Dilma, a vaia e o feminino

As brasileiras poderiam passar sem as manipulações rasteiras sobre o que é ser uma mulher (também na presidência)

 

Eu estava no estádio do Itaquerão, na abertura da Copa do Mundo, e ouvi as vaias e a torcida xingando: “Ei, Dilma, vai tomar no cu”. Não posso afirmar onde as vaias começaram, essa me parece uma certeza muito difícil de garantir num estádio de futebol. Concordo, em parte, com os que alegam que estádios são lugares de palavrões, basta lembrar das mães dos juízes. Mas também discordo, em parte, porque o público da Copa é totalmente diverso do torcedor típico, aquele que vai ver o seu time jogar como uma rotina tão presente na vida quanto trabalhar e namorar. Na Copa, o público é outro, leva para dentro das “arenas” outra expectativa e outra relação com o futebol. Mandar uma pessoa tomar no cu, qualquer pessoa e não só a presidente, é não só grosseiro, como violento. O Brasil é uma sociedade violenta, para muito além da tipificada no Código Penal. Essa violência atravessa o cotidiano. Dito isso, há algo que me incomoda nas narrativas construídas nesse episódio e que valeria a pena prestar mais atenção: a manipulação dos femininos.

Logo depois das vaias, surgiu a interpretação de que Dilma só foi xingada nesses termos porque é mulher. É uma hipótese possível, basta lembrar, de novo, que são as mães dos juízes as ofendidas. Basta lembrar das repórteres beijadas ou agarradas enquanto cobrem a Copa, assim como da eleição das gostosas de sempre. O Brasil (e não só o Brasil) é machista e por vezes misógino, há poucas dúvidas sobre isso. Mas não é possível afirmar que Lula, Fernando Henrique Cardoso ou outro presidente não seria xingado se estivesse ocupando o lugar de Dilma na abertura desta Copa. Alega-se que Lula foi vaiado várias vezes na abertura do Pan-Americano, em 2007, mas xingado nenhuma. Existe, porém, o Brasil de antes de junho de 2013 e existe o Brasil depois de junho de 2013. Naquele momento, algo se rompeu e passou a vazar desde então. Assim, afirmar que um presidente homem dificilmente seria xingado, hoje, nesse mesmo contexto e conjuntura, é temerário. Não sabemos. E é preciso ter respeito pelo que não sabemos.

Temos a primeira mulher na presidência. E, desde a campanha de 2010, versões do feminino têm sido manipuladas conforme a conveniência. Agora não é diferente. Assim que o xingamento foi consumado, de imediato instalou-se a disputa sobre interpretações que repercutirão nas eleições bem próximas. Para o candidato Eduardo Campos (PSB), num clichê pobre, “na vida a gente colhe o que a gente planta”. O candidato Aécio Neves (PSDB) apressou-se a tirar proveito, afirmando que Dilma estaria “sitiada”: “O que fica para a história é que temos uma Copa do Mundo em que o chefe de Estado não se vê em condições de se apresentar à população”. O PT virou o jogo e conseguiu vencer a disputa narrativa, com a ajuda de parte do movimento feminista. Dilma agora é a vítima da elite mal-educada – e há sempre um lugar de vítima reservado para as mulheres.

Mas será que isso é bom para as brasileiras?

Acho particularmente irritante o argumento do “não se pode dizer isso a uma mulher” ou “não se trata uma mulher assim”. Se é grosseiro xingar – e é –, é grosseiro com qualquer pessoa, independentemente de sexo e gênero. Culmina com Lula dando uma rosa branca à Dilma. Claro, porque as mulheres devem ser tratadas com rosas. Profundo bocejo. Acho complicado quando Dilma afirma: “Não vou me deixar atemorizar por xingamentos que não podem ser sequer escutados pelas crianças e pelas famílias”. Há uma lista de violências cotidianas sofridas pelas crianças no Brasil, inclusive nos últimos 12 anos, e ouvir alguém mandando outro tomar no cu é desnecessário, mas não é uma delas. A visão de família parafusada nessa frase está mais para “marcha da família” do que para as variações contemporâneas de família que têm enriquecido a vida brasileira. Dilma ainda disse: “O povo brasileiro é civilizado e extremamente generoso e educado”. Se Dilma governasse o país acreditando no que disse, seria preocupante. A elite brasileira é violenta, o povo também é violento. Basta andar nas ruas do país para constatar a “civilidade”. A sociedade brasileira é violenta de cima abaixo, com raízes históricas e omissões contemporâneas bem conhecidas, a começar pela desigualdade de renda e pela péssima educação pública, que condena milhões a uma vida estreita de possibilidades.

O risco dessa disputa rasteira, com olhos na eleição logo ali, é que se deixa de pensar seriamente sobre os sentidos do que é o Brasil hoje. E até mesmo sobre os significados das vaias e xingamentos. Tudo é reduzido a slogans publicitários, chapinhando propositalmente em poças d’água. Como a visão do feminino manipulada pela primeira campanha de Dilma. Nela, se lembrarmos, Dilma foi apresentada como “a mãe do PAC”. Ao dizer quais eram as vantagens de uma mulher na presidência, ela enumerou: “Nós, mulheres, nascemos com o sentimento de cuidar, amparar e proteger”. O próprio Lula afirmou que a palavra não era “governar, mas cuidar”. E Dilma acrescentava: “cuidar como uma mãe do povo brasileiro”.

Ao aceitar essa estratégia de marketing, que possivelmente representa muito mais a visão de Lula do que a sua, Dilma reduziu os sentidos dos muitos femininos possíveis ao clichê mais tacanho. Sem contar o lugar de “filho” – e não o de cidadão autônomo, com direitos e deveres – reservado ao povo. Dilma foi eleita. Ao governar, irritava-se porque a acusavam de truculência no trato com subordinados e interlocutores. Disse, mais de uma vez, que, se fosse um homem na presidência, ninguém estranharia seu estilo ou cobraria meiguice. Ao mesmo tempo, sempre que alguém tratava a presidente com mais dureza, Lula era o primeiro a protestar pela “falta de gentileza com uma mulher”.

Em um governante, assim como num candidato, seja ele homem ou mulher, pouco importa. O que é preciso avaliar é o que faz. E fez. No que diz respeito às mulheres, assim como a questões de sexualidade e de gênero, Dilma recuou. Recuou na questão do aborto, para obter o voto religioso. Recuou ao cancelar a distribuição do kit anti-homofobia nas escolas. Recuou ao tirar do ar uma campanha de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis porque uma prostituta dizia que era feliz. Dilma recuou várias outras vezes, recuou demais.

Não gosto de xingamentos contra qualquer pessoa. Gosto de rosas. Mas, destas, que confinam as mulheres a uma verdade única e tosca, é melhor manter distância.

(Publicado no El País em 23/06/2014)

A não vítima

Um golpe na Internet reflete tanto o crime da sociedade contra as mulheres que envelhecem quanto a natureza complexa do amor

 

Primeiro, o golpe.

Um homem se apresenta no Facebook dela, psicanalista e escritora. Ele mora nos Estados Unidos, mas é irlandês com mãe brasileira. É viúvo, tem dois filhos, um adotado, já adulto, de 25 anos, e uma adolescente de 13. Trabalha com geologia e faz negócios com petróleo. Tem 60 anos, sente-se sozinho, faz seis anos que se tornou viúvo e busca um amor para dividir a vida. Por inspiração da mãe, começou a buscar perfis de brasileiras no Facebook. Chegou até ela, explica, pelo sorriso da foto. Eles conversam em inglês. O inglês dele é melhor do que o dela, ele a corrige com carinho, a ensina. O inglês dela melhora a cada dia. Tornam-se presentes um para o outro, apesar da distância. Pelo Facebook e, cada vez mais, pelo viber. Ele acompanha o dia dela, ela acompanha o dele. Ele quer saber o que tem para o jantar, como foi o dia de trabalho, como ela dormiu, qual é a crocância do pão no café da manhã, o que a deixa triste ou feliz, do que ela tem medo. Ela, viúva também, com mais de 60 anos, filhos adultos com suas próprias famílias, descobre que se sentia só antes dele. Que, apesar de gostar do seu trabalho, de conviver com vários bons amigos, de ter uma vida rica de sentidos, faltava algo da ordem do essencial. Antes dele, ela tinha aceitado com demasiada facilidade que o amor e o sexo estavam encerrados para ela. Antes dele, tinha sido obediente demais ao sujeitar-se ao padrão social que impõe o envelhecimento da mulher como o fim do desejo – ou como a impossibilidade de despertar paixão. Percebe que lhe faz falta compartilhar o que chama de “o comum da vida”. E agora, a cada noite, ela diz: “Me acolhe nos seus braços”. E ele a acolhe. Ela dorme entre braços imaginários, mas tão reais. E a cada manhã, ele divide com ela o pão com manteiga, o croissant, a geleia de pêssego. Divide também as dúvidas, os sonhos dele de se aposentar em breve para viver outro tipo de vida, o passeio ao zoológico que ele faz com a filha, as demandas da bela casa em que ele vive e que ela já conhece por fotos. Conversas comezinhas, conversas tão importantes. Em determinado momento, ele faz um comentário picante. Gostaria de vê-la preparando o jantar de calcinha. Ela dá uma resposta seca. Ele recua, nunca mais faz nenhuma alusão. É um homem sensível, às vezes é possessivo, ela gosta. É como se ele a conhecesse por dentro, como se a tivesse conhecido desde sempre, porque a compreende. Mas não é um galã. As fotos que ele envia para ela, muitas, são fotos de gente comum, nem tão bem enquadradas, nem tão bem focadas, sempre posadas, como são as fotos de gente comum. Ele é um homem da sua idade, sem barriga tanquinho, sem músculos jovens, com as marcas do tempo, os cabelos brancos, entradas que anunciam a calvície. Como ela, que é bela, mas carrega todas as suas marcas. Ela surpreende-se consigo mesma. Não imaginava apaixonar-se por alguém tão “real” assim. Alguém que envelhece como um homem comum, sem nenhuma excepcionalidade, exceto a de estar presente, de compreendê-la tão bem, de querer estar com ela. E ele quer. Pergunta se ela estaria disposta a mudar-se para os Estados Unidos para tentar uma vida com ele, se seria capaz de ajudá-lo a terminar de criar a filha adolescente. Como ele poderia adivinhar que ela sempre quisera uma filha, mãe de meninos que era? Ela busca algo físico nele, encontra as mãos. Acha as mãos dele lindas, fortes. Mãos de homem. Quer as mãos dele sobre o corpo dela. Agora é mais sério. Ele virá ao Brasil só para vê-la, para descobrirem se o romance virtual realiza-se no concreto dos dias, se a pele responde ao toque, se é possível sonhar com uma vida juntos sem a mediação da tecnologia. Ela conversa com a filha dele pelo telefone. A menina diz: “Eu amo você porque você ama o meu pai”. Ela vai para Paris visitar um dos próprios filhos, e ele já conversa com a sua nora pelo celular. O filho dela está preocupado, questiona, duvida, aponta as incongruências da história. Ela não quer escutar. Cobre os buracos do roteiro com seu desejo de continuar vivendo um romance. Pesquisa hotéis no Brasil, peregrina com as amigas por lojas de lingerie. Ela sabe que a pele já não tem a elasticidade da juventude, que os músculos são flácidos, mas sente-se linda. Abre o provador mal coberta por rendas, sem pudor – onde foi parar o pudor? Pergunta: “Como eu estou?”. Ela sabe como está. Linda. Emagrece quase 10 quilos, já não sai na rua de qualquer jeito, sente-se desejada quando passa. As pessoas já não acreditam que ela esteja na fila certa quando se posta junto aos idosos no banco. Ela está ansiosa. Muito. Antes de vir ao Brasil, porém, ele fará uma viagem rápida à Nigéria, junto com o filho. Vão tratar de negócios de petróleo. Em seguida, virá vê-la. Ela prepara-se para a chegada dele. Imagina várias vezes por dia o momento em que ele emergirá da sala de desembarque do aeroporto. Se ele vai dar um sorriso quando a enxergar. Se arrancará sua calcinha, acertará o fecho do sutiã. Imagina o sexo. Não lembra quando foi tão feliz, tão inteira. No dia da viagem para a Nigéria, ele manda fotos dele de terno, roupas de viagem, uma pasta elegante de trabalho. Envia fotos de vários momentos, ela o acompanha quase em tempo real.

De repente, ele passa horas em silêncio. Ela preocupa-se, pede notícias. Quando ele finalmente responde, está arrasado. Foram assaltados no país africano. Os ladrões levaram cartões de crédito, dinheiro, documentos, tudo. O filho reagiu e está em coma num hospital. Ao final da mensagem, ele pergunta se ela poderia lhe emprestar dinheiro. Só 775 dólares para pagar o hospital e o transporte até o aeroporto. Ela então desconfia. Por que ele não procura a embaixada americana, por que não conversa com seus parceiros de negócios? Ela começa a achar a história mirabolante demais. Ele já tem o nome e uma conta de alguém que o ajuda, explica como ela pode fazer uma remessa de dinheiro do Brasil. Ela percebe que o tom dele mudou. Titubeia. Ele a pressiona, ela não gosta. Quanto mais ele pressiona, mais ela recua. A filha dele manda uma mensagem pedindo notícias do pai, preocupada com a falta de informações. Ela fica ainda mais desconfiada. Não dará o dinheiro, mesmo que isso signifique perdê-lo. O romance acaba. Ao voltar aos Estados Unidos, ele ainda diz para ela. Sua primeira crueldade explícita: “Você não respondeu para a minha filha. Você não tem condições de ser mãe”. Logo depois, o perfil dele desaparece do Facebook.

Ela faz o que poderia ter feito muito antes. Se quisesse. Se realmente quisesse. Pesquisa as fraudes do gênero na Internet. Descobre os blogs e sites brasileiros e internacionais sobre as quadrilhas que atuam no golpe cada vez mais comum. Vê supostas fotos dos criminosos. Vários homens amontoados num cubículo com seus lap tops no colo conversando com mulheres como ela. Mulheres como ela significando mulheres mais velhas e sozinhas, mulheres carentes e por isso mais frágeis, mais dispostas a acreditar no inacreditável. Mulheres já desacostumadas a serem desejadas. Enviando a elas fotos de outros homens, que possivelmente não saibam que são usados para seduzir. Imagens capturadas nas redes sociais, podem ser de qualquer um. Um golpe bem planejado, a vítima em potencial é contatada só depois de uma pesquisa na Internet. Inclusive de suas condições para manter um romance em inglês, o que no Brasil é um indício de pertencer pelo menos à classe média e, portanto, ter algum dinheiro guardado ou acesso à crédito. Para cada uma delas um perfil de homem, em imagens e história de vida, uma proposta que já sabem esperada por aquela mulher tão meticulosamente analisada. Para cada mulher uma abordagem, uma forma de se comportar, um rosto e uma personalidade correspondentes às fantasias dela, um enredo adequado àquela que expõe – pode ser mais ou menos, mas expõe – um pouco de si a cada dia nas redes sociais.

Ao seu redor, amigos e familiares não acreditam como ela, uma mulher tão inteligente, tão vivida, tão bem sucedida, tão conectada ao mundo, pode ter caído num golpe. Um golpe assim era para outras, não para alguém com seu perfil. Ela lê depoimentos de mulheres como ela que foram muito além dela, mulheres que perderam milhares de dólares que haviam economizado ou mulheres que se endividaram para manter o roteiro amoroso vivo. Lê entrevistas com supostos criminosos que contam como o esquema funciona. Naquela noite vê fotos dos quadrilheiros, que assume como reais – podem não ser, como as do amante não eram, mas ela acredita que sejam. Se antes acreditou no romance, agora acredita na fraude. Fica mal. Bem mal.

É a sua noite de vítima. “Eu os identifiquei com ratos. Parecia que ratos andavam sobre o meu corpo. Eu expus tanto a minha intimidade, e era para aqueles homens das fotos na Internet ou outros como eles. Um ao lado do outro, sentados no chão, falando com mulheres como eu. Me expus não com fotos da minha nudez, porque não faria isso, mas de forma muito mais profunda do que isso. Passei a noite encolhida, com os ratos sobre o meu corpo.”

É o segundo capítulo da vítima. A enorme vergonha de ter caído numa história como essa, que agora para todos aparece claramente como uma fraude desde sempre. E o discurso que corre por baixo, o discurso social. Nem sempre pronunciado, mas presente: “Então você achou que, aos 50, aos 60, um homem iria se apaixonar perdidamente por você?”. Agora é oficial, você não só é uma vítima, mais pobre e mais endividada depois do golpe, mas “uma mulher velha e burra”. E como espernear contra esse encaixotamento imposto às mulheres, depois de ter se entregado a um homem que jamais existiu? Depois de estar se sentindo uma “mulher velha e burra”? De intuir que se sentirá uma “mulher velha e burra” para sempre? É a aniquilação final.

Não necessariamente, porém. Pode ser. Ou não.

Essa é a parte mais interessante. Quando nos encontramos, ela queria denunciar o golpe sem se identificar. O desejo que me anuncia é o de que outras mulheres sejam alertadas para a fraude. É um desejo comum, eu o escutei muitas vezes. Há as vítimas que se calam por vergonha (ou por medo, no caso das que são violadas e espancadas). Essas ficam presas no lugar de vítima, precisam de ajuda para romper com o silêncio de algum modo e sair do lugar que as condena à imobilidade. Ou permanecem para sempre como estátuas aprisionadas num gesto que estanca a vida. Mesmo quando o ato que as vitima cessa, elas continuam vítimas, porque não conseguem dar sentido ao vivido e se inventar de outro jeito. Acreditam que só sabem ser vítimas, que vítima é tudo o que são. Agarram-se a essa identidade como se fosse a própria pele porque, por mais incômoda que seja, estão lidando com o conhecido.

E há aquelas que rompem com o lugar da vítima denunciando, seja à polícia, seja a outras mulheres, à imprensa, ao mundo inteiro. Criam um blog ou uma ONG, algumas passam a perseguidoras de seus algozes, outras ajudam mulheres que passam por experiências semelhantes a sair da paralisia. Essas deslocam sua posição no jogo. De certo modo, continuam identificadas com o vivido, que determina suas escolhas dali em diante, mas pelo avesso e de forma ativa. A pele de vítima já não as veste.

Conversamos por duas horas e meia. Conheço o seu nome e o seu trabalho, mas é nosso primeiro encontro ao vivo. Ao escutá-la, percebo que ela teve o seu momento de vítima, a noite dos ratos. Era necessário que assim se reconhecesse, porque foi efetivamente enganada. Era um fato. E não se nega os fatos. Mas, em seguida, é necessário dar sentido a eles. Sem isso, o lugar de vítima se cristaliza. Em vez de uma mulher complexa, com suas perdas e seus anseios, haverá apenas um arremedo dessa mulher, o da vítima que jamais supera sua condição. Sem criar sentidos que permitam seguir adiante, seria preciso acreditar na versão de quem tentou extorqui-la, a de que é uma “mulher velha e burra” que acredita em qualquer coisa, inclusive que pode ser amada e sexualmente desejada, apesar de não ser jovem nem ter um corpo de passarela.

Aceitar essa versão como a única verdadeira tem roubado algo muito mais importante do que dinheiro das mulheres que caem nessa fraude. Aceitar essa versão é cimentar o olhar social que permite que fraudes como essa aconteçam. É deixar-se enquadrar numa cultura que oprime as mulheres com o mito contemporâneo da eterna juventude. É acatar a ideia de que marcas e beleza não são compatíveis, de que desejo, paixão e sexo são prerrogativas limitadas pela idade.

Ela, não. Ela desfere um contragolpe.

Já não estou diante de uma vítima. Pergunto a ela: “Se você soubesse o que sabe agora, que esse romance é uma fraude, preferia não tê-lo vivido?”. Ela não hesita: “Preferia ter vivido tudo o que vivi. E ter parado exatamente onde parei. Ele me deu muito”.

Não é uma ilusão. Por paradoxal que pareça, ela ganhou muito. Enquanto viveu o romance, ele era real. O homem, que hoje sabemos que não existe, era real. Essa realidade a resgatou, dia a dia, de uma vida menos viva. “Eu precisava do olhar do outro. De um homem que não corresse quando eu dissesse a minha idade, que me lembrasse de que sou desejável, que me lembrasse principalmente de que quero compartilhar não o extraordinário, mas o comum da vida. Quero ter alguém comigo dividindo o café da manhã, compartilhando as experiências do cotidiano e também arrancando a minha calcinha. Estou aberta para isso e antes não estava. Ele me devolveu algo que estava anestesiado em mim. Às vezes era tão forte essa percepção que sentia como se tivesse voltado a ovular. De certo modo voltei, não biologicamente, mas de uma maneira mais profunda. Antes eu me sentia só um corpo mais flácido do que na juventude, um rosto marcado pela idade. O olhar dele foi o espelho onde eu pude me enxergar muito além disso, pude me enxergar como uma mulher, na inteireza do que é ser uma mulher. Ele não existe? Talvez seja um coletivo de pessoas conversando comigo para me extorquir depois? Mais um golpe sórdido? Não importa. Porque esse olhar sobre mim mesma ninguém pode me tirar, esse olhar agora é meu. Seja lá quem for, me despertou, me ajudou a resgatar a minha integridade como mulher, como pessoa, o muito mais que eu sou para além de um corpo que envelhece. Nesse sentido, sou muito grata.”

Para ela, talvez o conselho a outras mulheres seja: “Caia no golpe, acredite, mas não pague”. Mesmo os 700 dólares, que seria só o início da extorsão, seria um preço baixo a pagar pelo que recebeu, caso tudo se resumisse a uma troca de mercado. É uma brincadeira, claro. Para que ela possa manter a realidade do que viveu, mesmo depois de saber que se tratava de uma fraude, era preciso que fosse real em algum momento. O amor que viveu, mesmo depois de comprovado o golpe, é real no que nela produziu de realidade. Sob esse olhar, o maior lesado foi o golpista, que não viveu nem o amor, nem recebeu o dinheiro.

Se o golpe só funciona porque a sociedade ocidental determinou que mulheres deixam de ser desejáveis ao envelhecer, a maior perda seria não financeira, mas acreditar nessa construção social como uma verdade totalizante. Talvez essa seja a fraude maior, aquela que arranca dessas mulheres, dia após dia, algo muito mais caro do que dinheiro. Arranca-lhes uma dimensão da vida. Para esse crime não há polícia, não há quadrilha, não há materialidade. Para esse crime só existe a resistência, a não capitulação de cada uma.

Para esse crime há o que ela fez: o contragolpe. Ela mostra as fotos do homem que para ela agora é um ex-namorado, de uma história de amor que deu certo por algum tempo e acabou por razões bastante heterodoxas. Ela ainda está se despedindo dele, por isso as fotos continuam no celular. “Olha essas mãos, olha esse peito”, comenta. Eu não vejo nada que despertaria meu desejo, aquele homem não diz nada para mim. De certo modo, não é assim o amor? Uma verdade apenas para aquele que o vive, que vê no objeto do amor o que ninguém mais vê? O outro não é, em certa medida, uma construção, uma realidade particular daquele que ama, como mostra Ela, o brilhante filme de Spike Jonze?

Ela me parece bem. E uma mulher tão bonita.

Entre as mudanças que o romance produziu nela, está a de se descobrir capaz de se apaixonar por um homem possível. Não um padrão de beleza, não um cara mais jovem, um homem da sua idade, com sua bagagem particular de derrotas, perdas, desejos e sonhos. Passado, mas também presente. De novo o paradoxo: o homem que era uma fantasia a ensinou a acolher o homem real.

A cada vez que ela sai de casa, agora, arruma-se pensando que pode encontrar esse companheiro possível. Sem esquecer, jamais, que amar é um risco. Não só o da fraude, que ela acabou de viver, mas um risco ainda maior, que é o de não ser uma fraude. O de se arriscar ao outro, a ser alcançada por um outro. Um risco fascinante, que agora ela voltou a achar que vale a pena.

Quando nos despedimos, ela se preparava para pegar um avião para passar o dia com um velho amigo, um com o qual sabe que não viverá uma história cotidiana, mas que poderia abraçá-la naquele momento. Enquanto aquele, que ela ainda não conhece, estava atrasado para o café da manhã, depois de tanta expectativa ela achava que poderia ser bom ter um homem que simplesmente lhe arrancasse a calcinha. Ele havia lhe dito: “Venha, os ipês floresceram”.

Há alguns dias, recebi uma mensagem dela: “Os ipês, exatamente, não vi… Mas voltei florescida”.

 

(Publicado no El País em 09/06/2014)