Para Brasília, só com passaporte

     A proposta inconstitucional da redução da maioridade penal vai mostrar quem é mais corrupto: se o povo ou o Congresso.

        Leia na coluna desta semana no El País:

No filme Branco Sai, Preto Fica, em cartaz nos cinemas do Brasil, para alcançar Brasília é preciso passaporte. O elemento de ficção aponta a brutal realidade do apartheid entre cidades-satélites como Ceilândia, onde se passa a história, e o centro do poder, onde a vida de todos os outros é decidida. Aponta para um apartheid entre Brasília e o Brasil. Ao pensar no Congresso Nacional, é como a maioria dos brasileiros se sente: apartada. O Congresso mal iniciou o atual mandato e tem hoje uma das piores avaliações desde a redemocratização do Brasil: segundo o Datafolha, só 9% considera sua atuação ótima ou boa, 50% avalia como ruim ou péssima. É como se houvesse uma cisão entre os representantes do povo e o povo que o elegeu. É como se um não tivesse nada a ver com o outro, como se ninguém soubesse de quem foram os votos que colocaram aqueles caras na Câmara e no Senado, fazendo deles deputados e senadores, é como se no dia da eleição tivéssemos sido clonados por alienígenas que elegeram o Congresso que aí está. É como se a alma corrompida do Brasil estivesse toda lá. E, aqui, o que se chama de povo brasileiro não se reconhecesse nem na corrupção nem no oportunismo nem no cinismo.

Leia o texto inteiro aqui.

Para Brasília, só com passaporte

A proposta inconstitucional da redução da maioridade penal vai mostrar quem é mais corrupto: se o povo ou o Congresso

 

No filme Branco Sai, Preto Fica, em cartaz nos cinemas do Brasil, para alcançar Brasília é preciso passaporte. O elemento de ficção aponta a brutal realidade do apartheid entre cidades-satélites como Ceilândia, onde se passa a história, e o centro do poder, onde a vida de todos os outros é decidida. Aponta para um apartheid entre Brasília e o Brasil. Ao pensar no Congresso Nacional, é como a maioria dos brasileiros se sente: apartada. O Congresso mal iniciou o atual mandato e tem hoje uma das piores avaliações desde a redemocratização do Brasil: segundo o Datafolha, só 9% considera sua atuação ótima ou boa, 50% avalia como ruim ou péssima. É como se houvesse uma cisão entre os representantes do povo e o povo que o elegeu. É como se um não tivesse nada a ver com o outro, como se ninguém soubesse de quem foram os votos que colocaram aqueles caras na Câmara e no Senado, fazendo deles deputados e senadores, é como se no dia da eleição tivéssemos sido clonados por alienígenas que elegeram o Congresso que aí está. É como se a alma corrompida do Brasil estivesse toda lá. E, aqui, o que se chama de povo brasileiro não se reconhecesse nem na corrupção nem no oportunismo nem no cinismo.

Há, porém, uma chance desse sentimento de cisão desaparecer, e o Brasil testemunhar pelo menos um grande momento de comunhão entre o Congresso e o povo. Alma corrompida com alma corrompida. Cinismo com cinismo. A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara pode decidir, nesta semana, pela admissibilidade da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93. Ela reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. Se isso acontecer, a proposta, que estava engavetada desde o início dos anos 90, terá vencido uma barreira importante e seguirá seu caminho na Câmara e no Senado. Diante do Congresso mais conservador desde a redemocratização, com o crescimento da “bancada da bala”, formada por parlamentares ligados às forças de repressão, há uma possibilidade considerável de que seja aprovada. E então o parlamento e o povo baterão com um só coração. Podre, mas uníssono.

A redução da maioridade penal como medida para diminuir a impunidade e aumentar a segurança é uma fantasia fabricada para encobrir a verdadeira violência. Segundo o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), dos 21 milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida. Mas são eles que estão sendo assassinados sistematicamente: o Brasil é o segundo país no mundo em número absoluto de homicídios de adolescentes, atrás apenas da Nigéria. Hoje, os homicídios já representam 36,5% das causas de morte por fatores externos de adolescentes no país, enquanto para a população total corresponde a 4,8%. Mais de 33 mil brasileiros de 12 a 18 anos foram assassinados entre 2006 e 2012. Se as condições atuais prevalecerem, afirma o Unicef, até 2019 outros 42 mil serão assassinados no Brasil.

Quem está violando quem? Quem não está protegendo quem? Quem deve ser responsabilizado por não garantir o direito de viver à parte das crianças e dos adolescentes?

Ainda assim, mais de 90% dos brasileiros, segundo pesquisa realizada em 2013 pela Confederação Nacional dos Transportes, aprovam que se coloque adolescentes em prisões que violam as leis e os direitos humanos mais básicos, no quarto sistema carcerário mais populoso do mundo, em flagrante colapso e incompetente na garantia de condições para que uma pessoa construa um outro destino que não o do crime. Se aprovada essa violação da Constituição, a segurança não vai aumentar: o que vai aumentar é a violência. E a capacidade da sociedade brasileira de produzir crime disfarçado de legalidade.

Parte da sensação de que há um exército de crianças e adolescentes perversos, prontos para atacar “os cidadãos de bem”, costuma ser atribuída à enorme repercussão de crimes macabros com a participação de menores de idade. Aquilo que é exceção, ao ser amplificado como se fosse a regra, regra se torna. As estatísticas desmentem com clareza esse imaginário, mas o sentimento, reforçado por parte da mídia, seria mais forte do que a razão. Viraria então uma crença sobre a realidade, manipulada por todos aqueles que dela se beneficiam para justificar seus lucros, seus empregos e sua própria violência, esta sim amparada em números bem eloquentes.

Essa é uma parte da verdade, mas não toda. É a parte da verdade benigna para a sociedade brasileira, que só apoiaria a redução da maioridade penal por ser iludida e manipulada pela mídia ou pelos deputados ou pela indústria da segurança. Manipulada por alguém, um outro esperto e diabólico, que a levaria a conclusões erradas para obter benefícios pessoais ou para corporações públicas e privadas. Seria um alento se essa fosse a melhor explicação, porque bastaria o esclarecimento e o tratamento correto dos fatos, para que a sociedade chegasse a uma análise coerente da realidade e à óbvia conclusão de que a redução da maioridade penal só serviria para produzir mais crime contra os mesmos de sempre.

Há, porém, uma verdade mais dura sobre nós. É a da nossa alma apodrecida por um tipo de corrupção muito mais brutal do que a revelada pela Operação Lava Jato, com consequências mais terríveis do que aquela apontada com tanta veemência nas ruas. A cada ano, uma parte da juventude brasileira, menor e maior de idade, é massacrada. E a mesma maioria que brada pela redução da maioridade penal não se indigna. Sequer se importa. No Brasil, sete jovens de 15 a 29 anos são mortos a cada duas horas, 82 por dia, 30 mil por ano. Esses mortos têm cor: 77% são negros. Enquanto o assassinato de jovens brancos diminui, o dos jovens negros aumenta, como mostra o Mapa da Violência de 2014.

Há uma parcela crescente da juventude negra, pobre e moradora das periferias que morre antes de chegar à vida adulta. Num país em que a expectativa de vida alcançou os 74,9 anos, essa parcela morre com idade semelhante à de um escravo no século 19. E isso não causa espanto. Ninguém vai para as ruas denunciar esse genocídio, clamar para que ele acabe. São poucos os que se indignam e menos ainda os que tentam impedir esse massacre cotidiano.

Como é que vivemos enquanto eles morrem? Como é que dormimos com os gritos de suas mães? Possivelmente porque naturalizamos a sua morte, o que significa compreender o incompreensível, que dentro de nós acreditamos que o assassinato anual de milhares de jovens negros e pobres é normal. E, se essa é a realidade, a de que somos ainda piores do que os senhores de escravos, o que essa verdade faz de nós?

Acontece a cada dia. E a maioria das mortes nem merece uma menção na imprensa. Quando eu era repórter de polícia e ligava para as delegacias perguntando o que tinha acontecido nas madrugadas, sempre tinha acontecido, mas era visto como um desacontecido. “Não aconteceu nada”, era a invariável resposta dos policiais de plantão. Tinham morrido vários, mas eram da cota (sim, as cotas sempre existiram) dos que podem morrer. Estas seriam as mortes não investigadas, as mortes que não seriam notícia. Crime que merecia investigação e cobertura, já era bem entendido, era de branco e, de preferência, rico, ou pelo menos classe média. Dizia-se, no passado, que a melhor escola do jornalismo era a editoria de polícia. Era, de fato, a melhor escola para compreender em profundidade as engrenagens que movem a sociedade brasileira, porque já na primeira aula se aprendia que a morte de uns é notícia, a de outros é estatística.

Assim como os senhores de escravos internalizaram que os negros eram coisas, ou, conforme o momento histórico, uma categoria inferior na hierarquia das gentes, mais de um século depois da abolição oficial da escravatura, a sociedade brasileira naturalizou que existe uma parte da juventude negra que pode ser morta ao redor dos 20 anos sem que ninguém se espante. Se de fato fôssemos pessoas decentes, não era isso o que deveríamos estar gritando em desespero nas ruas? Mas nos corrompemos, ou nunca conseguimos deixar a condição de corruptos de alma.

Em vez disso, clama-se pela redução da maioridade penal, para colocar aqueles que a sociedade não protege cada vez mais cedo em prisões onde todos sabem o quanto é corriqueira a rotina de torturas e estupros, sem contar a superlotação que faz com que em muitas celas seja preciso alternar os que dormem com os que ficam acordados, porque não há espaço para todos ficarem deitados. Como se já não soubéssemos que as unidades que internam adolescentes infratores, contrariando a lei, são na prática prisões, infernos em miniatura, com todo o tipo de violações dos direitos mais básicos. Alguém, nos dias de hoje, pode alegar desconhecer que é assim? E então, como é possível conviver com isso?

Em 24 de março, no debate sobre a redução da maioridade penal na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, o deputado “delegado” Éder Mauro (PSD-PA) afirmou, conforme cobertura do portal jurídico Jota no Twitter: “Não podemos aceitar que, assim como o Estado Islâmico, que mata sob a proteção da religião, os menores infratores, bandidos infratores, menores desse país, matam sob a proteção do ECA”. Como uma asneira desse porte não vira escândalo? Comparar a lei que ampara as crianças e os adolescentes com as (des)razões alegada pelo Estado Islâmico para decapitar e queimar pessoas é uma afronta à inteligência, mas a discussão na Câmara sobre um tema tão crucial desce a esse nível de cloaca. A sessão foi encerrada depois de um bate-boca em que foi preciso separar outros dois deputados. E, assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente, uma das leis mais admiradas e copiadas no mundo inteiro, mas que infelizmente até hoje não foi totalmente implementada, é colocada na mesma frase que o Estado Islâmico. Colegas me sugeriram que não deveria dar espaço a uma declaração e a um deputado desse calibre, mas ele está lá, eleito, bem pago e vociferando bobagens perigosas no parlamento do país. É preciso levar muito a sério a estupidez com poder, uma lição que já deveríamos ter aprendido.

É verdade que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. É o que descobriu Alan de Souza Lima, de 15 anos, em fevereiro, na favela de Palmeirinha, em Honório Gurgel, subúrbio do Rio. Morreu com o celular na mão, e só por isso deixou de ser apenas estatística para virar narrativa, com nome e sobrenome e uma história nos jornais. Alan estava conversando com mais dois amigos e gravava um vídeo no celular. Acabou documentando a sua agonia, depois de ser baleado pela polícia. Como de hábito, a corporação alegou o famoso “confronto com a polícia”, o argumento padrão com que a PM costuma justificar sua assombrosa letalidade, uma das campeãs do mundo. E de imediato acusaram os três de estarem armados e de resistirem à prisão. Mas Alan morria e gravava. A gravação, que foi para a internet, mostrava que não resistiram. Chauan Jambre Cezário, de 19 anos, foi baleado no peito. Ele vende chá mate na praia e sobreviveu para dizer que nunca usou uma arma. A culpa dos garotos era a de viver numa favela, lugar onde a lei não escrita, mas vigente, autoriza a PM a matar. No vídeo há uma frase que deveria estar ecoando sem parar na nossa cabeça. Quando um dos policiais pergunta aos garotos por que estavam correndo, um deles responde:

– A gente tava brincando, senhor.

A frase deveria ficar ecoando na nossa cabeça até que tivéssemos o respeito próprio de nos levantarmos contra o genocídio cotidiano de parte da juventude do Brasil.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor.

A gente tava brincando, senhor. E então o senhor atirou. Feriu. Matou.

Aqueles que foram para as ruas bradar contra a corrupção tiraram selfies com uma das polícias que mais mata no mundo. Só a Polícia Militar do Estado de São Paulo, governado há mais de 20 anos pelo PSDB, matou, em 2014, uma pessoa a cada dez horas. Se os manifestantes que tiraram selfies com a PM no protesto de 15 de março na Avenida Paulista admiram a corporação pela eficiência, precisamos compreender o que esses brasileiros entendem por corrupção, no sentido mais profundo do conceito.

Numa pesquisa da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), intitulada “Desigualdade Racial e Segurança Pública em São Paulo”, as pesquisadores Jacqueline Sinhoretto, Giane Silvestre e Maria Carolina Schlittler chegaram a conclusões estarrecedoras. Pelo menos 61% das vítimas mortas por policiais são negras. E mais da metade tem menos de 24 anos. Já 79% dos policiais que mataram são brancos. O fator racial é determinante: as ações policiais vitimam três vezes mais negros do que brancos. As mortes são naturalizadas: apenas 1,6% dos autores foram indiciados como responsáveis pelos crimes. É a Polícia Militar a responsável por 95% da letalidade policial no estado de São Paulo.

Em fevereiro, a PM de Salvador executou 12 jovens no bairro de Cabula. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove. Dez. Onze. Doze.

O que o governador da Bahia disse, depois dos corpos tombados no chão pela polícia que comanda? A comparação jamais deve ser esquecida. Depois de parabenizar a PM, Rui Costa (PT-BA) comparou a posição do policial diante de suspeitos a de “um artilheiro em frente ao gol, que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol”. Rui Costa foi aplaudidíssimo.

É isso. Enfiar uma bala no corpo de jovens negros e pobres das periferias é fazer como a Alemanha no icônico 7X1 contra o Brasil: “botar a bola dentro do gol”. E isso dito não nos tempos de Antônio Carlos Magalhães, o poderoso coronel da Bahia, mas pelo governador do Partido dos Trabalhadores, supostamente de esquerda. O futebol continua dizendo muito sobre o Brasil.

É por isso que, no filme Branco Sai, Preto Fica, quem é negro e pobre precisa de passaporte para entrar em Brasília. O título do filme é a frase berrada pela polícia ao invadir um baile no “Quarentão”, na Ceilândia, na noite de 5 de março de 1986, onde jovens dançavam, depois de passar a semana ensaiando os passos. A PM entrou gritando: “Puta de um lado, Veado do outro. Branco sai, Preto fica”. Quase três décadas depois, Marquim do Tropa e Shockito são atores interpretando em grande parte o seu próprio papel. Marquim para sempre numa cadeira de rodas pelo tiro que levou, Shockito com uma perna mecânica depois de ter perdido a sua pisoteada por um cavalo da polícia. Resultado do Branco Sai, Preto Fica daquela noite. Sem passaporte para fora do massacre porque, na condição de pretos, eles ficaram.

Branco Sai, Preto Fica tem sido descrito como uma mistura especialmente brilhante entre documentário e ficção científica, com nuances de humor. Ganhou o prêmio de melhor filme no Festival de Brasília de 2014 e chegou há pouco aos cinemas do país. Para mim, o filme de Adirley Queirós se iguala, na potência do que diz sobre o Brasil e na forma criativa como diz, às dimensões do já mítico Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues. São filmes que falam de Brasis diferentes, em momentos históricos diferentes, e, também por isso, falam do mesmo Brasil.

É do futuro, do ano de 2073, que vem outro personagem, Dimas Cravalanças, cuja máquina do tempo é um contêiner. A Ceilândia do presente lembra, sem necessidade de nenhum esforço de produção, um cenário pós-apocalíptico. Cravalanças tem a missão de encontrar provas para uma ação contra o Estado pelo assassinato da população negra e pobre das periferias. A voz que o orienta do futuro alerta: “Sem provas, não há passado”.

Só na ficção para responsabilizar o Estado pelo genocídio cotidiano da juventude pobre e negra? Quase sempre, sim. Mas algo se move na realidade, com pouco apoio da maioria da sociedade e escassa atenção da mídia. No fim de fevereiro, foi instalada na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo a Comissão da Verdade da Democracia “Mães de Maio”. Sua criação é uma enormidade na história do Brasil, um marco. Depois de apurar os crimes da ditadura, uma comissão para investigar os crimes praticados pelo Estado na democracia. Em busca de provas no passado recente para que tenhamos um futuro.

“Mães de Maio”, que empresta o nome à comissão, é um grupo de mulheres que perderam seus filhos entre 12 e 20 de maio de 2006, quando uma onda de violência tomou São Paulo a partir de confrontos da polícia com o crime organizado. Foram 493 mortes neste período, pelo menos 291 delas ligadas ao que se convencionou chamar de “crimes de maio”. Pelo menos quatro pessoas continuam desaparecidas. Edson Rogério, 29 anos, filho de Debora Maria da Silva, líder do “Mães de Maio”, foi executado com cinco tiros. A suspeita é de que os autores do assassinato sejam policiais. Segundo Debora, seu filho gritava antes de ser morto: “Sou trabalhador!”. Seu assassinato segue impune. Edson morreu na mesma rua que, como gari, havia varrido pela manhã.

Nem as centenas de assassinatos de maio de 2006, nem as mortes aqui relatadas ocorridas há pouco, exemplos do genocídio cotidiano, moveram sequer um milésimo da revolta provocada por crimes com a participação de menores em que foram assassinados brancos de classe média ou alta. Seria demais esperar que um assassinato fosse um assassinato, independentemente da cor e da classe social? Menos que isso é aceitar que a vida de uns vale mais do que a de outros, e que essa hierarquia é dada pela cor da pele e pela classe social. Se é assim que você compreende o valor de uma pessoa, diga o que você é diante do espelho. Não para o mundo inteiro, para você mesmo já basta.

Sim, esse Congresso comandado por dois políticos investigados por corrupção é, ressalvando as exceções, que também existem, uma vergonha. Mas minha esperança é que, no que se refere à proposta inconstitucional da redução da maioridade penal, o Congresso seja melhor do que o povo brasileiro. Tenha grandeza histórica pelo menos uma vez e diga não a nossas almas tão corrompidas.

Enquanto isso se desenrola em Brasília, vá ver Branco Sai, Preto Fica. Ao sair do cinema, você saberá que um jovem, quase certamente negro, morreu assassinado no Brasil enquanto você estava lá.

(Publicado no El País em 30/03/2015)

 

A mais maldita das heranças do PT

       Mais brutal para o Partido dos Trabalhadores pode ser não a multidão que ocupou as ruas em 15 de março, mas aquela que já não sairia de casa para defendê-lo em dia nenhum.

        Leia na coluna desta semana no El País:

O maior risco para o PT, para além do governo e do atual mandato, talvez não seja a multidão que ocupou as ruas do Brasil, mas a que não estava lá. São os que não estavam nem no dia 13 de março, quando movimentos como CUT, UNE e MST organizaram uma manifestação que, apesar de críticas a medidas de ajuste fiscal tomadas pelo governo, defendia a presidente Dilma Rousseff. Nem estavam no já histórico domingo, 15 de março, quando centenas de milhares de pessoas aderiram aos protestos, em várias capitais e cidades do país, em manifestações contra Dilma Rousseff articuladas nas redes sociais da internet, com bandeiras que defendiam o fim da corrupção, o impeachment da presidente e até uma aterradora, ainda que minoritária, defesa da volta da ditadura. São os que já não sairiam de casa em dia nenhum empunhando uma bandeira do PT, mas que também não atenderiam ao chamado das forças de 15 de março, os que apontam que o partido perdeu a capacidade de representar um projeto de esquerda – e gente de esquerda. É essa herança do PT que o Brasil, muito mais do que o partido, precisará compreender. E é com ela que teremos de lidar durante muito mais tempo do que o desse mandato.

Leia o texto inteiro aqui.

A mais maldita das heranças do PT

Mais brutal para o Partido dos Trabalhadores pode ser não a multidão que ocupou as ruas em 15 de março, mas aquela que já não sairia de casa para defendê-lo em dia nenhum

 

O maior risco para o PT, para além do Governo e do atual mandato, talvez não seja a multidão que ocupou as ruas do Brasil, mas a que não estava lá. São os que não estavam nem no dia 13 de março, quando movimentos como CUT, UNE e MST organizaram uma manifestação que, apesar de críticas a medidas de ajuste fiscal tomadas pelo Governo, defendia a presidente Dilma Rousseff. Nem estavam no já histórico domingo, 15 de março, quando centenas de milhares de pessoas aderiram aos protestos, em várias capitais e cidades do país, em manifestações contra Dilma Rousseff articuladas nas redes sociais da internet, com bandeiras que defendiam o fim da corrupção, o impeachment da presidente e até uma aterradora, ainda que minoritária, defesa da volta da ditadura. São os que já não sairiam de casa em dia nenhum empunhando uma bandeira do PT, mas que também não atenderiam ao chamado das forças de 15 de março, os que apontam que o partido perdeu a capacidade de representar um projeto de esquerda – e gente de esquerda. É essa herança do PT que o Brasil, muito mais do que o partido, precisará compreender. E é com ela que teremos de lidar durante muito mais tempo do que o desse mandato.

Tenho dúvidas sobre a tecla tão batida por esses dias do Brasil polarizado. Como se o país estivesse dividido em dois polos opostos e claros. Ou, como querem alguns, uma disputa de ricos contra pobres. Ou, como querem outros, entre os cidadãos contra a corrupção e os beneficiados pela corrupção. Ou entre os a favor e os contra o Governo. Acho que a narrativa da polarização serve muito bem a alguns interesses, mas pode ser falha para a interpretação da atual realidade do país. Se fosse simples assim, mesmo com a tese do impeachment nas ruas, ainda assim seria mais fácil para o PT.

Algumas considerações prévias. Se no segundo turno das eleições de 2014, Dilma Rousseff ganhou por uma pequena margem – 54.501.118 votos contra 51.041.155 de Aécio Neves –, não há dúvida de que ela ganhou. Foi democraticamente eleita, fato que deve ser respeitado acima de tudo. Não existe até esse momento nenhuma base para impeachment, instrumento traumático e seríssimo que não pode ser manipulado com leviandade, nem mesmo no discurso. Quem não gostou do resultado ou se arrependeu do voto, paciência, vai ter de esperar a próxima eleição. Os resultados valem também quando a gente não gosta deles. E tentar o contrário, sem base legal, é para irresponsáveis ou ignorantes ou golpistas.

No resultado das eleições ampliou-se a ressonância da tese de um país partido e polarizado. Mas não me parece ser possível esquecer que outros 37.279.085 brasileiros não escolheram nem Dilma nem Aécio, votando nulo ou branco e, a maior parte, se abstendo de votar. É muita gente – e é muita gente que não se sentia representada por nenhum dos dois candidatos, pelas mais variadas razões, à esquerda e também à direita, o que complica um pouco a tese da polarização. Além das divisões entre os que se polarizariam em um lado ou outro, há mais atores no jogo que não estão nem em um lado nem em outro. E não é tão fácil compreender o papel que desempenham. No mesmo sentido, pode ser muito arriscado acreditar que quem estava nos protestos neste domingo eram todos eleitores de Aécio Neves. A rua é, historicamente, o território das incertezas – e do incontrolável.

Há lastro na realidade para afirmar também que uma parte dos que só aderiram à Dilma Rousseff no segundo turno era composta por gente que acreditava em duas teses amplamente esgrimidas na internet às vésperas da votação: 1) a de que Dilma, assustada por quase ter perdido a eleição, em caso de vitória faria “uma guinada à esquerda”, retomando antigas bandeiras que fizeram do PT o PT; 2) a de votar em Dilma “para manter as conquistas sociais” e “evitar o mal maior”, então representado por Aécio e pelo PSDB. Para estes, Dilma Rousseff não era a melhor opção, apenas a menos ruim para o Brasil. E quem pretendia votar branco, anular o voto ou se abster seria uma espécie de traidor da esquerda e também do país e do povo brasileiro, ou ainda um covarde, acusações que ampliaram, às vésperas das eleições, a cisão entre pessoas que costumavam lutar lado a lado pelas mesmas causas. Neste caso, escolhia-se ignorar, acredito que mais por desespero eleitoral do que por convicção, que votar nulo, branco ou se abster também é um ato político.

Faz sentido suspeitar que uma fatia significativa destes que aderiram à Dilma apenas no segundo turno, que ou esperavam “uma guinada à esquerda” ou “evitar o mal maior”, ou ambos, decepcionaram-se com o seu voto depois da escolha de ministros como Kátia Abreu e Joaquim Levy, à direita no espectro político, assim como com medidas que afetaram os direitos dos trabalhadores. Assim, se a eleição fosse hoje, é provável que não votassem nela de novo. Esses arrependidos à esquerda aumentariam o número de eleitores que, pelas mais variadas razões, votaram em branco, anularam ou não compareceram às urnas, tornando maior o número de brasileiros que não se sentem representados por Dilma Rousseff e pelo PT, nem se sentiriam representados por Aécio Neves e pelo PSDB.

Esses arrependidos à esquerda, assim como todos aqueles que nem sequer cogitaram votar em Dilma Rousseff nem em Aécio Neves porque se situam à esquerda de ambos, tampouco se sentem identificados com qualquer um dos grupos que foi para as ruas no domingo contra a presidente. Para estes, não existe a menor possibilidade de ficar ao lado de figuras como o deputado federal Jair Bolsonaro (PP) ou de defensores da ditadura militar ou mesmo de Paulinho da Força. Mas também não havia nenhuma possibilidade de andar junto com movimentos como CUT, UNE e MST, que para eles “pelegaram” quando o PT chegou ao poder: deixaram-se cooptar e esvaziaram-se de sentido, perdendo credibilidade e adesão em setores da sociedade que costumavam apoiá-los.

Essa parcela da esquerda – que envolve desde pessoas mais velhas, que historicamente apoiaram o PT, e muitos até que ajudaram a construí-lo, mas que se decepcionaram, assim como jovens filhos desse tempo, em que a ação política precisa ganhar horizontalidade e se construir de outra maneira e com múltiplos canais de participação efetiva – não encontrou nenhum candidato que a representasse. No primeiro turno, dividiram seus votos entre os pequenos partidos de esquerda, como o PSOL, ou votaram em Marina Silva, em especial por sua compreensão da questão ambiental como estratégica, num mundo confrontado com a mudança climática, mas votaram com dúvidas. No segundo turno, não se sentiram representados por nenhum dos candidatos.

Marina Silva foi quem chegou mais perto de ser uma figura com estatura nacional de representação desse grupo à esquerda, mais em 2010 do que em 2014. Mas fracassou na construção de uma alternativa realmente nova dentro da política partidária. Em parte por não ter conseguido registrar seu partido a tempo de concorrer às eleições, o que a fez compor com o PSB, sigla bastante complicada para quem a apoiava, e assumir a cabeça de chapa por conta de uma tragédia que nem o mais fatalista poderia prever; em parte por conta da campanha mentirosa e de baixíssimo nível que o PT fez contra ela; em parte por equívocos de sua própria campanha, como a mudança do capítulo do programa em que falava de sua política para os LGBTs, recuo que, além de indigno, só ampliou e acentuou a desconfiança que muitos já tinham com relação à interferência de sua fé evangélica em questões caras como casamento homoafetivo e aborto; em parte porque escolheu ser menos ela mesma e mais uma candidata que supostamente seria palatável para estratos da população que precisava convencer. São muitas e complexas as razões.

O que aconteceu com Marina Silva em 2014 merece uma análise mais profunda. O fato é que, embora ela tenha ganhado, no primeiro turno de 2014, cerca de 2,5 milhões de votos a mais do que em 2010, seu capital político parece ter encolhido, e o partido que está construindo, a Rede Sustentabilidade, já sofreu deserções de peso. Talvez ela ainda tenha chance de recuperar o lugar que quase foi seu, mas não será fácil. Esse é um lugar vago nesse momento.

Há uma parcela politizada, à esquerda, que hoje não se sente representada nem pelo PT nem pelo PSDB, não participou de nenhum dos panelaços nem de nenhuma das duas grandes manifestações dos últimos dias, a de 15 de março várias vezes maior do que a do dia 13. É, porém, muito atuante politicamente em várias áreas e tem grande poder de articulação nas redes sociais. Não tenho como precisar seu tamanho, mas não é desprezível. É com essa parcela de brasileiros, que votou em Lula e no PT por décadas, mas que deixou de votar, ou de jovens que estão em movimentos horizontais apartidários, por causas específicas, que apontam o que de fato deveria preocupar o PT, porque esta era ou poderia ser a sua base, e foi perdida.

A parcela de esquerda que não bateria panelas contra Dilma Rousseff, mas também não a defenderia, aponta a falência do PT em seguir representando o que representou no passado. Aponta que, em algum momento, para muito além do Mensalão e da Lava Jato, o PT escolheu se perder da sua base histórica, numa mistura de pragmatismo com arrogância. É possível que o PT tenha deixado de entender o Brasil. Envelhecido, não da forma desejável, representada por aqueles que continuam curiosos em compreender e acompanhar as mudanças do mundo, mas envelhecido da pior forma, cimentando-se numa conjuntura histórica que já não existe. E que não voltará a existir. Essa aposta arriscada precisa que a economia vá sempre bem; quando vai mal, o chão desaparece.

Fico perplexa quando lideranças petistas, e mesmo Lula, perguntam-se, ainda que retoricamente, por que perderam as ruas. Ora, perderam porque o PT gira em falso. O partido das ruas perdeu as ruas – menos porque foi expulso, mais porque se esqueceu de caminhar por elas. Ou, pior, acreditou que não precisava mais. Nesse contexto, Dilma Rousseff é só a personagem trágica da história, porque em algum momento Lula, com o aval ativo ou omisso de todos os outros, achou que poderia eleger uma presidente que não gosta de fazer política. Estava certo a curto prazo, podia. Mas sempre há o dia seguinte.

Não adianta ficar repetindo que só bateu panela quem é da elite. Pode ter sido maior o barulho nos bairros nobres de São Paulo, por exemplo, mas basta um pequeno esforço de reportagem para constatar que houve batuque de panelas também em bairros das periferias. Ainda que as panelas batessem só nos bairros dos ricos e da classe média, não é um bom caminho desqualificar quem protesta, mesmo que você ou eu não concordemos com a mensagem, com termos como “sacada gourmet” ou “panelas Le Creuset”. Todos têm direito de protestar numa democracia e muitos dos que ridicularizam quem protestou pertencem à mesma classe média e talvez tenham uma ou outra panelinha Le Creuset ou até pagou algumas prestações a mais no apartamento para ter uma sacada gourmet, o que não deveria torná-los menos aptos nem a protestar nem a criticar o protesto.

Nos panelaços, só o que me pareceu inaceitável foi chamar a presidente de “vagabunda” ou de “vaca”, não apenas porque é fundamental respeitar o seu cargo e aqueles que a elegeram, mas também porque não se pode chamar nenhuma mulher dessa maneira. E, principalmente, porque o “vaca” e o “vagabunda” apontam a quebra do pacto civilizatório. É nesses xingamentos, janela a janela, que está colocado o rompimento dos limites, o esgarçamento do laço social. Assim como, no domingo de 15 de março, essa ruptura esteve colocada naqueles que defendiam a volta da ditadura. Não há desculpa para desconhecer que o regime civil militar que dominou o Brasil pela força por 21 anos torturou gente, inclusive crianças, e matou gente. Muita gente. Assim, essa defesa é inconstitucional e criminosa. Com isso, sim, precisamos nos preocupar, em vez de misturar tudo numa desqualificação rasteira. É urgente que a esquerda faça uma crítica (e uma autocrítica) consistente, se quiser ter alguma importância nesse momento agudo do país.

Também não adianta continuar afirmando que quem foi para as ruas é aquela fatia da população que é contra as conquistas sociais promovidas pelo governo Lula, que tirou da miséria milhões de brasileiros e fez com que outros milhões ascendessem ao que se chamou de classe C. Pessoas as quais é preciso respeitar mais pelo seu passado do que pelo seu presente ficaram repetindo na última semana que quem era contra o PT não gostava de pobres nos aeroportos ou estudando nas universidades, entre outras máximas. É fato que existem pessoas incomodadas com a mudança histórica que o PT reconhecidamente fez, mas dizer que toda oposição ao PT e ao Governo é composta por esse tipo de gente, ou é cegueira ou é má fé.

Num momento tão acirrado, todos que têm expressão pública precisam ter muito mais responsabilidade e cuidado para não aumentar ainda mais o clima de ódio – e disseminar preconceitos já se provou um caminho perigoso. Até a negação deve ter limites. E a negação é pior não para esses ricos caricatos, mas para o PT, que já passou da hora de se olhar no espelho com a intenção de se enxergar. De novo, esse discurso sem rastro na realidade apenas gira em falso e piora tudo. Mesmo para a propaganda e para o marketing, há limites para a falsificação da realidade. Se é para fazer publicidade, a boa é aquela capaz de captar os anseios do seu tempo.

É também por isso que me parece que o grande problema para o PT não é quem foi para as ruas no domingo, nem quem bateu panela, mas quem não fez nem uma coisa nem outra, mas também não tem a menor intenção de apoiá-lo, embora já o tenha feito no passado ou teria feito hoje se o PT tivesse respeitado as bandeiras do passado. Estes apontam o que o PT perdeu, o que já não é, o que possivelmente não possa voltar a ser.

O PT traiu algumas de suas bandeiras de identidade, aquelas que fazem com que em seu lugar seja preciso colocar máscaras que não se sustentam por muito tempo. Traiu não apenas por ter aderido à corrupção, que obviamente não foi inventada por ele na política brasileira, fato que não diminui em nada a sua responsabilidade. A sociedade brasileira, como qualquer um que anda por aí sabe, é corrupta da padaria da esquina ao Congresso. Mas ser um partido “ético” era um traço forte da construção concreta e simbólica do PT, era parte do seu rosto, e desmanchou-se. Embora ainda existam pessoas que merecem o máximo respeito no PT, assim como núcleos de resistência em determinadas áreas, secretarias e ministérios, e que precisam ser reconhecidos como tal, o partido traiu causas de base, aquelas que fazem com que se desconheça. Muitos dos que hoje deixaram de militar ou de apoiar o PT o fizeram para serem capazes de continuar defendendo o que o PT acreditava. Assim como compreenderam que o mundo atual exige interpretações mais complexas. Chamar a estes de traidores ou de fazer o jogo da direita é de uma boçalidade assombrosa. Até porque, para estes, o PT é a direita.

A parcela à esquerda que preferiu ficar fora de manifestações a favor ou contra lembra que tão importante quando discutir a corrupção na Petrobras é debater a opção por combustíveis fósseis que a Petrobras representa, num momento em que o mundo precisa reduzir radicalmente suas emissões de gases do efeito estufa. Lembra que estimular a compra de carros como o Governo federal fez é contribuir com o transporte privado individual motorizado, em vez de investir na ampliação do transporte público coletivo, assim como no uso das bicicletas. É também ir na contramão ao piorar as condições ambientais e de mobilidade, que costumam mastigar a vida de milhares de brasileiros confinados por horas em trens e ônibus lotados num trânsito que não anda nas grandes cidades. Lembra ainda que estimular o consumo de energia elétrica, como o Governo fez, é uma irresponsabilidade não só econômica, mas socioambiental, já que os recursos são caros e finitos. Assim como olhar para o colapso da água visando apenas obras emergenciais, mas sem se preocupar com a mudança permanente de paradigma do consumo e sem se preocupar com o desmatamento tanto da floresta amazônica quanto do Cerrado quanto das nascentes do Sudeste e dos últimos redutos sobreviventes de Mata Atlântica fora e dentro das cidades é um erro monumental a médio e a longo prazos.

Os que não bateram panelas contra o PT e que não bateriam a favor lembram que a forma de ver o país (e o mundo) do lulismo pode ser excessivamente limitada para dar conta dos vários Brasis. Povos tradicionais e povos indígenas, por exemplo, não cabem nem na categoria “pobres” nem na categoria “trabalhadores”. Mas, ao fazer grandes hidrelétricas na Amazônia, ao ser o governo de Dilma Rousseff o que menos demarcou terras indígenas, assim como teve desempenho pífio na criação de reservas extrativistas e unidades de conservação, ao condenar os povos tradicionais ao etnocídio ou à expulsão para a periferia das cidades, é em pobres que são convertidos aqueles que nunca se viram nesses termos. Em parte, a construção objetiva e simbólica de Lula – e sua forma de ver o Brasil e o mundo – encarna essa contradição (escrevi sobre isso aqui), que o PT não foi capaz nem quis ser capaz de superar no poder. Em vez de enfrentá-la, livrou-se dos que a apontavam, caso de Marina Silva.

O PT no Governo priorizou um projeto de desenvolvimento predatório, baseado em grandes obras, que deixou toda a complexidade socioambiental de fora. Escolha inadmissível num momento em que a ação do homem como causa do aquecimento global só é descartada por uma minoria de céticos do clima, na qual se inclui o atual ministro de Ciência e Tecnologia, Aldo Rebelo, mais uma das inacreditáveis escolhas de Dilma Rousseff. A síntese das contradições – e também das traições – do PT no poder não é a Petrobras, mas Belo Monte. Sobre a usina hidrelétrica já pesa a denúncia de que só a construtora Camargo Corrêa teria pagado mais de R$ 100 milhões em propinas para o PT e para o PMDB. É para Belo Monte que o país precisaria olhar com muito mais atenção. É na Amazônia, onde o PT reproduziu a visão da ditadura ao olhar para a floresta como um corpo para a exploração, que as fraturas do partido ao chegar ao poder se mostram em toda a sua inteireza. E é também lá que a falácia de que quem critica o PT é porque não gosta de pobre vira uma piada perversa.

A sorte do PT é que a Amazônia é longe para a maioria da população e menos contada pela imprensa do que deveria, ou contada a partir de uma visão de mundo urbana que não reconhece no outro nem a diferença nem o direito de ser diferente. Do contrário, as barbaridades cometidas pelo PT contra os trabalhadores pobres, os povos indígenas e as populações tradicionais, e contra uma floresta estratégica para o clima, para o presente e para o futuro, seriam reconhecidas como o escândalo que de fato são. É também disso que se lembram aqueles que não gritaram contra Dilma Rousseff, mas também não a defenderiam.

Lembram também que o PT não fez a reforma agrária; ficou aquém na saúde e na educação, transformando “Brasil, Pátria Educadora” num slogan natimorto; avançou muito pouco numa política para as drogas que vá além da proibição e da repressão, modelo que encarcera milhares de pequenos traficantes num sistema prisional sobre o qual o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, já disse que “prefere morrer a cumprir pena”; cooptou grande parte dos movimentos sociais (que se deixaram cooptar por conveniência, é importante lembrar); priorizou a inclusão social pelo consumo, não pela cidadania; recuou em questões como o kit anti-homofobia e o aborto; se aliou ao que havia de mais viciado na política brasileira e aos velhos clãs do coronelismo, como os Sarney.

Isso é tão ou mais importante do que a corrupção, sobre a qual sempre se pode dizer que começou bem antes e atravessa a maioria dos partidos, o que também é verdade. Olhar com honestidade para esse cenário depois de mais de 12 anos de governo petista não significa deixar de reconhecer os enormes avanços que o PT no poder também representou. Mas os avanços não podem anular nem as traições, nem os retrocessos, nem as omissões, nem os erros. É preciso enfrentar a complexidade, por toda as razões e porque ela diz também sobre a falência do sistema político no qual o país está atolado, para muito além de um partido e de um mandato.

Há algo que o PT sequestrou de pelo menos duas gerações de esquerda e é essa a sua herança mais maldita. E a que vai marcar décadas, não um mandato. Tenho entrevistado pessoas que ajudaram a construir o PT, que fizeram dessa construção um projeto de vida, concentradas em lutas específicas. Essas pessoas se sentem traídas porque o partido rasgou suas causas e se colocou ao lado de seus algozes. Mas não traídas como alguém de 30 anos pode se sentir traído em seus últimos votos. Este tem tempo para construir um projeto a partir das novas experiências de participação política que se abrem nesse momento histórico muito particular. Os mais velhos, os que estiveram lá na fundação, não. Estes sentem-se traídos como alguém que não tem outra vida para construir e acreditar num novo projeto. É algo profundo e também brutal, é a própria vida que passa a girar em falso, e justamente no momento mais crucial dela, que é perto do fim ou pelo menos nas suas últimas décadas. É um fracasso também pessoal, o que suas palavras expressam é um testemunho de aniquilação. Algumas dessas pessoas choraram neste domingo, dentro de casa, ao assistir pela TV o PT perder as ruas, como se diante de um tipo de morte.

O PT, ao trair alguns de seus ideias mais caros, escavou um buraco no Brasil. Um bem grande, que ainda levará tempo para virar marca. Não adianta dizer que outros partidos se corromperam, que outros partidos recuaram, que outros partidos se aliaram a velhas e viciadas raposas políticas. É verdade. Mas o PT tinha um lugar único no espectro partidário da redemocratização, ocupava um imaginário muito particular num momento em que se precisava construir novos sentidos para o Brasil. Era o partido “diferente”. Quem acreditou no PT esperou muito mais dele, o que explica o tamanho da dor daqueles que se desfiliaram ou deixaram de militar no partido. A decepção é sempre proporcional à esperança que se tinha depositado naquele que nos decepciona.

É essa herança que precisamos entender melhor, para compreender qual é a profundidade do seu impacto no país. E também para pensar em como esse vácuo pode ser ocupado, possivelmente não mais por um partido, pelo menos não um nos moldes tradicionais. Como se sabe, o vácuo não se mantém. Quem acredita em bandeiras que o PT já teve precisa parar de brigar entre si – assim como de desqualificar todos os outros como “coxinhas” – e encontrar caminhos para ocupar esse espaço, porque o momento é limite. O PT deve à sociedade brasileira um ajuste de contas consigo mesmo, porque o discurso dos pobres contra ricos já virou fumaça. Não dá para continuar desconectado com a realidade, que é só uma forma estúpida de negação.

Para o PT, a herança mais maldita que carrega é o silêncio daqueles que um dia o apoiaram, no momento em que perde as ruas de forma apoteótica. O PT precisa acordar, sim. Mas a esquerda também.

(Publicado no El País em 16/03/2015)

A boçalidade do mal

Amigos

         Na minha coluna no El País, penso sobre o episódio da hostilização do ex-ministro Guido Mantega e Eliane Berger a partir da experiência da internet – e de seus efeitos sobre as nossas relações cotidianas e sobre a violência histórica da sociedade brasileira, fundada sobre a eliminação do diferente:

  Em 19 de fevereiro, Guido Mantega, ex-ministro da Fazenda dos governos de Lula e de Dilma Rousseff, estava na lanchonete do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, quando foi hostilizado por uma mulher, com o apoio de outras pessoas ao redor. Os gritos: “Vá pro SUS!”. Entre eles, “safado” e “fdp”. Mantega era acompanhado por sua esposa, Eliane Berger, psicanalista. Ela faz um longo tratamento contra o câncer no hospital, mas o casal estava ali para visitar um amigo. O episódio se tornou público na semana passada, quando um vídeo mostrando a cena foi divulgado no YouTube.

Entre as várias questões importantes sobre o momento atual do Brasil – mas não só do Brasil – que o episódio suscita, esta me parece particularmente interessante:

“Que passo é esse que se dá entre a discordância com relação à política econômica e a impossibilidade de sustentar o lugar do outro no espaço público?”.

A pergunta consta de uma carta escrita pelo Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública (MPASP), que encontrou na cena vivida por Guido e Eliane ecos do período que antecedeu a Segunda Guerra, na Alemanha nazista, quando se iniciou a construção de um clima de intolerância contra judeus, assim como contra ciganos, homossexuais e pessoas com deficiências mentais e/ou físicas. O desfecho todos conhecem. Em apoio a Guido e Eliane, mas também pela valorização do Sistema Único de Saúde (SUS), que atende milhões de brasileiros, o MPASP lançou a hashtag #VamosTodosProSUS.

Pode-se aqui fazer a ressalva de que a discordância vai muito além da política econômica e que o ex-ministro petista encarnaria na lanchonete de um dos hospitais privados mais caros do país algo bem mais complexo. Mas a pergunta olha para um ponto preciso do cotidiano atual do Brasil: em que momento a opinião ou a ação ou as escolhas do outro, da qual divergimos, se transforma numa impossibilidade de suportar que o outro exista? E, assim, é preciso eliminá-lo, seja expulsando-o do lugar, como no caso de Guido e Eliane, seja eliminando sua própria existência – simbólica, como em alguns projetos de lei que tramitam no Congresso, visando suprimir direitos fundamentais dos povos indígenas ou de outras minorias; física, como nos crimes de assassinato por homofobia ou preconceito racial.

O que significa, afinal, esse passo a mais, o limite ultrapassado, que tem sido chamado de “espiral de ódio” ou “espiral de intolerância”, num país supostamente dividido (e o supostamente aqui não é um penduricalho)? De que matéria é feita essa fronteira rompida?

(continue lendo aqui...)

 

Aqui, alguns destaques do texto:

A descoberta de que aquele vizinho simpático com quem trocávamos amenidades no elevador defende o linchamento de homossexuais tem um impacto profundo

Ao permitir que cada indivíduo se mostrasse sem máscaras, a internet arrancou da humanidade a ilusão sobre si mesma

Finalmente era possível “dizer tudo”, e isso passou a ser confundido com autenticidade e liberdade

O outro, se não for um clone, só existe como inimigo

 

Leia o texto inteiro aqui.  

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