Acordei doente mental

A quinta edição da “Bíblia da Psiquiatria”, o DSM-5, transformou numa “anormalidade” ser “normal”

A poderosa American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria – APA) lançou neste final de semana a nova edição do que é conhecido como a “Bíblia da Psiquiatria”: o DSM-5. E, de imediato, virei doente mental. Não estou sozinha. Está cada vez mais difícil não se encaixar em uma ou várias doenças do manual. Se uma pesquisa já mostrou que quase metade dos adultos americanos tiveram pelo menos um transtorno psiquiátrico durante a vida, alguns críticos renomados desta quinta edição do manual têm afirmado que agora o número de pessoas com doenças mentais vai se multiplicar. E assim poderemos chegar a um impasse muito, mas muito fascinante, mas também muito perigoso: a psiquiatria conseguiria a façanha de transformar a “normalidade” em “anormalidade”. O “normal” seria ser “anormal”.

A nova edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) exibe mais de 300 patologias, distribuídas por 947 páginas. Custa US$ 133,08 (com desconto) no anúncio de pré-venda no site da Amazon. Descobri que sou doente mental ao conhecer apenas algumas das novas modalidades, que tem sido apresentadas pela imprensa internacional. Tenho quase todas. “Distúrbio de Hoarding”. Tenho. Caracteriza-se pela dificuldade persistente de se desfazer de objetos ou de “lixo”, independentemente de seu valor real. Sou assolada por uma enorme dificuldade de botar coisas fora, de bloquinhos de entrevistas dos anos 90 a sapatos imprestáveis para o uso, o que resulta em acúmulos de caixas pelo apartamento. Remédio pra mim. “Transtorno Disfórico Pré-Menstrual”, que consiste numa TPM mais severa. Culpada. Qualquer um que convive comigo está agora autorizado a me chamar de louca nas duas semanas anteriores à menstruação. Remédio pra mim. “Transtorno de Compulsão Alimentar Periódica”. A pessoa devora quantidades “excessivas” de comida num período delimitado de até duas horas, pelo menos uma vez por semana, durante três meses ou mais. Certeza que tenho. Bastaria me ver comendo feijão, quando chego a cinco ou seis pratos fundo fácil. Mas, para não ter dúvida, devoro de uma a duas latas de leite condensado por semana, em menos de duas horas, há décadas, enquanto leio um livro igualmente delicioso, num ritual que eu chamava de “momento de felicidade absoluta”, mas que, de fato, agora eu sei, é uma doença mental. Em vez de leite condensado, remédio pra mim. Identifiquei outras anomalias, mas fiquemos neste parágrafo gigante, para que os transtornos psiquiátricos que me afetam não ocupem o texto inteiro.

Há uma novidade mais interessante do que as doenças recém inventadas pela nova “Bíblia”. Seu lançamento vem marcado por uma controvérsia sem precedentes. Se sempre houve uma crítica contundente às edições anteriores, especialmente por parte de psicólogos e psicanalistas, a quinta edição tem sido atacada com mais ferocidade justamente por quem costumava não só defender o manual, como participar de sua elaboração. Alguns nomes reluzentes da psiquiatria americana estão, digamos, saltando do navio. Como não há cordeiros nesse campo, movido em parte pelos bilhões de dólares da indústria farmacêutica, é legítimo perguntar: perceberam que há abusos e estão fazendo uma “mea culpa” sincera antes que seja tarde, ou estão vendo que o navio está adernando e querem salvar o seu nome, ou trata-se de uma disputa interna de poder em que os participantes das edições anteriores foram derrotados por outro grupo, ou tudo isso junto e mais alguma coisa?

Não conheço os labirintos da APA para alcançar a resposta, mas acredito que vale a pena ficarmos atentos aos próximos capítulos. Por um motivo acima de qualquer suspeita: o DSM influencia não só a saúde mental nos Estados Unidos, mas é o manual utilizado pelos médicos em praticamente todos os países, pelo menos os ocidentais, incluindo o Brasil. É também usado como referência no sistema de classificação de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). É, portanto, o que define o que é ser “anormal” em nossa época – e este é um enorme poder. Vale a pena sublinhar com tinta bem forte que, para cada nova patologia, abre-se um novo mercado para a indústria farmacêutica. Esta, sim, nunca foi tão feliz – e saudável.

O crítico mais barulhento do DSM-5 parece ser o psiquiatra Allen Frances, que, vejam só, foi o coordenador da quarta edição do manual, lançada em 1994. Professor emérito da Universidade de Duke, ele tem um blog no Huffington Post que praticamente usa apenas para detonar a nova Bíblia da Psiquiatria. Quando a versão final do manual foi aprovada, enumerou o que considera as dez piores mudanças da quinta edição, num texto iniciado com a seguinte frase: “Esse é o momento mais triste nos meus 45 anos de carreira de estudo, prática e ensino da psiquiatria”. Em carta ao The New York Times, afirmou: “As fronteiras da psiquiatria continuam a se expandir, a esfera do normal está encolhendo”.

Entre suas críticas mais contundentes está o fato de o DSM-5 ter transformado o que chamou de “birra infantil” em doença mental. A nova patologia é chamada de “Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor” e atingiria crianças e adolescentes que apresentassem episódios frequentes de irritabilidade e descontrole emocional. No que se refere à patologização da infância, o comentário mais incisivo de Allen Frances talvez seja este: “Nós não temos ideia de como esses novos diagnósticos não testados irão influenciar no dia a dia da prática médica, mas meu medo é que isso irá exacerbar e não amenizar o já excessivo e inapropriado uso de medicação em crianças. Durante as duas últimas décadas, a psiquiatria infantil já provocou três modismos — triplicou o Transtorno de Déficit de Atenção, aumentou em mais de 20 vezes o autismo e aumentou em 40 vezes o transtorno bipolar na infância. Esse campo deveria sentir-se constrangido por esse currículo lamentável e deveria engajar-se agora na tarefa crucial de educar os profissionais e o público sobre a dificuldade de diagnosticar as crianças com precisão e sobre os riscos de medicá-las em excesso. O DSM-5 não deveria adicionar um novo transtorno com o potencial de resultar em um novo modismo e no uso ainda mais inapropriado de medicamentos em crianças vulneráveis”.

A epidemia de doenças como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) tem mobilizado gestores de saúde pública, assustados com o excesso de diagnósticos e a suspeita de uso abusivo de drogas como Ritalina, inclusive no Brasil. E motivado algumas retratações por parte de psiquiatras que fizeram seu nome difundindo a doença. Uma reportagem do The New York Times sobre o tema conta que o psiquiatra Ned Hallowell, autor de best-sellers sobre TDAH, hoje arrepende-se de dizer aos pais que medicamentos como Adderall e outros eram “mais seguros que Aspirina”. Hallowell, agora mais comedido, afirma: “Arrependo-me da analogia e não direi isso novamente”. E acrescenta: “Agora é o momento de chamar a atenção para os perigos que podem estar associados a diagnósticos displicentes. Nós temos crianças lá fora usando essas drogas como anabolizantes mentais – isso é perigoso e eu odeio pensar que desempenhei um papel na criação desse problema”. No DSM-5, a idade limite para o aparecimento dos primeiros sintomas de TDAH foi esticada dos 7 anos, determinados na versão anterior, para 12 anos, aumentando o temor de uma “hiperinflação de diagnósticos”.

Pensar sobre a controvérsia gerada pelo nova “Bíblia da Psiquiatria” é pensar sobre algumas construções constitutivas do período histórico que vivemos. Construções culturais que dizem quem somos nós, os homens e mulheres dessa época. A começar pelo fato de darmos a um grupo de psiquiatras o poder – incomensurável – de definir o que é ser “normal”. E assim interferir direta e indiretamente na vida de todos, assim como nas políticas governamentais de saúde pública, com consequências e implicações que ainda precisam ser muito melhor analisadas e compreendidas. Sem esquecer, em nenhum momento sequer, que a definição das doenças mentais está intrinseicamente ligada a uma das indústrias mais lucrativas do mundo atual.

Parte dos organizadores não gosta que o manual seja chamado de “Bíblia”. Mas, de fato, é o que ele tem sido, na medida em que uma parcela significativa dos psiquiatras do mundo ocidental trata os verbetes como dogmas, alterando a vida de milhões de pessoas a partir do que não deixa de ser um tipo de crença. Talvez seja em parte por isso que o diretor do National Institute of Mental Health (Instituto Nacional de Saúde Mental – NIMH), possivelmente a maior organização de pesquisa em saúde mental do mundo, tenha anunciado o distanciamento da instituição das categorias do DSM-5. Thomas Insel escreveu em seu blog que o DSM não é uma Bíblia, mas no máximo um “dicionário”: “A fraqueza (do DSM) é sua falta de fundamentação. Seus diagnósticos são baseados no consenso sobre grupos de sintomas clínicos, não em qualquer avaliação objetiva em laboratório. (…) Os pacientes com doenças mentais merecem algo melhor”. O NIMH iniciou um projeto para a criação de um novo sistema de classificação, incorporando investigação genética, imagens, ciência cognitiva e “outros níveis de informação” – o que também deve gerar controvérsias.

A polêmica em torno do DSM-5 é uma boa notícia. E torço para que seja apenas o início de um debate sério e profundo, que vá muito além da medicina, da psicologia e da ciência. “Há pelo menos 20 anos tem se tratado como doença mental quase todo tipo de comportamento ou sentimento humano”, disse a psicóloga Paula Caplan à BBC Brasil. Ela afirma ter participado por dois anos da elaboração da edição anterior do manual, antes de abandoná-la por razões “éticas e profissionais”, assim como por ter testemunhado “distorções em pesquisas”. Escreveu um livro com o seguinte título: “Eles dizem que você é louco: como os psiquiatras mais poderosos do mundo decidem quem é normal”.

A vida tornou-se uma patologia. E tudo o que é da vida parece ter virado sintoma de uma doença mental. Talvez o exemplo mais emblemático da quinta edição do manual seja a forma de olhar para o luto. Agora, quem perder alguém que ama pode receber um diagnóstico de depressão. Se a tristeza e outros sentimentos persistirem por mais de duas semanas, há chances de que um médico passe a tratá-los como sintomas e faça do luto um transtorno mental. Em vez de elaborar a perda – com espaço para vivê-la e para, no tempo de cada um, dar um lugar para essa falta que permita seguir vivendo –, a pessoa terá sua dor silenciada com drogas. É preciso se espantar – e se espantar muito.

Vale a pena olhar pelo avesso: quem são essas pessoas que acham que o “normal” é superar a perda de uma mãe, de um pai, de um filho, de um companheiro rapidamente? Que tipo de ser humano consegue essa proeza? Quem seríamos nós se precisássemos de apenas duas semanas para elaborar a dor por algo dessa magnitude? Talvez o DSM-5 diga mais dos psiquiatras que o organizaram do que dos pacientes.

Há ainda mais uma consequência cruel, que pode provocar muito sofrimento. Ao transformar o que é da vida em doença mental, os defensores dessa abordagem estão desamparando as pessoas que realmente precisam da sua ajuda. Aquelas que efetivamente podem ser beneficiadas por tratamento e por medicamentos. Se quase tudo é patologia, torna-se cada vez mais difícil saber o que é, de fato, patologia. Por sorte, há psiquiatras éticos e competentes que agem com consciência em seus consultórios. Mas sempre foi difícil em qualquer área distinguir-se da manada – e mais ainda nesta área, que envolve o assédio sedutor, lucrativo e persistente dos laboratórios.

Se as consequências não fossem tão nefastas, seria até interessante. Ao considerar que quase tudo é “anormal”, os organizadores do manual poderiam estar chegando a uma concepção filosófica bem libertadora. A de que, como diria Caetano Veloso, “de perto ninguém é normal”. E não é mesmo, o que não significa que seja doente mental por isso e tenha de se tornar um viciado em drogas legais para ser aceito. Só se pode compreender as escolhas de alguém a partir do sentido que as pessoas dão às suas escolhas. E não há dois sentidos iguais para a mesma escolha, na medida em que não existem duas pessoas iguais. A beleza do humano é que aquilo que nos une é justamente a diferença. Somos iguais porque somos diferentes.

Esse debate não pertence apenas à medicina, à psicologia e à ciência, ou mesmo à economia e à política. É preciso quebrar os monopólios sobre essa discussão, para que se torne um debate no âmbito abrangente da cultura. É de compreender quem somos e como chegamos até aqui que se trata. E também de quem queremos ser. A definição do que é “normal” e “anormal” – ou a definição de que é preciso ter uma definição – é uma construção cultural. E nos envolve a todos. Que cada vez mais as definições sobre normalidade/anormalidade sejam monopólios da psiquiatria e uma fonte bilionária de lucros para a indústria farmacêutica é um dado dos mais relevantes – mas está longe de ser tudo.

E não, eu não acordei doente mental. Só teria acordado se permitisse a uma Bíblia – e a pastores de jaleco – determinar os sentidos que construo para a minha vida.

(Publicado na Revista Época em 20/05/2013)

Índios, os estrangeiros nativos

A dificuldade de uma parcela das elites, da população e do governo de reconhecer os indígenas como parte do Brasil criou uma espécie de xenofobia invertida, invocada nos momentos de acirramento dos conflitos

A volta dos indígenas à pauta do país tem gerado discursos bastante reveladores sobre a impossibilidade de escutá-los como parte do Brasil que têm algo a dizer não só sobre o seu lugar, mas também sobre si. Os indígenas parecem ser, para uma parcela das elites, da população e do governo, algo que poderíamos chamar de “estrangeiros nativos”. É um curioso caso de xenofobia, no qual aqueles que aqui estavam são vistos como os de fora. Como “os outros”, a quem se dedica enorme desconfiança. No processo histórico de estrangeirização da população originária, os indígenas foram escravizados, catequizados, expulsos, em alguns casos dizimados. Por ainda assim permanecerem, são considerados entraves a um suposto desenvolvimento. A muito custo foram reconhecidos como detentores de direitos, e nisso a Constituição de 1988 foi um marco, mas ainda hoje parecem ser aqueles com quem a sociedade não índia tem uma dívida que lhe custa reconhecer e que, para alguns setores – e não apenas os ruralistas –, seria melhor dar calote. Para que os de dentro continuem fora é preciso mantê-los fora no discurso. É isso que também temos testemunhado nas últimas semanas.

Entre os exemplos mais explícitos está a tese de que não falam por si. Aos estrangeiros é negada a posse de uma voz, já que não podem ser reconhecidos como parte. Sempre que os indígenas saem das fronteiras, tanto as físicas quanto as simbólicas, impostas para que continuem fora, ainda que dentro, é reeditada a versão de que são “massas de manobra” das ONGs. Vale a pena olhar com mais atenção para essa versão narrativa, que está sempre presente, mas que em momentos de acirramento dos conflitos ganha força.

Desta vez, a entrada dos indígenas no noticiário se deu por dois episódios: a morte do terena Oziel Gabriel, durante uma operação da Polícia Federal em Mato Grosso do Sul, e a paralisação das obras de Belo Monte, no Pará, pela ocupação do canteiro pelos mundurucus. O terena Oziel Gabriel, 35 anos, morreu com um tiro na barriga durante o cumprimento de uma ordem de reintegração de posse em favor do fazendeiro e ex-deputado pelo PSDB Ricardo Bacha, sobre uma terra reconhecida como sendo território indígena desde 1993. Pela lógica do discurso de que seriam manipulados pelas ONGs, Oziel e seu grupo, se pensassem e agissem segundo suas próprias convicções, não estariam reivindicando o direito assegurado constitucionalmente de viver na sua área original. Tampouco estariam ali porque a alternativa à luta pela terra seria virar mão de obra barata ou semi-escrava nas fazendas da região, ou virar favelados nas periferias das cidades. Não. Os indígenas só seriam genuinamente indígenas se aceitassem pacífica e silenciosamente o gradual desaparecimento de seu povo, sem perturbar o país com seus insistentes pedidos para que a Constituição seja cumprida. Aí já há uma pista para o que alguns setores da sociedade brasileira entendem como identidade “verdadeira”: ser índio seria, quando não desaparecer, ao menos silenciar.

No caso dos mundurucus, questionou-se exaustivamente a legitimidade de sua presença no canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte, por estarem “a 800 quilômetros de sua terra”. De novo, os indígenas estariam extrapolando fronteiras não escritas. Os mundurucus estavam ali porque suas terras poderão ser afetadas por outras 14 hidrelétricas, desta vez na Bacia do Tapajós, e pelo menos uma delas, São Luiz do Tapajós, deverá estar no leilão de energia previsto para o início de 2014. Se não conseguirem se fazer ouvir agora, eles sabem que acontecerá com eles o mesmo que acabou de acontecer com os povos do Xingu. Serão vítimas de um outro discurso muito em voga, o da obra consumada. A trajetória de Belo Monte mostrou que a estratégia é tocar a obra, mesmo sem o cumprimento das condicionantes socioambientais, mesmo sem a devida escuta dos indígenas, mesmo com os conhecidos atropelamentos do processo dentro e fora do governo, até que a usina esteja tão adiantada, já tenha consumido tanto dinheiro, que parar seja quase impossível.

Adiantaria os mundurucus gritarem sozinhos lá no Tapajós, para serem contemplados no seu direito constitucional, respaldado também por convenção da Organização Internacional do Trabalho, de serem ouvidos sobre uma obra que vai afetá-los? Não. Portanto, eles foram até Belo Monte se fazer ouvir. Mas, como são indígenas, alguns acreditam que não seriam capazes de tal estratégia política. É preciso resgatar, mais uma vez, o discurso da manipulação – ou da infiltração. Já que, para serem indígenas legítimos, os mundurucus teriam de apenas aceitar toda e qualquer obra – e, se fossem bons selvagens, talvez até agradecer aos chefes brancos por isso.

Quando os indígenas levantam a voz, a voz não seria sua. Seria de um outro, a quem emprestam o corpo. Ninguém é ingênuo a ponto de acreditar que o discurso dos indígenas como massa de manobra seja inocente. Ele serve a muitos interesses, inclusive o de tirar do foco os reais interesses sobre as terras indígenas de quem o difunde. Mas esse discurso não teria ressonância se não tivesse a adesão de uma parte significativa da população brasileira. E esta adesão se dá, me parece, por essa espécie de xenofobia invertida. Estes “estrangeiros nativos” ameaçariam um suposto progresso, já que seu conhecimento não é decodificado como um valor, mas como um “atraso”, sua enorme diversidade cultural e de visões de mundo não são interpretadas como riqueza e possibilidades, mas como inutilidades. Neste sentido, há uma frase bastante reveladora de como esse olhar – ou não olhar – contamina amplas parcelas da sociedade, inclusive no governo. Ao falar em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, em dezembro passado, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse que sua pasta atendia “da toga à tanga”. Entre os dois extremos, podemos ver em qual deles o ministro situa o ápice da civilização e também o seu oposto.

Há ainda uma dupla invocação do estrangeiro nesse discurso, já que a única coisa pior do que ser “massa de manobra” de ONGs nacionais seria ser das estrangeiras. Evocar a ameaça externa parece sempre funcionar, como naqueles SPAMs, que volta e meia reaparecem, de que “os gringos estão invadindo a Amazônia” – esta também, tão nossa que podemos destruí-la, tarefa a que temos nos dedicado com afinco. Ao denunciar uma suposta apropriação do corpo simbólico dos indígenas por outros, o que se revela, de fato, é a frustração porque esse corpo não se deixa expropriar e manipular pelas elites como antes. Porque apesar de todas as violências, há uma voz que ainda escapa – e que demanda o reconhecimento de seu corpo-terra, de seu pertencimento. Aquele que é visto como o de fora se torna um incômodo quando diz que é parte.

Vale a pena prestar atenção em quem amplifica o discurso dos indígenas como “massa de manobra”, para verificar que fazem exatamente o que acusam outros de fazer: afirmam o que os indígenas, todos eles, precisam e querem. Parece haver um consenso, inclusive, de que o verdadeiro desejo dos indígenas seria se tornar um trabalhador assalariado e urbano ou, pelo menos, o beneficiário de algum programa de transferência de renda do governo.

Nesta posição, eles não atrapalhariam ninguém – e menos ainda os produtores rurais. Este é o momento chave para a entrada de outro discurso recorrente: o de que os indígenas querem terra “demais”. Basta fazer as contas, como fez o jornalista Fabiano Maisonnave, na Folha de S. Paulo: com uma população de 28 mil indígenas em Mato Grosso do Sul, os terenas têm sete reservas, somando cerca de 20 mil hectares; já o produtor rural Ricardo Bacha, em cuja fazenda foi morto o terena Oziel Gabriel, tem cerca de 6.300 hectares, dos quais 800 em litígio. Se é de concentração de terra na mão de poucos que se pretende falar, há muitos números ilustrativos que podem ser citados. Outro dado interessante vem de uma pesquisa da Embrapa, citada em artigo do engenheiro florestal Paulo Barreto, no site O Eco: há 58,6 milhões de hectares de pastos degradados pela pecuária, o equivalente a 53% da área total de terras indígenas. “A Embrapa tem demonstrado que já existem as tecnologias para aumentar a produtividade dos pastos degradados. Assim, ocupar terra indígena é, além de inconstitucional, prova de incompetência”, afirma Barreto. A Embrapa é um dos novos atores que deverão ser chamados para opinar sobre as demarcações, numa manobra para esvaziar a Funai e agradar a bancada ruralista.

O lugar de estranho indesejado,supostamente sem espaço no Brasil que busca o desenvolvimento, tem permitido todo o tipo de atrocidades contra indivíduos e também contra etnias inteiras ao longo da história. Seria muito importante que cada brasileiro reservasse meia hora ou menos do seu dia para ler pelo menos as primeiras 16 páginas do resumo do Relatório Figueiredo, um documento histórico que se acreditava perdido e que foi descoberto no final de 2012 por Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, de São Paulo. No total, o procurador Jáder Figueiredo Correia dedicou 7 mil páginas para contar o que sua equipe viu e ouviu. A íntegra também está disponível na internet.

O relatório, datado de 1968, documentou o tratamento dado aos povos indígenas pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Entre os crimes, cujos responsáveis foram nominados, mas jamais punidos, estão os “castigos” infligidos pelos funcionários aos indígenas, como crucificações e uma tortura conhecida como “tronco”, na qual a vítima tinha o tornozelo triturado. Crianças eram vendidas para abusadores, mulheres, estupradas e prostituídas. Duas aldeias de pataxós, na Bahia, foram dizimadas para atender aos interesses de políticos de expressão nacional da época.Uma nação indígena inteira foi extinta por fazendeiros, no Maranhão, sem que os funcionários sequer tentassem protegê-la. O procurador cita a possível inoculação do vírus da varíola em uma etnia de Itabuna, na Bahia, para que as terras fossem liberadas para “figurões do governo”, assim como o extermínio de um grupo de cintas-largas, em Mato Grosso, de várias formas: atirando dinamite de um avião e adicionando estricnina ao açúcar, além de caçá-los e matá-los com metralhadoras. O massacre ocorreu em 1963, ainda no período democrático, portanto, e os que ainda assim sobreviveram foram rasgados com o facão, “do púbis a cabeça”.

A lista é longa. É importante ressaltar que tudo isso não se passou na época de Pedro Álvares Cabral, nem mesmo no tempo dos bandeirantes, mas na década de 60 do século XX. Praticamente ontem, do ponto de vista histórico. Cabe enfatizar ainda que os crimes foram infligidos aos indígenas, num comportamento disseminado por todo o país, por representantes do Estado brasileiro. Menciono o relatório não só porque acredito que precisamos conhecê-lo, mas porque ele demonstra que tipo de olhar permite que atrocidades dessa ordem tenham se tornado uma política não oficial, mas exercida como se fosse – e não por um único psicopata, mas por dezenas de funcionários e suas esposas, com o apoio e às vezes a ordem da direção do órgão criado para proteger os povos tradicionais. Para estas pessoas, o corpo dos indígenas era território a ser violado, como violada foi a sua terra. Como aqueles sem lugar, os indígenas não eram reconhecidos como iguais, nem mesmo como humanos. Eram o que, então? O procurador responde: “Tudo como se o índio fosse um irracional, classificado muito abaixo dos animais de trabalho, aos quais se presta, no interesse da produção, certa assistência e farta alimentação”.

Para quem imagina que este capítulo é parte do passado, vale a pena lembrar que apenas nos últimos dez anos, nos governos Lula-Dilma, foram assassinados 560 indígenas. A Constituição precisa ser cumprida, as demarcações devem ser feitas, os fazendeiros que possuem títulos legais, distribuídos pelo governo no passado, têm direito a ser indenizados pelo Estado. Mas há um movimento maior, mais profundo, que é preciso empreender. Como “estrangeiro nativo”, uma impossibilidade, só é possível perpetuar a violência.É necessário fazer o gesto, também em nível individual, de reconhecer o indígena como parte, não como fora. Para isso é preciso primeiro desejar conhecer, o gesto que precede o reconhecimento. Só então o Brasil encontrará o Brasil.

(Publicado na Revista Época em 10/06/2013)

 

Os loucos, os normais e o Estado

Antônio Gomes da Silva soltou a voz ao empolgar-se com a Banda da Polícia Militar. Ao seu lado, o funcionário levou um susto:

– Por que você nunca disse que falava?

E Antônio:

– Uai, mas ninguém nunca perguntou.

Ele tinha passado 21 anos como mudo na instituição batizada de“Colônia”, considerada o maior hospício do Brasil, no pequeno município mineiro de Barbacena. Em 21 anos, nenhum médico ou funcionário tinha lhe perguntado nada. Aos 68 anos, Antônio ainda não sabe por que passou 34 anos da vida num hospício, para onde foi despachado por um delegado de polícia. “Cada um diz uma coisa”, conta. Ao deixar o cárcere para morar numa residência terapêutica, em 2003, Antônio se abismou de que era possível acender e apagar a luz, um poder que não sabia que alguém poderia ter. Fora dos muros do manicômio, ele ainda sonha que está amarrado à cama, submetido a eletrochoques, e acorda suando. A quem escuta a sua voz, ele diz: “Se existe um inferno, a Colônia é esse lugar”.

Antônio ganhou nome, identidade e história em uma série excepcional de reportagens. Publicado na Tribuna de Minas, de Juiz de Fora (MG), o trabalho venceu o prêmio Esso de 2012 e foi ampliado para virar um livro que chega às livrarias nesta semana. Na obra, a jornalista mineira Daniela Arbex ilumina o que chamou de “holocausto brasileiro”: a morte de cerca de 60 mil pessoas entre os muros da Colônia ao longo do século XX. Convidada por Daniela para fazer o prefácio de seu livro, abri uma exceção e aceitei, pela mesma razão que me move a escrever esta coluna: a importância do tema para compreender nossa época.

Em Holocausto Brasileiro (Geração Editorial), Daniela Arbex devolve aos corpos sem história, que eram os corpos dos “loucos”, uma história que fala deles, mas fala mais de nós, os ditos “normais”. Durante décadas, as pessoas eram enfiadas – em geral compulsoriamente – dentro de um vagão de trem que as descarregava na Colônia. Lá suas roupas eram arrancadas, seus cabelos raspados e, seus nomes, apagados. Nus no corpo e na identidade, a humanidade sequestrada, homens, mulheres e até mesmo crianças viravam “Ignorados de Tal”.

(Foto: Luiz Alfredo/FUNDAC)

Qual é a história dos corpos sem história? Esta é a questão que Daniela se propõe a responder pelo caminho da investigação jornalística. Eram Antônio Gomes da Silva, o mudo que falava, Maria de Jesus, encarcerada porque se sentia triste, Antônio da Silva, porque era epilético. A estimativa é de que sete em cada dez pessoas internadas no hospício não tinham diagnóstico de doença mental.

Quem eram eles, para além dos nomes apagados? Epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, mendigos, militantes políticos, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns deles eram apenas tímidos. Cerca de 30 eram crianças.

Qual era o destino de quem o Estado determinava que não podia viver em sociedade, que era preciso encarcerar, ainda que não tivesse cometido nenhum crime? Homens, mulheres e crianças às vezes comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da Serra da Mantiqueira, eram atirados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Instintivamente faziam um círculo compacto, alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro, na tentativa de não morrer. Faziam o que fazem os pinguins imperadores para sobreviver ao inverno na Antártica e chocar seus ovos, como se viu num documentário que comoveu milhões anos atrás. Os humanos da Colônia não comoviam ninguém, já que sequer eram reconhecidos – nem como humanos nem como nada. Alguns não alcançavam as manhãs.

Os pacientes da Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de choque. Em alguns dias os eletrochoques eram tantos e tão fortes que a sobrecarga derrubava a rede do município. Francisca Moreira dos Reis, funcionária da cozinha, conta no livro sobre o dia em que disputou uma vaga para atendente de enfermagem, em 1979. Ela e outras 20 mulheres foram sorteadas para realizar uma sessão de eletrochoques nos pacientes masculinos do Pavilhão Afonso Pena, escolhidos aleatoriamente para o “exercício”. As candidatas à promoção cortavam um pedaço de cobertor e enchiam com ele a boca da cobaia, amarrada à cama. Molhavam a testa, aproximavam os eletrodos das têmporas e ligavam a engenhoca na voltagem de 110. Contavam até três e aumentavam a carga para 120. A primeira vítima teve parada cardíaca e morreu na hora. A segunda, um garoto apavorado aparentando menos de 20 anos, teve o mesmo destino. Francisca, cuja vez de praticar ainda não tinha chegado, saiu correndo.

Nos períodos de maior lotação, 16 pessoas morriam a cada dia. Morriam de tudo – e também de invisibilidade. Ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, mais de 1.800 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para 17 faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos passaram a ser decompostos em ácido, no pátio da Colônia, na frente dos pacientes ainda vivos, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Dos homens e mulheres do hospício, encarcerados pelo Estado e oficialmente sob sua proteção, até os ossos se aproveitava.

Daniela Arbex salvou do esquecimento um capítulo que muitos gostariam que seguisse nas sombras, até o total apagamento, no qual parte dos protagonistas ainda está viva para refletir tanto sobre seus atos quanto sobre suas omissões. Entrevistou mais de 100 pessoas, muitas delas nunca tinham contado a sua história. Além de sobreviventes do holocausto manicomial, Daniela escutou o testemunho de funcionários e de médicos. Um deles, Ronaldo Simões Coelho, ligou para ela meses atrás: “Meu tempo de validade está acabando. Não quero morrer sem ler seu livro”. No final dos anos 70, o psiquiatra havia denunciado a Colônia e reivindicado sua extinção: “O que acontece na Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada. No hospício, tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela deixa de ser gente. É permitido andar nu e comer bosta, mas é proibido o protesto, qualquer que seja a sua forma”. Perdeu o emprego.

Em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia, pioneiro da luta pelo fim dos manicômios, esteve no Brasil e conheceu a Colônia. Em seguida, chamou uma coletiva de imprensa, na qual afirmou: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como essa”. Hoje, restam menos de 200 sobreviventes da Colônia. Parte deles deverá ficar internada até a morte: são aqueles que foram tão torturados por uma vida dentro do hospício que já não conseguem mais viver fora. Parte foi transferida para residências terapêuticas para reaprender a tomar posse de si mesma. Sônia Maria da Costa está entre os que conseguiram dar o passo para além do cárcere. Às vezes ela coloca dois vestidos para compensar a nudez de quase uma vida inteira.

Ao empreender uma investigação jornalística para escrever este livro, Daniela leva adiante pelo menos três trabalhos fundamentais de documentação contemporânea: as 300 fotos feitas pelo fotógrafo Luiz Alfredo, para a revista O Cruzeiro, a primeira a denunciar a Colônia, em 1961(duas fotografias deste acervo são publicadas nesta coluna); a reportagem transformada no livro Nos porões da loucura (Pasquim), do jornalista Hiram Firmino; e o documentário Em nome da razão, de Helvécio Ratton, filmado em 1979, que se tornou o símbolo da luta antimanicomial.

Ao ler Holocausto Brasileiro – vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil, é prioritário resistir à tentação de acreditar que essa história acabou. Não acabou. Ainda existem no Brasil instituições que mantêm situações semelhantes às da Colônia, como algumas reportagens têm denunciado – ainda que não de forma maciça como no passado muito, muito recente, e com nomes mais palatáveis do que “hospício” ou “manicômio”. As conquistas produzidas pela luta antimanicomial, que botou fim às situações mais bárbaras, estão hoje sob ameaça de retrocesso. É nesse momento que entramos nós, a sociedade.

Se não quisermos continuar sendo cúmplices da barbárie descrita por Daniela Arbex neste livro, é preciso refletir sobre o nosso papel. É bastante óbvio perceber que fábricas de loucura como a Colônia só persistiram por um século porque podiam contar com a cumplicidade da sociedade. Mesmo quando o holocausto foi denunciado na revista de maior sucesso da época, O Cruzeiro, no início dos anos 60, passaram-se décadas até que a realidade do hospício começou – muito lentamente – a mudar. E outras gerações foram aniquiladas entre seus muros. Como é possível? É possível porque a sociedade prefere que seus indesejados sejam tirados da frente de seus olhos. Não enxergar, para muitos, ainda é solução. E esta é uma das razões pelas quais a tese do encarceramento sempre encontra ampla ressonância – e tem sido largamente manipulada por políticos ao longo da história do Brasil, e inclusive hoje.

Tivesse a sociedade disposta a enxergar o que estava estampado na revista preferida das famílias brasileiras, em 1961, e muitas tragédias teriam sido impedidas. Como a de Débora Aparecida Soares. Ela foi um dos cerca de 30 bebês roubados de suas mães. As mulheres trancafiadas na Colônia conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga, para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram tirados de seus braços e doados. Débora nasceu em 23 de agosto de 1984. Dez dias depois, foi adotada por uma funcionária do hospício. A cada aniversário, sua mãe, Sueli Aparecida Resende, epilética, perguntava a médicos e funcionários pela menina. E repetia: “Uma mãe nunca se esquece da filha”.

Em 2005, aos 21 anos, Débora nada sabia sobre a sua origem, mas não conseguia pertencer de fato à família de adoção. Tentou o suicídio. Como os comprimidos demoravam a fazer efeito, dirigiu-se à estrada de ferro, a mesma onde décadas antes havia passado o trem que levara sua mãe ao inferno. Foi salva por uma amiga, que a carregou para o hospital no qual mais uma coincidência seria descoberta tarde demais. Dois anos depois, Débora iniciou uma jornada em busca da mãe. O que alcançou foi a insanidade da engrenagem que mastigou suas vidas. Sua busca pela mãe é um dos momentos mais trágicos e reveladores do livro, ao unir passado, presente e futuro no corpo em movimento desta filha.

Há uma tendência no senso comum de considerar que categorias como “loucos” são determinadas, imutáveis, indiscutíveis e, principalmente, isentas dos humores do processo histórico. Não são. Cada sociedade cria seus proscritos – uma construção cultural que varia conforme o momento e as necessidades de quem detém o poder a cada época. Há um livro essencial sobre este tema: Os infames da história – pobres, escravos e deficientes no Brasil (Faperj/Lamparina). Na apresentação, a autora, a psicóloga Lilia Ferreira Lobo, que escreve sob a inspiração de Michel Foucault, faz uma descrição primorosa:

“Existências infames: sem notoriedade, obscuras como milhões de outras que desapareceram e desaparecerão no tempo sem deixar rastro – nenhuma nota de fama, nenhum feito de glória, nenhuma marca de nascimento, apenas o infortúnio de vidas cinzentas para a história e que se desvanecem nos registros porque ninguém as considera relevantes para serem trazidas à luz. Nunca tiveram importância nos acontecimentos históricos, nunca nenhuma transformação perpetrou-se por sua colaboração direta. Apenas algumas vidas em meio a uma multidão de outras, igualmente infelizes, sem nenhum valor. Porém, sua desventura, sua vilania, suas paixões, alvos ou não da violência instituída, sua obstinação e sua resistência encontraram em algum momento quem as vigiasse, quem as punisse, quem lhes ouvisse os gritos de horror, as canções de lamento ou as manifestações de alegria.”

Aqueles que foram encarcerados dentro da Colônia e de outros hospícios do Brasil, em algum momento perturbaram alguém ou a ordem instituída com a sua voz – ou apenas com a sua mera existência. Em vez de serem escutados no que tinham a dizer sobre a sociedade da qual faziam parte, foram arrancados dela e trancafiados para morrer – primeiro pelo apagamento simbólico, depois pela falência do corpo torturado. A pergunta que vale a pena fazer neste momento, diante da história documentada pelo Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex, é: quem são os proscritos de nossa época?

Vale a pena repetir que, na Colônia, sete em cada dez não tinham diagnóstico de doença mental. O diagnóstico, além de não representar nenhuma verdade absoluta sobre alguém, perde qualquer possível valor num lugar como o hospício descrito. Sua única utilidade seria como justificativa oficial para retirar pessoas incômodas do espaço público, aquelas cujo sofrimento não poderia existir, violando neste ato seus direitos mais básicos. Mas o fato de 70% dos internos não ter nem sequer um diagnóstico é um dado importante para perceber com que desenvoltura os manicômios serviram – e ainda servem – a um propósito não dito, mas largamente exercido pelo Estado: o de ampliar as categorias das pessoas que não devem ser escutadas, calando todos aqueles que dizem não apenas de si, mas de toda a sociedade.

Vivemos um momento histórico muito delicado, em que está sendo determinado quais são os novos infames da história – e qual deverá ser o seu destino. E também em que medida o Estado tem poder sobre os corpos. Me arrisco a dizer que, se ontem os proscritos eram os epiléticos, as prostitutas, os homossexuais, as meninas pobres e grávidas, as esposas insubmissas, hoje os proscritos que se desenham no horizonte histórico são os drogados – e especificamente os “craqueiros”. E o destino apresentado como solução tem sido, de novo, a internação. Inclusive a compulsória. A tarja de dependência química funciona como um silenciamento, já que não teriam nada a dizer nem sobre a sociedade em que vivem, nem sobre sua própria vida. São apenas um corpo sujeitado ao Estado para ser “curado”. E, para a maioria, nada melhor do que tirá-los da frente – às vezes literalmente.

É bom aprender com a história. Holocausto Brasileiro é um excelente começo para uma reflexão não apenas sobre o passado, mas sobre o presente. Como afirma Daniela Arbex: “O descaso diante da realidade nos transforma em prisioneiros dela. Ao ignorá-la, nos tornamos cúmplices dos crimes que se repetem diariamente diante de nossos olhos. Enquanto o silêncio acobertar a indiferença, a sociedade continuará avançando em direção ao passado de barbárie. É tempo de escrever uma nova história e de mudar o final”.

(Foto: Luiz Alfredo/FUNDAC)

(Foto: Luiz Alfredo/FUNDAC)

(Publicado na Revista Época em 03/06/2013)

 

A mulher que nasceu com 10 anos

… E uma outra que virou ponte

– O que a parteira Zenaide mais queria na vida era reconhecimento.

É Mara Régia Di Perna quem dá a notícia, em tom de urgência.

– Quem é a Zenaide?, pergunto eu, agoniada de ignorância.

Mara Régia nem me conta, manda logo a voz de Zenaide contando de si.

Maria Zenaide de Souza Carvalho é o nome completo dela. E ela já nasceu com 10 anos. É assim mesmo, não é engano. Parteira nasce no primeiro parto. Ela nem sabe, às vezes é menina que ainda nem botou sangue de mulher e, de repente, se descobre diante do mistério. Atendendo a um chamado que sempre se anuncia num alvoroço, o coração feito um passarinho que fere as asas de tanto bater no peito, querendo escapar porque é demasiada responsabilidade. E ela só tem as mãos.

Só as mãos.

Com Zenaide foi assim: “Eu tinha 10 anos e foi por necessidade. Não tinha quem assistisse. Quando eu vi aquela cabeça preta saindo, Jesus. Mas quando eu vi o nenê nascendo meu Deus foi a coisa mais linda. Dei conta de tudo. Depois que nasceu eu chorei foi tempo. Porque a arte de partejar é um dom maravilhoso que sempre aconteceu e que sempre vai existir”.

É preciso compreender que o primeiro parto de uma parteira é sempre um duplo: marca o nascimento do bebê e também o nascimento da parteira. Quando ela corta o cordão umbilical com a tesoura ou com a flecha ou com a faca (ou com a unha ou com os dentes) é também da menina ou mulher que foi antes que se despede. É uma coisa meio misteriosa. E se olhar direito é bem um parto triplo, já que o bebê que nasce dá também à luz a uma mãe que antes não existia. Dali em diante parteira a menina será enquanto viver, porque esse ramo não é questão de gosto ou de escolha, pelo menos para as parteiras tradicionais que resistem no Brasil. De marido dá pra se separar, enviuvar, filho próprio vai-se embora quando chega a hora, mas o partejar é pra sempre. Já ouvi história de parteira amputada, aparando menino com uma mão sã e outra invisível. Já vi parteira de 96 anos pedindo a Deus seu aposentamento, mas Deus não dava.

Zenaide é daquelas que se orgulham do partejar, gosta desse ato de receber a criança que é um mundo novo e apresentá-la ao mundo velho onde daqui pra frente ela vai fazer história. Já fez 244 partos, segundo sua contabilidade. O que a instala com honras na categoria das “parteiras finas”. É ela quem explica: “Parteiras finas são aquelas com mais de 30 partos,pra quem nunca aconteceu de uma mulher morrer ou de perder uma criança. E a grossa é aquela que só fez um parto, dois ou três, e às vezes acontece alguma coisa nas mãos dela. Eu tô colocada como parteira fina porque fiz 244 partos e nunca perdi uma criança”. Zenaide diz ainda que a parteira é amiga da dor, porque “quando a mulher tá com dor, a parteira bota a mão em cima e a dor passa”.

Aqui o fio da vida é interrompido por violência de homem.

Interrompido num dia específico: 15 de novembro de 2004. Era a festa de aniversário de Marechal Thaumaturgo, cidade rasgada numa quina do Acre, lá onde o Brasil vai virando Peru. E onde vive Zenaide na Rua do Cemitério, um endereço ao contrário para quem só faz é nascer. O aniversário de Marechal Thaumaturgo estava sendo comemorado atrasado e Zenaide nem tinha ganas de ir, desgostosa de ajuntamento de gente.Mas o filho ia se apresentar, insistiu, e ela foi. Lá pelas tantas sentiu sede e foi perguntar na casa de uma avó com 103 anos se tinha água fria na geladeira. Tinha. Quando ela se preparava para despejar a água o homem veio lá de dentro e era bem conhecido. “Já foi tirando minha roupa. Era uma monte de gente que tinha lá e ninguém disse nada. Eu puxava a calça pra cima, ele puxava pra baixo com calcinha e tudo. Ia deixando eu nuazinha no meio do povo. Aí me deu uma ira, e eu o empurrei com essa mão aqui lá na parede. E aí pronto, não achei que ele fosse me bater. Mas aí um homem disse: ‘Dona Zenaide, lá vem um murro’. Ia acertar na minha nuca, se eu não tivesse desviado aquele murro tinha me matado. Aí pegou meu olho, saiu muito sangue, empapou a blusa, foi a maior dor que eu senti na minha vida inteira. Na hora não, na hora não senti coisíssima nenhuma. Mas 24 horas depois, quando deu o derrame, eu arranquei a roupa todinha, fiquei nua, fiquei doida. Deu hemorragia no rosto inteiro, fiquei com o rosto todo preto. O sangue coalhou no rosto, minha irmã. E não tinha (a lei) Maria da Penha ainda, depois é que formou a Maria da Penha. Meu Deus do Céu, se tivesse Maria da Penha! Dois meses e meio preso, pagou 15 mil reais e saiu. Quem quiser se afastar de homem agressivo, se afaste, porque depois que ele bate, neguinha, nem Maria da Penha não faz voltar a vista da gente ou qualquer outro órgão que a gente tenha. Porque os órgãos da gente têm um valor muito grande, principalmente a vista. A vista é uma vida, uma vida. Eu não ando mais só, não atravesso rua só. Não posso mais andar só pelos cantos. Tanta vontade que eu tenho, porque sou decidida, já andei esse Brasil todinho, e agora só posso viajar como especial.”

Zenaide seguiu partejando porque há nas parteiras uns olhos que ficam nas mãos. Ela agora dá um nó cego no fio partido pela violência do homem, amarrando as pontas da vida, e canta assim: “Vamos dar valor a essas parteiras…/São elas que estão espalhadas a trabalhar/Dentro dos municípios do Vale do Juruá/Quando chega aquele dia e a hora da precisão/ Ela logo se apressa e segue na direção./Anda quatro, cinco horas com seus pezinhos no chão/Muitas vezes até doente e sem alimentação/ Que o dinheiro que ela ganha não dá pra comprar o pão”.

Interrompe a cantoria pra comentar: “Como é que vai dá, né, se não ganha nada, né? Parteira trabalha voluntariamente, sem nada. Vai, passa a noite acordada… E ainda fica dois dias pra cuidar da mulher”.

É neste ponto que Zenaide pede reconhecimento. Ela não pede pão, não pede vestido, não pede nada de comprar ou vender, mas expressa esse desejo feito de uma matéria mais delicada. Zenaide deseja que o Brasil saiba dela, ela que hoje enxerga o Brasil com um olho só.Que o Brasil reconheça as mulheres que dão à luz a um naco grande do Brasil, atendendo ao chamado a pé, no lombo do jegue, remando a canoa, às vezes atravessando o rio a nado – muitas vezes com fome. Reconheça as mulheres anônimas, invisíveis, que ajudam a desembarcar no mundo entre 15 mil e 20 mil crianças a cada ano, com suas mãos sofridas e um conhecimento antigo, sem que isso se traduza em direitos. E reconheça a ela, Zenaide.

– Queria mesmo que eu fosse reconhecida. Porque sei que eu não custo mais a morrer. Porque nossa vida (aqui) é 60 anos, e eu tô com 55.

Reconhecer é o que faz Mara Régia, a mulher-ponte.Ela é do tipo que o nome chega antes, muitas curvas de rios, igarapés, cachoeiras e corredeiras da Amazônia antes. Foi assim que eu a conheci, a lenda antes da mulher. Eu trilhava a Transamazônica em busca de histórias nos anos 90. E só sabia daquele mundo novo onde botava meu pé pela primeira vez o que tinha lido nos livros. Porque vinha do Rio Grande do Sul e não sabia de nada tive a ousadia não apenas de desconhecer Mara Régia, como de confessar tal heresia. Nos fundos de um travessão, a mulher morena, arretada que só, me perguntou:

– Conhece Mara Régia?

E eu, a incauta:

– Que Mara?

A mulherzinha botou as duas mãos na cintura e me reduziu a pó:

– Mara Régia, existe outra?

Achei até que ia puxar a cadeira que tinha posto pra eu me sentar. Passei meus conhecimentos em revista, rodei todos os programas no meu cérebro e a única “Régia” que eu conhecia era a Vitória. Vi na cara dela que minha ignorância seria tomada como ofensa e poderia me custar a entrevista. Nessas horas, eu só tenho uma estratégia: assumir logo minha burrice e, com humildade, pedir esclarecimento. Foi o que fiz:

– Peço mil desculpas, mas não sei quem é Mara Régia.

Disse pensando que se tratava da mulher do prefeito, da benzedeira, de alguma ilustríssima da comunidade. Com esse nome… Arrisquei:

– Mara Régia mora aqui perto?

Aí a mulher ficou com pena. Abriu uma boca que até ouro tinha para rir não comigo, mas de mim.

– Mas que repórti bem boa você deve ser, hein, mulé. Mara Régia vive lá onde você vive, não sabe? Mas é como se fosse de minha família!

Embasbaquei. Teria sido mais prudente eu dizer que não conhecia o Pelé. O marido, mais bonzinho, veio em meu socorro:

– Mara Régia é da rádia. Nunca ouviu, não? A gente aqui ouve ela tudinho.

Comecei então meu aprendizado sobre Mara Régia e a Amazônia. Era dela uma das vozes que o povo mais ouvia na Rádio Nacional da Amazônia – especialmente a mulherada. Era também a sua voz que fazia uma ponte entre os vários Brasis contidos numa floresta em que a persistência da delicadeza em meio à brutalidade é ato de resistência. Brutalidade esta tantas vezes praticada – ou permitida – pelo próprio Estado, ontem como hoje. Quando compreendi que Mara Régia era uma mulher-ponte me emocionei. Entendi que a mulherzinha arretada de mãos na cintura, num quilômetro abandonado de (mais) um megaprojeto abandonado depois de promover morte e destruição, fazia um esforço para encontrar em mim alguém que ela pudesse reconhecer.

Quando finalmente conheci Mara Régia me admirei que uma voz que cobria a Amazônia, milhões e milhões de hectares de terra, água e (cada vez menos) floresta, coubesse naquela mulher baixinha, com uma risada que dava vontade de rir com ela só para não deixá-la desacompanhada. E quando ouvi a sua voz entendi o que o povo ouvia: era como chegar em casa.Tão íntima em forma de rádio que dona Maria do Boiadeiro contou lá no Pará: “Mara Régia, já te salvei tantas vezes das águas…” Como assim? “Quando eu tô lá na ponte ensaboando a roupa te boto lá falando. De repente tu escorrega no sabão e tenho de correr pra te salvar da correnteza.”

Mara Régia vai alinhavando a floresta e apalpando o povo com as orelhas no programa “Natureza Viva”, que completa 20 anos nesta quarta-feira, 29 de maio. A cada domingo, das 8h às 10h, ela vai tecendo um conceito de “sustentabilidade” socioambiental a partir das experiências concretas de ribeirinhos, extrativistas, pequenos agricultores e indígenas. Porque sustentabilidade é um conceito que vai tomando uma forma meio esquisita na boca de alguns políticos e empresários que gostam mesmo é de floresta defunta, é palavra que vai sendo torturada aqui e ali para significar às vezes o seu oposto, até o ponto que se esvazia de significado e sentido, de tão gasta que foi pra não dizer nada. Ao trazer as vozes de quem vive a floresta e, mais do que vive, é a floresta, Mara Régia faz um tipo de milagre de gente e devolve carne à palavra, que fica viva de novo.

Ao contar a história de Zenaide no “Natureza Viva”, a parteira atravessa o Vale do Juruá e navega pelas Amazônias todas. Ainda assim, Mara Régia fica aflita, não esquece, se preocupa. E a mulher-ponte me alcança porque Zenaide merece reconhecimento e é preciso contá-la a outros Brasis antes que seja tarde. Me despacha então a voz da parteira, para que eu possa dar aqui um ponto, um pontinho só, para cerzir esse rasgo na costura do mundo, que é a ignorância de um pedaço do Brasil sobre o Brasil que é Zenaide.

As pontes existem – e existem até as mulheres-pontes. Uma pena que ainda são poucos os que querem atravessá-las. Não apenas para reconhecer o outro lado, mas para se reconhecer no olho cego de Zenaide.

(Publicado na Revista Época em 27/05/2013)

 

Um abraço em Bangladesh

Quando uma fotografia nos arranca da cômoda posição de espectadores distantes e nos obriga a olhar para ver

Uma mulher chamada Taslima Akhter esgueirava-se pelos escombros da fábrica de roupas que desabou em Bangladesh, em 24 de abril, quando os viu. Como descrever o que ela, fotógrafa e ativista bengalesa, viu? Taslima registrou, fez uma fotografia que girou o mundo nos últimos dias e se tornou o símbolo do que não pode ser esquecido. E talvez o que se possa dizer é que o que ela viu nos obriga a ver. Ver mesmo. Não como costumamos assistir às imagens das grandes tragédias ou examinar a galeria de fotos de corpos e de rostos distorcidos das vítimas e das faces desesperadas dos familiares, numa solidariedade difusa, mas distante, que nos permite trocar de canal ou mudar de página no minuto seguinte. Ver é mais do que isso. É transpor distâncias geográficas e barreiras culturais e ser lançado para perto, bem perto mesmo. Perto o suficiente para se reconhecer num outro rosto, em outros olhos, ainda que fechados porque mortos. E não poder esquecer porque agora eles estão em nós, tatuados em nossa pele invisível. Isso é ver. E é raro quando acontece.

O que Taslima viu pode se inscrever no DNA da humanidade como aconteceu com a foto da menina correndo nua após seu vilarejo ser atingido por uma bomba de napalm durante a Guerra do Vietnã. O que ela viu e documentou foi um último abraço em Bangladesh.

(Foto: Taslima Akhter)

(Foto: Taslima Akhter)

Talvez não houvesse nada para ser dito depois dessa foto. Talvez essa foto exija um silêncio também de letras. Mas, neste caso, silenciar pode significar esquecer que Bangladesh está bem próximo de nós não apenas de modo subjetivo, mas concreto. Próximo o suficiente para estar sobre a nossa pele – a visível.

É possível que, no momento em que somos alcançados por esse abraço final, alguns estejam vestindo uma roupa feita por este homem, esta mulher ou por algum dos mais de mil mortos do desabamento, um número que não para de crescer. Ou enfiados numa camiseta, num jeans, num vestido, saia ou blusa feita por alguns dos milhões de bengaleses, a maioria mulheres, que, neste exato instante, cortam e costuram, em prédios insalubres, em jornadas extenuantes, em regime semelhante ao de escravidão, as peças que serão vendidas pelas grandes marcas ocidentais, em vitrines brilhantes e assépticas – as peças que serão compradas também por nós.

Este homem, esta mulher, que se abraçam num útero de terra, concreto e ferros retorcidos, ganhavam, em média, para trabalhar da manhã à noite, dia após dia, costurando roupas para nós, 77 reais por mês.

A força desse último abraço é o que está além do gesto. É a humanidade resgatada que os arranca não dos escombros, mas dos números, para lembrar o que não fomos capazes de ver – ou não quisemos – quando ainda eram vivos e respiravam e sonhavam. Agora os enxergamos, e eles não apenas nos comovem, mas nos assombram. E é crucial que nos assombrem.

Taslima contou à Time:

– Eu tenho feito muitas perguntas a respeito do casal que morreu abraçado. Tenho tentado desesperadamente, mas ainda não achei nenhuma pista a respeito deles. Eu não sei quem são ou qual relação eles tinham. Passei o dia inteiro do desabamento no local, assistindo aos trabalhadores serem retirados das ruínas. Lembro do olhar aterrorizado dos familiares, eu estava exausta mental e fisicamente. Por volta das 2 horas, encontrei um casal abraçado nos escombros. A parte inferior dos seus corpos estava enterrada sob o concreto. O sangue que saía dos olhos do homem corria como se fosse uma lágrima. Quando os vi, não pude acreditar. Era como se eu os conhecesse, eles pareciam muito próximos a mim. Eu vi quem eles foram em seus últimos momentos, quando, juntos, tentaram salvar um ao outro – salvar sua vidas amadas. Cada vez que eu olho para essa foto, me sinto desconfortável. Ela me assombra. É como se eles estivessem me dizendo: “Nós não somos um número, não somos apenas trabalho e vidas baratas. Nós somos humanos como você. Nossa vida é preciosa como a sua, e nossos sonhos são preciosos também”.

No dia anterior ao desabamento, trabalhadores ouviram barulhos semelhantes ao de explosões e entraram em pânico. Um engenheiro examinou os pilares e, vendo as rachaduras, teria pedido ao proprietário que esvaziasse o prédio de oito andares, que abrigava pelo menos cinco confecções na periferia da capital, Daca. O proprietário, Mohammed Shoel Rana, teria dito: “Isto não é uma rachadura, não é um problema”. Os operários foram obrigados a continuar produzindo e as confecções seguiram funcionando. E nenhuma autoridade pública o impediu de abrir as portas do complexo de fábricas no dia seguinte. Este homem é descrito pela imprensa local como um vilão completo, que construiu o prédio expulsando proprietários de terra e corrompendo autoridades (que queriam ser corrompidas), suspeito também de estar envolvido com o tráfico de drogas e de armas.

Seria fácil encontrar apenas um vilão para culpar. Ou mesmo alguns vilões, que já foram presos pela polícia de Bangladesh. O problema, no mundo globalizado, é que, se seguimos a cadeia de produção e de responsabilidades, ela chega a nós. É indecente quando os líderes das grandes grifes ocidentais se mostram escandalizados com a tragédia, sugerindo que não sabiam que era assim que viviam os trabalhadores na ponta do processo produtivo. É igualmente indecente quando alguns anunciam que deixarão de produzir em Bangladesh. Como se, depois dos enormes lucros obtidos por anos de exploração, simplesmente abandonar a cena sem se comprometer com a melhoria das condições de trabalho, de salário e de existência dos trabalhadores que os serviram – alguns deles com a vida – fosse moralmente defensável.

Só valia – e segue valendo a pena – terceirizar a produção em países como Bangladesh porque o trabalho é barato, já que análogo à escravidão. Bangladesh é o segundo exportador mundial na área têxtil, perdendo apenas para a China, porque a mão de obra não custa quase nada. Um estudo do Institute of Global Labour and Human Rights mostrou que uma mesma camisa, se fosse produzida nos Estados Unidos, custaria US$ 13,22. Em Bangladesh custa US$ 3,72. Nos Estados Unidos, o custo da mão de obra corresponderia a 57% do valor total da camisa. Em Bangladesh, corresponde a 6%. É o trabalho que não vale quase nada e por isso a camisa sai muito mais barata para todos, menos para aqueles que vivem e morrem sem valor. É por essa razão que, como sempre se soube, terceirizar a produção em Bangladesh tornou-se um lucrativo negócio para as grandes marcas internacionais. E só deixará de ser se o custo de ter a imagem associada à escravidão e agora à morte de mais de mil pessoas for maior.

Não há espaço para se iludir com supostas boas intenções e lamentos de ocasião. Para as grandes marcas ocidentais e seus muito bem pagos executivos as vidas humanas não parecem importar. O que importa são as cifras. É aí que entramos nós, os consumidores. Bem menos inocentes do que gostaríamos. Também nós gostamos de comprar roupas e qualquer outro produto barato. E torna-se um pouco difícil acreditar que não tínhamos alguma ideia de como nossas roupas eram – e são – feitas. De que, como diz Taslima, a roupa só é barata porque as vidas de quem a produz são tratadas como baratas – tão baratas que podem morrer soterradas nos escombros da fábrica porque outras vidas baratas as substituirão.

É só com a nossa pressão sistemática e cotidiana – e com uma mudança de comportamento – que essa realidade pode mudar. Desde que deixamos, há muito, de comprar diretamente do produtor, que em muitos casos era o nosso vizinho, consumir tornou-se uma responsabilidade muito maior. Querendo ou não, com mais ou menos consciência, cada um de nós está envolvido na tragédia de Bangladesh. E só nós podemos transformar o que hoje é barato em algo tão caro que ninguém ouse tratar uma vida humana como descartável.

Quando catástrofes criminosas como esta acontecem, há um momento em que a máquina do mundo se abre e podemos vislumbrar o quadro completo. Aquele que na maior parte do tempo permanece oculto. Dificilmente ligamos os pontos entre as fábricas nas quais trabalham pessoas em condições sub-humanas às vitrines iluminadas e sedutoras que exibem sonhos de consumo feitos por quem não pode sonhar. Mais difícil ainda é dar um passo a mais para descobrir que o ponto de chegada desse labirinto somos nós mesmos.

É importante lembrar ainda que não é apenas em Bangladesh ou em outros países asiáticos que isso acontece, mas também no Brasil, como conta Renato Bignami, coordenador do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo na Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo, numa entrevista ao Blog do Sakamoto. Aqui, são os bolivianos os que mais de uma vez são libertados de situações semelhantes à escravidão. Em 2010, duas crianças bolivianas morreram no incêndio de uma confecção no Brás, em São Paulo. Como disse o cientista político André Singer, em sua coluna na Folha de S. Paulo: “Mais dia menos dia o Brasil terá que escolher o tipo de país que deseja ser. Flexibilizar a CLT, aumentar a terceirização, manter a enorme rotatividade atual no emprego e diminuir os salários pode resolver o problema da balança comercial. Mas, se quiser constituir-se numa sociedade digna, terá que descobrir caminho alternativo para enfrentar as agruras de um capitalismo internacional para lá de selvagem”.

Passado o clamor público, tomadas algumas medidas de aparente impacto pelas grandes corporações, a máquina do mundo volta a se fechar. E nós também preferimos esquecer, porque é mais fácil e mais cômodo comprar sem olhar, sem nos informarmos, sem perturbar ou ser perturbado – mais ainda se for bonito e barato. Aqueles que movem o mundo do alto sempre podem contar com o esquecimento que vem logo depois de uma grande comoção. É como se o espasmo fosse o suficiente para nos apaziguar. Negamos com veemência, mas a verdade é que adoramos nos omitir e tocar nossa vida, por uma razão muito pragmática: porque podemos. Pertencemos à parcela minoritária da humanidade que pode viver sem morrer abraçada nos escombros.

Olhar para ver é uma escolha. Sempre mais difícil, a única digna.

Só a poesia alcança a profundidade da vida impressa na morte. O abraço final em uma fábrica de escravos de Bangladesh me lembrou do sertão severino de João Cabral de Melo Neto. Tão longe, tão perto. As vidas baratas são sempre as mesmas vidas, em qualquer geografia, em qualquer tempo. Aquela fábrica sepultou-os em um útero-túmulo. E lá estão os costureiros de nossas roupas vestidos em seu derradeiro traje de terra, o único que lhes coube.

“Essa cova em que estás, com palmos medida, é a cota menor que tiraste em vida. É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe deste latifúndio. (…) Será de terra tua derradeira camisa: te veste, como nunca em vida. Será de terra a tua melhor camisa: te veste e ninguém cobiça. (..) Tua roupa melhor será de terra e não de fazenda: não se rasga nem se remenda. Tua roupa melhor e te ficará bem cingida: como roupa feita à medida.”

O abraço final, documentado por Taslima Akhter, nos obriga a enxergar para além dos corpos – e também para além do espetáculo. Não é matéria o que está ali, é o que não está que nos alcança e arrebata antes que possamos escapar. É vida que se imortaliza na morte. Como ela diz, quase podemos escutar as vozes e ouvir os sonhos daqueles dois. Não sabemos (pelo menos não ainda) quem são, mas sabemos que são. Que foram. Não sabemos se eram amantes ou irmãos. Ou apenas colegas de trabalho, companheiros de escravidão. Não sabemos se tentavam salvar um ao outro, ou se compreenderam que não poderiam escapar da morte, e então empreenderam um abraço. Um último gesto humano que os tornou nossos estranhos íntimos.

O próximo gesto humano cabe a nós. Será tardio para eles, em tempo para muitos.

(Publicado na Revista Época em 13/05/2013)

 

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