Protestando dúvidas

Faces e máscaras na revolta sem nome que ocupa as ruas do Brasil

Ainda não há um nome para o que aconteceu/acontece no Brasil. Só tentativas, associadas a fenômenos ocorridos em outros países, como Primavera Árabe, Occupy, Indignados. Não é algo original como “a revolta do vinagre”, como apareceu aqui e ali, também não é Passe Livre. Nenhuma tentativa de nomear os acontecimentos deu conta de sua complexidade, o que parece nos dizer alguma coisa. Talvez porque o nome ainda esteja em disputa, como tanto por esses dias. Talvez porque não seja possível nomear o que não compreendemos. Mas, sobre aquilo que permaneceu inominável, se disse muito. Na mesma proporção da ocupação das ruas por centenas de milhares de brasileiros houve uma produção de narrativas sobre o que acontecia. Fragmentadas, contraditórias, como os cartazes empunhados pelo movimento. Tento escutar algumas delas nesta coluna – não para explicá-las, porque só podemos tatear, mas em busca de pistas sobre o que essas narrativas revelam e mascaram. Se há algo que me parece claro é que máscaras ocultam faces, mas faces também ocultam máscaras.

1) Cuidado, o próximo vândalo pode ser você.

“Vândalos” e “baderneiros” foram as palavras usadas pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB) e adotadas por muitos setores para se referir aos manifestantes, de forma generalizada, até a quinta-feira (13/6). Nesta data, a violenta repressão da polícia paulista deu uma contribuição decisiva para a expansão dos protestos, não só em São Paulo como em todo o Brasil, e para o apoio da população a um movimento que até então boa parte olhava com desconfiança ou mesmo reprovação. A partir das manifestações da segunda-feira (17/6), disseminadas por várias cidades do país, momento em que o movimento recebeu a adesão de atores com demandas bastante diversas entre si, o discurso hegemônico sobre os protestos mudou. Ao longo da semana passada as manifestações ganharam a (quase) unanimidade: aqueles que antes eram “vândalos” e “baderneiros” se tornaram protagonistas de um “despertar”, faces do “gigante que acordou”. Nesse momento, os “vândalos” – esta tornou-se a palavra mais usada, às vezes trocada por “baderneiros” ou “arruaceiros” – tornaram-se, no discurso do Estado, da imprensa e mesmo da população, uma “minoria infiltrada” contra a imensa “maioria pacífica”.

Vale a pena olhar esse discurso narrativo com mais atenção. Antes de continuar, é preciso deixar claro que sou contra depredações – foi duro assistir ao ataque contra o Itamaraty, o belo prédio de Oscar Niemeyer. Também é preciso dizer que aqueles que usam a violência contra prédios e pessoas constituem mesmo uma minoria. Feitas as ressalvas, é possível pensar que essa interpretação, que divide a população entre “manifestantes pacíficos” e “vândalos”, pode encobrir uma complexidade maior: a) Primeiro, ela isola os “vândalos” da massa de manifestantes, aceitando como unanimidade que a única forma legítima de se manifestar é não causando danos ao patrimônio, seja ele público ou privado. Logo, quem entende que atacar o patrimônio é também uma manifestação – como aconteceu muitas vezes ao longo da história do Brasil e do mundo, inclusive em acontecimentos hoje celebrados como heroicos – é automaticamente colocado fora da manifestação no discurso, como se não tivesse nada a dizer nem estivesse dizendo algo com seus atos. Me parece que, ainda que se discorde das depredações – e de novo, repito, eu discordo –, é perigoso deixar de reconhecê-la como uma forma de manifestação. É perigoso porque, ao fazê-lo, se promove um silenciamento: ao deixar de escutá-la em suas diferenças, fecha-se a porta para a compreensão de um aspecto que, querendo ou não, é uma face importante das muitas tensões produzidas pelo fenômeno. E é perigoso deixar de reconhecê-la como parte, ainda que indesejável, para todos os outros manifestantes, hoje protegidos no amplo guarda-chuva representado pela “maioria pacífica”; b) Ao dividir os manifestantes entre “pacíficos”, que seriam os legítimos, e “vândalos”, os “infiltrados”, na medida em que são aqueles que “quebram” não só a ordem e a paz, mas o patrimônio, estabeleceu-se que existe uma massa do bem, aclamada por todos, contra uma massa do mal, que deve ser isolada – ou os limpinhos contra os sujinhos. Como se sabe, os maniqueísmos nunca fazem bem para a compreensão histórica. E, afinal, quem seriam os “infiltrados”, numa manifestação de massa, heterogênea e contraditória, além de agentes do Estado (e talvez eventuais quadrilhas criminosas, presentes apenas para obter ganhos materiais?); c) Há vários riscos contidos na aceitação fácil desse discurso. Um deles é deixar de perceber que, mesmo entre os “vândalos”, há diferenças – e essas diferenças também contam desse fenômeno. Outro risco é que todo comportamento considerado indesejável poderá transformar aquele que até então era “manifestante” num “vândalo”, um conceito que tem se mostrado bastante mutável, elástico e flutuante.

É compreensível que, diante do que não se entende e não se controla, se busque classificar. Classificar é também uma forma de controle. Em especial, quando essa classificação reduz e encaixota. Pode ser esse o caso: há uma caixa para os “vândalos”, que não precisariam ser compreendidos, e há uma caixa para uma maioria pacífica, que, sim, valeria a pena compreender em sua heterogeneidade. Se poderíamos pensar os protestos como uma “terceira margem” da rua, na medida do novo que representam, do entre ruas que expressam, também se reproduz na narrativa hegemônica sobre ele um “à margem”, uma exclusão, o lugar dos que não precisam ser escutados.

Ao longo dos dias, ao ouvir as referências constantes aos “vândalos”, especialmente na TV, me veio esse estranhamento. Vândalos não me é uma palavra estranha. Como a maioria, a ouvi muitas vezes, em ocasiões as mais diversas. Mas, dessa vez, tornou-se estranha pela forma como foi dita e repetida, dando pistas de que havia ali um outro sentido. Parecia ser mesmo um “povo bárbaro”, como na sua origem. Quase esperei pelos visigodos, os ostrogodos… talvez os hunos. Em certo sentido, no discurso sobre o atual fenômeno, os “vândalos” voltaram a tornar-se um “povo” – a tribo que não deveria estar ali, saqueando Roma. Não mais “à margem” da manifestação, mas a própria margem.

É preciso aprender com a história, diz o clichê. Nesse caso, a história de uma semana atrás. Não custa lembrar que, até então, “vândalos” eram todos aqueles que atrapalhavam o tráfego, no discurso dos mesmos que hoje os aclamam como “brasileiros que despertaram”. Quem serão os próximos “vândalos”?

(Parênteses. É um fato digno de atenção que aqueles que até duas ou três semanas atrás atacavam, ridicularizavam e às vezes até criminalizavam as manifestações dos movimentos sociais organizados pelo Brasil afora estejam achando altamente cívico o atual movimento das ruas, mais ainda quando os cartazes expressam generalidades. Isso deve significar alguma coisa.)

2) Os 20 centavos: ampliação ou redução do movimento?

Há uma compreensão de parte dos que estiveram nas manifestações desde o início, de que a manutenção de uma pauta clara, no caso a anulação do aumento da passagem de ônibus, num primeiro momento, para a tarifa zero do transporte público, a médio prazo, era fundamental. Além de ser uma reivindicação objetiva, ela dava conta de uma mudança profunda: a) falava da vida dos mais pobres, na qual o péssimo e caro transporte público determina (e se relaciona com) uma série de violências cotidianas e com a aniquilação da vida; b) dizia de uma transformação estrutural do atual modelo de mobilidade urbana, que prioriza o transporte individual em detrimento do coletivo, o que implica uma série de mudanças relacionadas.

No momento em que o movimento é apropriado por outras forças e essa bandeira passa a ser ampliada com a adesão de atores muito diversos entre si, em especial da classe média tradicional, parte desses manifestantes originais entende que o que pareceu uma ampliação foi, de fato, uma redução. Afinal, é bastante fácil reivindicar o fim da corrupção ou a paz, palavras de ordem tão bonitas quanto etéreas. Alguém sairia às ruas para pedir mais corrupção e mais violência? Difícil. Alguém se pronunciaria contra reinvindicações tão unânimes? Obviamente não. Paz e fim da corrupção, para citar apenas duas bandeiras que apareceram nos cartazes e nas entrevistas dos manifestantes, estão no cardápio de todos – assim como nas promessas vagas de governantes de qualquer partido. O que os manifestantes originais pretendiam – e pretendem – era algo que mexia com estruturas e privilégios, que dava conta de um modo de ver o mundo: tarifa zero para o transporte, assim como se optou em momentos históricos anteriores pela criação do SUS e pela gratuidade da educação pública.

Em parte, me parece que os manifestantes que avaliam existir uma redução qualitativa do movimento – e não uma ampliação – têm razão. Em parte, não. Ainda que o povo tenha ido às ruas com reivindicações amplas e mesmo contraditórias entre si, foi essa adesão que levou à redução da tarifa em São Paulo e em outras cidades, o que não é pouca coisa. Como era a única demanda objetiva, era a resposta objetiva que se poderia dar na perspectiva de arrefecer as ruas. O que acabou não acontecendo (ainda).

O movimento ganhou outras formas com a ampliação da adesão – e também outra força. Se há um risco na amplitude das reivindicações – algumas delas tão vagas quanto contraditórias, outras bastante precisas –, é poderosa essa expressão de repúdio a escolhas feitas pelos governantes, ao modo de fazer política, à falta de qualidade da vida cotidiana e à carência de representatividade no espaço público/político. Quando nos perguntamos se haverá mudanças concretas a partir dessas manifestações, me parece que precisamos compreender que a mudança já aconteceu. Mesmo que as ruas voltem a se apaziguar, nesta ou nas próximas semanas, a mudança já aconteceu. Outras poderão acontecer, mas há algo profundo que já mudou. Na vida pública, coletiva, mas também na individual, existe algo que já penetrou pelas frestas da nossa subjetividade.

Há uma preocupação sobre quem se apropriou do quê, sobre os riscos de uma guinada conservadora, sobre o uso por um ou outro partido, sobre o suposto desvirtuamento do movimento, sobre manipulações as mais diversas. São preocupações importantes. Mas isso é política. Ou alguém pensou que seria um passeio na Avenida Paulista? O jogo é pesado, é de gente grande (mesmo quando jovem). E é também nas ruas que essa disputa – política – precisa ser travada.

Nesse embate, talvez exista ainda algo de pungente e mais subjetivo, para além dos interesses imediatos: o desejo de não ficar de fora de algo tão especial, tão “histórico”, como foi dito e repetido, ainda que não se entenda direito o que é.

(Parênteses. Houve um certo susto com relação ao que é o povo nas ruas – e não apenas por parte das autoridades. Quando o povo vai às ruas, é sempre incontrolável e imprevisível. É ingenuidade pensar que será apenas bonito, como se, de repente, as pessoas todas expressassem somente bons sentimentos. São humanos os que estão nas ruas, com todos os seus desvãos. São os mesmos que xingam no trânsito, cometem pequenas ou até grandes vilanias no dia a dia, vomitam discursos de ódio protegidos pelo anonimato. O Brasil é um país violento, ao contrário do que se diz, e não só por conta dos homicídios e dos arrastões, mas pela violência contida nas relações cotidianas de todos nós, do mau atendimento em toda parte à intolerância com o outro em sua mínima diferença. Se há algo que as redes sociais já nos mostraram é o quão profundos são os desvãos humanos, aqui, em todo canto. É com isso que temos de lidar, tanto dentro quanto fora. Compreendo a decepção de alguns com “o povo”, mas, lamento, o pacote é completo.)

3) “A voz das ruas deve ser ouvida e respeitada”, disse a presidente, que até então preferia não escutá-la.

É ampla e complexa a pauta de porquês que colocou mais de um milhão de brasileiros nas ruas. Mas é bastante provável que pelo menos uma parte dessa composição de insatisfações esteja relacionada à pouca disposição de Dilma Rousseff para escutar os movimentos sociais. Lula era um político imensamente mais hábil do que Dilma. Mesmo quando sua popularidade aumentou, no segundo mandato, ele pelo menos ouvia movimentos sociais – ou “fingia ouvir”, como atestam alguns. Muitas vezes fazia o oposto do que havia dito e garantido que faria, mas recebia seus representantes, cuidava para que os interlocutores se sentissem amplamente acolhidos e saíssem satisfeitos. Essa era uma entre as muitas explicação para que quase nada colasse nele, já que as pessoas acabavam atribuindo os revezes à estrutura do gove rno, a assessores mal intencionados, jamais a um presidente tão carismático. Dilma, não. Se a presidente pensa diferente, não sei, mas todos os sinais que deu, desde que tomou posse, é de que não queria nem achava importante receber os movimentos sociais – os que restaram e não foram cooptados pelo governo.

Enquanto fez amplas concessões a setores como a bancada ruralista, para garantir apoio no Congresso, e deixou áreas consideradas menos estratégicas para serem ocupadas por políticos da estirpe de um Marco Feliciano, a presidente visivelmente se irritava com os pedidos de audiência e as reivindicações dos movimentos sociais. É algo da personalidade dela, como já ficou claro, mas seria injusto acreditar que é apenas uma escolha – ou limitação – pessoal da presidente. A exiguidade crescente dos canais de interlocução com a sociedade devem-se também a uma arrogância do PT, como partido no poder.

Confiante de que a popularidade tanto de Lula quanto de Dilma seria mantida pelos beneficiários de programas de transferência de renda como o Bolsa Família, como de fato tem se demonstrado até aqui, assim como pela inclusão real e importante de uma parcela significativa da população na última década, o PT parece ter acreditado que não precisava mais nem ouvir, nem negociar com os movimentos sociais. Assim como talvez tenha se preocupado menos do que deveria com a necessidade de contratar militantes nas últimas campanhas eleitorais, justo ele que costumava botar uma massa vermelha e convicta nas ruas.

Se a população mais pobre e desorganizada, que o cientista político André Singer denomina de “subproletariado”, tinha passado a garantir as urnas, para que se esfalfar com as reivindicações dos movimentos sociais, geralmente em nome das bandeiras históricas do partido? Ao escolher com quem precisava negociar e com quem não era mais necessário negociar, o PT afastou-se de aliados fiéis, assim como de suas bases tradicionais. Ao fazer crescentes concessões a novos e inconstantes aliados, movidos por interesses muito divergentes do que o PT defendia num passado muito recente e que mudam de lado em um segundo conforme conveniências privadas, desagradou a parcela da sociedade que historicamente esteve ao seu lado. Sempre em nome da “governabilidade”, guarda-chuva que supostamente tornaria tudo não só justificável como aceitável. É verdade que a máxima de que “os fins justificam os meios” foi adotada por todos os partidos no poder desde a redemocratização, mas também é verdade que do PT se esperava mais. E de quem se espera mais, também se cobra com mais veemência.

Não sei afirmar em que medida isso influenciou o movimento das ruas, apenas dizer que é uma pista a ser levada em conta na tentativa de compreender o fenômeno, já que o partido das ruas se descobriu apartado das ruas. E suspeito que não seja apenas por conta da ignorância dos jovens sobre a história do país e do lugar do PT nessa história. Inclusive porque foi o PT que, muitas vezes antes, esqueceu-se de sua própria trajetória. E se esforçou para que a esquecêssemos.

Nem por um segundo acredito que o lugar desqualificado da política convencional e dos partidos no imaginário dos manifestantes nas ruas seja responsabilidade exclusiva do PT. Nenhum partido escapa de compartilhar a responsabilidade pela desqualificação da política – e alguns possivelmente tenham contas maiores a acertar com a sociedade. Não é de hoje que as ruas vêm expressando seu descontentamento, sua sensação de não ser parte das decisões tanto dos governos quanto do legislativo, já que o voto é fundamental, mas não pode ser o único instrumento de participação numa democracia. No início deste ano, 1,6 milhão de pessoas assinaram a petição “Fora, Renan!”, o homem que saiu do Congresso pela porta dos fundos, para não ser cassado por corrupção, e voltou como presidente do Senado. Esta e outras manifestações foram pouco escutadas ou mesmo ridicularizadas como “coisa de ativistas de sofá”. Esqueceram-se de perceber que as ruas virtuais são bem reais. O que era virtual, no sentido de apartado da realidade, talvez fosse a propaganda de um Brasil próspero e feliz, com desejos restritos a bens de consumo.

É triste a expulsão de manifestantes com bandeiras de partidos nos protestos de quinta-feira (20/6). Concordo que seja autoritária, violenta e estúpida. Assim como é triste o ataque aos prédios das instituições, na medida em que mesmo os anseios mais díspares expostos nos cartazes dos manifestantes só poderão se realizar com o fortalecimento das instituições – e não com a sua destruição. Mas é preciso reconhecer que quem primeiro desqualificou os partidos e as instituições foram seus próprios membros. A crise de representação expressada pelos manifestantes nas ruas há muito vem sendo exibida nas redes sociais pela frase “Fulano não me representa” ou “Beltrano me representa”.

No pronunciamento de sexta-feira (21/6), Dilma Roussef disse que era preciso “ouvir a voz das ruas”. As próximas semanas mostrarão se Dilma acredita que é preciso ouvir a voz das ruas – ou acredita apenas que é preciso dizer isso para estancar a perda de popularidade e não comprometer a reeleição. O mesmo vale para governadores e prefeitos de todos os partidos.

(Parênteses. Há uma ironia irresistível nessa história. Lula apresentou Fernando Haddad como “o novo”, na campanha para prefeito de São Paulo, e funcionou. O bom era “o novo”, era “o novo” que o povo queria, o velho não servia para nada, inclusive porque implicava responder por uma história, enquanto no novo a história estava por ser escrita e no papel em branco cabe tudo. Esse truque de marqueteiro arregimentou adeptos e há muito político rodado se lançando como “o novo” por aí. Bem, “o novo” finalmente se apresentou nas ruas da cidade. E agora?)

4) O que é Copa, o que é futebol – o que é deles, o que é nosso

Uma pequena cena da periferia de São Paulo pode dar algumas pistas sobre as manifestações contra a Copa do Mundo na “pátria de chuteiras”. Às 23h de quarta-feira (19/6), o poeta Sérgio Vaz hasteou a bandeira do Brasil no bar do Zé Batidão, na Zona Sul da capital paulista. Era o encerramento daquele que talvez seja o maior sarau de poesias do país, a Cooperifa, frequentado por moradores das quebradas e por alunos da rede pública da região. Naquela quarta-feira particular, alguns dos poetas mais jovens estavam roucos de tanto gritar nos protestos. Vaz sublinhou o que já havia dito no início do sarau: “Estamos hasteando a bandeira não por causa da Copa das Confederações, não por causa da vitória do Brasil no futebol, mas por causa da conquista do povo nas ruas”.

Era uma pequena cena compondo o painel – multifacetado e polifônico – de um grande momento. Sua força é que, horas antes, Neymar fizera um gol espetacular e dera um passe para um segundo gol contra o México, mas isso era menos importante. O que se tornara digno de comemoração foi o que havia acontecido alguns minutos depois do final do jogo: o anúncio, pelo governador Geraldo Alckmin e pelo prefeito Fernando Haddad, da redução do valor das tarifas do transporte público, para atender ao clamor do povo nas ruas.

Vale a pena reservar um parágrafo para a descrição do lugar no qual se desenrola essa cena. Aos fundos do bar, sobre uma estante de livros em que se misturam clássicos do cânone a novelas românticas de banca de revista, estão os orgulhosos troféus do “7 Velas Caveirão”, time que foi patrocinado pelo mineiro Zé Batidão, o dono do bar. Sérgio Vaz sonhava, muito antes de ser poeta, com ser craque de futebol. Boa parte dos que ali estavam são torcedores fanáticos ou quase. Entre os programas da Cooperifa está um intercâmbio com times de futebol de várzea: em troca de uniforme, os jogadores levam suas famílias para ouvir de rap a Castro Alves nas quartas-feiras. Futebol e poesia, ali, habitam a mesma palavra. Ainda assim foi preciso dizer que o gol do Neymar não estava naquela bandeira do Brasil, no momento em que o povo dela se reapropriava.

Ao negar a importância da vitória do Brasil no jogo da Copa das Confederações, o que se afirmava era exatamente a posse do futebol como algo do povo – e não do Estado, nem das empreiteiras que expulsam a população e arrebentam favelas para construir estádios. Ao recusar o custo social da Copa é o futebol que se afirma. Não o futebol dos cartolas, das quadrilhas, dos contratos milionários e dos jogadores movidos a cifrões, mas o futebol como elemento constitutivo de identidade, no momento em que essa identidade ganha fluidez e contornos indefinidos nas ruas do país.

Não acho que os protestos foram planejados para a Copa das Confederações, pelo menos na medida em que ninguém poderia prever a proporção que tomaram. Mas também não acho que o momento seja apenas uma coincidência. Ainda vamos precisar compreender melhor o lugar do futebol e da Copa nessa convulsão das ruas. Quando sonhou com a Copa do Mundo no Brasil, Lula possivelmente pensou com a cabeça da década de 70, com a simbologia da ditadura que marcou a época da juventude dele e de tantos. Mas, ao recusar o custo social da Copa, o povo talvez esteja dizendo: “A Copa do Mundo não é nossa; o futebol, sim”.

(Parênteses. Sérgio Vaz ainda lembraria, com sua ironia certeira: “Aqui na periferia as balas continuam sendo de chumbo. Estamos reivindicando a evolução para balas de borracha”.)

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Em sua crônica da semana passada, na Folha de S. Paulo, o ótimo Antonio Prata fez a síntese precisa do momento: “Sejamos francos, companheiros: ninguém tá entendendo nada. Nem a imprensa nem os políticos nem os manifestantes, muito menos este que vos escreve e vem, humilde ou pretensiosamente, expor sua perplexidade e ignorância”. Desde então, tornou-se quase um estilo começar um artigo dizendo que “ninguém está entendendo nada do que está acontecendo” – alguns com sinceridade, outros como mote para dizer que ele ou o veículo que representa, sim, está entendendo alguma coisa.

Aos que fazem essa afirmação com sinceridade, gostaria de dizer que concordo. Mas gostaria de dizer também que sempre foi assim. Toda reflexão sobre a história em movimento é um esforço para compreender o momento no qual estamos todos tateando a partir de referências do passado e investigações do presente – sempre fragmentadas, incompletas e aquém, por maior que seja o nosso empenho. O que oferecemos ao leitor são nossas melhores e mais profundas dúvidas – e é com dúvidas que vamos construindo a narrativa complexa do cotidiano. O risco seria, com medo da ruptura também em nossos padrões de pensamento, repetirmos certezas viciadas para não escutar o novo. Se existe uma potência possível, ela se dá na coragem de sustentar nossas incertezas.

Uma das melhores frases para esses dias sem nome foi postada pelo poeta Carlito Azevedo, no Facebook:

– Quem não estiver confuso, não está bem informado.

(Publicado na Revista Época em 24/06/2013)

 

Quanto valem 20 centavos?

O que une os manifestantes de São Paulo é o movimento: o ato literal e simbólico de romper o imobilismo da cidade parada e andar

Vinte centavos não são vinte centavos. Vinte centavos tornaram-se ao mesmo tempo estopim e símbolo de um movimento tão grávido de possibilidades que foi reprimido a balas de borracha, a bombas de gás lacrimogêneo e também a golpes de caneta. O que começou com o aumento da passagem do ônibus, se alargou, se metamorfoseou e virou um grito coletivo que tomou a Avenida Paulista e ecoou nas ruas do Brasil. O que há de tão ameaçador nestes 20 centavos, a ponto de fazer com que governos da democracia protagonizem cenas da ditadura, é talvez algo que se acreditava morto por aqui: utopia. A notícia perigosa anunciada pelas ruas, a novidade que o Estado tentou esmagar com os cascos dos cavalos da polícia paulista, é que, enfim, estamos vivos.

A multidão que tomou as ruas de São Paulo, ecoando o que já vinha acontecendo em outras cidades do Brasil, está longe de ser homogênea. Há grupos organizados – e alguns deles acreditam que a depredação é um ato legítimo de defesa, diante da violência sistemática praticada pelo Estado e pelo capital –, há partidos políticos de esquerda e há uma massa de pessoas, a maioria jovens, que aderiram movidas por suas próprias aspirações. O que une “os vários movimentos dentro de um” são os 20 centavos. Mas os 20 centavos deixaram de ser 20 centavos para se tornar expressão de um descontentamento difuso, mas nem por isso menos profundo. Uma decepção com a vida que se vive e um anseio por sentido.

As manifestações de rua são talvez a melhor notícia da democracia, a prova maior de sua vitalidade, mas elas expressam o sentimento de que os políticos que aí estão, os partidos que aí estão, a concepção de mundo, de país e de política que eles representam, já não representam um número crescente de pessoas. Especialmente os jovens pós-internet, mas não só. Contra aquilo que não se entende, mas que ameaça o poder estabelecido, joga-se a polícia. O que se viu na quinta-feira (13/6) foram cenas que lembravam a ditadura militar. Mas as semelhanças acabam aí. A demonstração de força era a expressão de uma fragilidade com a marca deste tempo histórico, do hoje.

A prova mais eloquente, talvez, se revela nas frases postadas pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB) no Twitter. Para qualquer pessoa que seguisse o governador e também pessoas que estavam na manifestação, a narrativa simultânea do momento era extremamente reveladora. Reproduzo aqui a sequência de frases de 140 caracteres de Alckmin e frases de diferentes manifestantes ou jornalistas que cobriam a manifestação, postadas ao mesmo tempo que as do governador. Todos estão identificadas com nome e sobrenome no Twitter, mas, depois do que vi na quinta-feira, por precaução, eu prefiro chamá-los aqui apenas de @manifestantes:

“@GeraldoAlckmin O direito à livre manifestação é um princípio basilar da democracia. Assim como o direito de ir e vir e a preservação do patrimônio público/@manifestante: Praça enchendo em paz… bonito/ @GeraldoAlckmin Depredação, violência e obstrução de vias públicas não são aceitáveis. O Governo de São Paulo não vai tolerar vandalismo/@manifestante: Repressão brutal, pessoas desesperadas, moradores com crianças correndo. Se o Haddad compactuar com isso é o fim definitivo do PT!! /@GeraldoAlckmin Participei hoje, em Santos, da comemoração aos 250 anos do nascimento de José Bonifácio Andrada e Silva, o patriarca da independência/@manifestante: Ônibus pegando fogo na Augusta. Milhares correndo, descendo a rua pedindo paz. PM segue com bombas. Motoristas encurralados por gás/@GeraldoAlckmin Ainda em Santos inaugurei nova delegacia de polícia do Porto de Santos, que ano passado recebeu 1.1 milhão de turistas /@manifestante: Tentei sair. Eles atiraram na minha frente. Virei, atiraram atrás. Fiquei cega, entrei num motel. Consegui me recompor/@GeraldoAlckmin No Guarujá inaugurei o novo Hospital Emílio Ribas e anunciei a implantação do Restaurante Bom Prato/@manifestante: Pra dispersar, faz sentido jogar uma bomba no começo, uma no fim? Fiquei presa entre duas bombas de gás. Muita gente machucada/@GeraldoAlckmin Para Cubatão liberamos R$ 21,5 milhões para construir 800 apartamentos e mais 1.448 apartamentos para Santos que receberá mais uma Etec/@manifestante: Eu nunca vi nada parecido. Muita gente ‘refugiada’ no hotel, sangrando/@GeraldoAlckmin Estive também em São Vicente p/ autorizar a recuperação da belíssima Ponte Pênsil, a construção de 1.120 moradias e a implantação da 2ª ETEC/ @manifestante: Augusta em chamas”.

O governador despediu-se no Twitter, na noite que já está assinalada na história de São Paulo, a maior cidade do país, como uma das mais violentas desde a volta da democracia, com a seguinte frase: “@GeraldoAlckmin Parabéns a toda a população de Guaratinguetá pelos 383 anos da cidade. Boa noite a todos!”.

A frase fala por si. A simultaneidade de realidades também. Se alguém quiser documentar essa noite histórica num livro/e-book, a melhor expressão me parece ser a reprodução das narrativas simultâneas do governador e de alguns narradores que estavam na manifestação. O mesmo vale para quem estiver sem tema para uma tese de doutorado. É um retrato do momento, que abre uma rica paleta de possibilidades de análise e de interpretação.

O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), não se manifestou diretamente nas redes sociais na noite de quinta-feira. Mas sua ausência, em vários sentidos, esteve bem presente. Tão logo ficou claro que a violência policial era condenada até mesmo por aqueles que antes a haviam pedido em letras garrafais, o prefeito passou a se esforçar para se descolar do governador. Assim como o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que, se hoje critica a ação da polícia paulista, antes de os ventos mudarem tinha se apressado a oferecer apoio “no que for necessário” ao governo de São Paulo. Desta vez, PSDB e PT estiveram unidos pela incompreensão do momento histórico que vivem, atarantados diante da força das ruas e de uma linguagem que não dominam, nem sequer entendem.

Quando Alckmin só consegue enxergar “vândalos” e “baderneiros”, é o que não enxerga que aparece. Quando Haddad tenta se amparar no discurso de que o aumento do preço do transporte público foi abaixo da inflação, é a sua dificuldade de compreender o discurso novo das ruas que se torna explícita. Não é mesmo fácil ser político neste momento histórico em que as ruas nas quais os movimentos se iniciam não têm mais chão. Desorientados diante da novidade, alguns quadros e militantes do PT têm repetido que é preciso resgatar bandeiras históricas do partido que se forjou nas ruas, mas agora se descobre apartado delas. Se isso já se torna cada vez mais difícil, dada as posições retrógradas do governo de Dilma Rousseff, é preciso perceber que essas bandeiras perdidas são do século XX. Ainda que as reivindicações estruturais, de fundo, permaneçam, algumas delas com suas raízes no Brasil Colônia, elas foram acrescidas de novos desafios e nuances e de uma forma inteiramente diferente de se relacionar com o mundo. O que está em jogo hoje são bandeiras do século XXI, em que até o conceito de bandeira já não é mais o mesmo.

A avassaladora velocidade das mudanças nos deixa a todos perplexos. E também a imprensa, que vive um momento delicadíssimo. A cobertura ao vivo das TVs era acompanhada por quem estava no Twitter, mas já com uma leitura crítica. E com a comparação imediata do que era dito pelos apresentadores com a narrativa polifônica, em primeira pessoa, feita pelos manifestantes que estavam no centro dos acontecimentos. Em seguida, o relato de quem testemunhava o protesto nas ruas era comentado e replicado pelos manifestantes que não estavam nas ruas, mas também se manifestavam. E não só em São Paulo, mas no Brasil e também fora do país.

Quem tanto ironiza os “ativistas de sofá” precisa começar a entender que as fronteiras entre as ruas já não existem – ou pelo menos exigem outro tipo de interpretação. Mesmo jornalistas que estavam cobrindo o protesto para seus veículos, fizeram seu relato em tempo real no Twitter e no Facebook – e alguns escreveram artigos independentes depois. Para compreender melhor esse aspecto da manifestação de quinta-feira, sugiro a leitura da ótima análise de Fabio Malini, professor da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenador do Laboratório de Estudos em Internet e Cultura (Labic) – aqui.

Os 20 centavos se alargam, sua teia de significados ganha dimensões cada vez maiores, superando qualquer fronteira física ou virtual. A violência da polícia paulista motivou a reação de outras camadas da população e de outras faixas etárias, levando novas adesões ao movimento. O que se vê nas redes agora é a soma daqueles que dizem ser preciso lutar pela democracia e pela liberdade de protestar. Esse sentimento é demonstrado nas quatro frases do Twitter mais republicadas, segundo a análise do professor Fabio Malini: “@LeoRossatto A tarifa virou a menor das questões agora. Os próximos protestos precisam ser, antes de tudo, pela liberdade de protestar/ @choracuica Não é mais sobre a tarifa. F…-se a tarifa. Isso ficou muito maior que a questão da tarifa/@gaiapassarelli Há algo grande acontecendo e é menos sobre aumento de tarifa e mais sobre tomar posição. Todo mundo deveria prestar atenção/ @tavasconcellos Não é mais uma discussão sobre tarifa. Transporte. Baderna. Sobre nada disso. É sobre o direito de se manifestar por qualquer causa”.

Tenho recebido e-mails de amigos e também de desconhecidos. Edson Natale, músico e produtor cultural, mandou o seguinte texto para o seu mailing, do qual também faço parte: “Vou pra rua na segunda (17/6). E vou porque acho que devo cuidar da rua e porque o Brasil não é só a rua por onde ando. Vou pra rua por minhas crenças e pelas crenças dos filhos: dos meus filhos e dos filhos dos outros. Não é muita coisa ir pra rua, mas não quero perder o direito de ir, quando quiser. Não tenho partido, nem religião, mas acredito sobretudo na vida, nas pessoas e no futuro, por exemplo. Tenho 51 anos e poderei (tentar) ajudar a evitar a violência ou a quebradeira, seja lá de quem for. Estarei lá para mostrar que não tenho gostado dos conchavos, das negociatas, das simulações e das dissimulações que têm acontecido tão intensamente nos bairros, cidades e estados; nas florestas, litorais e sertão, independentemente dos partidos responsáveis por elas. Tenho 51 anos e digo – com maturidade – que é preciso ir para a rua e levar as nossas crenças para passear um pouco e encontrar-se com outras crenças, diferenças e verdades. Acho que é assim que se faz um País e eu tinha me esquecido disso. Por isso agradeço aos que ocuparam as ruas antes de mim e por mim. E antes que alguém diga, ressalto que não vou para a rua defender partidos políticos, violência, quebradeira ou ódio… nem para impor a ‘minha’ verdade. E dessa forma encerro aqui o meu convite: vamos?”.

É possível que seja de qualificação do desejo que esse movimento fale. Talvez seja esta a única coesão entre tantos anseios diferentes, organizados ou não. O sentimento de que essa vida é pouca, de que essa política pautada mais pela reprodução das relações de poder do que por ideias de um Brasil melhor já não motiva ninguém. Em São Paulo, mais do qualquer uma das outras capitais que também se levantaram e se levantam, a questão do transporte explicita todo esse desencanto. É muito simbólico que Alckmin e sua polícia tenham frisado tanto que defendiam “o direito de ir e vir” dos cidadãos, como se cidadãos também não fossem aqueles que se manifestavam. Mas o mais irônico dessa justificativa para a repressão é que “ir e vir” é o que não se consegue fazer em São Paulo, imobilizados em ônibus e carros no trânsito parado, uma oposição já cristalizada na linguagem. Talvez o que una os manifestantes tão diferentes de São Paulo seja o movimento – o ato mesmo de literalmente romper o imobilismo e se mover. A maior transgressão é andar – e por isso era também crucial andar na imensamente simbólica Avenida Paulista. Pessoas, não carros, não ônibus 20 centavos mais caros. Não mais como zumbis sustentando uma vida insustentável em passos claudicantes e limitados, mas como pessoas no movimento desejante em busca de uma vida que faça mais sentido.

Vinte centavos talvez sejam o tanto de morte que uma vida humana já não pode suportar. Em São Paulo, mas também em Porto Alegre, no Rio, em Brasília, em várias cidades e capitais. Assim como em outras partes do mundo – antes, agora, possivelmente depois –, em cada uma delas com contextos, peculiaridades e rostos próprios, mas com algo em comum que é possível reconhecer. Algo que revela de um mundo que apodrece, de um modo de vida que já não dá conta da vida.

Talvez quem melhor tenha sintetizado os protestos que hoje tomam conta do Brasil tenha sido um velho, o escritor uruguaio Eduardo Galeano, em outro canto do mundo, quase dois anos atrás. Ao falar aos jovens que tomaram as ruas de cidades da Espanha como Barcelona e Madri, ele disse uma frase que se disseminou pela internet, traduzida para várias línguas: “Este mundo de merda está grávido de outro”.

Tomara que esteja. E que tenhamos a grandeza de sonhar com um mundo em que exista espaço para a vida.

(Publicado na Revista Época em 17/06/2013)

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