A menina quebrada

Uma carta para Catarina, que descobriu que até as crianças quebram

Era uma festa. Comemorávamos a vinda de um bebê que ainda morava na barriga da mãe. Eu havia acabado de segurá-la para que ela passasse a pequena mão na água da fonte do jardim. Ela tentava colocar o dedo gorducho no buraco para que a água se espalhasse, como tinha visto uma criança mais velha fazer. Parecia encantada com a possibilidade de controlar a água. Tem 1 ano e oito meses, cabelos cacheados que lhe dão uma aparência de anjo barroco e uns olhos arregalados. Com olheiras, Catarina é um bebê com olheiras, embora durma bem e muito. De repente, ela enrijeceu o corpo e deu um grito: “A menina…. A menina…. Quebrou”.

Era um grito de horror. O primeiro que eu ouvia dela. Animação, manha, dor física, tudo isso eu já tinha ouvido de sua boca bonita. Aquele era um grito diferente. Não parecia um tom que se pudesse esperar de alguém que ainda precisava se esforçar para falar frases completas. Catarina estava aterrorizada. “A menina… A menina…” Ela continuava repetindo. Olhei para os lados e demorei um pouco a enxergar o que ela tinha visto em meio à tanta gente. Uma garota, de uns 10, 12 anos, talvez, com uma perna engessada. “Quebrou…” Catarina repetia. “A menina… quebrou.”

Ela não olhava para mim, como costuma fazer quando espera que eu esclareça alguma novidade do mundo. Era mais uma denúncia. Pelo resto da festa, ela gritou a mesma frase, no mesmo tom aterrorizado, sempre que a menina quebrada passava por perto. Nos aproximamos da garota, para que Catarina pudesse ver que ela parecia bem, e que os amigos se divertiam escrevendo e desenhando coisas no gesso, mas nada parecia diminuir o seu horror. Os adultos próximos tentaram explicar a ela que era algo passageiro. Mas ela não acreditava. Naquele sábado de janeiro Catarina descobriu que as pessoas quebravam.

Eu a peguei, olhei bem para ela, olho no olho, e tentei usar minha suposta credibilidade de madrinha: “A menina caiu, a perna quebrou, agora a perna está colando, e depois ela vai voltar a ser como antes”. Catarina me olhou com os olhos escancarados, e eu tive a certeza de que ela não acreditava. Ficamos nos encarando, em silêncio, e ela deve ter visto um pouco de vergonha no assoalho dos meus olhos. Era a primeira vez que eu mentia pra ela. E dali em diante, ela talvez intuísse, as mentiras não cessariam. Naquela noite, depois da festa, fui dormir envergonhada.

O que eu poderia dizer a você, Catarina? A verdade? A verdade você já sabia, você tinha acabado de descobrir. As pessoas quebram. Até as meninas quebram. E, se as meninas quebram, você também pode quebrar. E vai, Catarina. Vai quebrar. Talvez não a perna, mas outras partes de você. Membros invisíveis podem fraturar em tantos pedaços quanto uma perna ou um braço. E doer muito mais. E doem mais quando são outros que quebram você, às vezes pelas suas costas, em outras fazendo um afago, em geral contando mentiras ou inventando verdades. Gente cheia de medo, Catarina, que tem tanto pavor de quebrar, que quebram outros para manter a ilusão de que são indestrutíveis e podem controlar o curso da vida. E dão nomes mais palatáveis para a inveja e para o ódio que os queima. Mas à noite, Catarina, à noite, eles sabem.

E, Catarina, você tem toda a razão de duvidar. Depois de quebrar, nunca mais voltamos a ser como antes. Haverá sempre uma marca que será tão você quanto o tanto de você que ainda não quebrou. Viver, Catarina, é rearranjar nossos cacos e dar sentido aos nossos pedaços, os novos e os velhos, já que não existe a possibilidade de colar o que foi quebrado e continuar como era antes. E isso é mais difícil do que aprender a andar e a falar. Isso é mais difícil do que qualquer uma das grandes aventuras contadas em livros e filmes. Isso é mais difícil do que qualquer outra coisa que você fará.

Existe gente, Catarina, que não consegue dar sentido, ou acha que os farelos de sentido que consegue escavar das pedras são insuficientes para justificar uma vida humana, e quebra. Quebra por inteiro. Estes você precisa respeitar, porque sofrem de delicadeza. E existe gente, Catarina, que só é capaz de dar um sentido bem pequenino, um sentido de papel, que pode ser derrubado mesmo com uma brisa. E essa brisa, Catarina, não pode ser soprada pela sua boca. Ser forte, Catarina, não é quebrar os outros, mas saber-se quebrado. É ser capaz de cuidar de seus barcos de papel – e também dos barcos dos outros – não como uma criança que os imagina poderosos, de aço. Mas sabendo que são de papel e que podem afundar de repente.

Não, acho que eu não poderia ter dito isso a você, Catarina. Não naquela noite, não agora. Ao lhe assegurar, cheia de autoridade de adulto, que tudo estava bem com a menina quebrada, com qualquer e com todas as meninas quebradas, o que eu dei a você foi um vislumbre da minha abissal fragilidade. Esta, Catarina, é uma verdade entre as tantas mentiras que lhe contei, ao tentar fazer com que acreditasse que eu seria capaz de proteger você. Vai chegar um momento, se é que já não houve, em que você vai olhar para todos nós, seus pais, seus “dindos”, seus avós e tios, e vai perceber que nós todos vivemos em cacos. E eu espero que você possa nos amar mais por isso.

Essa conversa, Catarina, está apenas adiada. Talvez, daqui a alguns anos, você precise me perguntar como se faz para viver quebrada. Ou por que vale a pena viver, mesmo se sabendo quebrada. E eu vou lhe contar uma história. Ela aconteceu alguns dias depois daquela festa em que você descobriu que até as meninas quebram. Nós estávamos na fila do caixa do supermercado perto de casa, com uma cesta cheia de compras, e havia um homem atrás de nós. Era um homem vestido com roupas velhas e sujas, parte delas quase farrapos. E ele cheirava mal. Poderia ser alguém que dorme na rua, ou alguém que se perdeu na rua por uns tempos. Ficamos com medo de que o segurança do supermercado tentasse tirá-lo dali, ou que a caixa o tratasse com rispidez, ou que as outras pessoas na fila começassem a demonstrar seu desconforto, como sabemos que acontece e que jamais poderia acontecer. Enquanto pensávamos nisso, ele nos abordou. E pediu, com toda a educação, mas com os olhos dolorosamente baixos: “Por favor, será que eu poderia passar na frente, porque tenho pouca coisa?”.

Quando lhe demos passagem, vimos que o homem não tinha pouca coisa. Ele só tinha uma. Sabe o que era, Catarina?

Um sabonete. Era o que havia entre as mãos de unhas compridas e sujas, junto com algumas moedas e notas amassadas, como em geral são as notas que valem pouco. Aquele homem, que parecia ter perdido quase tudo, aquele homem talvez ainda mais quebrado que a maioria, porque tinha perdido também a possibilidade de esconder suas fraturas, o que ele fez? Quando conseguiu juntar uns trocados, o que ele escolheu comprar? Um sabonete.

Catarina, talvez um dia, daqui a alguns anos, você volte a me olhar nos olhos e a dizer: “A menina… quebrou”. Ou: “Eu… quebrei”. E talvez você me pergunte como continuar ou por que continuar, mesmo quebrada. E eu vou poder lhe dizer, Catarina, pelo menos uma verdade: “Por causa do sabonete”.

(Publicado na Revista Época em 28/01/2013)

 

Perdão, Aaron Swartz

A morte de um gênio da internet, aos 26 anos, é um marco trágico do nosso tempo. É hora de pensar sobre nossas ações – ou omissões

– Eu sinto fortemente que não é suficiente simplesmente viver no mundo como ele é e fazer o que os adultos disseram que você deve fazer, ou o que a sociedade diz que você deve fazer. Eu acredito que você deve sempre estar se questionando. Eu levo muito a sério essa atitude científica de que tudo o que você aprende é provisório, tudo é aberto ao questionamento e à refutação. O mesmo se aplica à sociedade. Eu cresci e através de um lento processo percebi que o discurso de que nada pode ser mudado e que as coisas são naturalmente como são é falso. Elas não são naturais. As coisas podem ser mudadas. E mais importante: há coisas que são erradas e devem ser mudadas. Depois que percebi isso, não havia como voltar atrás. Eu não poderia me enganar e dizer: “Ok, agora vou trabalhar para uma empresa”. Depois que percebi que havia problemas fundamentais que eu poderia enfrentar, eu não podia mais esquecer disso.

Aaron Swartz tinha 22 anos quando explicou por que fazia o que fazia, era quem era. Aos 26, ele está morto. Foi encontrado enforcado em seu apartamento de Nova York na sexta-feira, 11 de janeiro. Provável suicídio. Talvez a maioria não o conheça, mas Aaron está presente na nossa vida cotidiana há bastante tempo. Desde os 14 anos, ele trabalha criando ferramentas, programas e organizações na internet. E, de algum modo, em algum momento, quem usa a rede foi beneficiado por algo que ele fez. Isso significa que, aos 26 anos, Aaron já tinha trabalhado praticamente metade da sua vida. E, nesta metade ele participou da criação do RSS (que nos permite receber atualizações do conteúdo de sites e blogs de que gostamos), do Reddit (plataforma aberta em que se pode votar em histórias e discussões importantes), e do Creative Commons (licença que libera conteúdos sem a cobrança de alguns direitos por parte dos autores). Mas não só. A grande luta de Aaron, como fica explícito no depoimento que abre esta coluna, era uma luta política: ele queria mudar o mundo e acreditava que era possível.

E queria mudar o mundo como alguém da sua geração vislumbra mudar o mundo: dando acesso livre ao conhecimento acumulado da humanidade pela internet. E também usando a rede para fiscalizar o poder e conquistar avanços nas políticas públicas. Movido por esse desejo, Aaron ajudou a criar o Watchdog, website que permite a criação de petições públicas; a Open Library, espécie de biblioteca universal, com o objetivo de ter uma página na web para cada livro já publicado no mundo; e o Demand Progress, plataforma para obter conquistas em políticas públicas para pessoas comuns, através de campanhas online, contato com congressistas e advocacia em causas coletivas. Em 2008, lançou um manifesto no qual dizia: “A informação é poder. Mas tal como acontece com todo o poder, há aqueles que querem guardá-lo para si”.

Indignado com a passividade dos acadêmicos diante do controle da informação por grandes corporações, ele conclamava a todos para lutar juntos contra o que chamava de “privatização do conhecimento”. Baixou milhões de arquivos do judiciário americano, cujo acesso era cobrado, apesar de os documentos serem públicos. Chegou a ser investigado pelo FBI, mas sem consequências jurídicas. Em 2011, porém, Aaron foi alcançado.

Em alguns dias, ele baixou 4,8 milhões de artigos acadêmicos de um banco de dados chamado JSTOR, cujo acesso é pago pelas universidades e instituições. Aaron usou a rede do conceituado MIT (Massachusets Institute of Technology) para acessar o banco de dados, fazendo download de muitos documentos ao mesmo tempo, o que era – é importante ressaltar – permitido pelo sistema. Não se sabe o que ele faria com os documentos, possivelmente dar-lhes livre acesso. Mas, se era esta a intenção, Aaron não chegou a concretizá-la. Ao ser flagrado, ele assegurou que não pretendia lucrar com o ato e devolveu os arquivos copiados para o JSTOR, que extinguiu a ação judicial no plano civil.

Havia, porém, um processo penal: Aaron foi enquadrado nos crimes de fraude eletrônica e obtenção ilegal de informações, entre outros delitos. “Roubo é roubo, não interessa se você usa um computador ou um pé-de-cabra, e se você rouba documentos, dados ou dólares”, afirmou a procuradora dos Estados Unidos em Massachusetts, Carmen Ortiz (United States Attorney). Aaron seria julgado em abril. E, se fosse acatado o pedido da acusação, esta seria a sua punição: 35 anos de prisão e uma multa de 1 milhão de dólares.

Aaron Swartz morreu antes, aos 26 anos. E, como disse Kevin Poulsen, na Wired: “O mundo é roubado em meio século de todas as coisas que nós nem podemos imaginar que Aaron realizaria com o resto da sua vida”. Na The Economist, ele assim foi descrito: “Chamar Aaron Swartz de talentoso seria pouco. No que se refere à internet, ele era o talento”. Susan Crawford, que foi conselheira de tecnologia do governo de Barack Obama, afirmou, como conta John Schwartz, no The New York Times: “Aaron construiu coisas novas e surpreendentes, que mudaram o fluxo da informação ao redor do mundo”. E, acrescentou: “Ele era um prodígio complicado”.

Li em vários artigos que Aaron seria depressivo. Em alguns textos, a suposta depressão foi citada como causa de sua decisão, como se a doença pudesse estar isolada – e não associada aos possíveis abusos cometidos contra ele no curso do processo judicial. É evidente que qualquer pessoa, e especialmente se ela for saudável, sofreria com a perspectiva de passar as próximas três décadas na cadeia – mais ainda se isso significasse um tempo superior à toda a sua vida até então. Esta é uma possibilidade capaz de abater até o mais autoconfiante e otimista entre nós, o que não equivale a dizer que todos lidariam com esse pesadelo da mesma forma. Se é perigoso encontrar um culpado para uma escolha tão complexa quanto o suicídio, também é perigoso quando a depressão é vista como algo apartado da vida vivida – e a patologia é colocada a serviço da simplificação. Se as doenças falam do indivíduo, falam também do seu mundo e de seu momento histórico. (leia mais sobre a trajetória de Aaron aqui e aqui.)

Se Aaron Swartz encerrou a própria vida, esta foi a sua decisão. Tornar-se adulto é também bancar as suas escolhas – e, neste sentido, estar só. Digo isso para que a nossa dor não esvazie de protagonismo o último ato de Aaron, o que equivaleria a desrespeitá-lo. Aaron é responsável por sua escolha, por mais que ela possa ser lamentada. E só ele poderia afirmar por que a fez.

Isso não significa, porém, que vários atores do caso judicial que envenenou a vida de Aaron nos últimos dois anos, com aparentes excessos, não precisem também assumir responsabilidades e responder por suas respectivas escolhas.Um dos mentores de Aaron, Larry Lessig (escritor, professor de Direito da Universidade de Harvard, cofundador do Creative Commons) afirmou que ele tinha errado, mas considerou a acusação e a possível punição uma resposta desproporcional ao ato. Logo após a morte de Aaron, escreveu: “(Ele) partiu hoje, levado ao limite pelo que uma sociedade decente só poderia chamar de bullying”.

Colunistas como Glenn Greenwald, do Guardian, acreditam que o processo penal era uma resposta do governo dos Estados Unidos contra o seu ativismo libertário: “Swartz foi destruído por um sistema de ‘justiça’ que dá proteção integral aos criminosos mais ilustres – desde que sejam membros dos grupos mais poderosos do país, ou úteis para estes –, mas que pune sem piedade e com dureza incomparável quem não tem poder e, acima de tudo, aqueles que desafiam o poder”. Em declaração pública, a família afirmou: “A morte de Aaron não é apenas uma tragédia pessoal. É produto de um sistema de justiça criminal repleto de intimidações”. A família também responsabilizou o MIT pelo desfecho.

Em comunicado, o presidente do MIT, L. Rafael Reif, anunciou a abertura de um inquérito interno para apurar a responsabilidade da instituição nos acontecimentos que levaram à morte de Aaron. Reif escreveu: “Eu e todos do MIT estamos extremamente tristes pela morte deste jovem promissor que tocou a vida de tantos. Me dói pensar que o MIT tenha tido algum papel na série de eventos que terminaram em tragédia. (…) Agora é o momento de todos os envolvidos refletirem sobre suas ações, e isso inclui todos nós do MIT”.

É tarde para o MIT, é tarde para nós. Mas, ainda assim, necessário. É importante pensar sobre o significado da tragédia de Aaron Swartz. E, para começar, só o fato de ela poder significar algo para todos, sendo ele um jovem americano encontrado morto num apartamento em Nova York, é bastante revelador desse mundo novo que Aaron ajudava a construir. Esse mundo que nos une em rede, simultaneamente, que faz o longe ficar perto. Nesse contexto, a tragédia de Aaron Schwartz não é apenas um episódio, mas o marco de um momento histórico específico. Nele, diferentes forças econômicas, políticas e culturais se batem para impor ou derrubar barreiras no acesso ao conhecimento na internet. E este é, junto com a questão socioambiental, o maior debate atual. E é ele que está moldando nosso futuro.

Como disse Tatiana de Mello Dias, em seu blog no Estadão, “poucas pessoas traduziram tão bem a época em que nós estamos vivemos quanto Aaron Swartz”. Isso faz com que possamos pensar que sua morte é também, simbolicamente, um fracasso da geração a qual pertenço. Essa geração que testemunhou o nascimento da internet, que está decidindo – na maioria dos casos por omissão – como o conhecimento vai circular dentro dela e que, por ter crescido num mundo sem ela, nem chega a compreender totalmente o que está em jogo. E por isso deixa a geração de Aaron tão só.

Obviamente sou capaz de perceber os poderosos interesses envolvidos nas decisões relacionadas à internet, boa parte deles conduzidos também por gente da geração a qual pertenço. Mas me refiro aqui à passividade de muitos, no exercício da cidadania, diante de um dos debates cruciais do nosso tempo. E aqui vale uma observação: quando se diz que a juventude atual é alienada, que não trava lutas políticas como seus pais e avós, não é também deixar de enxergar o que se passa na internet, a “rua/praça” de uma série de movimentos políticos levados adiante pelos mais jovens? Já não é um tanto estúpido pensar em mundo real/mundo virtual como oposições? Criticar o “ativismo de sofá” dos mais jovens, menosprezando as ações na rede, não seria má fé ou ignorância? Talvez, como pais e adultos desse tempo, parte de nós tenha apenas medo e vergonha daquilo que não compreende. E, em vez de tentar compreender, num comportamento humano tão triste quanto clássico, desqualifica e rechaça. Afinal, literalmente, a internet tirou o chão que acreditávamos existir debaixo dos nossos trêmulos pés. Ou, pelo menos, nos mostrou que não havia nenhum.

Aaron não era apenas um gênio da internet, ainda que essa palavra “gênio” já tenha sido tão abusada. Talvez o maior ato político de Aaron tenha sido o que fez com seu talento. Ele usou-o para lutar pelo acesso livre ao conhecimento, via internet. Isso, em si, já o tornaria perigoso para muitos. Mas há algo que pode ter soado ainda mais imperdoável: Aaron não queria ganhar dinheiro com o seu talento. Ele não era aquilo que as crianças são ensinadas a admirar: um jovem gênio milionário da internet, como Mark Zuckerberg, o criador do Facebook. Aaron Swartz era um jovem gênio que não queria ser milionário. E, convenhamos, nada pode ser mais subversivo do que isso.

Ao ler sobre a morte de Aaron Swartz, lembrei de dois versos. Ao fim ou diante dele, apesar de todos os argumentos, é só a poesia que dá conta da tragédia. Um é do eternamente jovem Rimbaud (1854-1891): “Por delicadeza, perdi minha vida”. E o outro foi escrito por um Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) já velho: “Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer”.

Quando lemos o que Aaron Swartz escreveu, ouvimos o que disse, ele que acreditava tanto em mudar o mundo, é difícil não pensar: por que ele desistiu de nós, ele que acreditava tanto? Que mundo é esse que criamos, onde alguém como Aaron Swartz acredita não caber?

Então, é isso. Ele nos deixou sozinhos no mundo que legamos à sua geração. Entre os tantos feitos admiráveis deixados por Aaron em sua curta trajetória, ao morrer ele deixou também um outro legado: a denúncia do nosso fracasso.

Perdão, Aaron Swartz.

(Publicado na Revista Época em 21/01/2013)

 

Rosângela e o livro enterrado

A história de uma moradora de rua e sua luta para não perder as palavras que lhe dão existência

Rosângela Ramos desenterrou um romance. Não como uma metáfora, mas como literalidade. Caminhou, cavou e tirou das margens do Guaíba, em Porto Alegre, um manuscrito escrito a lápis 6B com 107 páginas.

Conheci Rosângela em 2 de dezembro de 2011, um dia depois de ela ter enterrado este livro, que chamou de “O escárnio das fogueiras de papel”. Ela tinha viajado para São Paulo a convite do Itaú Cultural para um evento sobre reportagem. A cada encontro, discutia-se a importância de um repórter “ir para a rua” para contar a história contemporânea – o que significa sair das redações, da internet e do telefone para buscar a vida, espantar-se com ela e documentá-la. Rosângela ampliava essa perspectiva: ela é uma repórter “de” rua. Seu jornal, o Boca de Rua, é um dos poucos no mundo – talvez o único – feito por moradores de rua: da pauta, textos, fotos e ilustrações até a venda. E foi por ser moradora de rua que, na véspera da viagem, Rosângela se descobriu num impasse. Onde guardar o que lhe é precioso quando você não tem casa, não tem gavetas, não tem armário, não tem um lado de dentro? Como proteger o que lhe é mais caro quando o seu dentro fica no lado de fora?

Rosângela enterrou seu romance às margens do rio. Mas, no dia seguinte, dentro do avião, ao ver a terra lá embaixo, ela descobriu que não tinha contado para ninguém sobre o paradeiro do livro. Seu tesouro não tinha mapa fora dela. Se morresse no ar ou em São Paulo, o livro estaria para sempre perdido. Ou, como ela diz: “Talvez alguém descobrisse ao escavar para fazer uma das obras da Copa do Mundo”. Atormentada pelo medo de que suas palavras virassem silêncio na margem do rio, Rosângela não pôde dormir nesta primeira noite. E se suas palavras, como ela, seguissem – à margem?

A entrevista com Rosângela sobre sua experiência como repórter do Boca de Rua aconteceu numa sexta-feira, no auditório do Itaú Cultural. Foi gravada para o programa “Jogo de Ideias”, apresentado pelo jornalista Claudiney Ferreira. Em TV, existe a crença de que é preciso manter um determinado ritmo, dentro do qual supostamente as perguntas e as respostas fluem, de forma que o telespectador e também a plateia não se cansem e não troquem de canal. Rosângela ignorou por completo essa “necessidade” – trouxe com ela um outro tempo. O silêncio, que tanto assusta quem faz TV e rádio, era parte das respostas de Rosângela. Ela não podia ser compreendida sem que se escutasse também seu silêncio. Não como se tivesse ficado sem palavras por um momento – mas porque seu silêncio era também um dizer.

Rosângela, a mulher das ruas de concreto, se expressava mais por subjetividades. Não deu à plateia relatos brutais, que talvez fosse o que alguns esperassem dela. Os repórteres do Boca de Rua costumam morrer antes de envelhecer, muitas vezes antes da vida adulta. Mas quando perguntaram a ela do que morriam, Rosângela não descreveu nem as balas, nem as facas, nem os atropelamentos. Ela disse: “Morrem de morte moral”.

Quando acabou a entrevista, ela vendeu todo o seu estoque de jornais. Enquanto parte da plateia foi pra casa, outra parte jantar em algum bar ou restaurante, Rosângela anunciou que precisava caminhar pela Avenida Paulista. Depois de tanto tempo no lado de fora, Rosângela precisava ir para dentro. Partiu então num passo rápido noite adentro, como se soubesse exatamente aonde ia dar – e não sabia. Ou talvez soubesse que ninguém sabe aonde vai dar quando dá o primeiro passo.

Bem cedo no dia seguinte nos encontramos no seu hotel. Rosângela tem apenas 50% da visão em um olho, por causa de uma toxoplasmose que provocou lesões em sua retina. E no outro enxerga “sujo”, por causa de outra doença. No Boca de Rua, ela assim se apresenta: “Sou desenhista com curso em Valência, na Espanha”. O relato de sua vida é como sua visão – fragmentos, imagens às vezes borradas.

Rosângela pegaria o avião de volta perto do meio-dia. Levei o gravador. E ela gravou as coordenadas do local onde estava o seu romance: enterrado nas margens do Guaíba, em Porto Alegre, entre o fogo e o rio, com uma pedra por cima. Mais não direi. Se algo acontecesse com ela, eu deveria enviar essa gravação para Rosina Duarte, jornalista da ONG Alice, responsável pela supervisão do Boca de Rua. “Você tem certeza de que as informações são suficientes para encontrar o livro?”, perguntei, aflita. Vivi quase 17 anos em Porto Alegre e mesmo assim tinha certeza de que teria de escavar o Guaíba inteiro se quisesse encontrá-lo. Mas Rosângela garantiu que as coordenadas estavam claríssimas e que Rosina entenderia.

Conversamos então sobre a palavra escrita, o dentro e o fora. Agora, que ela desenterrou o livro, mandei perguntar se podia publicar nossa conversa. Rosângela disse “sim” – e aqui estamos.

– Por que você enterrou seu livro na beira do Guaíba?
Rosângela – Ali é o meu pátio. Porto Alegre, a Usina do Gasômetro, a orla do rio…

– Que necessidade te fez enterrá-lo?
Rosângela – A necessidade de não perder. Eu já tinha perdido duas outras vezes. Uma vez deixei num banheiro público, outra num banco da Redenção (parque de Porto Alegre). Consegui recuperar, mas aí já tinha vivido o sofrimento de perder, a perda já tinha se tornado real para mim, e isso me deixou transtornada. Por isso, quando tive de viajar, eu não tinha outra alternativa. Não tinha mesmo outra alternativa: precisava enterrá-lo. Este medo de perder… na rua é muito real.

– E o que significa aquilo que está enterrado?
Rosângela – É uma esquizofrenia. Ele (o livro) é como a rua: em cada esquina a gente encontra uma coisa nova, um dia diferente, uma situação, uma circunstância momentânea. Ele é assim. De capítulo em capítulo, de frase em frase, de palavra em palavra. Na maioria das vezes cai numa ironia, numa poesia, num vazio, num delírio, no caos. A metade deste trabalho eu fiz em casa, e a outra metade eu fiz na rua. Então ele toma rumos diferentes. Ele começa com um romance normal que acontece, de amor, e depois ele vai tomando esta forma de arte, e depois política. Então, quando eu venho pra rua, a rua entra ali, mas ela entra sutilmente, ela entra como reflexão. E no final ele se transforma numa alucinação, nesse caos que é a sociedade, tudo.

– De que as pessoas morrem na rua?
Rosângela – Morrem de morte. Morrem de morte… moral. De frio, de chuva, de fome, de negligência. Morrem de assassinato, mesmo. Morrem de estupidez. Morrem pelo poder do qual outras pessoas se apropriam. Um exemplo: não abrir o acesso ao albergue onde tem a proteção de chuva, em dias de chuva. As pessoas se molham e só vão ser atendidas daí a duas horas, três horas, e são pessoas que estão doentes. E aquilo ali, a garoa, mata. Mata. Mata porque eu peguei documentos de hospitais de pessoas que depois de uma chuva foram internadas. Depois de ficarem molhadas, com a roupa molhada, ficaram doentes. Agrava. E de agravo em agravo morrem de negligência.

– É difícil sair do hotel e voltar pro albergue?
Rosângela – Não, porque eu necessito do isolamento, do meu tempo, mas não necessito de luxo. Estar lá é o que me garante a observação daquilo tudo, daqueles detalhes. Me joguei num mar, sabe? É um lugar pequeno, mas, ao mesmo tempo, tu podes ficar ali anos e anos e vai haver sempre ondas distintas.

– Você já dormiu na rua?
Rosângela – Sim, eu tentei chegar o mais próximo possível da realidade.

– É mais difícil viver na rua sendo mulher?
Rosângela – É difícil, é complicado. Um cara chegou em mim me obrigando a dar dinheiro pra ele, e eu achei aquilo um absurdo e o enfrentei. Nos enfrentamos. Colocamos o nariz no nariz do outro. E ele disse que tinha uma faca. E me mostrou. Era uma faca enorme, de açougue. Um cabo branco. E me ameaçou. E eu disse pra ele que ele fizesse o que quisesse. Só que pensei, por um momento, qual era a arma que eu podia usar contra ele. E só podia ser uma arma mental. Eu podia desarmar ele mentalmente, eu tinha que fazer aquilo, não tinha outra alternativa. Pensei: vou dizer uma coisa bem absurda, que não tenha nada a ver com nada, pra ele raciocinar e dispersar. Eu olhei pra ele e eu disse assim: “Eu não vou te comer! Eu não vou te comer!”.

– E aí?
Rosângela – Ele realmente desarmou completamente. No final, começou a rir. Eu tinha dito que não iria estuprá-lo.

– E qual é a diferença que você percebe entre as ruas de São Paulo e as de Porto Alegre?
Rosângela – Quando eu vi as dimensões das ruas… Uma coisa é tu andares em Porto Alegre 30 km, 40 km por dia, na rota, vendendo jornal. Outra coisa é São Paulo, é fazer a Paulista. Acho que eu esperava que aqui fosse ter mais comida, mais sobras na rua. E não há. É por isso que eu acho que as pessoas estão intimidando. As pessoas da rua, de certa forma, intimidam os demais, pedindo. Porque, por um lado, as pessoas se negam a ajudar, e, por outro, aquelas pessoas estão ali. E são pessoas.

– Você achou as ruas de São Paulo mais duras?
Rosângela – Achei. Mais violentas, mais duras. Porto Alegre, por pior que esteja a situação, as pessoas deixam coisas na rua. Já encontrei um espumante europeu geladíssimo num Ano-Novo. Há como sobreviver. As pessoas colocam comida na rua, que é o que a gente chama de “macaquinhos”. Eu não sei se existe isso aqui. As pessoas deixam comida pendurada pra gente na frente de casa. Então nós temos almoço. E nós temos os albergues. Há um albergue, o Felipe Diehl, que é cinco estrelas. Nos fornece roupa, comida. E comida muito boa. Até churrasco a gente come. Só que eu não estou lá. É o lugar que eu menos vou.

– Por quê?
Rosângela – Porque lá tem tudo. Eu quero ir no albergue onde não tem e onde eu tenha de denunciar. Ali é que eu tenho que trabalhar (como repórter).

– Você pintava, e então perdeu parte da visão. Por isso começou a escrever?
Rosângela – Pela dificuldade da visão e até pelo choque… porque perder a visão, pra quem quer ver as cores, é muito, muito complicado. Eu precisava resgatar essa vida de arte.
Entrar numa tela, sabe? Poder divagar ali, escrever, descrever. Eu pintava desde os 6 anos de idade. E esculpia. E até os 40 anos essa foi a minha inscrição, a minha forma de me comunicar com a vida, com o mundo.

– Naquela vez em que perdeu o livro, o que você perdeu?
Rosângela – Naquele momento eu perdi o meu ego, que era a única coisa que eu tinha, sabe? Eu não consegui me recuperar mais, porque perdi tudo o que tinha feito.

– Sua história?
Rosângela – Não, mas a poesia… A história, não. A história é o que menos me interessa. O que me interessa é a poesia, o além da história. Eu nem decidi ainda se vou publicar, nem sei se é possível o “Escárnio” existir como livro. Mas se eu decidir vai ser pelos outros, mesmo, porque eu já li.

– E é o suficiente você já tê-lo lido?
Rosângela – Pra mim é. Pra mim, realmente é.

– Você embrulhou o livro em que, antes de enterrá-lo?
Rosângela – Em sacolas de supermercado. Muitas.

– Você enterrou seu livro, mas, mesmo assim, não se recuperou de tê-lo perdido antes. E mesmo tendo achado o seu romance, a perda continuou em você. Por quê?
Rosângela – É como agora. Enterrei, mas não avisei ninguém onde estava enterrado. E se acontecer alguma coisa? Talvez um dia escavem lá pra fazer a Copa do Mundo e encontrem.

– Eu acho linda essa história de um livro enterrado…
Rosângela – Eu não vejo como lindo, isso. Eu vejo como desespero…

– Como você escreve?
Rosângela – A lápis. Lápis 6B.

– Por que lápis?
Rosângela – Porque ele é um lápis pra desenhar, um lápis macio. É por isso que eu digo que eu pintei um quadro. Eu tive de sintetizar um pouco, por falta de folhas, se quiser saber. Quando eu cheguei na rua, eu não tinha nem folha de ofício. Porque eu gosto de folhas limpas, sem linhas. E pra comprar uma folha, um maço de folhas de ofício, eu tinha que ter grana. E eu não tinha grana. Sabe? Naquele momento, eu não tinha… Eu não sabia como fazer. Eu pedi folhas de ofícios e pudim. Não ganhei nenhum.

– E como é escrever?
Rosângela – Vou limpando… Como eu faço as esculturas. Limpando, limpando, limpando… Eu comecei ele ao contrário. Porque eu tenho mania de ler ao contrário, de pegar o jornal e começar do fim. E no início eu também não conseguia entender, no início eu não elucidava as coisas, estava tudo nas entrelinhas. Eu fui trazendo isso. Como pintar.

– Qual é a diferença de se expressar com palavras?
Rosângela – Ah, foi incrível poder fazer isso. Arte é tridimensional. Com as palavras eu posso ir além das três dimensões. Eu posso cortar essa imagem como se cortasse com um punhal de dois fios… que não deixa nem cicatriz, sabe? Que corta a imagem e pode ir no âmago, no cerne, dentro, na víscera. Eu não me detenho no objeto, mas no que faz isso acontecer. O pensamento é o que leva ao movimento. O pensamento é o que leva à forma, é o que dá uma forma completa àquilo. Então eu aproveitei a história que eu contei, uma história comum, de vida, que acontece com qualquer pessoa, pra trazer todas essas nuances. E aí fui trazendo frases, palavras que eu já ouvi, que eu já vi, e fui colocando. Eu fui escolhendo palavras com muito cuidado.

– O que é a palavra pra você?
Rosângela – A palavra é o imaterial. Porque ela vai além das coisas. As coisas são… coisas. Mas poder falar o que eu imagino, por exemplo: que dentro daquela parede lá, daquele prédio, daquele tijolo, o barro que tá ali, como foi construído, quem fez. Isto é muito mais do que um tijolo.

– Como é dormir num albergue? Como é nunca estar sozinha, pelo menos fisicamente?
Rosângela – Eu durmo com 20 pessoas, mas na verdade eu não sei quantas têm. Porque são pessoas doentes, há pessoas que falam consigo mesmas. Então, não sei quantas são. Tem muitas. Então aquilo ali também foi pra mim uma experiência incrível. E o “Escárnio” vem assim, ele é assim. Uma situação termina e começa outra. É como a rua, onde a gente nunca sabe o que vai acontecer, o que vai encontrar, o que vai comer. Na casa, não. Na casa a gente sabe.

– Você queria um texto que fosse como a rua?
Rosângela – É. Tivesse essa forma. Eu uso poucas palavras que definem a rua, quase nem falo, mas ela entra ali. E quem ler vai entender como a rua está presente ali. Mas ela aparece nas entrelinhas. Porque, na verdade, eu não escrevo. Na verdade, acho que eu escondo mais do que mostro.

– Como?
Rosângela – O que está escrito, muitas vezes, é uma forma de não dizer nada. Terminar… aquele pensamento numa poesia. Especificamente em poesia, entende? O caos das palavras. Não dizer nada ou subentender aquilo. Isso o Mário Quintana fez espetacularmente bem. Mas… eu nunca escrevi e nunca havia lido um romance na vida.

– Não?
Rosângela – Não.

– Qual foi o primeiro?
Rosângela – O meu.

– O seu?
Rosângela – Sim, o que eu escrevi. Porque eu detestava romance. Quando criança, eu não lia nada. Eu desenhava tudo. Pintava a roupa do Mickey, os cachorrinhos, os animais… Isto era o que eu fazia. Mas, ao escrever, eu queria escrever poesia, eu queria fazer o contrário das coisas reais, pormenorizadas, da linguagem dos documentos. Então fui escolhendo as palavras que fossem distorcendo um pouco, terminando em irreverência. Eu queria fazer poesia no nada. Fazer poesia no absurdo. Fazer o absurdo mesmo. E também o ridículo. E o impossível que é transformar o humano em além do humano.

– Como é pintar com palavras? Qual é a diferença?
Rosângela – Pois eu não vejo essa diferença. É por isso que eu digo que é como um pincel. Eu digo: vou fazer exatamente como eu faço quando pinto. Porque é a diferença entre buscar e encontrar algo. E o “Escárnio” foi isso. Foi o encontrar… Eu não busquei, mas eu joguei, eu fiz uma estrutura de texto, uma história, e as outras eu fui jogando, fui colocando tudo ali e e fui buscando sentido. E fui encontrando frases incríveis. Eu acho que eu fui encontrando ali formas expressivas, que outros encontraram da mesma maneira, porque não há outro caminho senão passar por isso, entende? Elas vão automaticamente se agrupando, como um entendimento.

– Como você se sente depois que escreve?
Rosângela – Completa. Assim… quando consigo completar um pensamento, eu me sinto completa.

– Como foi acordar em São Paulo?
Rosângela – Eu acordei em um dos metros quadrados mais caros do mundo, que é a Avenida Paulista, aqui onde estão os tesouros. Aqui tem muita grana, enquanto eu lido com a miséria, com a fome, com a dor. Com a negligência. Então são duas coisas que fazem refletir. Eu estou aqui na Avenida Paulista, eu não estou debaixo de uma aba. Eu estou num hotel, com conforto. Então, este é o meu dentro. Mas, na verdade, é fora, entende? Hoje eu estou saindo daqui. E a rua é um sumidouro. Ele (o livro) é sobrevivência. Eu desistiria se não me tirasse da morte, porque a rua é um sumidouro.

Despedi-me de Rosângela no portão de embarque. Enquanto o avião não aterrissou em Porto Alegre, as palavras enterradas de Rosângela enterraram-se em mim como chumbo. Eu tinha o mapa do tesouro de outro, mas não entendia o mapa – e tinha dúvidas se alguém entenderia. E se o pior acontecesse e não conseguíssemos desenterrar as palavras que eram a vida de Rosângela, a sua não-morte? Mas Rosângela voou, aterrissou e voltou a trocar as asas pelos pés. E agora ela desenterrou seu livro.

O que, afinal, Rosângela enterrou? E o que desenterrou?

Escrever um livro é sempre desenterrar, acho eu. As palavras estão em algum lugar bem fundo de nós. Não um fundo que conhecemos, mas aquele lugar sem lugar que fica abaixo do fundo falso que existe em nossos interiores. Desenterrá-las significa arrancar um pouco de sangue dos nossos confins. Um livro é sempre meio ensanguentado, um pouco de vísceras, alguns miolos, um resto que não se sabe se é humano ou alienígena. Mas Rosângela desenterrou as palavras simbolicamente, como faz qualquer escritor – para depois enterrá-las literalmente. E botou uma pedra por cima, como fazemos para garantir que os mortos não escapem como outra coisa, como algo vivo demais para nos dar sossego, como algo capaz de nos assombrar. Ao enterrar na beira do rio o que desenterrou do fundo de si, o que Rosângela fez?

Ela nos conta que enterrou as palavras porque não queria perdê-las. E talvez esta seja a diferença. Antes de se escreverem, as palavras estão lá – dentro de nós, mas perdidas para nós. Ao desenterrar as palavras, escrevendo-as, Rosângela encontrou as dela. É isso o que ela diz quando explica que é preciso encontrá-las. E é também por isso que, naquele momento, bastava que ela tivesse lido as palavras. Se fosse publicá-las, seria para os outros. Então precisou enterrá-las para não perdê-las, agora de uma forma literal. Porque se as perdesse, o que aconteceria? Ela teria desenterrado as palavras de si e as perdido, o que significa que não poderia mais encontrá-las, nem dentro nem fora. As palavras seguiriam existindo, mas em lugar nenhum. Esta seria a perda insuportável – um tipo de morte.

E agora, Rosângela tirou a pedra, cavou e desenterrou as palavras. O que isso significa?

Talvez um dia Rosângela nos conte.

(Publicado na Revista Época em 07/01/2013)