o outro tem medo de você. E eu senti isso quando eu voltei, sabe? As pessoas com medo de mim. As pessoas virem me visitar, mas não entrarem na minha casa. E eu não estava contaminada com ebola, mas as pessoas vinham, me davam “oi” a dois metros de distância, me abanavam a dois metros de distância. E, no olhar do outro, eu via o medo de mim. E é uma sensação muito ruim essa de você olhar no olho de alguém e perceber que o outro está com medo de você. Teve uma técnica, lá, que usou uma expressão: “Uma bomba de ebola”. E eu tinha essa sensação de que as pessoas me olhavam aqui no Brasil como se eu fosse “uma bomba de ebola”, como se eu fosse uma mina terrestre da qual era preciso desviar. E é muito ruim você ser olhado por alguém como…

Como é que é?
Débora – É uma sensação de solidão compartilhada. Sabe? Quando você está junto com o outro, mas o outro está com tanto medo de você que ele não consegue compartilhar o mesmo espaço que você. E é bem ruim, sabe? É bem ruim porque são pessoas que você gosta. Não é qualquer pessoa que você nunca viu na vida e com quem você não tem nenhum laço. São pessoas que compartilham a vida comigo e que gostam de me abraçar, que vêm na minha casa e que sentam no sofá na minha casa. E de repente as pessoas diziam: “Ah, mas é melhor não ir na casa dela, a gente vai fazer num outro espaço”. E é uma sensação ruim. Só tiveram duas pessoas que… Duas pessoas, não. Uma pessoa e meia que não tiveram esse medo. Uma pessoa foi o Antonio, que me abraçou e coisa e tal, e a outra foi a cachorra, a Schimia. Então, meu maior carinho nesses primeiros tempos veio da Schimia. O tempo todo ela ficava colada em mim, dividindo esse momento comigo.

E como era lá no Congo? Como você vivia esse risco de contágio?
Débora – Tem umas coisas que você vai fazendo de forma meio inconsciente, tipo você volta para casa (dos MSF) com uma vontade incontrolável de tomar banho. De que me adianta chegar em casa e tomar banho? Não era algo racional, mas eu delimitei algumas regras para mim, que são umas regras meio doidas. Eu não dormia sem tomar banho. Não sentava na minha cama de jeito nenhum antes de tomar banho. Não levava a minha mochila para o quarto. Aí vem uma frase legal que o Log falou. (“Log” é a abreviatura de “logístico”. Considerados os “mágicos de MSF”, os logísticos são aqueles que fazem pessoas, equipamentos e estruturas chegarem em qualquer lugar do mundo no tempo hábil de salvar uma vida.) O Log disse o seguinte quando a gente saiu do avião: “Bem vindos à nova missão. Aqui o perfume da missão se chama (imita o sotaque francês): Clorrô zerrô point cinq”. “Cloro Zero Ponto Cinco” é o perfume da missão. Todo mundo cheira à cloro. Usamos cloro 0.5 para lavar coisas e 0.05 para lavar as mãos e o corpo. Assim, você passa pelas pessoas e está aquele cheiro de cloro, aquele cheiro de faxina. A gente cheira à faxina o dia inteiro.

Como são esses cuidados? Você lava a mão o tempo todo?
Débora – Com cloro. O rosto também. Só, claro, você não toma banho de cloro, né? Mas qualquer procedimento que você faça, se tocar em qualquer coisa, você já tem sempre uma bacia do seu lado com uma torneirinha, e na torneirinha você lava a mão com água mais cloro 0.05. Então é uma sensação estranha de estar o tempo todo cheirando a cloro. E quando você não cheira a cloro, você sente falta, sabe? Você vira um pouco “adicto de cloro”.

Todas essas coisas que você fazia, todos esses pequenos rituais, como não deixar a mochila sobre a cama nem sentar de roupa na cama… Nada disso adiantava. Você sabia disso, mas, mesmo assim, por que ainda assim era necessário?
Débora – É muito doido, porque o medo não é uma coisa consciente, sabe? E você sente medo várias vezes. Você tem medo de colocar qualquer coisa na sua boca: será que esse copo realmente está limpo? Vai ficando um pouco obsessivo-compulsivo com as coisas. O que você está tocando, onde você vai encostar o seu rosto na hora de dormir, quem foi que trocou o seu lençol. Você não leva o seu dia a dia no piloto automático. Todos os seus movimentos são analisados por você e por outra pessoa. Porque você tem que andar sempre em dupla, para que um faça atenção ao movimento do outro.

Numa outra missão no Congo, você contava uma experiência terrível de medo, em que havia um conflito armado muito perto e uma possibilidade real de a base dos MSF ser atacada. Se fosse, você corria sério risco de ser estuprada, entre outras violências. Qual é a diferença daquele medo para este, que vem da possibilidade de ser infectada por aquele que talvez seja o pior vírus da nossa época?
Débora – É estranho. Primeiro, porque o outro medo não passa, né? Você sabe que você ainda tem o risco. O conflito armado não está mais tão perto de você, mas você sabe que ainda corre esse risco. De Isiro para Niangara, que foi a cidade onde eu tinha muito medo dos estupros, são seis horas de carro. É muito engraçado isso, nada é um processo racional e consciente, mas à noite eu me vestia toda, como eu me vestia lá em Niangara. Fazia questão, por exemplo, de dormir de calça e de deixar a roupa um pouco preparada, embora para os outros expatriados, que nunca tinham feito parte de nenhum conflito armado, não fazia muito sentido o que eu estava fazendo. Eles não entendiam muito bem por que eu estava dormindo toda preparada. O que está fazendo essa doida, se preparando toda para dormir? Mas eu sentia vontade disso.

Gesto interrompido: coçar o olho é perigoso

Como é dormir assim?
Débora – Você passa 24 horas em estado de alerta. Eu dormia muito menos. É um cansaço estar com a mente o tempo todo trabalhando, inclusive dormindo. Resolvi vários problemas de consultas clínicas durante a noite. Tipo acordar e perceber que estava fazendo sentido o que uma pessoa tinha me dito durante o dia anterior. O cérebro não para. O tempo percorre a vida de um outro jeito, e de um jeito bem difícil de trabalhar. Você não consegue se desconectar do que está acontecendo, nem se desconectar de você. Inclusive dormindo. Às vezes você coça o rosto ou às vezes arruma o cabelo durante a noite. Mas de repente isso não é mais automático, você vai coçar o rosto e para com a mão. Então você acaba acordando durante a noite com esses movimentos. Você vai coçar o olho e você não coça mais. Você sabe que não tem mais esse direito de coçar o olho, de coçar o nariz, de passar a mão no rosto, arrumar a franja, arrumar o cabelo. Você não faz mais isso. E isso é interessante. Você leva alguns dias para se readaptar na volta, se convencer de que pode voltar a coçar seu olho, sabe? Que colocar a mão no rosto para escutar alguém pode ser normal de novo. Porque não é. Numa missão de ebola, em momento algum você repousa sua mão no rosto ou você coça seu olho ou arruma o seu cabelo. Você não faz. Todos os seus movimentos estão dentro de um scanner. Você está sendo escaneado o tempo todo.

Por você mesma?
Débora – Por ti mesmo, mas pelos outros também. Quando você entra dentro de um centro de tratamento, você está produzindo cuidado junto com o outro. E o outro te dizendo: “Não toca aí, você tocou lá? Lava a sua mão. Você pegou esse objeto? Lava a sua mão. Você pisou ali? Lava o seu pé”. Depois que você sai, você é todo desinfectado. Você abre seus braços, abre suas pernas, e alguém vai te desinfectar com cloro. E você lava seus objetos e as suas mãos incessantemente ao longo do processo. É um processo de limpeza, na sua saída, muito forte. E é um processo bem cansativo. Você tem mais de 18 itens sobre o seu corpo na hora em que você entra dentro de um centro de tratamento. Você tem uma calça que não é sua, é a calça do hospital; você tem uma calça que é plastificada; você tem uma blusa que é a do hospital; você tem uma outra blusa, que é para proteger a blusa de baixo; e depois você tem uma outra, que é de plástico; e depois você tem uma máscara, você tem um óculos, você tem uma outra máscara e mais uma capa para a sua cabeça e você tem ainda duas luvas. Ou seja, você tem uma série de objetos que não fazem parte do seu dia a dia. E você tem que desinfectar cada um deles na hora em que você sai. Então, você tira primeiro a luva, você dá as mãos e alguém te desinfecta. Você tira a primeira calça, você dá, alguém desinfecta. Cada peça de roupa que você tira, cada parte do utensílio que você tira, você tem que desinfectar. Então é um processo muito lento, tanto de colocar quanto de retirar. E um processo tenso, porque você sabe que, se na hora em que alguém estiver te descontaminando, você fizer algum movimento, deixar escorrer para dentro do seu corpo aquele líquido que estava contaminado, você corre o risco de se contaminar. Então é um processo muito tensionado. Você está atento, o outro que estava junto com você está atento a você, e o cara que está te descontaminando também está atento. Então está todo mundo conectado com aquele processo. Não é um processo fluido, não é um processo de brincadeira, é um processo bem sério.

São aquelas roupas de astronauta, né?
Débora – Uma mistura de astronauta com apicultor.

Esse processo de vigilância mútua muda a relação entre as pessoas da equipe, imagino…
Débora – Isso muda toda a relação. Normalmente, nas missões, no final da noite, a gente bebe alguma coisa, a gente descansa e a gente dança ou a gente canta juntos alguma coisa. Esta era uma missão com muitos espanhóis, que, assim como os brasileiros, se tocam muito, dançam. E as pessoas não queriam perder isso. Então, eles levaram um bambolê gigante, desses bambolês de adulto, de fazer coisa de circo, e à noite dançavam duas pessoas dentro de um bambolê gigante, mas sem se encostar. Era um jeito de não perder o contato, mas sem fazer contato.

Qual era o maior medo que você tinha quando chegou ao Congo?
Débora – Será que eu vou conseguir ficar atenta o tempo todo? Será que eu dou conta de ficar conectada com esse cuidado de mim mesma o tempo todo? E é engraçado, assim, porque pensando em todos os momentos que eu passei, eu não me lembro de ter encostado em ninguém. É como se as pessoas tivessem um sensor. Sabe na esgrima, em que você mal encosta com a sua espada, e o sensor já reconhece que alguém foi tocado? Eu tenho um pouco essa sensação. É como se você andasse com um colete de esgrima. Qualquer toque que você dá no outro, algum som apita dentro de você, e meu som não apitou. Eu tenho certeza de que eu não encostei em ninguém, contato de pele com pele, durante todo esse tempo. Foram quatro semanas sem tocar em ninguém. É bastante tempo pra mim. É uma sensação de estar isolada, ainda que com um monte de gente junto.

Como foi fazer essa missão? Como foi cuidar do outro sem poder tocá-lo? Como você descobriu que é possível cuidar sem tocar, estar perto sem estar perto? Lembro, em nossa entrevista anterior, de você dizer que, às vezes, o maior cuidado que pôde dar tinha sido abraçar alguém que nunca havia sido abraçado. E, agora, com o ebola, nem mesmo havia a possibilidade de um abraço. Como é que você inventou esse cuidado?
Débora – Essa missão foi bem especial nesse sentido. Eu descobri várias formas de como cuidar do outro sem tocar. E foi muito bonito. Talvez tenha sido uma das mais bonitas, nesse sentido, sabe? Como construir isso tecnicamente, sem toque, mas com afeto. Quando cheguei lá, a primeira coisa que eles diziam, para fazer sensibilização na comunidade, era: “A nossa função aqui é isolar o ebola”. Aí eu passei a dizer para a comunidade: “Bom, gente, a minha função aqui é fazer com que o vírus fique isolado, e as pessoas não fiquem isoladas. Então, assim como o papel da equipe técnica, médica e de higiene é o de isolar o vírus, o meu papel é fazer com que as pessoas não fiquem isoladas”.

Explica como é um Centro de Ebola, para que a gente possa visualizar…
Débora – A gente pegou uma parte da estrutura desativada de um hospital, uma parte um pouco mais separada. Montamos toda uma estrutura de bloqueio em volta dessa estrutura. Sabe essas gradezinhas de plástico, que você coloca para isolar, bloquear um espaço? São uns tramados de um plástico laranja que a gente usou para circundar todo o Centro. Esse foi o primeiro ponto. Mas, como bloqueio não significa isolamento, foram organizadas três portas de acesso: uma de acesso direto, para a comunidade em geral; outra para as pessoas com suspeita de estarem com ebola; e uma terceira porta, que é a de entrada para os profissionais que trabalham com os pacientes. Quem entra vê um corredor com quartos, sacadas, janelas e banheiros externos, todos divididos entre casos suspeitos e casos confirmados. As primeiras salas são para os casos suspeitos, que ficam separados uns dos outros até termos certeza de quem é positivo e de quem é negativo. Os espaços entre esses pacientes são bem amplos, para que ninguém se contamine dentro de um Centro. Conseguimos um esquema muito avançado com um laboratório americano, para fazer os testes, que ficavam prontos no mesmo dia, no máximo no dia seguinte. Isso foi um grande ganho para a missão. Para quem está esperando o resultado, há dois quartos grandes com sacadas. A frente das sacadas dá para uma área comum, que seria uma espécie de palhoça, uma tenda coberta de palha com cadeiras, rádio etc, na qual esperam os familiares. Quem está dentro dos quartos pode ver, falar e ouvir, escutar música e conversar com os que estão do lado de fora, mas sem nenhuma possibilidade de contato. Ali mesmo, então, é dada a notícia sobre quem é positivo e quem é negativo, e todos podem ouvir o resultado. Quem é negativo é totalmente desinfectado antes de entrar em um outro espaço, no qual só tem a porta de saída. Quem entra nesse espaço não pode mais voltar atrás, só pode sair. Quem é positivo é levado para outros dois quartos, também com sacada, mas separados por uma estrutura, na qual é possível falar, cantar, ver os familiares, mas mais afastados do que quando são apenas suspeitos. A cada dois ou três dias eles faziam novos testes para saber quem ainda estava positivo e quem já estava negativo. Montamos no pátio, ainda dentro do bloqueio, uma grande tenda, que chamamos de hospital inflável. Este permitia total isolamento, do ponto de vista do risco de contágio, mas sem isolamento social. Se a epidemia aumentasse vertiginosamente, teríamos condições de abrigar um número grande de pessoas nesse hospital inflável. Mas a palhoça dos familiares ficava em frente, então podiam se ver e se escutar, só não podiam se tocar nem trocar nada. Mas, mesmo assim, a maioria da população tinha muito medo e não ia até lá. Vários pacientes ficaram isolados pelo medo, e não pelo vírus.

O dia em que um Centro de Ebola virou cinema

Lidar com o medo da comunidade devia ser muito duro…
Débora – Para mim, a indignidade do vírus é a sensação de que ele só matava as pessoas que tinham coração bom, as pessoas que queriam cuidar. Porque, em geral, quem estava contaminado era quem tinha ajudado a cuidar dos outros nos últimos momentos de vida. Então, a pessoa estava lá, com febre, tendo diarreia, vômito e ninguém chegava perto por causa do vírus. E havia aquele que cuidava mesmo assim, mesmo sem ter água encanada, sem ter sabão em casa. E por isso se contaminava e morria. Então, é uma doença muito injusta também nesse sentido, de que mata aquele que rompe as barreiras e decide cuidar. Sete dias depois era esse cuidador que estava dentro do Centro, e a gente cuidando dele. Aconteceu isso com um pastor de 70 anos. A mulher dele morreu de ebola, e foi ele que cuidou dela até o último minuto. Também era ele quem rezava pelas pessoas que estavam contaminadas em sua comunidade. E, também por isso, ele se contaminou. Então, esse senhorzinho entrou no Centro vítima do cuidado. Quando eu entrei lá para perguntar a ele como é que ele gostaria de ser cuidado, o que a gente podia fazer por ele, ele disse: “Eu queria que alguém viesse me visitar”. Ele não pediu remédio, ele não pediu nada para dor, ele não pediu nada para diarreia, ele não pediu nada médico. Mas ele pediu que alguém fosse lá vê-lo, sabe? Ele já estava com a gente há mais de uma semana e não tinha recebido uma única visita. Nem os filhos o tinham visitado. Ele era pastor de uma das maiores congregações protestantes e não tinha recebido nem mesmo a visita de um fiel. Isso me deu uma sensação muito ruim. Aí foi nesse dia que eu decidi: vou lá nessa comunidade, vou conversar com eles, vou tentar trazer a comunidade para dentro do Centro. E foi muito legal. Normalmente, eu ando sempre com uma máquina no bolso. Uma máquina fotográfica, que filma também. O pastor tinha me dado o nome de um outro pastor, na comunidade, a quem ele pedia para rezar por ele, e eu fui conversar com esse pastor. E todos na comunidade me diziam a mesma coisa: “Olha, mamãe, obrigada pela visita aqui, mas a gente não vai lá, não, é muito perigoso. A gente gosta muito dele, a gente está rezando por ele todos os dias, mas infelizmente ele vai morrer. Esse lugar onde ele está é o lugar da morte, não é o lugar da vida”. E eu falei: “E se a gente fizesse um pouco diferente? Se eu filmasse vocês contando para ele o que vocês estão desejando para ele?”. E foi muito legal, porque esse pastor chamou duas crianças e pediu para elas chamarem a comunidade toda. E, sei lá, em menos de cinco minutos a gente tinha uma comunidade bem grande, todos na frente da capela, da igreja onde ele rezava. Eles nunca tinham visto uma câmera. Eles nunca tinham visto televisão, nem filme, nem imagem, nem nada, mas de repente eram eles que estavam falando, com o olhar bem na câmera, mesmo, como se eles tivessem feito aquilo a vida inteira. E eles olhavam bem na câmera, falando: “Pastor, a gente está aqui rezando para você”. Mas eles estavam olhando para a câmera, mesmo. Então, na hora em que a gente projetou, parecia que eles estavam olhando no olho do pastor e dizendo: “A gente tá aqui, rezando pra você, e é todo dia, é toda hora, e a gente reza de noite e a gente reza de dia e a gente tá fazendo três cultos por semana, que é pra juntar toda a comunidade pra rezar pra você. E Deus vai salvar você”. E eles falavam com uma ênfase, que era muito interessante. Como é que eles sabiam que aquela câmera podia projetar aquela imagem daquela forma, com voz, com tudo? E, bom, eu filmei todos eles. Eles rezaram juntos, na frente da câmera, cada um fez individualmente sua fala, e eles puxaram cantos da igreja. E até as crianças quiseram dizer alguma coisa para ele. Elas são bem tímidas, porque as crianças lá não têm um lugar no meio dos adultos, mas levantaram os braços como se estivessem naquele fervor da oração. É muito bonito de ver!

Como vocês fizeram para projetar dentro de um Centro de Ebola?
Débora – Tudo o que entra dentro de um Centro ou você pulveriza com cloro e faz um processo de desinfecção rigoroso ou você tem que queimar. E o projetor não poderia entrar, porque não teria como fazer um processo rigoroso de desinfecção. Então teria de queimar o projetor. E é óbvio que não tinha projetor naquele lugar. Mas a ONU estava fazendo umas reuniões num lugar próximo ao hospital. Eu esperei a reunião terminar, pedi o projetor emprestado, levei de noite lá para o hospital, aproveitando que estava com pouca luz e que não tinha muito movimento. Os logísticos aceitaram ligar o gerador só para o projetor, porque ele consome muita energia, e a gente adaptou o meu computador ao projetor da ONU, com as caixas de som de um expatriado que escutava música durante a noite. Então foi muito interessante, porque não tinha mesa, né? E a gente tinha que projetar do lado de fora, mas com as imagens do lado de dentro, e as caixas de som também tinham que ficar do lado de fora, para não contaminar. E foi muito bonito, porque todo mundo comprou a ideia. Quando eu falei de manhã que eu tinha feito as filmagens no dia anterior e que naquela noite eu ia projetar, um médico falou: “Essa menina tá é doida. Chegou há dois dias e quer fazer um cinema dentro de um Centro de Tratamento de Ebola! Nunca ninguém falou pra você que isso não existe? Um Centro de Tratamento de Ebola é um lugar sério”. Mas aí todo mundo comprou a ideia. Cada um resolveu que ia fazer uma coisa. Uma enfermeira, um psicólogo e um médico nacional entraram dentro do Centro para trazer os pacientes para o lado externo. Ainda dentro do Centro, mas do lado externo. E ficaram segurando-os, porque eles não podiam se sustentar em pé, estavam muito fragilizados. A gente colocou cadeiras para que eles se sentassem do lado de fora. Outros dois ficavam segurando a divisória, porque tinha que segurar numa posição que o projetor alcançasse. E aí um logístico segurou o projetor durante uma hora, enquanto a gente projetava os vídeos. Havia outro que segurava as caixas de som, eu que segurava o computador, e tudo isso tinha que estar coordenado, porque não tinha estabilidade. Foi bem bonito, porque todo mundo participou de um processo de cuidado. E, como eles nunca tinham visto imagens, quando as pessoas começaram a falar, porque eles falam com o dedo em riste, o pastor, do lado de dentro, também começou a falar assim, como se ele estivesse falando cara a cara com o outro pastor. E a projeção ficou interessante, porque como eles olhavam bem no foco da câmera, parecia que eles estavam olhando no olho do pastor. E, na hora em que eles começaram a rezar, o pastor se levantou, mesmo muito fragilizado, levantou os braços e começou a rezar junto com eles, como se eles estivessem compartilhando a mesma reza. Cara, foi muito bonito! Quando terminou a projeção, o pastor falou: “Muito bom! Mas eu ainda tenho outra comunidade, e eu queria que vocês fossem lá e fizessem a mesma coisa”. Eu falei: “Gente, isso aí já deu um trabalhão pra fazer, uma correria, e ele ainda quer mais uma comunidade!”. Mas três dias depois dessa movimentação toda ele começou a reagir de uma outra forma. Ele começou a sair do lugar de paciente e começou a assumir o outro lugar que ele tinha, que era o lugar de cuidador. E começou a se levantar do leito dele para fazer as rezas, dentro dos espaços, para os outros pacientes. Pediu uma Bíblia, perguntou se podiam trazer a Bíblia dele, começou a perguntar coisas da comunidade e a pedir informações. Nós enviamos para a comunidade as questões dele e as informações. E foi muito bonito. Porque eles começaram a vir, um a um, para dar as respostas que ele tinha pedido.

Vocês gravaram?
Débora – A gente escreveu uma carta. Como papel não pode entrar dentro do espaço, porque depois não pode sair, ele ditava a carta em Lingala, que era a língua que ele falava. O psicólogo que trabalhava comigo era do staff nacional e falava Lingala. Então esse psicólogo escrevia, e a gente ia lá na comunidade e entregava a carta. Mas a pessoa que recebia a carta, em vez de responder, ia ao Centro pessoalmente dar a resposta.

Então eles acabaram indo até o Centro pessoalmente?
Débora – Foram. Foi um processo bem bonito, porque eles vinham de terno e gravata, como se fosse um momento de missa, porque aquele pastor era uma pessoa muito importante naquela comunidade. E ele se curou. E foi um processo terapêutico para ele, mas foi para a gente também. A gente já tinha perdido algumas pessoas. Isso para ninguém é fácil, mas para quem está no cuidado direto é mais difícil ainda, porque você sabe de onde aquela pessoa vem, a idade que ela tem, o nome dos filhos, o nome da vila em que ela mora, o nome da igreja dela e até como ela reza. Você sabe tudo. Então, quando você perde uma pessoa dessas, você também está perdendo alguém da sua família. É um processo muito rápido de vinculação. Então foi muito bonito. No dia em que ele saiu do Centro, a gente combinou com a equipe toda. Ele tinha dito que precisava de duas coisas na hora em que ele saísse, já que eles não saem com as mesmas roupas que entram. A gente dá roupas novas, e eles saem com elas, depois de estarem curados, de o exame dar negativo. Eles tomam um banho de desinfecção, ganham roupas novas e saem. Mas ele disse que, quando a gente desse as roupas, ele queria o gorro, que era um gorro de reza que ele tinha, e a bengala dele tinha que sair também. Mas a bengala dele não podia sair, porque era a bengala que ele usava lá dentro. Fizeram todo um trabalho de desinfecção, mas ia demorar alguns dias. A gente arrumou então uma bengala improvisada e o gorro dele, e ele foi mais ou menos como um rei, sabe? Na frente do carro, vidros abertos, com todo o staff atrás, cantando as músicas que ele puxava.

Como foi isso?
Débora – Vinha um motorista e ele. Porque eram esses carros grandes, tipo umas ambulâncias grandes, mas são Land Rovers. Ele ia sentado dentro, com os vidros abertos, o seu gorro na cabeça, e nós todos atrás cantando. Ele pediu ainda que o carro tivesse o pisca-alerta ligado, porque não há muitos carros nessa comunidade, então um carro é um sinal de grande status. Ele queria mostrar para a comunidade que estava vivo. Foi passando pelo meio dos mercados públicos, abanando como se fosse “o rei”, e nós todos cantando. Para as pessoas que estavam no mercado, era como estivessem vendo uma miragem. “Ele está vivo!” Todo mundo já tinha dado ele por morto e, de repente, ele estava vivo. Sorrindo, abanando e cantando bem feliz dentro do carro. O pastor ainda pediu que a gente fosse com ele na Rádio atestar que ele não contaminaria mais ninguém. E a gente fez isso. Voltamos no outro dia de manhã, fomos até a Rádio com ele, levamos um certificado de que ele era ebola negativo e três testes comprovando que ele estava negativo, feitos em momentos distintos. Ele fez, então, um testemunho na Rádio. Ninguém pediu para ele falar, foi ele que teve essa grande sacada de contar para a comunidade que, ainda que você pegue ebola, você pode sobreviver. Que não é todo mundo que vai morrer. E ele foi contando como é que ele encarou aquilo tudo.

O que ele falou?
Débora – Foi engraçado, mas também foi bonito. Porque as pessoas acreditavam que os brancos exterminavam os congoleses dentro do Centro de tratamento. Era a primeira vez que tinha ebola nessa região do Congo, e eles diziam: “Vocês capturam as pessoas, levam para dentro do Centro e, depois, vocês comem a carne e vendem o sangue”. Então, como é que você explica para uma comunidade, que nunca viu aquela população de brancos, que a gente não come a carne, a gente não bebe o sangue, a gente não vende o sangue e, não, a gente não extermina as pessoas? Como é que você explica que ali é um processo de cuidado, mas que o vírus realmente é muito difícil de curar? E aí ele foi e contou. Ele disse: “Vocês acham que os mundeles bebem sangue ou comem carne? Pois saibam vocês que, desde que eu entrei lá, eles me deram tudo o que eles podiam dar e mais! Eu comi carne todos os dias!”. Porque carne é um negócio difícil, caro, que as pessoas só comem em dia de festa. Não tem produção de vaca, de porco, de galinha. Então ele falou: “Vocês acham que eles maltratam as pessoas? Pois eu comi carne todos os dias. Inclusive teve um dia em que eu ganhei até uma Coca-Cola!”. E foi, ele ganhou mesmo a Coca-Cola. Foi o pedido de um paciente que queria muito beber uma Coca-Cola, e a gente comprou para todo mundo. “E eu pedi uma Bíblia, e eles levaram.” Quando ele pediu a Bíblia, uma pessoa fez uma doação pessoal da Bíblia dela. Desde que ele ganhou essa Bíblia, ele levantava de manhã para benzer a equipe. Ficava dentro do Centro, com o braço levantado, e a equipe do lado de fora. Ele benzia todo mundo, produzia a reza dele, e nós viramos a comunidade espiritual dele. Ainda que praticamente nenhum de nós tivesse uma religião, nós compartilhamos o processo de cuidado dele. Ele precisava de um grupo para cuidar, e a gente gostava disso, que ele tivesse de novo o papel dele de cuidador. E não mais o de alguém que está ali, só disponível para receber cuidado.

Por medo, a comunidade queima e apedreja

Quando ele enviava cartas para as pessoas da comunidade, o que ele perguntava?
Débora – A primeira coisa que ele perguntou foi: “Vocês queimaram a minha casa?”. Porque a comunidade tinha o ímpeto de queimar a casa de quem tinha ebola, como se aquela casa fosse um foco de infecção que precisava ser eliminado. E às vezes tinham esse ímpeto de querer eliminar as pessoas também. Então a gente tinha que ter muito cuidado na hora de buscar alguém em casa para não assustar a comunidade, não criar um desespero na comunidade, para que eles não se voltassem contra os membros da família que continuavam morando dentro da casa. Então, antes de desinfectar a casa toda e de convidar a pessoa para sair, a gente fazia toda uma sensibilização no entorno daquela casa. Chamava a comunidade, chamava o pastor, chamava o líder daquela comunidade para poder explicar o que a gente ia fazer. Mas as pessoas tinham o ímpeto de querer eliminar. Eles não estavam satisfeitos só com a desinfecção, tinham que eliminar aquele lugar. Então a gente ficou com muito medo que as pessoas começassem a gerar mais violência ainda dentro do espaço. Houve momentos, por exemplo, em que a gente recebeu pedras. Uma parte da população acreditava que a gente estava “capturando”, como eles diziam, algumas pessoas, e o nosso carro foi apedrejado. É difícil. Você está ali, querendo cuidar de alguém, você já tem que tomar cuidado para não tocar em nada, para não se contaminar, para que outras pessoas não se contaminem e você ainda está sendo apedrejado pela população dentro desse processo. Você precisa então lidar com a violência do outro.

Como foi a sensação de ser apedrejada?
Débora – Ah, é uma sensação de injustiça, sabe? É injusto. Como é que você faz com que as pessoas percebam que aquilo que você está fazendo é cuidado, não é agressão? Mas é uma questão de conhecimento, porque as pessoas desconheciam o que era o nosso trabalho. E você não pode colocar na televisão para explicar o que é, porque não existe televisão. Não adianta você ir para a Rádio. O processo de confiança se dá no contato com o outro. Só que era o nosso primeiro contato com aquela população e, infelizmente, numa missão de ebola, onde a gente não pode ter todo esse contato íntimo. E no Congo é muito bonito, porque, quando você chega, mesmo as crianças muito pequenas estendem a mão. E como é que você faz quando não pode dar a mão? Eu desenvolvi várias técnicas com as crianças. Andava com os bolsos cheios de balão, esses balões de botar água dentro, com pirulitos. Então, na hora em que uma criança me estendia a mão, eu estendia a minha com um pirulito e um balão. Era o meu jeito de dizer: “Olha, eu não estou te dando a mão, mas eu estou te dando outra coisa”. E a gente começa a estabelecer uma relação de afeto. Mas é bem ruim não poder dar a mão.

Voltando ao pastor, ele perguntou, então, se tinham queimado a casa dele?
Débora – Ele tinha várias perguntas: “Vocês queimaram a minha casa? A minha neta tá viva? O que vocês fizeram com as máquinas de costura?”. Ele ganhava a vida costurando. E realmente a comunidade queimou as máquinas de costura dele. Máquina de costura, no Congo, é um bem de valor inestimável, o equivalente ao que seria, para nós, uma casa que você construiu com o investimento de toda uma vida. Então, imagine se você pega uma doença e alguém te diz: “Eliane, a gente queimou a sua casa, porque você andou nela e alguém pode se contaminar depois”. E, mais do que ser algo tão caro como uma casa, era o meio de ele ganhar a vida. E ele era um senhor de 70 anos, então não poderia recomeçar tudo de novo. Este foi o único pedido que a gente fez: que eles não contassem, num primeiro momento, que as máquinas tinham sido queimadas. Era preciso esperar que ele se recuperasse.

E o que eles contaram a ele no hospital?
Débora – Teve um pastor que se arrumou todo de terno e gravata e levou a Bíblia que o velho pastor rezava todo domingo. Ele tinha várias Bíblias, mas a comunidade queimou todas. Só se salvou esta. E o pastor, que estava internado, falou: “Na noite passada eu te vi”. Só que na noite passada ele o tinha visto no filme, não o tinha visto pessoalmente. Só que para o velho pastor não fazia sentido, porque ele não conhecia essa tecnologia. Foi muito bonito quando ele disse: “Eu te vi na noite passada”. Para ele, ele tinha visto mesmo.

Um nascimento no berço da morte

Que outra pessoa te ensinou a cuidar?
Débora – Teve uma moça, que chegou com sete meses de gravidez. Era uma mulher muito magra. Sabe, eu já tenho pouca gordura corporal, mas ela parecia ter zero de gordura corporal. Você via a pele colada no osso. Quando ela chegou grávida, dava para ver o formato do bebê dentro do ventre dela. Não parecia que o bebê estava dentro dela, mas que tinham colado um pedaço de pele com um bebê no ventre, sabe?

Era desnutrição?
Débora – Ela já tinha um biotipo muito magro, era uma pessoa muito pequena, mas estava muito debilitada pelo ebola. Ela pegou ebola cuidando da mãe dela. Mesmo grávida de sete meses, mesmo com seis crianças em casa, ela tinha se mudado para a casa da mãe para cuidar dela. E, quando a mãe morreu, foi ela que organizou o funeral. E o funeral é um dos momentos que mais contaminam, porque a pessoa morreu numa fase do vírus muito forte, e o vírus está saindo por todos os líquidos. A gente perde muito líquido quando morre. Então, nesse momento de lavar o corpo, de trocar a roupa, de arrumar o caixão, ela se contaminou. Ela já estava com a imunidade mais baixa. Não só porque estava grávida, mas principalmente porque tinha perdido a mãe, que era alguém que ela valorizava muito. Essa mulher me marcou muito porque o marido dela, quando ficou sabendo que ela era positiva para ebola, disse: “Eu sei que ela tá grávida. Se precisar sacrificar a criança, vocês podem sacrificar a criança, porque eu já tenho seis em casa. Mas eu quero que vocês salvem a minha mulher”. E não é normal, para um homem como esse, dizer que ele queria que salvassem a mulher dele. Porque lá é muito valorizado um homem ter várias mulheres. E ele fez questão de dizer: “Eu não tenho várias mulheres, eu tenho esta mulher e eu quero que vocês salvem esta mulher. E eu queria pedir para vocês que façam o que puderem, mas não deixem ela morrer”. E ele falou ainda: “E, se precisar ficar dentro do Centro junto com ela, eu fico”. É difícil expressar a emoção dentro de um país onde um homem chorar é um sinal de fraqueza, onde um homem dizer que ama uma mulher é um sinal de fragilidade desnecessária, onde esse tipo de manifestação é desvalorizada dentro da cultura. Mas ele não estava se importando com a cultura, ele não estava se importando com o lugar onde ele estava falando, ele não estava se importando com “o que será que os brancos vão pensar de mim?”. Ele estava preocupado que a gente salvasse a mulher dele. Achei tão bonita a entrega dele. E, dois dias depois que ele entrou, a mulher pariu.

E ele entrou junto no Centro?
Débora – Ele ficou junto, mas não é permitido ficar 24 horas. Você fica um pouco e tem que sair de novo, inclusive porque é muito difícil ficar muito tempo com as roupas (de “astronauta-apicultor”). Durante a noite, eu fui visitar um outro paciente que estava com um problema bem grave, de transtorno psi. E de repente eu a vi . Tão frágil… Me deu uma sensação ruim ver alguém dentro de um quarto, com uma meia-luz, sozinha. Grávida, vomitando e, ao mesmo tempo, sozinha. Me deu uma sensação tão ruim de ver dois seres, um dentro do outro, um sem possibilidade de cuidar do outro. E a gente não podia separar aquele processo. Era um processo que eles tinham que viver juntos. E ela, além de estar com ebola, estava com malária. Então, ela estava com malária e com ebola, dentro de um processo de luto, porque tinha perdido a mãe há poucos dias, com um bebê dentro de si mesma que podia nascer prematuro a qualquer momento. E aí me deu uma vontade de tocar nela, de abraçá-la, de produzir um cuidado diferente. Ela estava olhando para o nada, olhando para cima. No Congo, os hospitais têm um teto enorme, o pé direito é muito alto. E ela estava olhando para o infinito. Eu cheguei com a luva e comecei a fazer um carinho na barriga dela. Comecei a conversar e fui fazendo uma massagem, porque ela estava com contrações. A barriga dela era tão exposta que, quando dava a contração, você via, sabe? Você via a contração da barriga e via o movimento da musculatura do ventre. Para mim foi muito marcante ver aquele processo do bebê se movimentando dentro daquela mãe, e aquela mãe sem poder aguentar a própria dor dela, que era a dor da doença, mas ainda com a dor da contração. Então era todo aquele processo junto, e ela tão frágil e sozinha. Era indigno, sabe? Era muito indigno. Era o momento em que ela precisava de outras pessoas que ela conhecia, alguém que sabia a história dela, que sabia de onde ela vinha e para onde ela queria ir. E não uma branca que a viu duas, três vezes. Eu só sabia onde ela estava, não sabia de onde ela vinha, nem para onde ela queria ir. Só sabia onde ela estava. E aí eu fiz o carinho, conversei com ela, e ela mesmo com toda a dor deu um sorriso e me olhou: “O que você está fazendo? Ebola ninguém toca, por que você está me tocando?”.

E o marido dela?
Débora – Bom, eu saí de lá, conversei um pouco com o marido dela, falei da importância de ele ficar mais perto, mas principalmente de ele falar com ela. Do lugar onde ele estava, do lado de fora, ela podia escutar. E foi muito legal porque aí começou um diálogo, que todo mundo escutava. Mas era um diálogo deles. Eu não sabia o que eles estavam falando. Eles estavam falando em Kiogo, uma outra língua. Quando ele entendeu que ela podia ouvir e que ela podia responder, ele falava de um lado, e ela falava de outro. E assim eles estabeleceram uma conversação durante horas. No momento em que nasceu o bebê, ela disse: “Ele tá vindo, ele tá vindo, ele tá vindo!”. E ele perguntou: “Quem tá vindo?”. Ela falou: “O bebê”. E aí, de repente, o bebê nasceu.

Sozinho, sem ninguém ajudar?
Débora – Sozinho. E foi o marido que avisou ao médico: “Olha, o bebê tá nascendo”. Todo mundo entrou correndo, mas ela já tinha parido. Eu fiquei muito impressionada com a força dela. De estar com malária, de estar com ebola e de poder dizer para o outro: “Olha, eu tô sentindo a contração e eu acho que agora ele vem”. Porque já fazia duas noites que os médicos passavam o tempo todo de sobreaviso, e o bebê nasceu exatamente durante a troca de equipe e nasceu muito rapidamente, porque era o sétimo filho. A gente tinha deixado, inclusive, um celular dentro do quarto, com crédito, com chip, com tudo, para ela poder comunicar qualquer coisa que ela estivesse sentindo. Mas essa foi uma ideia bem ocidental, sem percepção do outro, porque ela nunca tinha usado celular. Mesmo dizendo para ela como é que funcionava um celular, não era o contexto dela. Então, no momento de dor, o jeito dela foi falar com o marido, que estava do lado de fora, e foi ele que avisou. Foi ele o nosso meio de comunicação. E aí a gente entrou, mas ela já tinha parido. E o parir, para ela, não parecia um grande problema, talvez porque ela já tivesse parido seis. Mas o que me doeu foi o contexto, sabe? De ganhar um bebê assim. Porque tinha um processo. A cada 30 minutos entrava alguém dentro do quarto para ver como ela estava e para ver o processo de contração. E a dilatação dela não era coerente com o bebê já estar nascendo. Mas a vida também não é coerente, e a gente vive.

O bebê já nasceu com ebola?
Débora – Logo que ele nasceu, sim, ele era ebola positivo. Mas a gente não sabia se eram os anticorpos da mãe que ele tinha adquirido ou se era realmente o vírus da infecção. E o dia em que ele nasceu foi um dia muito feliz. A gente comemorou, a gente brindou. A gente ficou muito mais feliz do que a família, sem nenhuma sombra de dúvida. A gente fez inclusive uma festa nossa, de algumas horas, no horário do jantar, comemorando que tinha nascido uma vida dentro de um espaço de morte. Foi o primeiro bebê vivo a nascer durante uma epidemia de ebola. Então foi uma felicidade muito grande para todo mundo. Mas essa também é uma comemoração bem ocidental e bem nossa, né? E eu só me dei conta disso no dia em que o bebê morreu. Foi aí que eu me dei conta de que essa era uma comemoração ocidental e fadada ao fracasso, mas que a gente precisava daquele momento. Também faz parte da nossa cultura. Essa mãe morreu dois dias depois que o bebê nasceu. E ela morreu de ebola. Ela tinha uma carga viral muito alta. E o funeral dela foi um funeral muito triste.

Como é uma morte de ebola? Como ela morreu?
Débora – Ela morreu se esvaindo em… indignidade, sabe? Saía indignidade de tudo quanto era jeito. Ela tinha hemorragias por todos os lados. Nos olhos, no nariz, nas orelhas. Se via sangue saindo por várias partes do corpo. É muito triste você ver uma pessoa vazando vida, sabe? Alguém que deu a vida há poucos dias, alguém que cuidou de outro, de repente estava ali sozinha. Porque é uma morte triste, sabe? É uma morte que você vaza vida por tudo quanto é lado e não tem essa possibilidade de alguém estar perto. Você não pode dar a sua mão para ninguém. E você não pode olhar no olho de ninguém, porque está todo mundo mascarado e de óculos. Então é difícil, porque, quando você respira, a sua máscara fica nublada. Então você também não tem possibilidade de ficar muito tempo dentro, com aquela pessoa. Então, se você fica, sei lá, mais de uma hora, a sua máscara já está mais nublada, então nem o olhar você consegue acompanhar. Às vezes você tem só um pedacinho de claridade pelo qual você consegue acompanhar o movimento do outro. Então é triste, sabe? Uma morte muito triste. E durante o velório, nossa! O velório naquela comunidade é dilacerante.

Por quê?
Débora – Porque as pessoas gritam muito. A gente desenvolveu todo um protocolo de “ritual de passagem”. Perguntávamos primeiro para a família como eles gostariam de fazer o ritual. Todos os rituais teriam que levar o saco plástico de proteção, mas o corpo podia ser enrolado no lençol, podia desinfectar o rosto e mostrar o rosto antes para a família, podia chamar os familiares até lá para levar a um lugar mais protegido, onde as pessoas podiam se vestir e entrar. No dela, o marido quis acompanhar todo o processo. E eu sei que é muito importante ter a chance de materializar que o outro não vai mais voltar para casa. Porque como é que você vê alguém que sai andando da sua casa e, de repente, dois, três dias depois está vazando vida? A gente explicou então para o marido o que acontecia, como é que acontecia e por que aconteciam essas hemorragias. Se ainda assim ele estivesse disponível e achando que aquilo ali era importante, ele entraria. E a gente perguntou se ele queria entrar com alguém ou gostaria de ficar um tempo sozinho. Ele pediu para entrar junto com a irmã dela. Entraram os dois. Foi um ritual bonito, sabe? Eles rezaram com ela, fizeram uma fala e depois participaram do processo de lavagem, que faz parte do ritual daquela cultura. Só que a gente ofereceu: se vocês querem fazer a lavagem com o cloro, vocês não podem tocar no corpo, mas vocês podem fazer o espraiamento (borrifação), que é o que a gente faz. Isso vocês podem fazer vocês mesmos, só que acompanhados por nós. Não é a mesma coisa? Não é, mas era uma forma de dizer: “Olha, a gente vai fazer um meio termo entre os dois rituais – o ritual técnico, de higienização, e o ritual cultural de vocês”. Ele fez o ritual de lavagem e, quando saiu de lá, ele saiu muito, muito, muito tocado. E ele não queria chorar na frente da família, sabe? Ele se sentou num cantinho do hospital, onde quase ninguém podia vê-lo. Colocou o rosto nos joelhos e começou a chorar. Nossa, aquela imagem me desmontou por dentro. Ele não tinha mais possibilidade nem de ficar em pé. Ele não tinha mais par.

E o que você sentiu diante dele?
Débora – Me deu uma sensação bem ruim, tipo: quem vai cuidar dele num lugar onde um homem chorar é um não lugar? O lugar do sentimento é o lugar da fragilidade. E naquele lugar não tem espaço para gente frágil, é um lugar de gente forte. E a fortaleza se dá, na cultura deles, quando você não mostra o seu sentimento. Naquele momento me deu uma vontade de dar um abraço nele. De dizer: “Olha, você não está sozinho”. E eu fui lá. Fiquei ajoelhada bem perto dele e falei para ele que ele não estava sozinho, que naquele processo a gente estava junto. Desde arrumar o funeral ou de levar o corpo até lá, que sempre é uma grande preocupação das pessoas. Como é que a gente vai fazer com o corpo? Porque eles não têm carro, não têm carro funerário. Então as pessoas carregam o corpo na cabeça, sabe? No braço. E ele sabia que ninguém ia carregar o corpo da mulher dele até uma comunidade que ficava a horas de distância do centro da cidade. Então, o que para a gente é um processo muito tranquilo, para eles não. A gente não se preocupa sobre como é que o corpo vai chegar ao cemitério, a gente sabe que ele vai chegar de carro, vai chegar com pompas, com uma coroa de flores. Mas, naquele lugar, até a morte é difícil. Como é que você enterra alguém se ninguém vai carregar aquele corpo contaminado? Então eu disse a ele que não estava sozinho também no momento de fazer o corpo chegar onde precisava chegar. E ele falou: “E o café e o açúcar?”. Quando que você vai se preocupar, na nossa sociedade, em comprar café e açúcar para um funeral? Isso não é sinônimo de preocupação, mas lá é. O café e o açúcar são o combustível para passar as noites em claro num funeral. E normalmente essa é uma oferta da comunidade. Só que com ebola a comunidade não oferta isso. E aí a gente foi com o café, com o açúcar, com o corpo, com tudo. E quando a gente chegou lá estava toda a comunidade chorando. Era uma palhoça e, num canto, estavam todas as mulheres no chão. O lugar das mulheres é o do choro, do grito, do extravasamento do sentimento. E elas se levantam só para se jogar no chão. O papel de levantar e de cair é o papel de mostrar que nem em pé você consegue mais. Elas ficam todas nessa mesma posição em que eu estou sentada (posição de lótus), só que gritando muito alto, e as crianças na mesma posição, gritando e chorando. Como mulher branca, eu podia transitar entre os dois mundos: o mundo das mulheres que estavam sentadas, chorando e gritando; mas eu também podia ficar de pé e mostrar frieza e dureza como um homem. O meu lugar de branca me dava essa possibilidade de transitar e ao mesmo tempo não pertencer a nenhum dos dois mundos. E eu fiquei um tempo com os homens e, depois, entrei e conversei com as mulheres. E eu achei muito impressionante porque o chefe da família, que não era o marido da mulher que morreu, deixou alguns minutos de choro. Algo como 5, 10 minutos, o que é um barulho insuportável. Quando considerou que estava na hora de elas pararem, ele falou: “Parem!”. E todas pararam de chorar e de gritar e ficaram olhando os homens dizerem o que ia acontecer dali por diante.

E o que eles falaram?
Débora – Eles falaram em Kiogo, né? A gente não tinha tradutor de Kiogo, uma língua que só se fala naquele lugar. Mas me explicaram. Se é fidedigno eu não sei. O chefe de família era um homem muito interessante. Ele disse: “Olha, primeiro a branca vai explicar pra vocês por que não correm risco de pegar ebola por estarem aqui no funeral”. Esta era a primeira pergunta que as pessoas estavam fazendo. A segunda era: “Como foi a morte dela?”. As pessoas sempre querem saber como foram os últimos minutos, né? O que a pessoa falou, o que ela pediu, o que ela sugeriu. Me parece que nos últimos minutos de alguém você faz um condensado de vida, e as pessoas querem aquela última gota da vida. O que foi que vazou naquela última gota? Tem alguma mensagem que era direcionada para mim?

E o que você respondeu?
Débora – Falei para eles que ela queria saber dos filhos. Ela e o marido estavam discutindo se um dos filhos iria estudar, se poderiam investir em um membro da família para estudar ou não. E dói, sabe? Cinco dólares é o que custa um ano de estudo.

Cinco dólares por ano?
Débora – Por ano. Eles discutiam se conseguiriam investir ou não naquela criança, um menino de 12 anos. Lindo, sabe? Lindo! Disse isso a eles, que essa era uma preocupação dela. Ela tinha perguntado também da filha de 2 anos, que veio grudadinha com ela, nas costas, no dia em que ela fez o exame e soube que era ebola positivo. Esta, para mim, é uma grande interrogação. Como é que uma criança de 2 anos, que estava mamando no peito, colada nas costas dela, não tinha ebola? A gente fez os testes durante a semana toda para ver se ela realmente não tinha nenhuma reação ou sintoma. Ela tinha malária, mas não tinha ebola. Era uma criancinha linda. Ficou com a gente dentro da sala. Ela nunca tinha ganhado um brinquedo, nunca tinha visto uma boneca. E dentro do nosso kit, a gente sempre compra algumas bonecas, alguns jogos, algumas coisas. Só que não tinha muita coisa para comprar naquela cidade. E o logístico – homem é homem, né, não tem a mesma percepção –, comprou umas bonecas chinesas loiras, com pouco cabelo, brancas e de plástico, para a gente colocar no kit. Isso num lugar em que 100 % da população é negra. Mas, mesmo assim, entreguei a boneca a ela. E, na mesma hora, ela botou a boneca nas costas e a amarrou com um pano, do mesmo jeito que ela estava amarrada na mãe dela até chegar ao Centro. E começou cuidar da boneca.

A menina foi desgrudada e desmamada ali, naquela hora?
Débora – Naquela hora. Ela ficou em observação, porque a mãe dela já era ebola positivo. E, na mesma hora, a tia assumiu a família, tornou-se mãe das crianças, porque este é o lugar da mulher mais nova da família. Depois, as pessoas me explicaram que, quando morre a irmã mais velha, as irmãs solteiras normalmente se casam com o cunhado para continuar cuidando dos filhos. Quando essa mulher chegava na comunidade, as seis crianças se agarravam a ela, e ela ia pendurando-as e amarrando-as no corpo. Parecia um pinheirinho de Natal, uma coisa bonita de ver. Mesmo que não fosse o primeiro plano da vida dela, aos 21 anos essa mulher virou uma mãe de seis filhos.

E o bebê viveu quantos dias?
Débora – Cinco dias. Quando fui à comunidade contar que ele tinha morrido, percebi que a pessoas não entendiam por que eu tinha ido até lá para dizer algo que todo mundo sabia. Aquele bebê não teria um ritual, seria simplesmente enterrado. Então percebi que aquela comunidade nunca tinha visto um bebê de sete meses sobreviver. Nós, que já tínhamos visto, investíamos naquela vida, mas eles não. Fiquei pensando que em 20 horas de voo a gente chega num lugar onde as pessoas nunca viram um bebê nascido de sete meses sobreviver. Para nós, do staff, esta foi uma morte muito dura, porque a gente sabia que, em outro lugar, ele poderia viver. Mas, para a comunidade, era óbvio que ele morreria. E lembro de um médico congolês, uma pessoa muito boa. Ele me disse: “Me perguntaram se eu quero partir essa semana ou na semana que vem, porque o meu substituto já chegou”. E eu falei: “Ah, parte na semana que vem, você é muito importante para a equipe”. E ele respondeu: “Débora, você não tá entendendo, esse bebê vai morrer”. Tipo: ele tinha que partir naquela semana porque ele não queria ver mais uma pessoa morrer. Ele disse, então: “Deu. Eu já estou no meu limite do número de pessoas que eu consigo ver morrer. Eu não sei ver as pessoas morrerem. E você está me colocando num lugar que está difícil pra mim”. Porque eu dizia a ele: “É você que cuida todo dia dessas pessoas. Então, você precisa estar na hora de dar a notícia da morte. Vamos juntos, mas eu preciso que você conte isso”. E eu via a dificuldade que era para ele, apesar de ele falar de um jeito muito bonito, com muito carinho, explicando para a família tudo o que tinha acontecido com aquela pessoa. Explicando que a pessoa tinha morrido não porque era fraca, mas porque a carga de vírus era muito alta. Era importante, porque ele falava Lingala, e eu não. Num momento de dor, é muito duro você ter ainda de escutar uma tradução. Então expliquei para ele como se contava sobre a morte de alguém.

E como se conta?
Débora – É bem difícil. A primeira explicação que você dá é com o seu corpo. É pela forma de olhar e de movimentar a cabeça que você mostra que terá de dizer algo difícil. Antes, é preciso arrumar um espaço para isso. Um lugar calmo e tranquilo, porque este também tem de ser um espaço de cuidado. Eles arrumaram uma palhoça mais reservada, a pessoa ia até lá, ele a convidava para sentar. Já deixava o copo com uma garrafinha de água do lado, para oferecer para a pessoa. Explicava primeiro quem ele era e o tipo de cuidado que tinha dado, os testes que a gente tinha feito, sempre dando espaço para o outro perguntar, se quisesse. E sempre sem pressa. É preciso dar essas respostas, olhar para o outro e se sentir afetivamente tocado. Você não precisa esconder o que está sentindo, isso não é fragilidade. É muito importante abrir esse espaço para que a família possa tirar todas as dúvidas, para que a família possa expor a dor dela. Assim como explicar todo o tratamento e explicar por que não funcionou naquele caso. A técnica é uma coisa importante, mas é o afeto que dá esse cimento, essa liga, essa possibilidade de colar a técnica na explicação da compreensão do outro. É isso que produz confiança e é isso que faz, inclusive, com que as famílias tragam outras pessoas quando apresentarem sintomas. Se não tiverem confiança, se não sentirem que há também afeto, elas não trazem mais ninguém. E isso pode fazer com que a epidemia se alastre.

E como foi a morte do bebê?
Débora – Foi mais triste para nós do que para a família. Porque eles já sabiam, só a gente que não sabia. Era uma história que já estava escrita, só que a gente não sabia ler, sabe? A enfermeira que cuidou dele, por exemplo, sofreu muito. Ela era americana e dizia: “Eu trabalho dentro de uma UTI Neonatal. Eu vejo todos os dias bebês de sete meses sobreviverem, eu sei que, se a gente estivesse hoje no lugar onde eu trabalho lá nos Estados Unidos, a gente salvaria essa criança”. Mas, para a comunidade, não. Para eles nunca houve essa possibilidade. Então, nesta morte, fomos nós que sofremos mais. Para eles, aquele bebê não era uma pessoa porque não sobreviveria. E isso me deu um impacto, sabe? Eu saí de lá com a minha estratégia cultural meio paralisada. Eu ainda tenho muita coisa para aprender sobre estratégias de vida e, mesmo que eu faça 100 milhões de missões, eu nunca vou conseguir ter a total noção de como produzir cuidado naquele espaço. Porque você tem que aprender muita coisa num curtíssimo espaço de tempo. E no tempo da dor, que é a dor do outro, mas também é a sua dor, já que é você que está produzindo um cuidado. E no momento em que você toca na ferida do outro, ela também é sua. Então você sai com uns pedaços de ferida que é difícil cuidar. Como aquele bebezinho que continuava desprotegido o tempo todo. Parecia que, mesmo dentro da barriga, ele já estava exposto. Do lado de fora ele latejava ainda mais, ele era ainda mais exposto. De noite, a gente sempre tocava nele. A gente entrava todo dia, cantava, falava com ele, massageava, acariciava, para que ele sentisse o toque. Ele era um bebê recém nascido, ele precisava de contato, de afeto, ainda que fosse através da luva. E dava uma sensação estranha tocar naquele corpinho, naquele pedacinho de gente. Numa noite eu cheguei de madrugada para fazer um outro atendimento e, como sempre, eu passei no quarto dele para tocá-lo. Só que eu tinha acabado de lavar a mão com água fria. E como eu não tinha como tocar no meu corpo, eu não sabia se a luva estava gelada ou não. Então, mesmo esfregando uma luva na outra, ela continuou gelada. E ele estava dormindo. Quando eu toquei no peito dele, ele levou um susto. Abriu um olho bem arregalado e tinha aquela respiração de susto. E eu também levei um susto daquele olhar de gente bem conectado com o meu olhar. E depois eu me senti culpada. Por que eu tinha que tocar nele, sabe? Mas eu queria que ele sentisse um pouco o calor humano. Mas eu só fiz assustá-lo ainda mais. Só que o susto dele foi também o meu susto. E o meu susto foi ver aquele olho de gente.

Dançando num Centro de Ebola

Qual é o papel da equipe de saúde, numa epidemia de ebola, em que os recursos da medicina ainda são muito limitados?
Débora – Sabe, essa equipe foi muito especial. Todo mundo queria aprender como cuidar em nível psi. E isso não é muito comum dentro de uma equipe médica de emergência. Mas, como a dimensão do cuidado médico estava restrita, as pessoas queriam aprender outras formas de cuidar para poderem se sentir protagonistas de um processo. Porque é uma sensação de impotência muito grande. Então trabalhei com formação. E foi muito legal com as enfermeiras, porque o staff nacional não estava muito acostumado com o afeto no processo de cuidado. Elas usavam uma abordagem mais dura. Tipo: você chega, mas você não diz quem é você, você não conta a sua história, você não conta nada de você, você está todo mascarado, todo vestido de astronauta-apicultor e você começa a fazer um procedimento técnico. Como assim, sabe? Tem alguém ali naquele corpo. Eu perguntava para elas: “Mas vocês sabem a história daquela pessoa?”. E, no começo, elas respondiam: “Não, a gente não tem tempo para isso”. Como não tem? O tempo do cuidado é o tempo da escuta. Como é que você produz cuidado sem saber quem é o outro? Você perguntou para ela como ela gosta de ser cuidada? Se ela gosta de fazer as necessidades dela na frente de todo mundo ou se ela prefere um lugar mais reservado? Se quando ela estava em casa tomava banho todo dia? Porque esta também é uma forma de fortalecer a imunidade de alguém, sabe? Ajudar a estruturar uma rotina dentro de um lugar que não é o das pessoas. Então, no início, os pacientes não tomavam banho nem trocavam de roupa. E para mim era duro de ver. Foi muito legal quando a equipe começou a entender que esse processo de cuidado do outro estava muito além da medicação, do soro e das intravenosas. Que era preciso que cada um se identificasse, que tivesse nome. E também que o espaço não podia ser monótono. Porque ali não tinha relógio para ver as horas, não tinha calendário, não tinha estímulo para que as pessoas refletissem para além da doença. Era preciso perguntar o que elas faziam antes, o que elas gostavam de fazer, qual era a rotina diária de cada um.

E o que aconteceu?
Débora – Quando médicos e enfermeiros entraram em duplas, depois da formação, foi muito legal. Foram perguntando para as pessoas sobre a história delas e se queriam tomar banho, trocar de roupa. E, naquela cultura, trocar de roupa e ter uma roupa nova é um símbolo não só de status, mas de autoestima, de bem-estar. Então começaram a ajudar as mulheres a tomar banho, a escolher um “foulá” (tradicional pano colorido, artisticamente arrumado na cabeça, semelhante ao usado pelas baianas tradicionais). E assim deram possibilidade ao outro de ser protagonista, e não ser só passivo, receptor de cuidado. Isso não é pedir demais. Você tratar o outro como um ser humano, como gente, não é pedir demais. É dar ao outro a possibilidade, inclusive, de reflexão, de tornar-se um ser que escolhe, que deseja. E quando elas terminaram esse banho, trocaram os lençóis e arrumaram a disposição das camas de forma que as pessoas tivessem um pouco mais de privacidade. Depois de uma, duas horas, quando eu voltei de novo ao Centro, os pacientes pareciam estar numa casa de campo. Cada mulher na sua sacada, sentada com a perna numa cadeira e conversando com os familiares. Com o cabelo bem arrumado, o que é muito importante naquele lugar. Cara, sabe quando você olha aquela cena e parece uma cena surreal? Dentro de um lugar que era um lugar de doença, um lugar de isolamento, de repente se transforma em um lugar, sei lá, de convívio social. E a partir desse dia, antes de preparar a comida, a gente passava perguntando o que apetecia a cada um. A gente sabe que, quando a gente está doente, não é qualquer coisa que você tem vontade de comer. E às vezes você tem vontade de comer alguma coisa mais específica, que vai te dar a possibilidade de segurar dentro do estômago porque era aquilo ali que você desejava, mesmo que tecnicamente pudesse não ser a melhor coisa. E foi muito doido, porque as pessoas não estavam acostumadas a dizer o que elas queriam. Porque o lugar de paciente é o lugar de quem espera, aquele que está passivo a um ato. Mas, ali, eles não estavam mais. No primeiro dia eles não entenderam o que a gente estava perguntando. Diziam que não tinham vontade de comer nada. Então, uma pessoa disse que queria comer “bilolô” (uma mistura de folha de mandioca, azeite de dendê e amendoim pilado). Eu não tinha ideia do que era, mas fiz de tudo para conseguir. Outro pediu uma Fanta laranja. Eu nunca ia esperar que alguém fosse pedir uma Fanta laranja. Aí se montou um fluxo de cuidado que funcionava assim: um promotor de saúde passava todo dia de manhã perguntando a cada paciente o que ele gostaria de comer naquele dia; a gente fazia um cardápio de acordo com o que casava entre tudo aquilo que as pessoas tinham pedido e contava para eles que eles iam receber aquilo; mandava o pedido para a cozinheira, que ficava bem chateada: “Quem eles estão pensando que são para cada dia pedir uma coisa?”. Eu falei: “Você come todo dia “foufou” (folha de mandioca cozida no azeite de dendê) e “pondou” (massa feita com goma de mandioca)?”. E ela dizia: “Quase todo dia”. E eu falei: “Você gostaria de comer outras coisas?”. E ela falou: “Gostaria!”. E eu falei: “Eles também!”. Aquela mulher que pediu o bilolô não comia há dias, porque vomitava. E naquele dia comeu e não vomitou. E se animou.

Há alguma outra história de vida que te marcou?
Débora – Todas me marcaram. Todas. Mas teve um homem que tentou sair do Centro à força. Um homem que já tinha perdido várias pessoas bem próximas, num curtíssimo período de tempo. Ele tinha pouquíssimos sintomas e poucas reações de ebola, mas era ebola positivo. Tinha recebido a visita de alguém da comunidade, durante o dia, que fez algum comentário. Depois disso, ele tentou sair de dentro do Centro à força.

Como?
Débora – Ele tentou fugir correndo, por sorte no exato momento em que eu estava entrando para cuidar de uma outra pessoa. Eu perguntei para onde ele estava indo, do que precisava. E ele disse: “Eu tô precisando de uma… eu não posso falar, não posso falar”. E aí foram várias horas de estabilização emocional. Para produzir estabilização sem tocar em alguém, sem fazer contenção afetiva, é muito difícil. Você não pode sair correndo atrás dele, você está cheio de roupas, cheio de utensílios, não consegue se locomover com rapidez. A sua voz também não sai tão clara, porque você está mascarado. E é difícil se conectar com o outro assim. Nem conexão visual você consegue fazer, porque está de óculos. Mas deu, sabe? Deu para fazer a estabilização emocional, deu para produzir cuidado, deu para tentar fazer uma escuta dele. E o que me marcou muito foi o que ele disse várias vezes: “Eu tenho oito filhos, e eles não têm azeite”. Para mim, aquilo não fazia sentido. “Como assim? Do que você está falando? Explica melhor o que é não ter azeite”. E ele falou: “Mamãe, você sabe que aqui no Congo tudo o que a gente cozinha é com azeite de dendê. Eu tô aqui dentro desse lugar há mais de 10 dias. E eu tenho oito filhos. E um dos meus filhos é muito bebê. Tudo o que minha mulher tenta vender na feira é rejeitado porque eu tenho ebola. Então, ela não tem como cozinhar porque não tem condições de comprar azeite”. Perguntei quanto custava uma lata de azeite. E custava 400 francos congoleses, acho que menos de R$ 1. A dimensão dessa miséria é tão grande que aquelas pessoas não têm R$ 1. E o desespero dele era por não ter R$ 1 para comprar azeite e por causa disso sua família estava passando fome. Então a gente arrumou um trabalho para ele dentro do Centro, porque ele não tinha muitas reações nem sintomas. A gente levou para dentro um rádio pequeno, que era uma coisa de que ele gostava muito, e o trabalho dele era escutar a Rádio para nos contar as notícias da cidade, o que falavam sobre ebola e sobre os Médicos Sem Fronteiras. Isso era muito importante para nós, porque precisávamos saber quais eram os medos e as dúvidas para poder esclarecer a comunidade. Com as notícias que ele deu, passamos a organizar os programas de promoção da saúde. E, com esse emprego, ele podia sustentar a família dele do lado de fora. Ele ditava uma carta, o psicólogo local escrevia e lia para ele, para que ele pudesse conferir se estava tudo certo, e nós levávamos a carta para a mulher dele, junto com o azeite, o peixe etc. E gravávamos um vídeo desse momento, para mostrar a ele que ela recebia, que estava bem. Filmávamos os oito filhos, para que ele pudesse ver que estavam todos bem. E as crianças contavam coisas da rotina delas para ele. E assim ele não se sentia mais tão isolado. Quando a gente projetou o vídeo para ele foi muito bonito, porque toda a comunidade quis dizer alguma coisa para ele. E quando o pai da família dele levantou para fazer a fala para ele, ele levantou também. Num sinal de respeito, mas como se o pai estivesse vendo ele do outro lado. E o pai levantou as mãos, e ele levantou também. E aí, quando eles começaram a rezar, ele também começou a rezar. Cada vez que alguém acenava com a mão, ele acenava do outro lado. Foi tão bonito que, nesse dia, a gente estava recebendo a visita da coordenação da Espanha, e a coordenadora disse: “Como é que a gente não fez isso antes? Isso tem que ser reproduzido!”. E agora isso vai para os nossos manuais. Nas próximas epidemias a gente já vai ter o equipamento necessário para poder fazer a comunicação por imagem. Para algumas mães, a gente imprimiu a foto dos filhos bem grande, e elas foram montando o seu cantinho, cada uma do seu jeito. Foi muito legal, sabe, ver que você não precisa ficar isolado para isolar um vírus. Se isola o vírus, mas não a vida.

E ele sobreviveu?
Débora – Sobreviveu. E quando a gente deu a notícia de que ele podia ir para casa, ele ficou tão feliz que começou a dançar. Só que ele não parava, ele pulava num pé só, com os braços para um lado, com os braços para o outro. Em vez de ligar o rádio dele nas notícias, ligou num outro canal, que tinha música. E ligou a todo volume e começou a dançar no meio do Centro. Aí os familiares, para quem a gente também tinha comprado um rádio, para que pudessem escutar as notícias no lado de fora, sintonizaram na mesma estação que ele, aumentaram o volume e também começaram a dançar. Foi uma cena muito bonita. Ele do lado de dentro, e os familiares do lado de fora. Nós todos num Centro de ebola – e dançando!

E aí ele se foi?
Débora – Ele se foi. Fez todo o procedimento de desinfecção, ganhou roupa nova e depois virou nosso promotor de saúde. Voltou para casa vivo, com trabalho e um lugar social de grande respeito, porque alguém que sobrevive ao ebola tem um grande respeito depois. É como se Deus tivesse dado uma chance para aquela pessoa continuar. Como se ela subisse uma escala no nível social. Aquele velho pastor, por exemplo, que já era muito respeitado antes do ebola, depois de ter sobrevivido virou quase um santo.

Quando o pai liberta sua filha para morrer

Que outra história te marcou?
Débora – Um dia me chamaram porque uma mulher não deixava fazer a perfusão, não deixava que lhe botassem a agulha com soro. Mas ela estava muito desidratada e precisava ser hidratada. Essa mulher tinha perdido o marido de ebola e havia chegado ao Centro com um bebezinho de seis meses, que ela amamentava. Apesar de estar sendo amamentado, o bebê era negativo, então foi tirado dela. Ou seja, ela tinha perdido muito, já. Mas ninguém tinha perguntado para ela por que, afinal, ela arrancava os fios do soro. Quando eu perguntei, ela contou que tinha também uma filha de quatro anos e que havia deixado essa filha com uma vizinha, para poder levar o marido ao hospital. Só que o marido morreu, e ela foi internada. Não teve tempo de buscar a criança. Era por isso que ela arrancava os fios, porque estava preocupada com essa menina, que estava com alguém que não era da família. Aí, eu falei: “Se você confiar em mim, eu vou lá buscar a sua filha, vou ver onde ela está. A gente não pode trazer ela para cá, mas a gente pode levá-la para a família, onde ela será cuidada”. Só que você não confia em alguém da noite para o dia, não é assim que se estabelece uma relação. Mesmo assim, eu fui de moto lá nessa comunidade, que era bem longe.

Longe quanto?
Débora – Umas quatro horas de moto, dessas motos de fazer rally. Fui eu e mais duas motos, porque havia risco de nos depararmos com algum conflito no meio do caminho e também de sofrer algum tipo de ataque na comunidade. Cheguei lá e fiz os registros em vídeo da filha dela. E fiz umas fotos, também. E foi muito legal, sabe? A mãe dela ficou cuidando das crianças, e eu fiz as filmagens e as fotos para levar para ela. E o pai dela ficou no Centro, cuidando dela. Nós damos comida também para os familiares que ficam lá esperando. Eu comecei a reparar, então, que esse homem nunca comia lá. Ele recebia a comida, botava tudo dentro de um saco, pegava a bicicleta e desaparecia. Descobri, então, que ele levava a comida até a comunidade para poder dividi-la com a mulher, com a mãe, com a criança e com o bebê. Não era muita comida, era o suficiente apenas para uma pessoa comer bem, mas não era suficiente para cinco pessoas comerem. Só que ele não podia trabalhar, então só podia contar com essa comida. Ele tinha mais de 60 anos e fazia uma hora de bicicleta na ida, outra na volta, para dividir o pouco alimento que tinha. Ele não tinha falado nada pra gente, sabe, foi uma sensação ruim, de saber que você não dá conta de tudo. Que tudo o que você pode fazer é tão mínimo… E a necessidade é maiúscula. E um dia o médico me disse: “Olha, Débora, ela não está bem. Ela reagiu bem às imagens, ela tentou se alimentar, mas a carga viral dela é altíssima, a gente não consegue nem entender como ela está viva ainda. E ela provavelmente não vai sobreviver mais do que dois dias”. Aí fui conversar com esse pai para explicar o que estava acontecendo. E foi muito bonito, porque ele se vestiu todo, se paramentou todo, entrou, fez uma reza junto com ela, mas foi falando com o coração, sabe? Que ele estava ali e entendia o quanto era difícil para ela estar naquele lugar e que, mesmo que ela partisse, o fim dela não estava dado, que ela tinha outros pedaços de vida que ficavam naquele lugar. E foi falando o nome de todos que iam cuidar das crianças. Ele disse: “Elas não vão ficar sozinhas, elas vão ficar comigo. E, se é isso que te impede de partir, você pode partir, você não precisa se prender. Aqui eu te liberto”. Quando ele falou isso, ela partiu. Ela simplesmente foi embora, ela morreu naquele momento.

E o pai, o que ele fez depois?
Débora – Fui perguntar como a gente poderia ajudar a organizar o funeral. Ele pediu para esperar que outras pessoas viessem vê-la, antes de colocá-la no saco mortuário. E pediu que a gente fosse lá na Rádio explicar para as pessoas que podiam ir ao funeral, que não tinha perigo, que ela estaria no caixão. Demoramos a chegar ao velório, porque era um lugar difícil de encontrar. No funeral, expliquei para as pessoas o que era o ebola, expliquei todos os testes e tudo o que tínhamos feito, assim como todos os cuidados com os familiares, que não estavam infectados. Depois que falei, o pai dela desapareceu. Em seguida, voltou com um saco de bergamotas (tangerinas), como se dissesse que aquilo era o melhor que ele tinha para nos dar. Me explicou como comia, porque entendia que eu vinha de um outro mundo. E disse: “E eu espero que você goste, porque você ajudou a salvar a nossa vida”. Poxa, ele estava num momento tão forte de dor, mas conseguiu se desconectar dessa dor para querer me cuidar, também. E aí cada um foi fazendo a sua fala. E ele fez uma fala de agradecimento muito bonita. Ele falou: “Eu sei que vocês fizeram tudo o que vocês podiam fazer, tudo o que era do homem vocês fizeram”. Eu fiquei muito tocada com o cuidado dele, com a percepção de querer me cuidar também e de me tomar como alguém muito importante na família. Eu me sentei junto com ele no velório. A comunidade fica de um lado, e a família fica numa bancada, em cadeirinhas bem baixinhas de madeira. E o meu lugar foi reservado ao lado dele. É estranho, mas ao mesmo tempo é um estranhamento… sei lá, de conforto, de saber que por mais que tenha dor, eu tinha o meu lugar ali. E aquele lugar era um lugar que talvez precisasse ser ocupado por alguém. Mesmo com todo o perrengue para chegar lá, porque para chegar a esse velório a gente caiu numa ponte. Nosso carro caiu, a ponte desabou, mas a gente chegou. E ele ainda falou: “Eu achei que, quando você caísse na ponte, dessa vez você ia desistir. Você já não tinha desistido da lama, já não tinha desistido da chuva, já não tinha desistido da violência, mas naquela hora da ponte achei que você ia desistir. E nem assim você desistiu. E a gente considera isso”. E aí ele falou: “Tá guardado, tá guardado”. Sei lá, senti uma sensação boa, sabe? De estar guardado, mesmo. O funeral faz parte também do processo de cuidar, esse processo de partida. E às vezes você nem precisa dizer nada, só o fato de você estar ali já está dizendo qual é o seu lugar de cuidado. Eu acho que as pessoas sentem isso. Eu sinto, pelo menos. Eu tenho uma sensação boa de poder estar ali, dividindo aquele momento de dor com eles.

Mas não deve ser fácil viver tantos funerais…
Débora – Foi um processo difícil. Tanto que a cada dia que eu acordava tinha de escrever de novo: “Hoje vou ter que produzir um funeral”. E eu tive essa sensação de ter passado 30 dias numa noite de funeral, sabe? Trinta dias com aquela sensação carregada de “mais um vai partir”. Mas não é porque mais um vai partir que eu não vou ao funeral. Tanto que eu não consegui tirar um dia de descanso. Normalmente você teria que trabalhar seis dias, e o sétimo dia era de descanso. Mas não dava para fazer isso. Eu não consegui fazer isso. Aí, um dia eu disse: “Ah, agora deu, eu não estou mais dando conta, eu quero dormir. Hoje é domingo, eu vou dormir”. Mas me ligaram às seis horas da manhã: “Morreu”. Sabe? Cara, como é que te ligam dizendo que alguém morreu e você ignora? Você está cansado, você está precisando descansar, mas pô, sabe? Alguém muito perto de você morreu. Alguém com quem você estava dividindo a vida junto e você vai deixar de ir no último ato? No último momento daquela pessoa? Não deu, não consegui.

Débora despede-se – e sente que não há ponto final

E como foi a volta, depois desse funeral ininterrupto?
Débora – Os cinco dias do Congo até aqui, eu vim pingando no meio da África. Cada dia acontecia uma coisa com o voo, não dava para ir. E nesses cinco dias eu senti que estava enlutada, sabe? Senti que estava num processo de luto. O Congo sempre é difícil, mas acho que essa missão fez jus à música que eles colocavam de noite todo dia, sabe? Tinha um expatriado que colocava todo dia a música do “Missão Impossível”. Eu me senti numa missão quase que impossível. Foram vários processos de vida se esvaindo.

Processos teus?
Débora – Processos bem meus.

O quê?
Débora – Não sei explicar muito bem o que aconteceu, ainda não me é muito claro. Eu ainda estou dentro do processo de sair do aquário. Não saí totalmente. Estou sentada na borda, olhando para dentro, mas eu ainda faço parte do aquário. É muito recente. Acho que você sempre se reinventa depois de uma missão. Mas em algumas missões você se reinventa a marretadas, em outras se esculpindo. E nessa eu me senti me reinventando a marretadas. Eu não sei muito bem quais são as marcas. Eu sei que ainda dói. Dói de um jeito meio estranho. Dói sem latejar. É uma dor que eu sei que existe e estou em paz com ela, mas ao mesmo tempo é uma dor estranha, sabe, como se você tivesse perdido muita gente num curto período de tempo, mas gente com uma carga de afeto muito grande. Uma troca de vida, sabe? Tinha muita vida no meio de toda essa morte, sabe? É difícil você ver as pessoa partindo com vontade de viver. Poxa, você está com ebola, malária, grávida, sabe? E ainda assim você tem um sorriso para dar ao outro? Sabe? Você tem uma vontade de perguntar: e os outros, como é que estão? E fulano está vivo? E fulano sobreviveu? Pô, você está com tudo isso e ainda tem um olhar para um terceiro e um desejo de estar vivo para cuidar de uma outra pessoa, que pode ser um filho, pode ser um marido, pode ser um vizinho ou pode até não ser ninguém da família. Eu vi isso lá.

E quem saiu dessa viagem?
Débora – Não sei ainda. Talvez essa tenha sido a missão mais difícil de ir embora. Nessa missão eu tinha esquecido de que eu ia embora. Aí o administrador falou: “Você lembra que amanhã você vai embora?”. E me veio aquela coisa: amanhã eu vou embora! Mas, na hora de ir embora, eu fui me despedir dos pacientes, como eu sempre faço, e fui me despedir também das famílias. Quando fui dizer a eles que eu ia embora, eles tiveram a mesma reação que têm no velório. E aquilo me deu uma sensação estranha, como se eu estivesse partindo também. Mas um partindo de morte.

Choro? Gritos?
Débora – Eles gritavam muito alto e choravam com as mãos na cabeça. Só que eles choravam e diziam: “Por que você está indo?”. Eu ia à palhoça todo dia, porque era o meu lugar perguntar todo dia: “Está todo mundo comendo? Está todo mundo bebendo água? Está todo mundo dormindo? E fulaninho, como é que está? Não pode esquecer de lavar a mão…”. Este era o meu lugar: o de saber. Eu sabia o nome de todos eles, mas não só o dos familiares, sabe? Dos que tinham ficado em casa, dos bebezinhos, de saber quem tinha ido à escola ou quem não tinha dormido direito, quem estava com dor de barriga… Essas minúcias do dia a dia, que dá a sensação de que nós compartilhamos o mesmo processo de vida.

E que mais aconteceu nessa despedida?
Débora – Foi estranho, porque normalmente o que eles dão de retorno é um abraço. E, naquele momento, não dava para dar, porque era uma epidemia de ebola. Tanto que eles faziam assim: um movimento de me abraçar, mas no ar. Ah, sei lá. Essa missão foi um pouco esquisita, Eliane. Parece que faltou essa costura do último ato. Me faltou esse rito físico de quando você parte, faltou esse abraço. Sei lá, parece que ficou sem o ponto final, sabe? Fiquei numa vírgula.

E o que sobrou nessa vírgula?
Débora – Ah, sobrou alguém bem humana, mas um pouco estilhaçada. Ainda estou com alguns funerais para terminar. Sinto que ainda estou em processo de elaboração de uma partida. Sempre é muita gente morrendo. Só que dessa vez acho que teve uma carga de conhecimento muito grande da vida das pessoas, acho que esse foi o grande diferencial dessa missão. Eu não estava só na relação com o paciente direto, nem só com a família direto, era toda a comunidade. E cada um me contava uma parte da vida daquela pessoa. Então foi uma conexão com a comunidade muito forte. Quando eu fui embora, eles gritavam: “Como? Como? Não pode! Como é que você vai partir?”. Sabe essa coisa muito forte, de alguém que está perdendo muita gente num curto espaço de tempo, então não está suportando a partida de ninguém mais? Ainda que seja um alguém que surgiu há pouco tempo, era alguém que surgiu num momento muito condensado de humanidade. Era tudo ferida aberta. Partir com a ferida aberta é meio estranho.

Você se sentiu morrendo?
Débora – Acho que eu me senti, sim, morrendo um pouco. Em especial, na morte das mulheres. É estranho, eu não sou uma mulher com filhos, nem sou uma mulher com aquela rede socioafetiva que elas têm, tampouco tenho a mesma relação que elas têm com a família. Mas sentia que elas partiam um pouco culpadas. Tipo: “Como é que eu me contaminei e agora estou abandonando essa gente toda? Como é que eu parto, sendo que eu tenho mais oito filhos pra criar? Como é que eu parto tendo toda essa gente pra sustentar?”. Parecia que elas iam embora se sentindo em falta com as pessoas. E eu me senti talvez um pouco mal com isso, sabe? Eu estou indo embora, estou deixando esse monte de gente que ainda está precisando de cuidado. Mas, como disse o médico: “Este é o meu limite, é até onde eu dou conta de dar suporte para a dor do outro. Daqui para frente eu preciso cuidar das minhas feridas, porque senão eu também não dou conta de cuidar com qualidade”. Eu tinha estipulado que ficaria três semanas e acabei ficando quatro, porque na terceira semana eu esqueci que tinha de ir embora. Mas é uma sensação estranha sair quando as pessoas ainda estão pedindo com muita força para você ficar. Elas sempre pedem para você ficar. Mas daquele jeito me pareceu mais dilacerante. Eu sabia que elas estavam achando injusto eu partir, e eu também achei injusto fechar a cortina assim.

Na volta, ela foge de abraço

E como foi o caminho de volta?
Débora – Saímos quatro pessoas juntas: um administrador, uma coordenadora geral de emergência, uma pessoa que lavava os corpos e eu. E eu era a pessoa mais cuidadosa. A pessoa que lavava os corpos tinha muito menos questões do que eu. Mas eu me sentia muito mais exposta do que ela, sabe? Ainda que o trabalho dela fosse lavar os corpos de quem tinha morrido de ebola, eu me sentia muito mais exposta que ela à possibilidade de contágio. Inclusive por não usar as roupas de proteção quando visitava a casa das pessoas. Porque essa foi a única forma que eu encontrei de chegar como um ser humano, e não chegar como uma equipe de ebola, sabe? E eu achei que isso fez uma grande diferença, inclusive de as pessoas aceitarem entrar no Centro para receber cuidado. Porque eles só me chamavam se as pessoas não aceitassem entrar no Centro, o que era mais de 90% dos casos. Então foi importante poder me mostrar para eles como um rosto humano. E muitos diziam: “Eu vou, branca, mas eu tô confiando em você”. Então, eu me sentia mais exposta ao vírus porque, fora do Centro, eu não usava as roupas de astronauta-apicultor. Mas quando partimos, a equipe queria se tocar. A gente desceu do avião numa outra cidade e todo mundo abriu os braços. “Vamos se abraçar!”. E eu falei: “Para, para, não me abraça, não me abraça!”. E aí o administrador falou: “Eu não respeito nada!”. Aí foi uma brincadeira, mas era uma brincadeira séria, sabe? Eu não queria que me abraçassem naquela hora. Sei lá, não era hora, sabe, de ser abraçada. Eu senti que eu não tinha certeza se eu realmente estava saindo imune ou não. Ainda que racionalmente não fizesse nenhum sentido eu sentir isso.

Talvez porque você não saiu imune, né? Saiu sem ser contaminada pelo vírus, mas saiu totalmente “contaminada” pelo que viveu lá…
Débora – É, mas mesmo assim eu passei os 21 dias seguintes me observando, uma coisa que não fazia sentido do ponto de vista racional, do que estava escrito nos manuais, mas que fazia sentido para mim. E aí mudei de lugar. Agora você não tem mais aquele lugar de cuidador, mas é aquele que se policia o tempo todo. Continuei lavando as mãos todo o tempo, que era o processo que a gente fazia o dia inteiro. Um processo meio automático, que você custa um pouco a sair. E quando eu desci do avião, no primeiro dos voos, eu senti que faltava alguma coisa. Depois eu fiquei pensando. Acho que eu senti falta de lavar a mão com água clorada. Acho que o perfume Cloro 0.05 me fez falta por um tempo.

Como foi chegar ao Brasil?
Débora – Eu gosto de ficar lambendo as minhas feridas, de ver onde é que está doendo, de colocar esparadrapo eu mesma. O espaço da costura é meu. E eu gosto de ver onde é que está doendo na hora que eu costuro, sabe? Eu gosto de ver onde é que a ferida está abrindo, sabe? Onde é que está difícil de costurar. E eu não consigo explicar muito isso no início, sabe? Nos primeiros dias eu preciso de um tempo. E acho difícil dividir com o outro esse momento. Então, pedi para o Antonio não me esperar no aeroporto. Mas ele é que nem a Schimia, não me escuta muito. E, claro, ele foi ao aeroporto. Eu tinha dito para ele que eu não ia abraçá-lo nos primeiros dias, mas ele disse: “Você tá doida? Eu li tudo! Não tem nenhum guia, não tem nada que fale que eu não possa te abraçar, que a vida já não seja normal”. Mas foram mais de 30 dias sem tocar em ninguém lá no Congo. E acho que até para tocar você precisa de um tempo. Assim como é um processo você não tocar em nada e não tocar em ninguém, é um processo você começar a tocar e começar a ser tocada. Foi meio estranho. O primeiro abraço que eu recebi, eu me senti superesquisita, sabe? Eu, que estou tão acostumada a ficar abraçando o tempo todo, comecei a sentir estranhamento de tudo. Cada vez que alguém estendia a mão, me dava dois segundos de reflexão. Toco ou não toco? Pego ou não pego?

Mas, apesar de você ter essa necessidade de não ser tocada num primeiro momento, como você se sentiu ao perceber o medo das pessoas, no Brasil?
Débora – É uma sensação bem ruim. Eu fui à universidade uns dez dias depois que eu voltei. Cheguei à universidade e algumas pessoas da minha turma vieram me abraçar, e outros que já sabiam de onde eu estava vindo gritaram: “Não abraça ela, não abraça ela!”. E as pessoas se assustavam, sabe? Você sente rápido no olhar do outro se o outro está à vontade e confortável contigo ou se o outro está te recriminando pelo simples fato de você estar ali. Como algumas pessoas me disseram: “Mas o que você está fazendo aqui? Vai pra casa. Você não pode ficar caminhando por aqui”. Não, calma, eu posso. Ainda assim, o medo das pessoas era muito grande. Eu estava em uma das maiores universidades do país, e as pessoas tinham medo de respirar perto de mim. É uma sensação dura. Árida.

É um medo que vem da ignorância, né, no sentido do desconhecimento, mesmo. Como as pessoas no Congo, que apedrejavam vocês, só que de uma forma menos explícita, mais polida. Que marcas esse olhar de medo te deixou?
Débora – São marcas difíceis de contar para o outro, é difícil inventar palavras para explicar. Mas tiveram algumas pessoas que pensaram diferente, e eu via que elas queriam me cuidar. Tipo: numa sala de aula cheia de gente, todo mundo sentado de um lado e só uma menina do meu lado. Só uma colega, que falou: “Não é assim. Vocês têm que ler mais sobre o ebola, vocês estão pouco informados”. E vinha e sentava bem do meu lado, como se dissesse: “Eu estou aqui, demarcando meu território e mostrando para eles que eu não tenho medo”. Achei bonito. Ela teve essa posição em vários momentos em que outros se afastavam.

E como você se sente agora?
Débora – No dia em que terminou o período de 21 dias, que eu havia estipulado para mim mesma, a gente fez uma festa aqui em casa. Era a festa do abraço. Eles denominaram de “Montinho sem Fronteiras”. Iam fazer um montinho para me abraçar. Colocaram lá, em rede social e tudo. Virou “Montinho sem Fronteiras”.

E como foi voltar a ser abraçada?
Débora – Foi muito estranho. Eu estava tão acostumada a esses 50 dias sem abraçar ninguém, sem ter um toque mais direto, que, quando me abraçaram, me assustei. Sabe quando te causa um estranhamento no corpo? Senti que não estava preparada para aquilo. Era muito abraço! Era muito extravasamento de afeto, num curto período de tempo, para alguém que esteve privado de afeto durante 50 dias.

Depois da travessia, um desejo novo

Quando nos falamos por telefone, logo depois da sua volta, você me disse que sentiu vontade de ter um filho. Essa vontade permanece?
Débora – No meio de toda essa morte, eu fiquei pensando: gente, me deu uma vontade de ter um filho, sabe? Eu saí e me deu uma vontade de ter um filho. Mas, quando eu penso de verdade, me parece tudo tão irracional, que eu não consigo entender direito o que é isso.

Acho que faz sentido esse desejo depois de viver tanta morte, inclusive a de um bebê…
Débora – Mas isso pra mim é muito doido. A vida vaza, e ela vaza de um jeito esquisito, você não sabe muito bem para que lado ela está vazando e por que ela vaza desse jeito. E quando você vê, você já vazou, sabe? Você já foi embora, e ninguém te segurou, nem você. Então é uma sensação superesquisita. Eu até brinquei com o Antonio. Eu falei: “Antonio, voltei com essa, sabe?”. E ele falou: “E o que eu faço com isso?”. Eu falei: “Não sei, deve passar daqui a alguns dias, acho que daqui a uns sete dias eu já mudei de ideia”. E aí, quando fez sete dias, ele falou: “Mudou de ideia?”. Eu falei: “Não, não mudei, sabe? Tô apavorada!”. E ele falou: “Tá, então vamos ter um filho!”. E eu falei: “Não, Antonio, alguém tem que dar um limite pra isso. Se não sou eu, é você”. Eu ainda não estou entendendo direito, eu preciso de um tempo, porque é uma decisão grave. Não pode ser só um acontecimento. Tem que ser uma decisão. Porque é uma decisão que envolve uma série de investimentos e é pra vida toda, sabe? Porque criança é por um período, mas filho é pra vida toda, inclusive quando você não está mais viva. Ele continua sendo a sua conexão. É esquisito. Acho que qualquer possibilidade de uma conexão para sempre me dá uma sensação esquisita.

Você vai ter que entender melhor por que quer ter uma conexão para sempre, né?
Débora – Para mim isso não faz nenhum sentido, sabe? Não faz! Já tem tanta gente num contexto tão próximo precisando de um cuidado tão agudo e, de repente, você escolhe ter um pedaço de você. Por que um pedaço de você? Por que não um pedaço do outro?

Mas vai ser um outro.
Débora Mas com partes suas, né?

E qual é o problema?
Débora – Às vezes eu queria só virar uma fumaça, sabe? Um pouco de ar…

(Publicado na Revista Época em 19/11/2012)

 

Memória é tanto lembrar quanto esquecer

Em um belo filme sobre a condição humana, um velho descobre-se diante de um dilema que dirá quem ele é e como ama. A escolha que o desafia é também a que nos provoca a cada dia de nossa vida

Na primeira vez em que assisti à E se vivêssemos todos juntos?, pensei, ao sair do cinema com os olhos mareados e a alma apertada no corpo como uma calça jeans dois números menor: queria tanto escrever sobre esse filme, mas o melhor que posso escrever é só um verbo, conjugado no imperativo, seguido de um ponto de exclamação: “Assistam!”. E escrevi exatamente isso no twitter. Em geral, é o melhor que podemos dizer sobre os filmes de que gostamos, assim como “leiam!” para os livros que nos tornaram outros depois da última página. Mas continuei desassossegada e vi o filme uma segunda vez. Percebi que precisava escrever um pouco mais.

E se vivêssemos todos juntos? (Stéphane Robelin – França/Alemanha) é um filme sobre os últimos anos de quem, graças ao aumento da expectativa de vida, passou dos 70 e poucos. Como disse Jeanne, a personagem de Jane Fonda, ao seguir a ambulância que carregava seu marido para o hospital depois de uma queda: “A gente planeja tudo, mas nunca pensa no que fazer nos últimos anos da vida”. É disso que se trata. O filme fala de algo que precisamos falar mais: sobre envelhecer neste mundo, nesta época. Precisamos falar mais porque a maioria de nós vai viver esse momento. Não é fácil vivê-lo – é uma sorte vivê-lo.

Começamos a nos preparar, como invoca Jeanne, quando nos arriscamos a pensar sobre aquilo que nos inquieta ou inquietará – ou inquieta ou inquietará aqueles que amamos. O cinema já descobriu essa necessidade e, só neste ano, chegaram ao Brasil pelo menos dois filmes que falam explicitamente sobre envelhecer: O exótico Hotel Marigold (John Madden, Reino Unido), que poderia ser bem melhor do que é, e E se vivêssemos todos juntos?.

Neste, um grupo de velhos decide viver na mesma casa para enfrentar aquilo que os inquieta – e seguidamente os ameaça. A iniciativa é de um deles, Jean (Guy Bedos), um homem que passou a vida engajado em causas coletivas contra as injustiças sofridas pelos mais fracos. Impedido de seguir para a próxima missão em algum país pobre e distante, porque o seguro se recusa a cobrir gente da sua idade, ele aos poucos descobre que tem uma causa bem perto dele pela qual lutar, que é também uma causa de desamparo.

E se vivêssemos todos juntos? não é um filme para velhos – mas para todos que se interessam pela condição humana. No roteiro, aliás, aqueles que aparecem no lugar de “filhos”, ora perplexos, às vezes distantes, em outras arrogantes na sua certeza sobre o que é melhor para os pais – perdidos sempre – parecem precisar muito assistir a um filme como este.

O filme, que já é muito, muito bonito mesmo, fica ainda melhor com a interpretação impecável de grandes atores, todos eles velhos e, portanto, mais experientes do que nunca. Todos menos um: o único jovem protagonista é o ótimo Daniel Brühl, por quem nos apaixonamos em Adeus, Lenin, e que tem no enredo um lugar muito particular. Ele é um estrangeiro não só por ser um alemão na França, mas por ser um jovem em território de velhos: estrangeiro porque só estranhando é possível enxergar. Vale a pena alertar ainda que, ao contrário do que anuncia a classificação, E se vivêssemos todos juntos? não é uma comédia.

(Como já escrevi aqui, eu não chamo velhos de idosos nem velhice de terceira idade ou – argh – melhor idade. Assisti ao filme pela primeira vez na companhia de parte de um grupo de amigos com os quais tenho um pacto desde os 30 e poucos anos: ao envelhecer, moraremos todos juntos em um condomínio que um de nós já batizou, ironicamente, de “O Ocaso Feliz”. Já acertamos mais ou menos a arquitetura, na qual cada casa terá entradas independentes e fundos para um espaço coletivo, de maneira que, se quisermos ficar sozinhos, basta simplesmente passar a chave na porta dos fundos e botar uma placa de “não perturbe”. Mas não conseguimos nos acertar sobre qual cidade – pequena, perto de uma grande – escolheremos para nossos últimos anos. Ao deixar a sala de cinema, tomamos um espumante antes de nos separarmos. Na segunda vez, assisti ao filme com o homem que eu amo e em quem pretendo abotoar casacos de lã na velhice. Quero muito um velho companheiro com casacos de lã abotoados. E espero viver para isso. Quando o filme terminou, choramos abraçados.)

Feita essa antessala, preciso dizer o seguinte: se você não viu o filme e pretende vê-lo, pare por aqui. Embora o que quero dizer use o filme apenas como ponto de partida, não é possível escrever sem contar bastante sobre ele, mais do que qualquer comentário educado permitiria. Há quem não se importe. Pessoalmente, acho que é sempre (muito) melhor ir ao cinema no escuro. Se quiser, volte ao texto depois – e, como estímulo a uma visita à tela grande, coloco o trailer aqui.

Para quem continua comigo: entre as tantas possibilidades de reflexão propostas por esse filme, há uma que me comove mais. Ela fala de memória – e de algo muito importante: memória não é apenas lembrar, é também esquecer.

No filme, Albert (Pierre Richard) luta contra a perda da memória. Ele não sabe se já levou o cachorro para passear ou não. “Se eu não o tivesse levado, ele estaria reclamando, não?”, indaga-se. Para lembrar os acontecimentos recentes, que o cérebro já não registra, Albert usa a palavra escrita. Escreve um diário sentado na poltrona do apartamento que divide com a mulher, estrategicamente postado ao lado de uma janela que dá para os fundos de uma escola infantil. É com um olho no caderno e o outro na janela, na qual espera, com evidente alegria, as crianças saírem para brincar, que ele relata o sabor do vinho que tomou com os amigos, o cardápio do jantar e aquilo que precisa lembrar quando já tiver esquecido no dia seguinte. O diário, a narrativa da vida pela palavra escrita, é o fio que orienta Albert pelos labirintos de um cotidiano no qual o cérebro falha em lembrar do ontem e até mesmo de alguns minutos antes.

A velhice, para Albert, se manifesta primeiro por esses lapsos de memória. Mas logo ele terá de lidar com um dilema mais profundo: o que lembrar, o que esquecer. Sua mulher, Jeanne (Jane Fonda), de quem já falamos lá no início, teve câncer. No começo do filme, testemunhamos quando ela abre os exames na cozinha e descobre que a doença segue com ela e que não terá muito mais tempo de vida. Quanto tempo, nem ela nem ninguém pode saber.

Jeanne toma uma decisão ao rasgar os exames e enfiar os pedaços na lata de lixo. Escolhe, por amor, não contar a Albert da sua condição. Diz a ele que está curada. Quer viver seus últimos dias, semanas, meses sem que ele seja assombrado por sua morte. Sente-se assim menos assombrada por ela – e mais livre para planejar seu enterro, por exemplo, mais livre para escolher o pouco que pode escolher.

Mas, num dia em que Albert está sozinho em casa, o médico bate na porta à procura de Jeanne, que tinha se recusado a fazer a cirurgia proposta e sumido do consultório. Albert descobre naquele momento: 1) que a mulher vai morrer de câncer; 2) que ela decidiu não compartilhar essa informação com ele. É isso que ele registra em seu diário. E mais um pouco: “É um direito dela (viver sem lhe contar que em breve morrerá de câncer)”. No dia seguinte, enquanto espia ansioso pela janela se as crianças já estão vindo para o recreio, ele lê esse trecho no diário e tem um sobressalto.

Mais adiante, Albert e Jeanne já estão vivendo em comunidade quando ele abre – por engano? – o baú que pertence ao seu amigo Claude (Claude Rich). Já não há mais uma janela por onde espiar crianças brincando, mas há outras paisagens humanas e sentimentais. Albert sente-se desterrado, agora não apenas de sua memória, mas também de sua geografia física, na nova casa. Mas o que relembra todos os dias ao ler o diário faz com que compreenda que é preciso encontrar outros parceiros para encerrar a vida. Não os desconhecidos de um asilo de velhos, mas amigos de uma vida inteira. Gente capaz de reconhecer a geografia que é ele.

Claude é um fotógrafo solteirão e sedutor, o número ímpar da pequena comunidade. E Albert lê cartas destinadas a Claude, nas quais descobre que tanto Annie (Geraldine Chaplin) quanto Jeanne tiveram tórridos casos extraconjugais com o melhor amigo, 40 anos atrás. Albert registra sua descoberta na carta ininterrupta que escreve para si mesmo. E, ao reler o diário a cada manhã, relembra a traição que pode colocar em risco o delicado equilíbrio daquela comunidade construída sobre afeto, solidariedade e a necessidade de unir forças contra um mundo hostil à velhice.

Albert depara-se com uma questão muito mais profunda do que os esquecimentos involuntários causados pela velhice. Ele precisa agora enfrentar a memória como escolha. A cada manhã, ele sobressalta-se primeiro com a notícia de que a mulher tem um câncer que a levará à morte próxima. Em seguida, com a descoberta de que ela o traiu com o melhor amigo 40 anos atrás. O que fazer agora que a velhice lhe deu a possibilidade de escolher o que lembrar e o que esquecer?

A escolha de Albert é um ato completo de amor. Ele decide sofrer a cada dia – e dia após dia – o impacto da notícia de que Jeanne tem um câncer e que vai morrer em breve. Apesar de ser talvez a notícia mais brutal de uma existência inteira, é a forma que ele encontra de estar com ela, de não deixá-la sozinha nesse momento, de viver essa dor junto com a mulher que ama, mesmo que ela nunca saiba disso. Escolher lembrar quando podia simplesmente esquecer é a forma que Albert encontra de amar Jeanne mais e melhor – até o fim.

Se escolhe lembrar a doença e a morte de Jeanne, Albert escolhe esquecer a traição de Jeanne. Depois de dar muitas voltas na casa e em si mesmo, ele rasga a página do diário na qual relata a descoberta, a amassa e a guarda no bolso. Antes, porém, conta a Jean que ele também tinha sido traído pela própria mulher e pelo melhor amigo. Assim, Albert lega a Jean uma memória que o amigo pode superar, mas não esquecer. Albert pode ter feito isso tanto por sentimento de lealdade quanto pelo sentimento de vingança, na medida em que o temperamento explosivo de Jean é bem conhecido. Ou ainda por acreditar que Jean tem o direito de decidir por si mesmo como quer lidar com essa memória. Mas ele, Albert, escolhe esquecer. E este, ainda que de uma forma mais tortuosa, é um ato de amor tanto pela mulher quanto pelo amigo.

Viver, não apenas para os velhos, é uma constante escolha entre o que lembrar e o que esquecer. Ainda que para isso a maioria de nós tenha de travar um embate feroz com seus fantasmas antes de conseguir arrancar uma página espinhosa. Alguns envenenam a própria vida ao fixar-se numa lembrança mais letal que cianureto, condenando-se a um eterno presente congelado, o que é um tipo de morte. E outros perdem essa mesma vida ao transformá-la na fuga incessante de algo que só poderão esquecer se primeiro tiverem lembrado e enfrentado como lembrança.

Ainda que nossas escolhas em torno da memória sejam não mais difíceis do que a de Albert, mas seguramente mais demoradas, nossa existência é determinada por elas. Tanto na esfera pessoal quanto na pública. É uma escolha na esfera pública a decisão de o que fazer com a memória que está em jogo na Comissão Nacional da Verdade, por exemplo, ao apurar os crimes da ditadura. E nesta, em minha opinião, é preciso lembrar – com todas as consequências implicadas nesse gesto – para que o país possa seguir adiante.

Assim como é uma escolha na esfera pessoal o lugar e o tamanho que cada um dá a uma determinada experiência nos muitos mal entendidos entre pais e filhos. É por preferir seguir lembrando uma ausência, uma humilhação ou um equívoco, dia após dia como se fosse o primeiro, em vez de lidar, transformar em marca e então esquecer – ou pelo menos dar à experiência um lugar e um tamanho mais compatíveis com o movimento da vida – que muitos chegam ao amanhã apenas no calendário, mas morrem com as unhas cravadas no ontem.

Como nos mostra Albert, escolher o que lembrar e o que esquecer é também um ato de amor. E nunca é um ato fácil, como não é fácil o amor.

É também um ato de amor a magistral cena final desse filme. E esta eu não vou contar mesmo para quem já viu. Nela, Albert faz, mais uma vez, uma escolha profunda em torno da memória. E são os amigos que provam saber amar ao não apenas acolherem, mas embarcarem na sua escolha. Fazem isso porque compreendem que a vida contém proporções talvez equivalentes de realidade e de delírio, mesmo quando a gente finge não saber disso. E que amar é, às vezes, lembrar de esquecer.

(Publicado na Revista Época em 12/11/2012)

A dor dos filhos

Há um momento mais importante do que a primeira palavra ou o primeiro passo de uma criança: a descoberta do vazio. O que fazemos diante dele é também o que nos torna pais e mães

No livro “Os enamoramentos”, de Javier Marías (Companhia das Letras, 2012), uma das personagens diz:

– Os filhos dão muita alegria e tudo o mais que se costuma dizer, mas também, e isso não se costuma dizer, dão muita pena, permanentemente, o que não creio que mude nem quando forem maiores. Você vê a perplexidade deles diante das coisas, e isso dá pena. Vê a boa vontade deles, quando estão a fim de ajudar e acrescentar algo próprio mas não podem, e isso também dá pena. Dá pena a seriedade deles e dão pena suas brincadeiras elementares e suas mentiras transparentes, dão pena suas desilusões e também suas ilusões, suas expectativas e suas pequenas decepções, sua ingenuidade, sua incompreensão, suas perguntas tão lógicas e até a ocasional má intenção que possam ter. Dá pena pensar quanto lhes falta aprender e no longuíssimo percurso que têm pela frente e que ninguém pode fazer por eles, apesar de estarmos há séculos fazendo e não vejamos a necessidade de que todos os que nascem devam começar outra vez desde o início. Que sentido tem cada um passar pelos mesmos desgostos e descobertas, mais ou menos eternamente?

O fragmento é parte das quatro páginas mais belas deste livro traduzido para o português por Eduardo Brandão. Se você for ler “Os Enamoramentos”, talvez encontre outros momentos de que goste mais. Para mim, o que acontece da página 68 a 71 é, neste livro, o ápice da escritura tão singular de Javier Marías. Não se trata de uma obra sobre o sentimento dos pais diante dos filhos, embora este também seja um “enamoramento”, mas esse pequeno trecho me capturou porque trata de algo que fala aos pais e às mães. E que poucas vezes foi tão bem dito.

Lembro-me do momento exato em que olhei para a minha filha e senti essa dor, que era a dor que eu achava que pudesse ser a dela ou que tinha a certeza de que um dia seria a dela. Tive minha filha aos 15 anos, o que não me deu tempo de esquecer das dores da infância ou da perplexidade da infância, como pode acontecer com aqueles que se tornam pais em idades consideradas mais recomendáveis. Eu me lembrava tanto da dor quanto da perplexidade, e aos 15 anos ainda não tinha feito o luto de nenhuma das duas.

Minha filha tinha uns três ou quatro anos e estava sentada no chão tentando brincar. Eu via o seu esforço e via o seu fracasso. Ou talvez apenas estivesse projetando nela o que sabia que seria seu embate mais ou menos eterno. Mas creio que não, acredito que já era angústia o que havia no seu rostinho redondo, já era perplexidade diante da aridez de alguns dias. Lembro-me de que, naquele momento, as lágrimas pingaram dos meus olhos, como de uma torneira mal fechada. Eu soube ali que jamais poderia tapar aquele buraco, que teria de testemunhar para sempre aquela luta íntima na qual cada um de nós está só. Sempre só. Eu assistia a ela desde já, tão pequena, tão frágil, tão confiante no meu poder ilusório, debatendo-se com a vida. E para sempre diante dela eu pingaria como uma torneira mal fechada. Era um momento silencioso entre nós – e as cartas já estavam dadas muito antes de nós.

Penso que todos os pais que se tornaram pais na modernidade sentem isso – consciente ou inconscientemente. E talvez tornar-se pai e tornar-se mãe se dá também na escolha do que fazer com esse sentimento. Tornar-se pai e mãe porque ser pai e mãe não é algo dado, algo que acontece a partir de um ato biológico, sempre mais explícito para as mulheres do que para os homens. Tampouco basta estar no lugar de pai e de mãe, para além dos laços biológicos. É preciso efetivamente ocupar esse lugar – tornar-se pai e mãe é um processo que não está nem dado nem garantido, exige um contínuo movimento de vir a ser, raramente fácil ou simples.

É conhecida a dificuldade atual de exercer a função paterna e a função materna, porque é mesmo muito mais difícil ocupar um lugar em um mundo movediço, no qual a tradição já não determina o que devemos fazer acima de qualquer questionamento. E aqui não há nenhuma nostalgia das amarras da tradição, embora ela tenha o seu papel, apenas a constatação de que é previsível que nos percamos quando a pergunta de quem somos deixa de ter uma resposta óbvia. Embora tantos pais busquem nos infindáveis manuais as respostas que já não há tradição para dar, talvez esteja na literatura não as respostas, mas a complexidade das perguntas. Por paradoxal que pareça, me parece que tudo fica mais claro quando se complica.

É pelo consumo – e aí possivelmente nunca antes como agora – que se tenta tapar esse buraco aberto no peito dos nossos filhos. Um objeto seguido de outro objeto, a ilusão de que algo foi preenchido com duração cada vez mais curta, o desejo pelo produto seguinte cada vez mais imperativo, a frustração sempre abissal entre um e outro. Com alguma imaginação, é possível enxergar um filme de zumbis nas cenas de shopping, pequenos arrastando grandes por corredores iluminados, em busca não de cabeças humanas, mas de mercadorias para triturar com dentes que não estão na boca.

Mas não protegemos nossos filhos deste vazio, não há como protegê-los daquilo que é uma ausência que nos completa. Penso que este é o momento crucial da maternidade e da paternidade. Cada um de nós, que se sabe faltante, diante da falta que grita no filho. Quando me vi diante desse abismo, como a personagem de “Enamoramentos”, ela num momento muito diverso e muito mais limite do que o meu, lembro-me de me sentir envolta em melancolia. Eu soube ali, naquele instante prosaico em que minha pequena filha procurava por algo que talvez não pudesse ser encontrado em nenhum lugar além dela mesma, que eu haveria de conviver com uma falência dali em diante. Minha melancolia não se devia às dificuldades de uma maternidade precoce – mas à certeza de que proteger minha filha era uma missão desde sempre fracassada. E eu sabia porque eu lembrava – e esta talvez seja uma duvidosa vantagem de ser mãe adolescente.

Em outro livro, “Noites Azuis” (Nova Fronteira, 2012), este autobiográfico, Joan Didion descreve lindamente essa condição que só se tornaria clara para ela depois da morte da filha. Ao folhear um diário de Quintana, Joan descobriu que o medo da menina era “cair no vazio”. Em vez de aceitar este medo, conectar-se com ele, escutá-lo, a mãe escritora se pôs a corrigir a gramática. Impotente, mas sem aceitar a impotência, mesmo depois da tragédia, ela eliminou furiosamente as vírgulas em lugar errado no texto da adolescente. Quintana já tinha partido, mas ainda era tudo o que a mãe se sentia capaz de fazer diante do pavor da filha de “cair no vazio”.

Esta mesma menina, muito antes, aos 5 anos, havia ligado para a clínica psiquiátrica mais famosa da região onde a família vivia para fazer uma pergunta devastadora: “O que devo fazer se estiver enlouquecendo”? Durante muitos anos Joan não conseguia compreender por que a filha temia que ela não pudesse protegê-la. Até entender que a pergunta estava errada. A pergunta correta era: “Como ela podia sequer imaginar que algum dia eu poderia tomar conta dela?”

Ao olhar para minha própria filha naquele momento em que eu sabia que a máquina do mundo se abria diante dela para mostrar seu enorme estômago vazio, lembro-me de que, por um momento, pensei em alcançar talvez um outro brinquedo ou lhe oferecer um chocolate (nos anos 80 ainda era possível ser considerada uma boa mãe mesmo dando doces a uma criança pequena, e não uma serial killer nutricional). Mas meu pensamento não virou gesto. Eu sabia que tudo o que eu podia fazer era me manter em silêncio. Que ser mãe, naquele momento, era ser capaz de vê-la debater-se com o vazio, testemunhar o início de seu longo embate vida adentro. E acho que ali, como deve acontecer com os pais e mães que percebem esse momento exato, uma fissura nova se abriu em mim. Esta que para sempre me faria pingar como uma torneira mal fechada.

“Que sentido tem cada um passar pelos mesmos desgostos e descobertas, mais ou menos eternamente?”, pergunta a personagem de “Enamoramentos”, diante da fragilidade dos filhos que, naquele momento, por uma circunstância trágica, lhe era insuportável. E a resposta talvez seja a de que não exista sentido. E exatamente por não existir, só podemos mostrar aos nossos filhos, porque isso é algo que se mostra, não que se diz, que a tarefa de uma vida humana, desde sempre e para sempre, é criar sentido onde não há nenhum. Inventar uma vida é a tarefa que faz de todos nós ficcionistas. E, em geral, uma vida que faz sentido é aquela em que os sentidos são construídos para serem perdidos mais adiante e recriados mais uma vez e sempre outra vez. É o vazio, afinal, que nos faz inventar uma vida humana – e não morrer antes da morte.

É o que fazemos como pais neste momento em que um filho descobre o vazio, um momento mais importante do que a primeira palavra ou o primeiro passo ou o primeiro dente, que também nos torna pais. É preciso aguentar. Saber aguentar e escutar a dor de um filho, sem tentar calar com coisas o que não pode ser calado com coisa alguma, é um ato profundo de amor. Um momento sem palavras em que nosso silêncio diz apenas que a tarefa de criar uma vida que faça sentido é dele, pessoal e intransferível. E tudo o que poderemos fazer é estar mais ou menos por perto, ainda que nada possamos fazer.

E um dia, talvez, receber uma carta/email na qual está escrito: “Mãe: o que eu sempre vi em você era uma pessoa que não desistia do próprio desejo. E que nunca deixou a vida matar a vida”.

Afinal, o que legamos a um filho é o nosso movimento em busca de sentido. E este não pode ser um arrastar-se de zumbi.

(Publicado na Revista Época em 05/11/2012)