Heróis e vilões não cabem na reportagem

O debate que a Mídia Ninja tornou visível é maior do que Pablo Capilé e o Fora do Eixo

As ruas, as de paralelepípedos e as de bytes, foram tomadas nas últimas semanas por um debate que opôs o que se tem chamado de “mídia tradicional” ou “grande mídia” a esta que se apresenta como “Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação). Em especial a partir do momento em que ficou clara a ligação entre o coletivo Fora do Eixo e a Mídia Ninja, no programa Roda Viva, da TV Cultura, que colocou Pablo Capilé e Bruno Torturra no centro da roda. Pessoas que conheciam o Fora do Eixo por dentro deram depoimentos arrasadores nas redes sociais. Artigos sobre o funcionamento do grupo, que a maioria dos brasileiros desconhecia, ganharam destaque na imprensa. É importante conhecer o Fora do Eixo e pensar a Mídia Ninja em toda sua complexidade e com todas suas contradições. Mas também é igualmente importante escapar de uma luta colocada em termos do bem contra o mal, que parece ter se imposto de parte a parte em alguns espaços, porque é nesse maniqueísmo que a complexidade se esvai. O maniqueísmo funciona como silenciador de sentidos, ao virar uma armadilha que nos desvia de um caminho mais penoso e menos imediato, povoado por dúvidas, em que cada um precisa confrontar seus próprios dogmas e assumir a tarefa, sempre trabalhosa e cheia de percalços, de construir conhecimento. Em momentos tão ricos como o que vivemos hoje, ganhamos possibilidades se formos capazes de ampliar e complicar as perguntas, em vez de encontrar respostas rápidas e fechadas que as matem antes de nascer.

A Mídia Ninja colocou no centro um debate sobre jornalismo que até então fluía nas bordas. Esse debate é anterior a ela. É travado por vários protagonistas, individuais e coletivos, inclusive dentro das redações da imprensa tradicional. Ao tornar-se visível nas manifestações de junho, destaque na imprensa brasileira e internacional, a Mídia Ninja o tornou visível. Esse talvez seja o seu maior mérito.

Será uma pena se o debate sobre jornalismo for calado, como tem acontecido, em nome de saber se Pablo Capilé é herói ou vilão, visão que tem variado conforme o narrador. Nesse debate, não há respostas únicas nem fechadas, muito menos detentores da verdade absoluta, a mais inverossímil das invenções humanas. Se é importante conhecer em profundidade o Fora do Eixo e sua figura central – e acho que é –, também é importante não reduzir um debate que é maior. Tratando aquele que é apenas um dos protagonistas como se fosse o único, ao desqualificá-lo, desqualifica-se toda a discussão. Isso é uma modalidade de silenciamento. Sem esquecer que o jornalismo se engrandece na medida em que se afasta dos heróis e dos vilões, sempre pobres de humanid ade. É ao debate sobre jornalismo – e especialmente sobre reportagem – q ue me parece importante voltar.

Ao longo do século 20, a imprensa consolidou uma hegemonia na tarefa de documentar sua época. Tornou-se a principal, às vezes a única, versão sobre os acontecimentos. Definiu o que era um acontecimento que merecia ser contado e o que não era e poderia ser apagado, na medida em que não virava narrativa. É importante sublinhar que, para a maioria dos homens e das mulheres que constroem o país, o mundo ou a aldeia em sua existência cotidiana, não ser reconhecido na narrativa da História tinha – e tem – um efeito brutal. A invisibilidade é, talvez, a violência que inaugura todas as outras.

A imprensa cumpriu bem o papel de documentar sua época sempre que ampliou as vozes e alcançou uma narrativa múltipla, complexa e contraditória do seu tempo. Cumpriu mal seu papel quando reduziu as versões e deixou de contar capítulos inteiros. Falhou miseravelmente todas as vezes em que tentou se colocar como totalmente isenta, imparcial e objetiva – ou como detentora de uma verdade única.

Essa relação entre quem conta e quem é contado – ou não é contado – nunca foi tranquila nem pacífica, já que é feita por homens e mulheres, não por uma entidade acima e ao largo de tudo. As batalhas foram e são travadas dentro e fora das redações, num embate necessário entre visões de mundo. Dentro das redações sempre existiram focos de discordância da posição editorial do veículo – e eram melhores os veículos em que essa disputa se dava como parte do cotidiano. Outros espaços foram criados para transformar em acontecimentos as pessoas, os fatos e as denúncias ignorados pela imprensa tradicional, como ocorreu na época da ditadura militar com a “imprensa al ternativa”. Soa um tanto estúpido acreditar que a imprensa pudesse não ser afetada pela vida e pelas vidas. E a vida e as vidas sempre vazaram dentro e fora das redações. A documentação da história em movimento – a matéria do jornalismo – é um embate no campo da política. E também é disso que se trata agora.

A internet quebrou a hegemonia da imprensa, na medida em que criou novos espaços de documentação, para além dos tradicionais, e permitiu a ampliação dos narradores numa escala antes impossível de ser atingida. E na medida também em que eliminou uma mediação, antes feita principalmente por jornalistas. Aqueles que não eram contados passaram a ter os meios para contar e ser escutados por outros também não contados. Aqueles que eram contados, mas discordavam da versão sobre si mesmos – e não falo apenas de indivíduos, mas também de grupos e de linhas de pensamento – passaram a produzir outras narrativas em resposta, no minuto seguinte. Sobre esse aspecto, talvez o episódio recente em que isso tenha ficado mais claro seja a declaração de morte de um grupo de guaranis caiovás, no ano passado. A carta foi amplamente divulgada nas redes sociais. Brasileiros urbanos passaram a falar, pelo Twitter e pelo Facebook, diretamente com as lideranças indígenas. Essa narrativa, construída à parte dos veículos tradicionais, impôs a questão tanto à pauta do governo quanto à da própria imprensa (escrevi sobre isso aqui e aqui).

A ampliação das narrativas e a democratização do acesso aos meios de narração, pelo surgimento da internet, são compreendidas em alguns espaços como o fim do jornalismo. Discordo totalmente dessa tese. No meu ponto de vista, para que essa tese pudesse ter consistência seria preciso encarar o jornalismo como algo imutável e dado, algo que teria sido sempre como hoje o conhecemos – e já estamos desconhecendo. O processo histórico mostra que o jornalismo é um campo em construção, dissolução e transformação, como tudo. E não poderia ser diferente, na medida em que está em disputa a narrativa do presente — algo que causa enorme impacto tanto sobre o próprio presente como também sobre a forma como ele será interpretado no futuro.

Nem me parece que a crise se restrinja a um modelo de negócios que precisa ser reinventado. Também é isso, mas não só. Estamos diante de uma mudança mais ampla, sobre a qual temos poucas pistas e certezas muito frágeis. Ao mesmo tempo que essa mudança ultrapassa o jornalismo, é também contada por ele. Isso mostra não sua decadência, mas sua força. Parece mais claro é que esta é uma crise de hegemonia. Terá mais chance de se reinventar quem aceitar que as narrativas agora se dão em múltiplos espaços.

Se é fato que hoje todos podem contar e se contar, que a definição do que é acontecimento se tornou território de um conflito com um número maior de participantes, travado para muito além das redações e dos espaços tradicionais de poder, também é fato que se fazer ouvir/ler/assistir tornou-se mais trabalhoso, e sem nenhuma garantia. O leitor – aqui entendido não apenas como leitor de textos escritos, mas como um leitor de realidades múltiplas – é hoje também um escritor de realidades. Não só na medida da sua produção pessoal, mas também porque continua a escrever os textos com sua opinião, discordância, sugestões, teses, ponderações e dúvidas, mesmo nos espaços tradicionais do jornalismo. Com esse aumento de poder de escolha e de intervenção, o lei tor tem se tornado mais seletivo ao escolher com que e com quem gastará seu tempo – e faz essa seleção numa paleta mais ampla. Esse deslocamento do lugar do leitor, antes um receptor até certo ponto passivo, provoca uma desacomodação geral.

Minha hipótese é de que o jornalismo, nos meios tradicionais e também nos novos, terá importância nesse mundo em aberto se for capaz de fortalecer e qualificar aquilo que é sua carne, sua espinha e também sua alma: a reportagem. Se, em vez disso, quiser competir com as narrativas ligeiras e superficiais que abundam na internet, perderá seu ponto de diferença. Pode até conseguir aumentar o número de acessos para suas páginas de imediato, mas, a médio prazo, perderá reputação e, por consequência, espaço e relevância.

Não sei como os espaços de reportagem, tradicionais e novos, serão financiados no futuro próximo. Essa e outras respostas estão em construção no mundo inteiro, não só no Brasil. É preciso fazer parte dessa construção como protagonista. O tempo de esperar que alguém diga como funciona já passou. Para que essa construção e esse debate sejam qualificados, é fundamental escaparmos, mais uma vez, do maniqueísmo, útil apenas para enevoar o olhar. Grandes reportagens, crônicas, artigos e ensaios foram produzidos pela imprensa tradicional, e muito do que hoje se discute se tornou possível a partir dessas reflexões. Transformar a imprens a tradicional em vilã, como alguns têm feito, demonstra apenas igno rância sobre o processo histórico e os embates dentro dele. Assim como reduzir as novas iniciativas a menoridades demonstra o mesmo tipo de ignorância. As oposições são menos óbvias do que parecem. O que soa novo às vezes é bem velho. E o que é velho nem sempre é ruim, pelo contrário. Tanto o novo quanto o velho não são bons ou ruins por definição. Os sentidos são algo em disputa.

De que lugar falo? Essa é sempre uma pergunta cuja resposta é preciso ficar tão clara quanto possível. Não sou uma pesquisadora acadêmica sobre o tema nem tenho uma investigação teórica sobre este e outros momentos da imprensa. Para isso, há gente mais habilitada que eu. Meu conhecimento sobre essas questões foi construído pela reflexão cotidiana, ao longo de 25 anos de reportagem – os últimos quatro também como colunista de opinião, algo que não se confunde com a reportagem, embora a use em parte. Quero concluir esta coluna com a reflexão sobre o que é reportagem, como a compreendo, porque esta, talvez, seja minha melhor contribuição para o debate.

Cada repórter, antes de sair de casa, da redação ou do seu umbigo para as ruas do mundo, precisa primeiro atravessar a rua de si mesmo. Este é um movimento profundo e constantemente aprimorado, que cada um encontra seu próprio jeito de fazer. Mas é um movimento obrigatório se quisermos ter a chance de encontrar o outro. Nesse movimento, nos esvaziamos de nossa visão de mundo, de nossos preconceitos, de nossos julgamentos, para irmos o mais vazios possível em direção ao mundo que é o outro, para que possamos ser preenchidos por ele e então empreendermos a viagem de volta, o que está longe de ser fácil. Quando voltamos para casa somos outros, transformados por essa experiência de ser um outro . Nesse movimento de ida e volta, em que aquele que foi já não é o mesmo q ue retorna, nosso desafio é decifrar a narrativa ou as narrativas daquela pessoa, daquele grupo, daquele mundo ou daquele acontecimento.

A reportagem é sempre uma decifração do outro e do mundo do outro. Por mais que pesquisemos antes, e precisamos pesquisar, é fundamental partirmos de um não-saber. É preciso saber muito para ser capaz de se perder – e, diante do outro, nos colocamos sempre perdidos. Quando acreditamos conhecer essa realidade antes de buscá-la, fechamos o espaço da descoberta e voltamos para o lugar de onde nunca saímos, com aquilo que nunca saberemos. Iludidos de que partimos e chegamos, mas de fato cimentados na mesma posição, pela ausência do gesto essencial.

Desvendar as narrativas do outro exige uma postura de humildade. A começar pela consciência de que somos seres falhos. Acreditar que ser repórter nos faz pairar acima da sociedade, encarnando uma isenção e uma imparcialidade que sabemos impossível, é perigoso para si mesmo e principalmente para quem abre a porta da sua vida para nos contar de si. Só o fato de decidir contar uma história já altera aquela história. É preciso ter a humildade de saber que atuamos lambuzados de cultura, com os dois pés enfiados no tempo. Sabendo-nos parte – e falhos –, podemos tomar as precauções possíveis para que tenhamos chance de chegar mais perto das verdades todas.

Depois do movimento interno de esvaziamento, o instrumento do repórter é a escuta. É a qualidade dessa escuta que garante a qualidade da reportagem. Como escutadores da narrativa de um outro, escutamos não só o que é dito como aquilo que não é dito, não só a voz, mas o silêncio, não só as palavras, mas os gestos, os cheiros, as expressões, os móveis e os objetos da casa, assim como suas rachaduras. Essa é uma escuta que se faz não só com os ouvidos, mas com todos os sentidos, em que só conseguimos descobrir a linguagem habitada pelo outro se, por um momento, nos desabitarmos.

Nos episódios em que deixamos esse lugar de escuta, porque às vezes não o sustentamos, é preciso contar ao leitor. É assim que nos precavemos de nossa condição humana e falha, dessa condição de ser na História e para a História. E conseguimos honrar a dignidade desse pacto em que alguém abre a porta da sua casa e dos seus interiores para se deixar decifrar como narrativa. É só por causa desse movimento que nos tornamos capazes de escutar um torturador, um pedófilo, um serial killer, para além do rótulo ocultador de “bandido”. Assim como a “vítima”, para além de uma circunstância que é apenas parte do que ela é.

Se não formos capazes desse movimento, deixamos de fora da história não só grandes porções de uma mesma pessoa, mas uma enorme porção de pessoas. Para o repórter, cada ser humano é uma experiência única e irrepetível, que será escutado em suas singularidades. É nesse movimento de decifração que nos tornamos capazes de compreender que não há vidas comuns, apenas olhos domesticados – e esse olhar domesticado não pode ser o nosso. É no olhar que se lança para além das camadas enganadoras de uma pretensa banalidade e dos muros impostos pelos discursos fechados que se faz a resistência cotidiana do repórter.

Ser repórter não é dado pelo fato de atuar na imprensa tradicional ou nas novas mídias, não é dado por ter diploma ou não, não é dado por títulos e por prêmios. Ser repórter simplesmente não está dado, na medida em que é um modo de estar no mundo. É mais do que um fazer – é um ser. E um ser que só é ao arriscar-se a ser outro.

(Publicado na Revista Época em 19/08/2013)

 

O aborto e a má fé

A falsa polêmica em torno da lei que protege as vítimas de violência sexual mostrou que o nível da campanha de 2014 poderá ser ainda mais baixo do que na disputa de 2010

Em 1º de agosto, a presidente Dilma Rousseff (PT) sancionou sem vetos a lei que obriga os hospitais a prestarem atendimento integral e multidisciplinar às vítimas de violência sexual. Nas semanas anteriores, a presidente foi pressionada e até ameaçada por religiosos para que não sancionasse o texto, aprovado na Câmara e no Senado. Dilma aprovou. Na semana passada, deputados da bancada religiosa do Congresso apresentaram vários projetos com o objetivo de anular a lei e católicos ligados ao grupo Pró-Vida e Pró-Família anunciaram uma vigília de protesto diante do Palácio do Planalto, segundo a Folha de S.Paulo. A polêmica se apega ao direito de acesso das vítimas à pílula do dia seguinte (pílula anticoncepcional com uma dosagem maior de hormônios), que as impediria de engravidar do estuprador. Com isso, alguns representantes evangélicos e católicos dizem que, na prática, a lei estaria legalizando o aborto no Brasil. É preciso se espantar – e muito – antes que a má fé se naturalize, carregando com ela avanços históricos no campo dos direitos humanos. A entrada do tema do aborto como instrumento de chantagem na campanha presidencial de 2010 iniciou um ciclo de retrocessos que marcou o governo Dilma. E, como ficou claro na polêmica que envolveu a lei do atendimento às vítimas de violência sexual, tem potencial para levar o debate político para as catacumbas em 2014.

A polêmica, para começar, é falsa. Militantes e representantes religiosos sabem muito bem disso. O aborto em caso de violência sexual é permitido no Brasil desde 1940. Qualquer mulher, ao descobrir-se grávida do estuprador, tem o direito legal de abortar. Não é melhor que, em vez de enfrentar o aborto do filho do estuprador, a mulher violentada tome a pílula do dia seguinte e evite uma gestação? Que tipo de gente é capaz de protestar contra isso e por quê?

O mais curioso, nesta lei, o que poderia revoltar pessoas de boa fé, é o fato de, em pleno século 21, ser preciso fazer uma lei para obrigar hospitais a dar assistência emergencial a vítimas de violência sexual. Então os hospitais se recusam, apesar de ser um direito legal e uma questão básica da mais primária compaixão humana? Não seria este o escândalo?

Deveria ser, mas não é. Espertamente estabelece-se uma falsa polêmica para enganar incautos e mal informados, com objetivo de aumentar o apoio popular para pressionar por retrocessos na legislação que protege os direitos da mulher e o acesso à saúde pública. Assim como para aumentar o poder de barganha nas eleições presidenciais de 2014, anunciando o início – ou a continuação – de uma campanha suja, que se vale de ameaças e difamação.

Se o embate em torno do aborto atravessa a história, talvez tenha sido a campanha de 2010 o momento de mais baixo nível desde a redemocratização do país. A campanha de 2010 abriu a porta para todas as leviandades e recuos que se seguiram. E, nisso, José Serra (PSDB), primeiro, e Dilma Rousseff, depois, tem e terão para sempre responsabilidade.

Devemos lembrar que, no final do primeiro turno de 2010, a internet e as ruas foram tomadas por uma campanha na qual se afirmava que Dilma era “abortista” e “assassina de fetos”. Dilma começou a perder votos entre os evangélicos e alguns bispos e padres católicos exortaram os fiéis a não votarem nela. Serra empenhou-se de corpo e alma em tirar proveito da baixaria, determinando o rumo da campanha dali em diante. E Dilma correu a buscar o apoio de religiosos, no qual teve papel central o deputado Gabriel Chalita (PMDB). Acabou por escrever uma carta declarando-se “pessoalmente contra o aborto”, na qual se comprometia, em caso de vencer a eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema.

Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até então desconhecido de quem acompanhava a sua trajetória. Serra apregoou que tinha “Deus no peito”, Dilma que agradecia “a Deus pela dupla graça”, repetindo que fazia “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”. No programa de Serra mulheres grávidas desfilavam pela tela porque o candidato prometia cuidar dos bebês mesmo antes de nascerem. (Escrevi sobre isso aqui.) Na campanha de 2012 à prefeitura de São Paulo, na tentativa de obter o apoio de setores religiosos conservadores e melhorar o desempenho nas pesquisas, Serra, como devemos lembrar, escolheu outro alvo para atacar seu principal adversário, Fernando Haddad (PT): o “kit gay” (cartilha anti-homofobia produzida para trabalhar nas escolas conceitos como tolerância e respeito às diferenças).

Ao longo do seu governo, Dilma tem capitulado diante da bancada religiosa em quase todas os embates ligados aos direitos de mulheres e de homossexuais. Como ao suspender a distribuição do kit anti-homofobia produzido na gestão de Fernando Haddad como ministro da Educação, abrindo espaço para os ataques que vieram depois. A lista de recuos é longa, sendo um dos mais recentes o cancelamento do vídeo de uma campanha de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, nos quais uma prostituta dizia ser feliz. Dilma capitulou tanto, desde que assumiu o cargo, que houve até uma certa surpresa quando ela aprovou integralmente a lei que obriga os hospitais a prestar atendimento a vítimas de violência sexual. Afinal, tornara-se difícil ter certeza se Dilma ainda seria capaz de não capitular diante de uma queda de braço.

A presidente capitulou o suficiente para, poucos dias antes de o prazo para a lei ser sancionada ou vetada se esgotar, ter sido ameaçada por membros do movimento Pró-Vida, como está contado nessa matéria de O Globo, comentada depois por Drauzio Varella, em sua coluna na Folha de S.Paulo. Em audiência com o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência da República, como conta o repórter Evandro Éboli, um dos representantes do movimento católico Pró-Vida afirmou que, se não houvesse veto ao projeto, a campanha anti-Dilma voltaria em 2014. A ameaça está explícita no documento entregue ao ministro e protocolado na presidência da República: “As consequências (da sanção do projeto) chegarão à militância pró-vida, causando grande atrito e desgaste para Vossa Excelência, senhora presidente, que prometeu em sua campanha eleitoral nada fazer para instaurar o aborto em nosso país”. Em 2010, a Polícia Federal apreendeu mais de 19 milhões de panfletos associando a liberação do aborto a então candidata Dilma Rousseff. Em julho, circulou na internet a seguinte campanha: “Dilma, não sancione. Não quero sangue inocente em minhas mãos!”. A frase era acompanhada pela imagem de uma mulher com as mão sujas de sangue.

Nas frentes evangélicas conservadoras, Marco Feliciano (PSC), o pastor que ganhou fama – e provavelmente mais eleitores – ao ser alçado à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara sob intenso protesto, também ameaçou o PT por diversas vezes, acenando com retaliações na campanha de 2014. Depois da sanção da lei que protege as vítimas de violência sexual, exortou os fiéis a não votar em Dilma.

A má fé é evidente. Ao garantir o atendimento emergencial das vítimas de violência sexual, com acesso à pílula do dia seguinte, o número de abortos cai, na medida em que a gravidez não se concretiza. Mesmo tendo direito legal a um aborto em caso de estupro, as mulheres não teriam de passar por mais esse sofrimento. O que acontecia era que muitos hospitais não asseguravam assistência às vítimas, deixando-as desamparadas. É importante sublinhar que a violência sexual no Brasil é um problema de saúde pública: estima-se que a cada 12 segundos uma mulher é estuprada, com todas as consequências físicas e psicológicas resultantes desse crime. Entre 2005 e 2010, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de estupros registrados aumentou em 168%. Entre 2009 e 2012, conforme dados do Ministério da Saúde, os estupros notificados cresceram 157%. Vale a pena lembrar que a violência sexual é um crime marcado pela sub-notificação, já que parte das vítimas tem vergonha e medo de registrar a ocorrência, inclusive porque não são raros os casos em que elas são humilhadas nos postos policiais e mesmo nas delegacias de mulheres. A lei aprovada obriga os hospitais a prestar atendimento multidisciplinar: além de anticoncepção de emergência, o direito a diagnóstico e tratamento das lesões no aparelho genital; amparo médico, psicológico e social; prevenção e combate de doenças sexualmente transmissíveis; realização de exame de HIV; acesso a informações sobre direitos legais e serviços disponíveis na rede pública.

Que tipo de gente pode ser contra uma lei que ampara vítimas de violência sexual, lançando uma falsa polêmica e manipulando o tema do aborto para fins eleitorais?

A mais recente ofensiva do lobby religioso conservador dá uma ideia do que espera o país no ano que vem. O debate político foi rebaixado na campanha de 2010, primeiro e principalmente por Serra, depois por Dilma – e seguiu rebaixado nos últimos anos, como constata qualquer um que acompanhe minimamente o noticiário. Se o aborto, a quinta causa de morte materna no Brasil, fosse de fato discutido com seriedade não só, mas também no curso do processo eleitoral, seria um grande avanço. O atual governo já foi inclusive cobrado por peritos da ONU por não enfrentar a questão e permitir a morte de brasileiras. O SUS gasta cerca de R$ 30 milhões anuais em curetagens, a maioria delas resultante de abortos mal feitos em clínicas clandestinas, sem nenhuma condição sanitária, ou mesmo no banheiro de casa, por brasileiras pobres e desesperadas (leia aqui). Um número, como se vê, que deveria merecer a atenção do Estado. Mas enfrentar a questão com a seriedade necessária nenhum dos candidatos costuma querer, o que faz com que o tema seja reduzido a instrumento de chantagem a cada eleição.

Quando se abre mão dos princípios e se rasga a biografia para angariar votos e aliados de ocasião, é preciso saber que a chantagem nunca mais vai parar. Pelo contrário, depois que o flanco é aberto e o sangue aflora, a sanha aumenta. Basta ver o que corre nos sites e blogs dos “militantes pró-vida” para se ter uma ideia do nível da campanha que nunca parou. Uma pequena amostra são as miniaturas de fetos – e até terços de fetos – distribuídas durante a visita do Papa. Que, pelo menos desta vez, Dilma Rousseff tenha resistido e aprovado integralmente uma lei que assegura o cumprimento da Constituição é uma boa notícia. Mas o fato de que uma mera questão de bom senso e de garantia dos direitos humanos mais básicos, como assegurar assistência a vítimas de violência sexual, tenha sido saudada como um avanço – e, em alguns setores, até como “coragem” – mostra o nível a que despencou o debate.

A campanha de 2014, que obviamente já começou, vai mostrar até onde a chantagem chegará – e como cada candidato lidará com ela. E também como cada eleitor vai olhar para religiosos que transformam Deus em moeda eleitoral.

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P.S. – Neste Dia dos Pais, os seis filhos de Amarildo de Souza acordaram sem saber onde estava o pai deles. O ajudante de pedreiro, conhecido como “Boi”, desapareceu em 14 de julho, depois de ser levado a uma unidade da UPP, na favela da Rocinha, no Rio. “Onde está Amarildo?” é talvez a pergunta mais importante no Brasil, hoje. Pela vida de Amarildo, o indivíduo, único e insubstituível; pelo que sua possível morte significa ao revelar a violência recorrente do país; pelos milhares que desaparecem e são mortos por serem pobres e frágeis; porque é a primeira vez que um número tão expressivo de brasileiros protesta pelo sumiço de um homem que até então era anônimo, sinalizando que a sociedade brasileira pode estar mudando para melhor. É importante repetir e persistir: onde está Amarildo?

(Publicado na Revista Época em 12/08/2013)

 

Onde está Amarildo?

O fato de o ajudante de pedreiro ser visto como “boi” pode ter ajudado a fazer do seu desaparecimento um protesto

Os conhecidos chamavam Amarildo de “boi”. Porque fazia a proeza de carregar dois sacos de cimento nas costas, apesar de magro e quase baixo, em seu pouco mais de 1,70 metro de altura. Porque era também quem carregava os doentes nas costas, tirando-os de dentro da favela e vencendo as escadarias da Rocinha. De todas as descrições de Amarildo, é a do boi a mais marcante, a infinitamente repetida. É como boi que o enxergavam. Boi, não touro. E esta, talvez, seja parte da tragédia. A que começou muito antes do derradeiro crime.

Passei quase duas semanas sem acesso à internet, telefone ou qualquer notícia, numa viagem de trabalho. Não vi o Papa. Quando voltei, descobri que precisava saber onde estava Amarildo. Que, para muitos, o Papa não tinha sido o acontecimento mais importante, o sumiço de Amarildo, sim. A grande notícia era que Amarildo tinha se tornado notícia, num país em que o desaparecimento dos pobres costuma não ganhar nem nota de pé de página, apenas silêncio e impunidade. Que Amarildo tenha sumido é terrível. Que seu sumiço tenha virado faixa e slogan nos protestos, hashtag no Twitter e notícia na imprensa sinaliza – talvez – o começo de uma mudança.

Amarildo de Souza, 43 anos, foi levado para a sede da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da Rocinha, favela da zona sul do Rio de Janeiro, na noite de domingo, 14 de julho. “Para averiguação”, como a polícia costuma dizer quando carrega com ela algum pobre, como se fosse uma justificativa aceitável. Amarildo acabara de voltar de uma pescaria quando quatro policiais o abordaram, supostamente confundindo-o com um traficante, embora testemunhas digam que pelo menos um deles o conhecia muito bem. Nos dias 13 e 14 de julho, a “Operação Paz Armada” – e aqui o nome não é apenas uma ironia, mas também uma violência – colocou 300 policiais na Rocinha e prendeu dezenas de pessoas.

Uma testemunha contou à repórter Elenilce Bottari, de O Globo: “Ele (Amarildo) estava na porta da birosca, já indo para casa, quando os policiais chegaram. O Cara de Macaco (outro apelido curioso, desta vez de um dos policiais da UPP), meteu a mão no bolso dele. Ele reclamou e mostrou os documentos. O policial fingiu que ia checar pelo rádio, mas quase que imediatamente se virou para ele e disse que o Boi tinha que ir com eles. O Cara de Macaco conhecia o Boi e vivia implicando com ele e a família. Esse policial é ruim, gosta de humilhar os pobres daqui”. Amarildo entrou no carro da Polícia Militar vestindo apenas bermuda e chinelos. Sem camisa, o torso de boi estava nu. Desde então, não foi mais visto.

O comandante da UPP, major Edson Santos, disse aos repórteres Marco Antônio Martins e Fábio Brisolla, da Folha de S.Paulo, que Amarildo teria ficado menos de cinco minutos na unidade, o suficiente para ser desfeita a confusão de identidades, e em seguida teria sido liberado. A Rocinha tem 84 câmeras. Naquele domingo, as duas câmeras diante da UPP tiveram problemas. O GPS dos carros de polícia não funcionavam. O que teria acontecido com Amarildo que as câmeras não puderam ver? Que caminhos teria ele percorrido que o GPS não pôde registrar? Ou ele deixou a UPP caminhando e desapareceu depois, como afirma o policial?

Amarildo era ajudante de pedreiro e criava os seis filhos num barraco de um único cômodo, num ponto da favela em que o esgoto serpenteia pelas vielas e tuberculose é doença corriqueira. Não sabia ler, só escrevia o próprio nome. Como conta a repórter Anne Vigna, da Agência Pública, era descendente de escrava, filho de uma empregada doméstica e de um pescador, numa família de 12 crianças. Ganhava R$ 300 numa obra em Copacabana, salário que complementava carregando sacos de cimento nos finais de semana. Estava contente porque tinha conseguido comprar tijolos para alargar sua casa. Ele, que a vida toda construíra a casa dos outros, nas quais tijolos não faltavam. Como o animal cujo nome lhe impingiram, Amarildo também atravessava a vida carregando um peso que não lhe pertencia.

Sim, porque Amarildo era chamado de boi, não touro. Boi de canga é aquele que puxa o arado, um passo penoso depois do outro, um dia seguido de outro dia, as costas suadas debaixo de um sol excessivo. Quem já viu a cena sabe que o mais brutal são os olhos mansos do boi, a resignação de quem só conhece uma sina, a canga que já lhe espremeu a alma. Se Amarildo era ou não boi talvez nunca saberemos, mas o fato de Amarildo ser visto como boi, o que foi citado em quase todos os perfis da imprensa, não deve passar incólume. Não pela sua dimensão poética, mas porque há algo de perturbador no discurso do boi.

O boi não é um animal qualquer. A palavra que o representa marca uma castração. O boi é um vir-a-ser que não será, um interrompido no meio do gesto de tornar-se. Ele poderia ter sido um touro, não fosse o homem ter dado a ele outro destino quando ainda era pouco mais que uma criança, num ritual de sacrifício, mesmo que as técnicas sejam hoje modernas. O boi é aquele que é emasculado para ser ofertado ao serviço ou ao consumo. É emasculado para a servidão – seja como força de trabalho, seja como fornecedor de proteínas. É alienado de si para virar carne, força bruta a serviço de seu dono e algoz. O touro, não. O touro tem a pulsão sexual, o que o faz ser aquele que é. Na literatura, os bois humanos são castrados de esperanças, de possibilidades, de revolta com sua condição servil – de liberdade.

O perigo do boi, no caso de Amarildo, é que o boi parece se transmutar em uma outra palavra, também repetida com insistência nas descrições que dele fizeram: “trabalhador”. Amarildo é o (sub)proletário que ganha meio salário mínimo, condenado a vender o corpo tão barato que nem mesmo consegue alimentar direito a si e à sua família. Mas há um valor simbólico associado a esse trabalhador braçal que carrega duas sacas de cimento nas costas, enquanto outros só conseguiriam carregar uma. Um valor representado pelo boi, essa figura enganosamente bucólica vinda do Brasil colonial, que atravessa os séculos e ganha novos sentidos no capitalismo. Esse valor talvez faça com que seja mais fácil para o Brasil que reclama seu sumiço amá-lo. Amarildo, o boi humano, é o pobre submisso. E parece ser também isso o que torna seu desaparecimento inaceitável.

E aqui, o parêntese sempre necessário. É inaceitável qualquer pessoa entrar num posto policial e desaparecer, como tem acontecido com milhares em todo o Brasil. É inaceitável Amarildo desaparecer, assim como é uma grande notícia que Amarildo tenha virado notícia. O que sugiro é uma complicação um pouco maior, que talvez nos ajude a avançar, sobre o quanto essa figura de Amarildo, o boi, pode ter ajudado a transformar seu nome num slogan de protesto nas ruas e nas redes sociais. A pergunta que proponho aqui é se o fato de Amarildo ser o trabalhador que carrega dois sacos de cimento nas costas o tornou mais palatável para parte daqueles que denunciam seu sumiço e exigem uma resposta. Isso em nada muda a necessidade imperativa de denunciar e exigir uma resposta, porque o sumiço de Amarildo e de todos os outros que não viraram slogan é desde sempre inaceitável. E inaceitável um a um. Mas pode nos ajudar a compreender a complexidade do momento em que vivemos. E talvez nos ajude a não cair em armadilhas nos dias que virão.

O valor simbólico do boi atravessa o tempo e assinala visões de mundo, ainda que inconscientes, nas diferentes classes sociais. É tão comum como triste quando, ao ser confrontados com alguém identificada como autoridade, o que pode ser simplesmente alguém de uma classe mais privilegiada, os pobres apresentam de imediato sua carteira de trabalho para provar que existem e são pessoas boas. Ou para não serem humilhados ou presos, o que não funcionou no caso de Amarildo, mesmo quando “Cara de Macaco” enfiou a mão no seu bolso para pegar os documentos, conforme conta uma testemunha. É assim que a irmã de Amarildo, Maria Eunice Dias Lacerda, o descreve ao jornalista Fernando Gabeira, em reportagem da Globo News: “Ele não ficava em casa, ele era um tipo de pessoa que ele não descansava. Ele não tinha tempo nem pra comer, nem pra se divertir, o negócio dele era trabalho”. Em um perfil publicado na Folha de S. Paulo, essa mesma irmã enuncia o que poderia ser a contrapartida de ser boi em um pacto não pronunciado, mas persistente: “É duro dizer, mas eu acho que meu irmão está morto. Ele sempre dizia que revidaria se fosse agredido por um policial. Dizia que trabalhador não pode levar tapa na cara e ficar quieto”.

O perigo do boi fica ainda mais explícito em uma declaração de Sérgio Cabral (PMDB), o governador decaído do Rio. Ele afirmou no Twitter: “Nada justifica o desaparecimento de uma pessoa que foi checada pelo próprio comandante da UPP como trabalhador”. O que Cabral está dizendo? Se Amarildo não fosse um “trabalhador”, o desaparecimento e a possível morte estariam então não só justificados como legitimados?

De fato, é isso que temos testemunhado e com o que temos compactuado quando não protestamos contra os “suspeitos” executados pela polícia em sucessivas e persistentes invasões nas favelas, como aconteceu em junho na Maré, no mesmo Rio de Janeiro. Ou como acontece há décadas, séculos, em todo o Brasil. Sobre isso, escrevi um outro texto, “Também somos o chumbo das balas” (leia aqui). Nas palavras do governador, se Amarildo não fosse um boi/trabalhador, seu sumiço estaria dentro da normalidade. É essa aberração que tem sido a normalidade no Rio – e no Brasil inteiro.

É por isso que vale a pena se preocupar com o fato de Amarildo ser visto como boi – não como touro. E se Amarildo fosse “suspeito” ou “traficante” ou “bandido” – e não “trabalhador” – como reagiríamos? Teríamos sido capazes de transformar seu sumiço em denúncia e protesto? Ou preferimos ser rebanho, mesmo quando aparentemente nos rebelamos? Pode ser triste, mas necessário, constatar que, em alguns aspectos, uma parcela dos que protestam contra Cabral é mais semelhante do que diferente do governador decaído e da porção assassina de sua polícia. As questões incômodas têm o mérito de nos fazer a avançar e, quem sabe, nos tornar melhores.

Dito isso, a pergunta se impõe: onde está Amarildo?

(Publicado na Revista Época em 05/08/2013)

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