A potência de Adelir

Que dogmas tão profundos a gestante de Torres feriu para ter seu corpo violado pelo Estado na calada da noite

 

Na madrugada de 1º de abril, dois poderes, a Medicina e a Justiça, produziram uma cena histórica no Brasil. Nela, uma mulher em trabalho de parto, Adelir Lemos de Goes, 29 anos, foi arrancada de sua casa, na zona rural do município gaúcho de Torres, por um oficial de justiça e policiais armados. Em seguida, ela foi obrigada a entrar numa ambulância. Se não entrasse, prenderiam seu marido, Emerson Guimarães, 41 anos, técnico em manutenção industrial. Apavorada, com contrações a cada cinco minutos, preocupada com o susto dos filhos pequenos, Adelir foi escoltada até o Hospital Nossa Senhora dos Navegantes. Lá, mais uma vez, foi obrigada por ordem judicial a deixar-se cortar. Contra a sua vontade, tiraram do seu útero, por cesariana, seu terceiro filho, uma menina. Naquela madrugada, Adelir descobriu que dois espaços que considerava privados, invioláveis, tinham sido invadidos no meio da noite: sua casa, seu corpo. Ao amanhecer, Adelir não pertencia sequer a si mesma.

Antes de se perfilar de um lado ou outro desse campo, a favor ou contra Adelir, é preciso tentar alcançar o que essa mulher sentiu, já que também nós costumamos nos sentir seguros em casa. Mesmo que a casa seja um barraco numa zona de risco, é pela certeza de um lugar no mundo que se luta, às vezes arriscando a própria vida. No meio da noite, uma casa torna-se ainda mais importante, como garantia de refúgio diante do temor atávico da escuridão. No caso de Adelir, era uma casa de madeira, parcialmente coberta por uma lona, porque ainda em construção. Quando sua filha, chamada de Yuja Kali, foi arrancada do seu útero, também foi uma invasão na madrugada. Quem já assistiu a uma cesariana sabe que é como arrombar uma porta e tirar de repente um bebê do único lar que conhece, jogando-o na luz e na temperatura de um mundo desconhecido e inóspito, em que ele fica longe do corpo da mãe que se recupera de uma cirurgia, submetido a uma série de procedimentos bruscos. Para Adelir e a pequena mulher que gerou, ambas arrancadas à força de suas casas, foi uma longa noite de horrores.

Naquela madrugada, Adelir apagou as luzes e acendeu velas enquanto vivia as contrações do trabalho de parto. E então o barulho de pneus e motor de carros quebra a calmaria da zona rural. E então alguém se anuncia oficial de justiça e ostenta um papel tão poderoso que ela pode ser carregada de sua casa. Adelir espia e vê nove policiais. O que, com aquele barrigão, ela poderia ter feito de tão errado para ser alvo de uma força de repressão daquele tamanho, tão rara nas ruas de Torres, mais ainda no interiorzão? Para que tantos homens armados diante de uma mulher barriguda?

Essa é uma pergunta interessante: o que tornou Adelir tão perigosa, de repente? Que poder tão nevrálgico ela desafiou para mover tantas autoridades durante a noite? O que, de fato, ela estava ameaçando, para mobilizar uma demonstração de força dessa ordem?

É preciso voltar ao dia anterior. Em torno das 15h de 31 de março, Adelir foi ao hospital com a doula Stephany Hendz, assistente treinada de parto, que acompanhava a sua gestação e a acompanharia no nascimento do bebê. Adelir tinha feito o pré-Natal no sistema público de saúde. Ela vinha de duas cesarianas, que considerava desnecessárias, e tinha buscado informações, leituras e grupos de apoio para ajudá-la a, dessa vez, ter um parto normal. Depois de examiná-la, a médica disse-lhe que, como a criança estava em posição pélvica (sentada) e ela já tinha feito duas cesarianas, precisava se submeter, de imediato, a mais um procedimento cirúrgico. Se não o fizesse, haveria risco de romper a cicatriz, causando a morte dela e do bebê.

Adelir não aceitou. Ela sabia que, nessas mesmas condições, muitas mulheres no Brasil e fora dele tiveram seus filhos por parto normal. Seu bebê estava bem, ela estava bem. Assinou um termo de responsabilidade e deixou o hospital. Tentaria um outro, em Santa Catarina, já que Torres está próxima do município catarinense de Araranguá. Adelir esperava encontrar uma equipe de saúde que respeitasse a sua escolha de ter um parto humanizado.

Ao dizer “não”, Adelir tornou-se perigosa. Como uma mulher, usuária do SUS, moradora da zona rural, recusa-se a cumprir a ordem de uma doutora? Como ela ousa escolher o que considera melhor para ela e para seu bebê? Não como uma inconsequente, mas como alguém que se preparou para o parto, informou-se, contratou uma doula para ajudá-la? Nem mesmo quando botam um termo de responsabilidade diante dela, sempre assustador para todos e mais ainda para os pobres, Adelir recua. Ela assina. E vai para casa continuar a se preparar para dar à luz sua filha.

Porque é uma irresponsável, como teria dito uma das médicas? Não é o que parece. O que se torna claro no comportamento de Adelir é que ela tem a coragem de se responsabilizar. E se responsabilizar é ser mãe. Adelir, nesse momento, já é mãe da sua filha. Ao decidir só aceitar a cesariana se a equipe de saúde comprovar que é de fato necessária, ela está decidindo o que é melhor para ela e para a filha que há nove meses acolhe, alimenta e cuida, com quem há nove meses convive dentro da sua barriga. Do seu corpo. Ao dizer “não” à médica, Adelir está protegendo sua filha.

Quem já ousou enfrentar um diagnóstico médico, seja na rede pública ou na privada, sabe como essa é uma batalha penosa. Pode, inclusive, apalpar o tamanho da coragem de Adelir. Os médicos – em geral, mas sem esquecer de uma minoria que luta bravamente por relações mais horizontais e respeitosas – consideram-se os donos dos corpos. Não só do deles, mas do meu e do seu. A medicina como um poder capaz de normatizar os corpos é uma construção social e histórica, com capítulos fascinantes. Para quem se interessar, há uma vasta bibliografia a respeito. Aqui, o que vale assinalar é que o gesto de Adelir não é banal. O significado de sua recusa é enorme. Na tentativa de preservar a escolha que considerava melhor para ela e para a filha, sem saber, Adelir, essa extraordinária mulher comum, moveu placas tectônicas.

É fundamental lembrar que Adelir tinha todo o direito de questionar a decisão médica. Tinha porque essa é uma prerrogativa legal de qualquer pessoa. E tinha porque o Brasil é um dos líderes mundiais de cesarianas, um dos títulos que envergonha o sistema de saúde brasileiro. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que a cesariana é necessária em no máximo 15% dos casos. No Brasil, as cesarianas representam mais da metade dos nascimentos. Na rede privada, ultrapassam os 80%. Esse dado é sempre repetido, pouco enfrentado, porque serve a vários interesses mercadológicos. Também porque a cultura da cesariana está entranhada nos profissionais da medicina, a começar pelas universidades em que são formados. Considerada mais prática e rápida, mais adequada à sociedade de consumo, a cesariana é a primeira opção, quando deveria ser a última – sem que os riscos de uma cirurgia e desse nascer com hora marcada, antes que o bebê esteja de fato pronto, seja sequer avaliado como prioridade.

Adelir sabia disso. Ela mesma se considerava vítima de duas cesarianas desnecessárias. Basta conversar com mulheres grávidas para perceber que o medo de serem enganadas por seus médicos é um fator de estresse presente durante toda a gestação, que se aprofunda no momento em que a hora do nascimento se aproxima. Qualquer um que se dispuser a escutar mulheres que sonhavam com um parto normal e tiveram uma cesariana ouvirá que, perto do fim da gravidez, os médicos deram uma justificativa supostamente científica para determinar a cirurgia. Por medo de confrontarem-nos e colocarem seu bebê em risco; ou mesmo serem abandonadas, como alguns médicos ameaçam; por sentirem-se frágeis num momento tão delicado; porque é muito difícil se contrapor a um doutor que diz que seu bebê “poderá entrar em sofrimento se não fizer uma cesariana”, elas aceitaram a cirurgia e tiveram seu parto roubado. Se todas as desculpas usadas para fazer cesarianas no Brasil fossem de fato justificativas embasadas e escolhas corretas, o Brasil não exibiria as estatísticas que nos envergonham. Ou seria preciso fazer uma investigação sobre o que haveria de errado com o corpo das brasileiras, que já não conseguiriam parir seus bebês pelo método natural.

É possível questionar se, no caso de Adelir, a cesariana não era mesmo necessária. Se o que aconteceu com ela não teria sido dificuldade de aceitar seus limites, incapaz de abrir mão do seu desejo por um parto normal. Se Adelir não teria tido um surto de onipotência, tão comum no nosso tempo em que supostamente tudo pode. Mas não parece ser esse o caso. Mais tarde, Adelir diria ao jornal Zero Hora: “Não era uma questão de vaidade. Era uma questão de saúde. Eu nunca descartei a cesariana, mas queria que essa fosse a última alternativa”.

Não sou favorável a demonizações, elas costumam empobrecer o debate. As médicas que deram início ao processo de sujeitação de Adelir estão inscritas numa tradição da medicina que dá ao médico o poder de controlar os corpos. Talvez sequer tenham questionado as relações produzidas por essa ideologia algum dia – ou mesmo tenham suspeitado de que precisassem questionar. Mas, ainda assim, podemos supor que também para elas tenha sido uma decisão angustiante, que também para elas não foi e não tem sido fácil ter obrigado uma mulher a se submeter a uma cirurgia, com todos os riscos de uma cirurgia, contra a sua vontade, e arrancar um bebê do seu corpo. Talvez elas tenham ficado com medo de serem responsabilizadas se algo acontecesse com Adelir e seu bebê. Talvez não tenham sido ensinadas a conduzir um parto normal nessas circunstâncias. Talvez, nesse quadro, só soubessem fazer uma cesariana.

Acho difícil acreditar que quisessem o mal de Adelir e sua filha. Obviamente, essas ponderações não as eximem da responsabilidade por seus atos. Mas, se quisermos avançar nesse debate, é preciso olhar pessoas como pessoas. Nem Adelir é uma heroína, nem as médicas, o promotor e a juíza são vilões. Nem as médicas, a juíza e o promotor são heróis, nem Adelir é uma vilã. Duas narrativas opostas que se digladiam nas redes sociais como se a vida fosse fácil assim.

O fato, aqui, é que as médicas Andreia Castro e Joana de Araújo mostraram-se incapazes de aceitar a escolha de Adelir. Buscaram na justiça os meios para impor sua decisão de fazer uma cesariana. Pediram ajuda para restaurar seu poder que, com uma recusa, Adelir tinha esvaziado. A justificativa: preservar a vida da mãe e do bebê, em risco iminente. No início da noite de 31 de março, o promotor de Justiça Octavio Noronha foi contatado pela Secretaria de Saúde de Torres. Por volta das 23 horas, entrou com a ação. Meia hora depois, a juíza Liniane Maria Mog da Silva deu a liminar.

A sequência de atos produziu a cena brutal: Adelir, em trabalho de parto, arrancada de sua casa e, em seguida, alijada do seu corpo. Medicina e Justiça se uniram para submetê-la, tornando público aquilo que é privado. Não fosse nossos olhos viciados em aceitar procedimentos invasivos com naturalidade, quando se inscrevem no âmbito da medicina, ter a barriga cortada e a filha tirada do útero, contra a vontade, seria uma cena de tortura forte até para o cinema. Que isso tenha se passado no aniversário de 50 anos do golpe que instaurou a ditadura civil-militar no Brasil é uma coincidência que pode provocar questões interessantes sobre as relações entre o Estado e os cidadãos na democracia.

A partir desse momento, esses dois poderes – a Medicina e a Justiça – constroem uma narrativa para Adelir, que pretendem impor como história única. Ela seria a mulher ignorante e irresponsável que botou em risco a vida da própria filha por conta de um capricho. Dessa construção mais elaborada para uma outra, a da “louca que tentou matar o próprio bebê”, foi só um clique nas redes sociais. É essa a mensagem de uma decisão – e de uma ação – como essa. Sabemos bem o que significa uma mãe supostamente não proteger o filho numa cultura como a nossa, que coloca a infância no pedestal do futuro. Precisamos entender, portanto, o tamanho do rótulo que tentaram – e talvez consigam – colar em Adelir, assinalando ela e todos os seus filhos, especialmente essa, que acabou de nascer, para toda a vida. Se conseguirem impor esse estigma, a perversão é quase sem nome.

No passado bem recente teria sido fácil impor essa história única sobre Adelir. No passado bem recente talvez Adelir não tivesse ousado discordar de um médico. Essa é uma mudança gigantesca. Nos últimos anos, milhares de mulheres no Brasil inteiro criaram fóruns de discussão, escreveram livros, fizeram filmes, produziram blogs, organizaram-se também institucionalmente para retomar a posse do próprio corpo na gestação e tirar o parto normal da marginalidade a que foi condenado pelo sistema de saúde brasileiro. Reabilitar o parto como ato natural e potente da mulher – e não como doença na qual os corpos são sujeitados a um outro. São mulheres de todas as profissões, e também médicas, cientistas, enfermeiras, parteiras e doulas. Nesses espaços, mulheres de todos os cantos do país e do mundo trocam informações como, num passado mais distante, antes que esse conhecimento fosse destituído pelo saber médico, consultavam mães, tias e avós. Quando necessário, promovem manifestações e atos públicos em favor do parto humanizado – e contra a violência obstétrica.

Renata Penna/Divulgação

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Essa rede tem sustentado simbolicamente Adelir e difundido uma narrativa que se contrapõe à outra, a da mãe desnaturada que precisou ser levada pela polícia ao hospital para fazer uma cesariana para salvar o bebê. A hashtag “SomosTodasAdelir” ganhou representação nas redes sociais.

Na sexta-feira (11/4), foram promovidos atos públicos em várias cidades brasileiras, denunciando o que aconteceu com Adelir como violação de direitos, violação concreta do corpo. Nessa narrativa construída nas redes sociais e nas ruas, Adelir é uma mulher violada pelo Estado.

Em São Paulo, dezenas de mulheres, muitas delas com bebês de colo, outras com barrigão de grávida, passaram a noite em vigília diante da universidade de direito mais tradicional do estado, no Largo São Francisco. Mulheres com diagnóstico semelhante ao de Adelir revezavam-se no microfone, na manhã de sábado, enquanto bandejas com pedaços de bolo passavam, como se estivessem numa visita de tia. Com a filha de 5 anos pela mão, Luka Franca, 28 anos, contou como, depois de três horas e meia de trabalho de parto, conheceu a menina pelo bumbum, já que ela estava sentada. “Vi aquele bumbumzinho roxo em formato de coração, parecia um picolé de desenho animado”, comparou, toda emocionada. “Esta é a Rosa. Mesmo estando sentada, ela nasceu com cabeça”, brincou. Tatiana Ubinha anunciou: “Depois de três cesáreas desnecessárias, eu rompi com o sistema”. Teve o quarto bebê, que carregava no colo, de parto normal, e está grávida do quinto. Natalia Tribeck contou que fez parto normal depois de duas cesáreas: “Descobri que meu corpo não era falho, o que era falho era o sistema”.

Na tentativa de desqualificá-las, muitos chamam essas mulheres de “as loucas do parto normal”. Poderia ser um elogio, não fosse o fato de que a tarja de “louca” sempre serve, a quem a coloca num outro, como uma desculpa para não escutar o que este tem a dizer. Sempre que as mulheres reivindicam a posse do seu corpo, ou são “loucas” ou são “vagabundas”. Seguidamente, os dois. Quando lutam por protagonismo e autonomia, em especial na gravidez, a estratégia é transformá-las em “exageradas”, “fanáticas”, “histéricas”. E, assim, tentar esvaziar seu discurso. Nesse embate, de novo essa tática ficou clara.

Renata Penna/Divulgação

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Adelir não é uma ativista dessa causa. Apenas uma mulher que ousou sonhar com um parto normal – aspiração ambiciosa no Brasil das cesarianas.

Desde que o caso se tornou público, visões se digladiam em artigos que defendem a necessidade ou não da cesariana de Adelir, ora com argumentos médicos e científicos, ora com argumentos jurídicos. Essa discussão é importante. Mas apenas se as causas que fizeram do Brasil um dos líderes mundiais de cesarianas forem de fato enfrentadas pelo poder público e pela sociedade, para além das intenções e do marketing eleitoreiro. Esse debate é tão acirrado porque, além dos poderosos interesses de mercado, o que está em disputa é algo muito mais profundo: o controle sobre o corpo das mulheres.

De qualquer modo, seja qual for a posição de cada um nesse debate, é preciso pactuar que há algo muito errado com os sistemas de saúde e de justiça de um país quando a única solução encontrada é arrancar uma grávida de sua casa no meio da noite e forçá-la a fazer uma cesariana. Há algo muito grave acontecendo com os representantes desses poderes quando defendem que uma violência como essa é legítima.

Nesse sentido, vale reproduzir aqui a frase estarrecedora do obstetra Corintio Mariani Neto, secretário da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (Sogesp), em entrevista à Folha de S. Paulo:

– Ainda bem que alguém com bom senso entrou na justiça para resguardar a vida dela e do bebê. Se mais (juízes) agissem assim, o médico estaria mais protegido para trabalhar com gestantes.

O grifo é meu. Quando um obstetra e representante de uma entidade de obstetrícia defende que é preciso a intervenção da justiça (e por consequência da polícia), para que médicos trabalhem com mulheres grávidas durante o parto, é hora de parar tudo e rever os princípios. Inclusive os nossos, já que a declaração não causou nem um décimo da estranheza que deveria.

Adelir Lemos de Goes foi violada pelo Estado. Nos seus direitos, no seu corpo. Arrancaram-lhe não só a filha do útero, mas também a esvaziaram de poder em um dos momentos mais radicais da vida de uma mulher. Submeteram-na, coagiram-na. Por ser sujeito e reivindicar seus direitos, ela foi reduzida pela força a um objeto de intervenção médica e jurídica. Mas, Adelir, eu gostaria de dizer a você: que enorme potência teve o seu “não”.

(Publicado no El País em 14/04/2014)

A ditadura que não diz seu nome

O imaginário sobre a Amazônia e os povos indígenas, forjado pelo regime de exceção, é possivelmente a herança autoritária mais persistente na mente dos brasileiros de hoje, incluindo parte dos que estão no poder. E a que mais faz estragos na democracia

 

“Quando se quer fazer alguma coisa na Amazônia, não se deve pedir licença: faz-se.”

A declaração é do gaúcho Carlos Aloysio Weber, ex-comandante do 5º Batalhão de Engenharia e Construção, um dos primeiros a instalar-se na Amazônia na ditadura civil-militar. Em 1971, ele foi entrevistado para um projeto especial da revista Realidade sobre a Amazônia. O repórter fez ao coronel, apresentado como “lendário” em Rondônia, a seguinte pergunta: “Como é possível fazer as coisas na Amazônia e transformar a região?”. O coronel respondeu:

– Como você pensa que nós fizemos 800 quilômetros de estrada? Pedindo licença, chê? Usamos a mesma tática dos portugueses, que não pediam licença aos espanhóis para cruzar a linha de Tordesilhas. Se tudo o que fizemos não tivesse dado certo, eu estaria na cadeia, velho.

É uma declaração de sentidos explícitos – pelo tom em que foi dita, pela certeza da impunidade, pelo orgulho da falta de limites. Pela forma como o coronel vê a Amazônia como território a ser invadido e dominado pela força. O que a ditadura fez na Amazônia, tão longe dos centros de poder e das vozes de resistência, e o que fez com os povos indígenas, ainda precisa ser investigado com muito mais profundidade. Os horrores que já foram descobertos podem ser só a superfície. Mas, se o passado pede luz, o presente precisa ser iluminado com urgência.

Há vários entulhos autoritários corroendo nossos dias, como a Polícia Militar (que, se tem uma história anterior ao golpe de 1964, ganhou mais poderes na ditadura e os mantêm na democracia) e o “auto de resistência” (que serve para a polícia justificar a execução de suspeitos ou desafetos). Mas é no olhar tanto sobre a Amazônia quanto sobre os povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas que o Estado autoritário persiste com mais força e menos resistência na mente da maioria dos brasileiros. Persiste da forma mais perigosa, porque traveste como verdade aquilo que é apenas uma imagem a serviço de interesses políticos e econômicos específicos. Talvez em nenhum outro campo o regime de exceção tenha conquistado tanto êxito ao impor seu ideário. E o mantê-lo na democracia.

A ditadura civil-militar enraizou no imaginário dos brasileiros a visão de que a floresta amazônica é um território-corpo para exploração. Se a lógica do explorador/colonizador norteou historicamente a “interiorização” do país, é na ditadura que ela ganha um pacote ideológico mais ambicioso. As peças de propaganda que o regime produziu continuam vivas, mesmo para aqueles que nasceram depois dela, como os slogans “Integrar para não entregar” e “Terra sem homens para homens sem terra”. É na ditadura que é cimentada a ideia da Amazônia como “deserto verde”, ignorando toda a riqueza humana, a diversidade cultural e biológica que lá existia, ignorando a vida. A disseminação dessa fantasia é tão bem sucedida que se torna verdade. E se torna uma verdade que continua verdade após a redemocratização. Tão verdade que cria uma realidade paradoxal: uma ex-guerrilheira, presa e torturada pelo regime, é quem, na democracia, leva adiante o modelo de desenvolvimento da ditadura para a Amazônia.

É primeiro no governo Lula, e com mais força e empenho a partir da posse de Dilma Rousseff, que grandes obras previstas pelos militares, como a hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu – a mais polêmica, mas não a única – são impostas aos povos da floresta. O conturbado processo que forçou a construção de Belo Monte, entre outras arbitrariedades violou tanto a Constituição quanto tratados internacionais. A Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assegura aos indígenas o direito de serem ouvidos em empreendimentos que vão afetar seu modo tradicional de vida – e não foram. Outras hidrelétricas estão em curso, com grande resistência de povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, como as usinas previstas para o rio Tapajós, no Pará.

É nesse governo eleito que a Força Nacional baixa sobre as comunidades tradicionais que vivem há séculos na área dos megaprojetos com a justificativa, entre outras, de garantir a segurança dos pesquisadores que farão o inventário socioambiental. Na prática, é usada para reprimir a resistência legítima desses povos, cujos direitos são amparados pela Constituição. É na democracia que grandes empresas financiadas pelo dinheiro público do BNDES executam obras que alteram o ecossistema regional sem cumprir suas obrigações, na forma de condicionantes, causando estragos irreversíveis e aniquilando vidas, como se viu agora na enchente histórica do rio Madeira.

É também nesse período democrático que um instrumento criado na ditadura, a “Suspensão de Segurança”, tem sido usado para garantir a continuidade dos megaempreendimentos, como foi denunciado no último 28 de março na Organização dos Estados Americanos (OEA). O instrumento permite a tribunais superiores anular decisões judiciais de instâncias inferiores, independentemente do mérito, se as cortes entenderem que as sentenças representam risco de “ocorrência de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas”. O mecanismo controverso tem sido usado para derrubar decisões favoráveis a comunidades afetadas por grandes obras, como Belo Monte e a estrada de ferro de Carajás.

E a maioria dos brasileiros não estranha – ou estranha muito pouco – essa versão do “Brasil Grande” da ditadura que se consolida com outros nomes na democracia. Não decodifica essa violência como violência, não decodifica o autoritarismo como autoritarismo. O mais perigoso é sempre aquilo que não detectamos como perigoso, aquilo que se naturaliza como inevitável – e na Amazônia a violência de Estado tornou-se natureza.

Poderia ser uma surpresa o fato de o mito amazônico forjado na ditadura persistir na democracia. Mas não chega a ser, porque é esse mito, convertido em verdade única, que permite que a Amazônia siga sendo tratada como objeto de espoliação, seja pelo Estado, seja pela iniciativa privada. Um corpo a ser violado, à disposição de exploradores de passagem, sejam eles técnicos do governo, políticos de amplo espectro partidário, grileiros, madeireiros, mineradores e empreiteiros. Quem nesse território permanece, nele nasce, tem raízes e constrói memória torna-se um obstáculo, como os povos indígenas. Um não-ser, como os ribeirinhos e quilombolas, os invisíveis entre os invisíveis. Um obstáculo não ao desenvolvimento, como se repete à exaustão, mas à manutenção desse mito – à continuidade do ideário que legitima, há décadas, a destruição da floresta e dos povos da floresta para acomodar os interesses dos centros de poder.

Esta é uma entre várias razões para que a afirmação de pertencimento dessas populações seja vista como ilegítima, já que a floresta não seria terra para a vida, mas para a exploração e o uso. Como reivindicar a construção de sentidos naquela que é objeto de passagem e de dilapidação? A Amazônia serve ao centro, numa lógica que ainda obedece, na segunda década do século 21, aos preceitos do sistema colonial, na qual a periferia serve à matriz.

Para muitos, incluindo burocratas do governo instalados em ministérios como o de Minas e Energia, a Amazônia é apenas uma fonte de matérias-primas e de energia para as grandes indústrias que produzem para exportação. Tem sido, também, uma fonte de pagamento de compromissos não pronunciados de campanha, na forma de grandes obras financiadas pelo BNDES. A floresta é também aquela que pode ser derrubada para expandir a fronteira agropecuária, num momento em que os ruralistas constituem a maior bancada suprapartidária, em um Congresso que se pauta pela chantagem, e alcançam níveis inéditos de influência em um governo que assegura apoio pela barganha. É ainda uma reserva simbólica para unir o Brasil que a desconhece num ufanismo tortuoso contra “os gringos que querem tomar a Amazônia”. Nada parece mais eficaz do que criar uma ameaça externa para engordar nacionalismos de ocasião, que só favorecem aos mesmos de sempre. Se é disso que se trata, convém perceber que há um tipo de “gringo” que há muito está lá, em megaprojetos de multinacionais que expulsaram as populações locais com o apoio de sucessivos governos. Na ditadura, mas também na democracia.

A Amazônia é devastada em nome de várias manipulações, concretas e simbólicas. Para que continue a servir aos interesses dos centros de poder, é preciso que o modelo de exploração persista. E, para que persista, quando o aquecimento global e a destruição do meio ambiente se tornam temas vitais no mundo, quando a questão da água ascende ao topo da pauta, é preciso forjar novos inimigos. É nesse contexto que os povos indígenas passam a ser vendidos à população, predominantemente urbana do país, como “entraves ao desenvolvimento”. Isso no discurso tanto de setores conservadores da sociedade quanto em falas oficiais de setores do atual governo.

Aqueles que pertencem à terra são convertidos em despertencidos, o sentido mais profundo de “entrave”, para que a Amazônia se mantenha no mesmo lugar de corpo para violação. Em nome de “interesses nacionais”, quando, de fato, o que se mascara como nacional são, historicamente, projetos de poder de grupos políticos específicos e projetos de lucro de grupos econômicos privados. Estes, fazem alianças circunstanciais ou permanentes para manter a lógica de espoliação intacta. Fizeram na ditadura, fazem na democracia. Sem que se estranhe o suficiente, porque a distância da Amazônia não é apenas geográfica. Para compreendê-la é preciso se arriscar à alteridade – e nada mais perigoso para quem quer manter seus privilégios do que experimentar outras possibilidades de estar no mundo.

Os povos indígenas resistem desde 1500, mas nesse século ampliaram sua voz, pelas possibilidades abertas pela internet, e passaram a divulgar suas narrativas múltiplas. Em comum, a resistência ao genocídio que segue em curso e ganhou roupagens mais sofisticadas. É também por isso que os ataques contra esses povos se acirraram, não apenas na forma de agressões físicas e destruição de aldeias, mas nos vários projetos que tramitam no Congresso e que significam, na prática, sua aniquilação física e cultural. Como não é mais possível silenciar a sua voz, é preciso transformá-los em inimigos. O inimigo não se escuta, diga o que disser, porque não lhe é reconhecida a legitimidade para dizer. Esse é o objetivo da bem sucedida propaganda em curso, que coloca os mais de 200 povos indígenas, habitantes também de outros ecossistemas além da Amazônia, como “entraves ao desenvolvimento” do Brasil. Por estarem no caminho das grandes obras, por estarem coletivamente sobre as terras cobiçadas para lucros privados.

Nada é mais autoritário do que dizer ao outro que ele não é o que é. Essa também é parte da ofensiva de aniquilação, ao invocar a falaciosa questão do “índio verdadeiro” e do “índio falso”, como se existisse uma espécie de “certificado de autenticidade”. Essa estratégia é ainda mais vil porque pretende convencer o país de que os povos indígenas nem mesmo teriam o direito de reivindicar pertencer à terra que reivindicam, porque sequer pertenceriam a si mesmos. Na lógica do explorador, o ideal seria transformar todos em pobres, moradores das periferias das cidades, dependentes de programas de governo. Nesse lugar, geográfico e simbólico, nenhum privilégio seria colocado em risco. E não haveria nada entre os grandes interesses sem nenhuma grandeza e o território de cobiça.

Quando alguém, mesmo em círculos letrados, afirma que “sem Belo Monte não vai dar para assistir à novela das oito ou entrar no Facebook”, ou brada que “índio tem terra demais”, está cometendo muitas impropriedades. Mas está também mantendo vivo o ideário da ditadura sobre a Amazônia e os povos da floresta. No momento em que o Brasil disseca o golpe que completou 50 anos, tão importante quanto jogar luz sobre o passado é compreender o que dele permanece entre nós – com a nossa estreita colaboração.

(Publicado no El País em 31/03/2014)

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