É possível morrer depois da internet?

Com sua festejada “vitória” sobre o Google, o espanhol Mario Costeja tornou-se um personagem trágico do mundo contemporâneo

 

O espanhol Mario Costeja encarnou o paradoxo dessa época ao conquistar o “direito ao esquecimento” e, por isso, ser mais lembrado do que nunca. Nascido em São Paulo, no Brasil, país onde viveu até os nove anos, o advogado reclamava que, ao digitar seu nome no Google, encontrava em destaque um texto que manchava sua reputação. Era uma página do jornal La Vanguardia, publicada em 1998, que relacionava seu nome ao leilão de uma propriedade por dívidas com o governo. Ele pediu que os links para a matéria fossem removidos, mas tanto o jornal quanto o Google recusaram o pedido. Em 13 de maio, o Tribunal de Justiça da União Europeia determinou que buscadores como o Google deverão permitir que pessoas sejam “esquecidas” quando informações já superadas do seu passado forem consideradas lesivas ou sem relevância. O “esquecimento” seria consumado pela supressão de links na internet, exceto em situações nas quais existam razões específicas para serem mantidos, como o papel assumido na vida pública por aquele que reivindica o apagamento ou interesse público que se sobreponha ao interesse individual. A decisão só vale para a Europa. Mas abre um precedente, talvez perigoso, e uma discussão fascinante. Temos o direito de ser esquecidos? E, ainda que chegássemos a conclusão de que temos, como chegou o tribunal europeu, é possível ser esquecido?

Mario Costeja, 56 anos, possivelmente irá descobrir que não. Ele teve uma vitória inédita – não sobre qualquer um, mas sobre um gigante, o Google. Mas, ao ter garantido seu direito de ser esquecido, nunca foi tão lembrado, especialmente no Google. Desde a decisão do tribunal, quando seu nome é digitado no buscador o número de citações é muitas vezes maior. Por várias páginas há matérias na imprensa de diferentes partes do mundo sobre a sua vitória. O que ele queria que fosse esquecido é lembrado em todas elas, já que é a razão pela qual buscou a Justiça. Se antes esse episódio podia, eventualmente, ser recordado por um público interessado, ao acessar o Google, agora jamais será esquecido por um número muito maior e mais variado de pessoas, ao entrar para a história do direito digital, um campo em acirrada disputa.

Mesmo eu, uma brasileira que nunca tinha ouvido falar de Mario Costeja, muito menos de suas supostas dívidas em 1998, estou aqui a escrever mais uma página que será somada à lista do Google. Em entrevista à Folha de S. Paulo, Costeja afirmou que estaria falando pela última vez com a imprensa: “Nunca pensei que podiam existir tantos meios de comunicação no mundo, me chamam de lugares cuja existência quase desconhecia. E recebo convites de TVs de todos os tipos. Mas desejo voltar à minha vida e ao anonimato”. Um desejo ingênuo, talvez, para alguns um golpe de marketing. Costeja será para sempre lembrado por conquistar o direito a ser esquecido.

Há várias implicações nessa decisão do tribunal europeu. Sem contar o debate complexo que tem oposto os direitos à informação e à liberdade de expressão ao direito à privacidade. Mas há uma, subjacente, que me interessa mais: a construção da memória depois da internet. Ou, sendo mais específica, não apenas se é possível ser esquecido, mas um pouco mais: é possível morrer?

Me parece que Mario Costeja queria não ser esquecido, mas controlar a narrativa da sua vida. Ele queria editá-la, cortando as partes que considerava vexatórias e mantendo as mais edificantes. Para ele, não bastava superar pessoalmente um mau momento, era preciso que ninguém soubesse que o tinha vivido. Costeja não está sozinho nesse desejo. Muitos fazem isso todos os dias na internet, esse campo em que cabe tudo, ao escolher o que postar no Facebook, no Twitter, em outras redes sociais, em blogs e sites pessoais, em forma de texto, vídeo, fotos e áudio. Só publicamos aquilo que acreditamos fazer bem para a nossa imagem – e, em última instância, para a nossa memória em construção.

Sabemos que as páginas individuais não são o que somos, mas o que queremos parecer que somos – o que também revela o que somos para além do que queremos mostrar. Nelas temos a possibilidade concreta de apagar, como uma ferramenta disponível, o que estimula uma ilusão de controle que a internet tornou ainda maior. Não se apaga, porém, o que de nós foi reproduzido ou guardado por um outro em seu próprio espaço ou num espaço coletivo, o que uma vez é publicado está para sempre além de nosso controle e de nossas senhas e de nosso limitado poder. Ainda que se apague dos lugares mais visíveis, restará um traço, um rastro, a ação que não pode ser revertida porque já consumada. Se o indivíduo dela não fizer uma marca com a qual possa viver, terá de enfrentá-la como um fantasma sempre pronto a assombrá-lo.

Como na internet tudo é rápido, instantâneo, imediato e, principalmente, “fácil”, há tanto a ilusão de controle como a tentação de controle. Nem me refiro ao embate político na construção da narrativa dos fatos pelos grupos interessados – na construção da história que, de certa forma, só pode existir como interpretação. Concentro-me na narrativa do indivíduo, de cada um de nós, sobre sua própria vida. O que se “esquece”, com muita frequência, é da permanência que a internet ampliou como nunca antes, ao mesmo tempo que se “esquece” da impermanência de nosso ser e estar no mundo. Esquece-se da constante descoberta de que, talvez daqui a alguns anos, podemos não querer mais ser aqueles que fomos – ou do nosso desejo de sermos outros na nossa constante recriação dos sentidos ao longo de uma existência. Temos tomado o instante como um tempo absoluto, sem perceber talvez que o corpo fluido da internet permite algo mais duradouro do que uma gravação em pedra: uma na nuvem.

Mario Costeja queria eliminar uma página de jornal, missão muito mais complicada. E impossível, apesar – e também por causa – de sua estrondosa e inédita vitória em tribunal tão importante. Nesse desejo ele expressa a ilusão contemporânea, que compartilha com todos nós, de poder apagar as marcas de uma vida para o olhar do outro – ou controlar como o outro nos vê. Enorme ilusão, na medida em que as marcas podem ser ressignificadas, mas jamais apagadas. Señor Costeja, a quem só uns poucos e os de perto talvez conheçam de fato, é um personagem trágico do nosso tempo.

Ainda mais trágico pela euforia demonstrada nas entrevistas à imprensa. “Lutar contra o Google é como ir contra Deus”, disse em 2013 ao EL PAÍS, com alguma razão. Senõr Costeja acredita agora ter vencido “Deus”, mas talvez descubra que a onipotência humana é uma batalha muito maior – e desde sempre perdida. Em algum momento, usando um termo psicanalítico, nos descobrimos “castrados”. E é melhor que assim seja.

Ainda assim, é importante perceber que, de forma enviesada, ele conseguiu substituir no topo da lista do Google a matéria específica que tanto o perturbava. Interferiu e produziu uma nova narrativa sobre si mesmo. Uma em que o “perdedor” de 1998 tornou-se o “vitorioso” de 2014. Não é pouco. Mas talvez ele descubra que as versões sobre sua vida estarão para sempre além do seu controle. É no embate narrativo, travado na esfera pública, mas também no interior dos conflitos privados ao longo de uma existência, que a memória de cada um é construída. Nesse movimento de constante criação e recriação de sentidos para o vivido, aquele que é só pode ser duvidando do que é.

É fascinante que nós, aqueles que lutam cotidianamente nos espaços da internet para “existir”, para “ser lembrados” e constantemente reassegurados de seu valor no mundo – “curtidos”, “retuitados”, “seguidos”, “compartilhados” –, numa eternidade que se absolutiza no instante, comecemos a desejar o esquecimento. De certo modo, é preciso ser “esquecido” para poder ser “lembrado” de outras maneiras. É preciso talvez esquecer-se de si por um momento para poder se inventar de um outro jeito, movimento constante e inerente a uma vida que se pretende viva.

O mundo pós-internet nos impõe uma dificuldade muito maior nessa tarefa de reinvenção de si. O excesso de registros que, em grande parte, nós mesmos produzimos, torna mais difícil deixar lembranças para trás, jogá-las na lixeira ou confiná-las numa caixa que podemos escolher quando abrir ou jamais voltar a abrir. Não é possível nem desejável negar o vivido, nem mesmo e especialmente em grandes tragédias, mas é preciso poder transformar aquilo que sangra em marca para poder seguir adiante. E agora que sangramos para sempre num lugar sem tempo, talvez seja mais difícil.

Lembro uma reportagem que li ainda nos anos 90. A internet não era uma realidade para a maioria, o que tornava uma fuga e um desaparecimento algo com mais chances de dar certo do que hoje, quando somos fotografados, filmados e registrados na rua, dentro dos prédios, em toda parte. A partir de uma lista de desaparecidos – aquelas pessoas que vão comprar cigarro na esquina e nunca mais voltam –, o jornalista tentou localizar esses personagens para descobrir o que tinha acontecido com cada um. Descobriu que, numa parte significativa dos casos, pelo menos de sua amostragem, os que desapareceram queriam desaparecer. Realizaram uma fantasia, que passa pela cabeça de muitos, de renascer em outras bases, ser um outro numa outra vida, sem ter de responder pela existência anterior. Tinham mulher ou marido, filhos, pai ou mãe doente, dívidas, prestações intermináveis da casa própria, um trabalho menos emocionante do que gostariam. Queriam se livrar de um passado que determinava o presente e assombrava o futuro.

O problema, como descobriu o jornalista, é que não é possível deixar as marcas para trás. Muito menos a si mesmo. O problema, talvez, é que nos carregamos em nossa fuga, com tudo o que somos, incluindo nossas cicatrizes e nossas neuroses. Na tentativa de desaparecer de uma vida para reaparecer em outra, que soava mais atraente e adequada a suas grandes expectativas, esses fugitivos fracassaram. A reportagem mostrava que aqueles que tentaram se reinventar na literalidade de uma fuga, morrendo para o mundo que os conhecia para renascer no desconhecido, supostamente sem passado e sem dívidas simbólicas e reais, acabavam por criar uma vida muito semelhante àquela que deixaram. O repórter os encontrou presos a uma existência em quase tudo igual à anterior. E já sem a ilusão de que haveria uma fuga possível. Ainda não tinham compreendido que, se quisessem viver várias vidas numa só, era preciso enfrentar a tarefa trabalhosa, constante e jamais terminada de criar e recriar sentidos para o seu estar no mundo.

Com a internet, como talvez descobrirá Mario Costeja, apagar o passado tornou-se uma ilusão ainda maior. Sites de busca como o Google hierarquizam nossas marcas por caminhos que nos são estranhos e a importância de nossos atos e dizeres se dá pelo que aparece em primeiro lugar, como tanto apavorou Costeja. Alguns de nós, que, como a maioria, sempre quis viver “para sempre”, viver para além da vida, começa a se preocupar em morrer para o mundo, ainda em vida. Mas, depois da internet, é possível morrer?

Esta é a pergunta que move uma peça de teatro muito original, concebida pelos libaneses Rabih Mroué e Lina Saneh. Assisti a “33 rpm and a few seconds” (33 rpm e alguns segundos) no Pen World Voices Festival deste ano, em Nova York, evento literário criado pelo escritor Salman Rushdie (que recentemente andou pelo Brasil), do qual participei como autora convidada. Não há previsão de o espetáculo ser exibido no Brasil, o que é uma pena. Os autores, Rabih e Lina, conseguiram realizar algo de enorme impacto sobre a plateia, sem colocar um único ator no palco, o que também é muito revelador dessa época em que encenamos nossa vida como realidade – e seguidamente acreditamos que realidade é.

No palco, não há nenhuma pessoa. Só objetos. Não há nenhuma pessoa porque a pessoa que havia naquele escritório dentro de uma casa acabou de se suicidar. Somos informados de que o morto que habitava aquele lugar, Diyaa Yamout, era um jovem ativista de direitos humanos que filmou a sua morte. Mas somos informados pelos objetos que continuam se movendo – “vivendo” e o mantendo vivo – depois de sua extinção física. A TV continua ligada, assim como o aparelho de som e o de fax. A tela do computador projeta a repercussão de sua morte no Facebook. Uma amiga (ou amante?) vai gravando recados na sua secretária eletrônica. Outra amiga (ou namorada?), que está viajando para encontrá-lo, deixa torpedos no seu celular. As narrativas sobre a sua vida e a sua morte vão sendo construídas, sobrepostas umas as outras, mas ele já não está. Ou está?

Nas redes sociais desenrola-se o que qualquer um que acompanha o Facebook ou o Twitter já está acostumado a testemunhar – e a participar. Ora o morto é um herói, ora um vilão. Ora é um covarde, ora um corajoso. Ora uma vítima, ora um algoz. Frases, ideais e intenções são atribuídos a ele por diferentes personagens. A partir dessas inferências se desenha um país que seria o Líbano, mas com clichês que costumam ser atribuídos ao Brasil e, imagino, também a outros países, como “república de bananas” ou “este país não tem jeito”. Logo há uma disputa nas redes sociais, violenta e ofensiva, pela memória do morto. Na tela, sentidos para sua morte e para sua vida são criados e recriados, em encarniçada contenda política, cultural e religiosa. Há os furiosos, há os líricos, há os que tentam transcender e os que tentam pacificar. Há uma enorme banalidade instantânea, previsível e repetitiva como só a banalidade pode ser.

Na tela da TV assistimos às costumeiras reportagens, sempre repetidas em casos como este. Entrevista-se os pais que choram, entrevista-se colegas e supostos amigos, ao final há sempre o “especialista”, na figura do psiquiatra ou psicanalista, que daria a interpretação final para o suicídio e para o legado do suicida. Conhecemos esse enredo, até o esperamos, como se não houvesse outra possibilidade, mais profunda e menos redutora, de olhar para uma vida – e para uma morte.

Enquanto isso, a mulher que tenta desesperadamente desembarcar no país do morto para encontrá-lo, sem saber que ele morreu, vai contando suas desventuras em lugar nenhum. Primeiro o avião tem problemas, depois as autoridades a retêm, são inúmeros os percalços e ela, uma palestina, encarna a própria terra ao nunca conseguir alcançar seu destino. Na busca por ele e por chão, ela permanecerá em trânsito. Nessa narrativa, ela radicaliza nossa condição de estrangeiros na própria vida, passageiros de uma existência em que o destino está sempre além, inalcançável, mesmo quando parece logo ali.

E o morto-vivo? Ou o vivo-morto?

O jovem ativista que escolhe se matar (é o que ele diz, foi uma escolha), escreve em sua carta-testamento: “A vida é uma prisão. A única liberdade possível é a não existência”. É nas mensagens da secretária-eletrônica, deixadas pela mesma voz feminina, por alguém que o conhece, no sentido profundo de conhecer, não no superficial que desfila na tela do Facebook ou nas matérias de TV, que o paradoxo dessa época se desvela. A certa altura, ela diz: “É possível estar fora do corpo, mas não fora da linguagem. Meu amigo, a única forma de morrer é estar fora da linguagem – ou nunca ter falado. Você falou muito, palavras demais. Para sempre estará preso na linguagem”.

Ele morreu, seu corpo não está lá. Mas, como nós, ele está vivo numa multiplicidade de narrativas em movimento que, com a internet e a tecnologia, tornou-se a eternidade que buscamos com tanto afinco – e finalmente alcançamos. Apenas para descobrir que a tragédia era outra.

Esta é a armadilha. Já não é possível morrer.

(Publicado no El País em 26/05/2016)

Denunciados pela linguagem

Fabiane era inocente. Nós, ao exaltarmos a sua inocência como principal razão para que ela não fosse assassinada, somos culpados

 

O linchamento de Fabiane Maria de Jesus nos denuncia pela palavra. Há um horror, o linchamento. E há o horror por trás do horror, que é a exacerbação da inocência da vítima. É preciso que este também nos espante, porque ainda mais entranhado, suas unhas cravadas fundo numa forma de pensar como indivíduos e de funcionar como sociedade. Nem todos são capazes de pegar um pedaço de pau para bater na cabeça de uma mulher até a morte por considerá-la culpada de um crime, mas é grande o número daqueles que, ao contarem o caso na última semana, enfatizaram: “Ela era inocente”. Não como uma informação a mais no horror, mas como a mais importante. Essa também foi a frase escolhida para ilustrar as camisetas dos que protestavam contra a sua morte: “A dor da inocência”. Mas talvez seja na exaltação da inocência que nossa violência se revele em sua face mais odiosa. O que pensamos ser luz, prova de nossa boa índole, é feito da matéria de nossas trevas mais íntimas. É a exacerbação da inocência que mostra o quanto nós – mesmo os que não lincham pessoas na rua – somos perigosos.

E se ela fosse culpada?, como provoca o título da matéria de Marina Rossi, aqui no El País Brasil. E se ela fosse uma mulher que praticasse magia negra com crianças? Seu assassinato por um bando de pessoas na rua estaria justificado? Então alguém poderia agarrá-la, outro arrastá-la e um terceiro passar com a roda da bicicleta sobre a sua cabeça? É isso o que estamos dizendo quando nos espantamos mais com a inocência de Fabiane do que com o seu assassinato?

O linchamento de Fabiane produziu uma narrativa fragmentada, que revela mais sobre os autores do discurso do que sobre a vítima. O suspeito V. B., eletricista, 48 anos, justificou-se, ao ser preso: teria golpeado Fabiane com um pedaço de madeira porque achou que o boato era “verdade”. O suspeito L.L., ajudante de pedreiro, 19 anos, que teria passado com a bicicleta sobre a cabeça de Fabiane, explicou: “Diante da gritaria das pessoas que tinham reconhecido a mulher, não tive dúvidas de participar do tumulto”. O suspeito C.J., pintor de paredes, 22 anos, teria puxado Fabiane pelos cabelos para se certificar de que era ela mesma, antes de ajudar a matá-la.

Em nenhum momento apareceu o choque por ter espancado uma pessoa com um pedaço de pau, passado sobre a cabeça de alguém com a bicicleta, agarrado uma mulher pelos cabelos. Passada a explosão da hora, a questão que motivou até um pedido de desculpas à família, por parte de um dos suspeitos, era o erro. Mas o erro não seria assassinar – e sim assassinar a pessoa errada. Se havia razões para o arrependimento era a inocência de Fabiane – não o ato de matar. “Não é ela, não é ela”, teria avisado alguém em um dos vídeos de sua morte. Não arrebente porque não é ela. E se fosse?

Se a exaltação da inocência estivesse restrita aos assassinos – e a quem assistiu ao assassinato sem nada fazer para impedi-lo – seria mais fácil. Mas foi a inocência de Fabiane que motivou, nos mais variados espaços, perguntas retóricas como: “onde estamos?” ou “que país é este?”. Entre os tantos comentários sobre o caso, lamentando a morte de Fabiane, talvez o do governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), seja o mais revelador.

Fabiane foi linchada no sábado (3/5), no bairro de Morrinhos, na periferia do Guarujá, no litoral paulista, e morreu, no hospital, na segunda-feira (5/5). Tinha 33 anos. Na quarta-feira (7/5), o governador, que pretende tentar a reeleição, foi ao Guarujá para, entre outros compromissos, reinaugurar a maternidade do Hospital Santo Amaro – o mesmo onde, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Fabiane teve de esperar um dia para conseguir vaga na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Durante a cerimônia, Alckmin manifestou-se sobre a morte de Fabiane, nos seguintes termos: “É inadmissível um ato de barbaridade como esse, tirando a vida de uma pessoa que não tinha nada a ver com a desconfiança da população, até porque tudo não passou de um boato”.

Uma boa questão de interpretação para a prova de língua portuguesa do próximo vestibular. O que, exatamente, o governador está dizendo ao povo do estado que governa? Qual é, para ele, a questão central no linchamento? O que é inadmissível, segundo Alckmin? Linchar uma pessoa, qualquer pessoa, ou linchar uma pessoa inocente?

A exaltação da inocência de Fabiane revela a não inocência da sociedade brasileira na série de linchamentos que vem atravessando o país. As palavras revelam o que também alimenta o espancamento e a morte de pessoas por cidadãos nas ruas. É no discurso, às vezes subliminar, às vezes explícito, que é reeditado cotidianamente o pacto histórico de que há uma categoria de brasileiros que podem ser mortos – ou que ao menos seu assassinato seria justificável. É esta mesma lógica que tolera – quando não deseja – a tortura e a morte de presos nas delegacias e nos presídios do Brasil. Encarar os linchamentos como algo que só pertence ao bárbaro, que é sempre o outro, é ocultar a nossa responsabilidade, a de cada um, com uma máscara de inocência. Fabiane era inocente. Nós, ao exaltarmos a sua inocência como principal razão para que ela não fosse assassinada, somos culpados.

A barbárie não deveria nos surpreender, como se fosse nova entre nós. A sociedade brasileira historicamente a tolera, quando não a estimula. Como já foi dito mais de uma vez, também aqui, ela está nas raízes da formação do Brasil. A barbárie chegou junto com os que se anunciavam como civilizados diante dos povos indígenas que aqui estavam – os bárbaros. E foram também os chamados civilizados que promoveram uma força de trabalho escravo, alimentada por negros trazidos da África (e também por índios). Nem a escravidão nem o extermínio indígena foram superados no Brasil – e as marcas de uma e a reedição do outro fazem parte do cotidiano do país, hoje.

Fingir que a barbárie é surpreendente não vai nos ajudar a combatê-la. No Brasil atual, indígenas, ribeirinhos e quilombolas têm sido expulsos de suas terras por atos do próprio governo federal – e muitos deles têm sido mortos por pistoleiros, a mando de fazendeiros. É assustador o número de moradores de rua assassinados no Brasil nos últimos tempos, assim como o de crimes por homofobia. A retirada de pessoas de suas casas para a construção de estádios da Copa do Mundo é conhecida – ou deveria ser – por todos. A violência nos presídios e as execuções nas favelas e periferias tornaram-se uma banalidade só interrompida por espasmos. Mesmo os linchamentos estão longe de nos ser estranhos, o que em nada diminui o seu horror e a necessidade de combatê-los.

Se há algo de novo é talvez a forma como as palavras encarnaram para tornar Fabiane uma pessoa para o linchamento. A internet não criou – nem piorou – o humano. Ela apenas o revelou como nunca antes. Ela deu-nos a conhecer. Antes não sabíamos o que pensava o vizinho ou o caixa do banco ou o sujeito que nos cumprimentava na padaria. Agora, ele grita na internet – e, mais do que grita, exibe todo o seu inferno. Passeia o time completo, com titulares e reservas, de seus ódios e preconceitos. Na internet, o humano perdeu o pudor de suas vísceras. Ao contrário, em vez de ocultá-las, passou a exibi-las como um troféu de autenticidade.

É nesse contexto que o dono do perfil no Facebook “Guarujá Alerta” postou, em 25 de abril, a seguinte “notícia” – que jamais poderia ser chamada de notícia porque sequer foi apurada antes de ser publicada: “Boatos rolam na região da praia do Pernambuco, Maré Mansa, Vila Rã e Areião, que uma mulher está raptando crianças para realizar magia negra… Se é boato ou não devemos ficar alertas”. Nenhum pudor de postar um boato. Zero pudor. Ao contrário, a internet nos mostra que há um orgulho no despudor, no “assumir” a falta de princípios, confundindo-a com o que é apresentado como “coragem de denunciar”.

Alguns dos comentários de homens e mulheres, postados na sequência, mostra a disseminação do ódio, travestida como defesa do bem: “Mata essa filha da puta. Quem achar, sem dó”/ “Se vir pro Morrinhos vai tomar só rajada essa cachorra”/ “Vamos fazer uma magia de revolta com ela, ‘botando fogo nela’”. Logo surgiu um retrato falado, que seria descrito pela imprensa como o de uma mulher “negra e gorda”, em seguida a foto de uma loira.

Dias depois da publicação do boato, Fabiane, com pouca ou nenhuma semelhança com qualquer uma das imagens, foi linchada. Inclusive crianças participaram do seu espancamento. O retrato falado tinha sido feito em 2012 pela polícia carioca e referia-se a uma suspeita de ter sequestrado uma criança na zona norte do Rio. Nenhum menino ou menina desaparecera na região do Guarujá nos últimos tempos, o crime não existia. Mas as “bruxas” começaram a ser vistas em toda parte – e também em outras regiões do país, na qual o boato foi reproduzido. Fabiane foi a única morta, mas várias mulheres podem ter corrido o risco de ser assassinadas. De novo, as mulheres e a bruxaria, como nas fogueiras da Inquisição.

(Só um parêntese. Vale pensar sobre o peso da palavra escrita nessa tragédia. Sobre o quanto a palavra escrita, agora na internet, é decodificada ainda por muitos, em especial por aqueles que ao longo da história tão pouco tiveram acesso a ela, como “verdade”. A frase “está no jornal” ou “li no jornal”, usada para assegurar a veracidade de algo diante de outros, é agora também “está (ou li) na internet”. É o que mostra a quantidade de spams com boatos os mais estapafúrdios que atravancam todos os dias as caixas de e-mail e também as redes sociais, porque muitos os replicam, sem apurar a fonte ou sequer duvidar, para alertar seu circuito de conhecidos, familiares e amigos sobre ameaças terríveis. Falta muito para que a leitura crítica, tanto da imprensa tradicional quanto da mídia alternativa, como de qualquer outra produção narrativa, se estabeleça para a maioria, tão carente de educação no país.)

Quando Fabiane foi agarrada naquele sábado, carregava um livro de capa preta. Quem passava por ela, viu nele uma obra de magia negra. Quando ela ofereceu uma fruta a uma criança na rua, o gesto foi interpretado como uma tentativa de sedução. Foi só alguém gritar “é ela, é ela”, para o linchamento começar. É importante compreender como Fabiane tornou-se bruxa. Mas também é fundamental entender como ela deixou de ser bruxa.

O feitiço ao contrário é revelador. O livro de magia negra era uma Bíblia. A fruta oferecida era um gesto de generosidade. Fabiane era branca, era religiosa, era mãe de duas filhas, era dona de casa e gostava de crianças. Sua única “mácula”, para o senso comum, seria um diagnóstico de “transtorno bipolar”, relacionado nos relatos “ao parto da primeira filha”. Mas, mesmo neste caso, ela foi poupada do preconceito costumeiro, associado às doenças mentais, por depoimentos como este, de uma amiga: “(Nas crises) ela saía abraçando as pessoas, falando que amava todo mundo, nunca fez mal a ninguém”.

Fabiane, portanto, não só era inocente, como era a imagem da inocência. Era o retrato idealizado do feminino ligado à maternidade. Não tenho como aferir o quanto essa imagem, desfeito o feitiço, colaborou para a comoção do país. Mas suspeito que bastante. E isso também revela o quanto nós não somos inocentes.

E se Fabiane fosse “negra e gorda”, como descrita no retrato falado? E se Fabiane exibisse piercings e tatuagens pelo corpo? E se Fabiane fosse lésbica? E se Fabiane fosse agressiva? E se Fabiane fosse do candomblé ou do batuque ou de outra religião afro-brasileira, as quais os pastores evangélicos neopentecostais tanto relacionam nos templos e nos programas da TV com satanismo, uma atitude criminosa pouco ou nada combatida? E se Fabiane fosse bruxa? E se Fabiane fosse o oposto da idealização feminina? Será que tantos hoje chorariam por ela?

E Fabiane seria, por isso, menos inocente?

Talvez, se sua imagem não correspondesse ao estereótipo da mãe de família, ouviríamos coisas como: “Também, com aquela aparência, era fácil confundi-la”. Ou: “Essa história está mal contada, boa coisa ela não era”. Talvez então o feitiço jamais fosse desfeito e Fabiane continuasse na lista não escrita das pessoas “lincháveis”. É possível? Ou estou exagerando? Gostaria de estar exagerando, mas me arrisco a suspeitar que não.

Vale a pena prestar atenção ao comentário de L., ao ser preso e pedir desculpas à família de Fabiane. “Peço desculpas à família, estou muito arrependido. Desculpa mesmo. A gente vê a nossa mãe em casa, nossa tia, e imagina que poderia ter sido com elas”. De repente, o algoz percebe que sua vítima não é mais uma “bruxa”, uma diferente, uma outra, mas sim semelhante às mulheres da sua família que ocupam um lugar materno. E, como filho, sobrinho, dessas mulheres, semelhante a ele mesmo. Pela lógica imediata, se a conversão em bruxa pela turba enlouquecida, da qual ele fez parte, aconteceu com Fabiane, por que não aconteceria com sua mãe, com sua tia? Com ele, com cada um de nós? Será também um medo novo que faz aumentar a comoção por Fabiane? E agora, que a barreira dos “lincháveis” foi rompida e uma mãe de família, uma devota, morreu a pauladas?

Um dos suspeitos disse à polícia que dois outros autores do linchamento de Fabiane foram executados pelo tráfico. A informação foi publicada na imprensa. Se queremos de fato enfrentar a barbárie, precisamos saber se essa afirmação é verídica. E, se for verídica, precisamos exigir que os assassinos dos assassinos sejam investigados, julgados e punidos, no rito da lei. Do contrário, somos só bárbaros que acreditam que linchadores devem ser mortos, no olho por olho, dente por dente. Como aqueles bárbaros que salivam em suas casas quando assistem à notícia de que estupradores foram violados na cadeia, onde estão sob proteção do Estado.

Chorar pelos inocentes é fácil. O que nos define como indivíduos e como sociedade é a nossa capacidade de exigir dignidade e legalidade no tratamento dos culpados. O compromisso com o processo civilizatório é árduo e exige o melhor de nós: respeitar a vida dos assassinos. Fora isso, é só demagogia.

Há vários apelos circulando na internet sobre as palavras “justiceiro” e “justiçamento”. Quero trazer a reflexão para cá, porque já descobrimos há muito – e também agora – que as palavras são poderosas. E andam. E encarnam. E revelam. E autorizam. Linchamento não é “justiçamento”. É crime. Linchador não é “justiceiro”. É criminoso. Seja uma pessoa ou uma turba, quem mata é assassino. Quem lincha e mata não quer justiça, quer vingança – às vezes sem nem mesmo saber do quê. Se queremos superar a barbárie, talvez seja necessário jamais confundir “justiça” e “vingança” – também nas palavras.

(Publicado no El País em 12/05/2014)