ECA do B

Diante da naturalização do horror, tentei um outro caminho.

herinaldos

Para que criança vai correr, me diz? Não tem nada que correr. Onze anos de idade e correndo? Vai trabalhar! O policial se assusta com aquele corpinho escuro e mirrado vindo na sua direção e atira. Pronto, a bala acha. Aconteceu agora, na semana passada, com o Herinaldo. Peraí, preciso rir um pouco. Ah, onde esses pobres acham esses nomes? Herinaldo, vê bem se alguém tem futuro com um nome desses. O Herinaldo correu, levou bala. Bum, um tiro no peito. Dizem que estava indo comprar uma bolinha de pingue-pongue. Sei! Desde quando preto sabe jogar pingue-pongue? Tava era indo comprar fumo na boca. Ou era aviãozinho. E eraviadinho o moleque. Em vez de lidar com a situação como homem, ficou gritando: “Quero a minha mãe!”. Afe. O que importa é que por causa dessa falta de atenção do Herinaldo, meu SUV ficou parado no trânsito. Favelado adora trancar rua, deve ser por inveja de quem tem carro. Em vez de ensinarem aos seus abortos que criança pobre não pode correr, fazem protesto. Brasileiro é muito subdesenvolvido, mesmo. Eita país que não vai pra frente. Por sorte a PM distribuiu umas bombas de gás e botou a macacada pra correr. Deu pra chegar pro jantar a tempo, mas foi por pouco. E a Rosinete faz uma comida muito boa, essa é uma negra de alma branca, praticamente da família. Depois vi no Balanço Geral o apresentador entrevistando a mãe do estropício. O jornalista foi na veia mesmo. Onde a senhora tava quando aconteceu? A mulher disse que tava cuidando de um idoso, vê bem. Em vez de cuidar do filho, mantê-lo em casa, tava batendo perna na casa dos outros. Disse que trabalhando, mas vá saber o que essa gente anda fazendo! Depois o repórter perguntou se o Herinaldo era metido com tráfico. A mãe negou, mas na cara que era. Se não fosse, tava correndo por quê? Por acaso criança de 11 anos corre na rua?

Está aqui.

Reprodução/Arquivo Pessoal

Reprodução/Arquivo Pessoal

ECA do B

As crianças negras e pobres do Brasil só são achadas por bala perdida porque não sabem ler o verdadeiro Estatuto da Criança e do Adolescente

Se as crianças negras e pobres tivessem aprendido a ler, não ficariam interrompendo o tráfego com seus corpinhos escuros. Mas vão para escolas públicas bem equipadas, em prédios planejados, cercados por jardins e quadras de esporte, com professores bem pagos e preparados, em tempo integral, alimentadas com comida nutritiva e balanceada, e nem assim conseguem ler direito. Só desperdiçam os impostos pagos por pessoas de bem, como eu. Preferem ficar em seus barracos sufocantes, em ruas esburacadas e sem árvores, por mau gosto. Impressionante o mau gosto das crianças pobres e negras, uma coisa que vem de berço, mesmo, basta ver como se vestem mal. Por isso, não compreendem o Estatuto da Criança e do Adolescente. Não a bobajada aprovada nos anos 90, por aquele monte de babacas que ficam choramingando até hoje porque a ditadura torturou e matou uns milhares de comunistas. Matou foi pouco! Estou falando do verdadeiro Estatuto da Criança e do Adolescente, o que não foi feito por gente que ficou desperdiçando anos estudando para proteger direitos humanos de bandidinhos. Como se crianças negras e pobres fossem humanas! Estou falando do ECA que vale, o das ruas, a lei na prática, mesmo. O outro, o oficial, é só pra botar na biblioteca daqueles intelectualoides de esquerda, pra encherem aquela boca mole de porcaria politicamente correta e se exibirem em reunião da ONU. Se os moleques soubessem ler e soubessem o seu lugar, estariam aí, vivos, pra ficar chapinhando no esgoto, como gostam. Como não tenho estômago pra sujeira na via pública, resolvi sistematizar a lei em vigor e fazer o manual de 2015, versão atualizada, para ver se param de emporcalhar o chão com seus miolos. Uma coisa bem didática, bem simples, pra que mesmo uma raça inferior consiga entender. Vou botar nome em cada uma delas, pra ver se fica mais fácil de entrar nessas cabecinhas cheias de maconha. Tipo, lembra do caso, associa com a lei, não faz merda, tudo resolvido. Como no ano que vem tem Olimpíada e não quero que os gringos pensem que aqui não tem lei, me restringi ao Rio de Janeiro. Se cada um fizer a sua parte pra higienizar a cidade, o Brasil ainda pode brilhar:

1) Lei Herinaldo: criança preta não pode correr na rua

Para que criança vai correr, me diz? Não tem nada que correr. Onze anos de idade e correndo? Vai trabalhar! O policial se assusta com aquele corpinho escuro e mirrado vindo na sua direção e atira. Pronto, a bala acha. Aconteceu agora, na semana passada, com o Herinaldo. Peraí, preciso rir um pouco. Ah, onde esses pobres acham esses nomes? Herinaldo, vê bem se alguém tem futuro com um nome desses. O Herinaldo correu, levou bala. Bum, um tiro no peito. Dizem que estava indo comprar uma bolinha de pingue-pongue. Sei! Desde quando preto sabe jogar pingue-pongue? Tava era indo comprar fumo na boca. Ou era aviãozinho. E era viadinho o moleque. Em vez de lidar com a situação como homem, ficou gritando: “Quero a minha mãe!”. Afe. O que importa é que por causa dessa falta de atenção do Herinaldo, meu SUV ficou parado no trânsito. Favelado adora trancar rua, deve ser por inveja de quem tem carro. Em vez de ensinarem aos seus abortos que criança pobre não pode correr, fazem protesto. Brasileiro é muito subdesenvolvido, mesmo. Eita país que não vai pra frente. Por sorte a PM distribuiu umas bombas de gás e botou a macacada pra correr. Deu pra chegar pro jantar a tempo, mas foi por pouco. E a Rosinete faz uma comida muito boa, essa é uma negra de alma branca, praticamente da família. Depois vi no Balanço Geral o apresentador entrevistando a mãe do estropício. O jornalista foi na veia mesmo. Onde a senhora tava quando aconteceu? A mulher disse que tava cuidando de um idoso, vê bem. Em vez de cuidar do filho, mantê-lo em casa, tava batendo perna na casa dos outros. Disse que trabalhando, mas vá saber o que essa gente anda fazendo! Depois o repórter perguntou se o Herinaldo era metido com tráfico. A mãe negou, mas na cara que era. Se não fosse, tava correndo por quê? Por acaso criança de 11 anos corre na rua?

Uso: a aplicação mais recente da lei número 1 do ECA do B ocorreu em 23 de Setembro de 2015. Herinaldo Vinicius Santana, de 11 anos, levou um tiro no peito, no Caju, zona portuária do Rio de Janeiro.

Tá com pena? Leva pra casa!

2) Lei Cristian: adolescente preto não pode jogar futebol

Para que jogar futebol? Vê bem o que um sonso desses têm na cabeça. Se o moleque tem 13 anos e mora num favelão cheio de traficantes, vai fazer o quê? Jogar futebol? Não! Vai ficar trancado no barraco, sei lá, vendo Netflix na TV ou jogando no tablet, já que não gosta de estudar. Não se gabaram tanto que viraram Classe C, comprando TV de tela plana bem grande? Então, aproveita. Faz 40 graus dentro de casa? Toma um banho de hidromassagem pra baixar os hormônios! Mas não, o projeto de bandido pensa que é o Neymar e vai lá jogar futebol. Desde quando moleque joga futebol no Brasil? Aí a polícia tá lá, fazendo o seu serviço, atrás de um animal que tinha matado um PM, um pai de família, um trabalhador, e uma bala acaba achando o moleque. É culpa de quem? Da polícia? Só na cabeça de bagre desses direitos humanos. Se o moleque tivesse trabalhando numa hora dessas, não tinha acontecido nada. Mas não, tava lá, jogando futebol, antes do meio-dia. Tem deputado de esquerda aí dizendo que quando ouviu os tiros o moleque até parou pra ajudar uma idosa a se proteger. Ah, tá, agora virou santo. O fato é: como é que a polícia vai botar ordem na bagaça com esses vagabundos no meio do caminho? E a mãe do moleque? Fazendo teatro no enterro: “Meu filho, acorda, meu filho, acorda…”. Patético, por acaso a mulher não consegue juntar o tico e o teco e perceber que aquele ali já tava no inferno? É só um, pra que tanto escândalo? Do jeito que é esse povo deve ter mais uns 13 pretinhos em casa, tudo da mesma laia, que é pra ter bastante Bolsa Família. Mas aí a pobraiada protesta, mais confusão. Aquela Anistia Internacional, que deveria estar lá na Síria, cuidando daqueles meninos branquinhos, faz nota falando em “lógica de guerra”. Que guerra? É lei. ECA do B pra limpar o Brasil! Jogou futebol em hora errada, a bala acha. Simples assim. Quer que eu desenhe?

Uso: a aplicação conhecida mais recente da lei número 2 do ECA do B foi em 8 de Setembro de 2015. Cristian Soares Andrade, de 13 anos, foi baleado e morto na região de Manguinhos, no Rio de Janeiro.

Tá com pena? Leva pra casa!

3) Lei Jesus: criança pobre não pode ficar sentada na frente de casa

O que é que um moleque de 10 anos tem na cabeça pra se sentar no batente da porta de casa se mora numa das favelas do Complexo do Alemão? Não, sério, me diz. Nada, não tem nada na cabeça. Ou melhor, não tinha. Agora tem uma bala. Os policiais lá, fazendo o seu trabalho, que é matar bandido, e o moleque lá, atrapalhando a operação. Aí a mãe, mais uma tipinha daquelas, começa a berrar com o policial. Se a mulher fica fazendo arruaça, o agente da lei tem mesmo é de apontar a arma pra ela. Vai aguentar calado, que nem mulherzinha? Aí a vagabunda grita: “Pode me matar! Pode me matar que você já acabou com a minha vida!”. Mulher é um bicho histérico mesmo, né? E essas aí, de favela, então, bem mostram que nasceram no esgoto. Sou eu, que tenho cabeça quente, já dou logo um tiro e aproveito pra enterrar mãe e filho na mesma cova, que o cemitério já não tá dando mais conta daquela plantação de pretos a meio palmo do chão. Se aquela uma não estivesse aboletada no sofá vendo televisão, tinha reparado que o filho tava sentado onde não devia. Ou porta de casa é lugar de uma criança se sentar pra brincar? Mas não, tá lá, distraída com novela ou alguma outra bobagem, e depois faz aquela choradeira. “Quando eu vi, uma parte do crânio do meu filho tava na sala”. Se tivesse cuidado, não estaria, simples assim. Disse que trabalha como doméstica…. Tava fazendo o que em casa num final de tarde, então? E mais pobre interrompendo o trânsito pra fazer protesto. Mais direitos humanos enchendo o saco. Esse país tá ficando inviável. Se eu não fosse tão patriota, ia logo pra Miami e até votava no Donald Trump, um homem que vai botar as coisas no lugar depois de desinfetar a Casa Branca daquela negrada. Mas, não, sou do Brasil, com muito orgulho, e vou fazer a minha parte pra varrer essa pretaiada daqui. Sem contar que, e eu não tenho medo de dizer, eu falo a verdade mesmo, na cara de quem precisar: se esse moleque não tivesse levado um tiro, mais dois anos e já era bandido. A mãe falou que queria ser bombeiro. Aham. Dois anos no máximo e já era aviãozinho. Se ia morrer de qualquer jeito, pelo menos morreu sem ter feito mal pra nenhum cidadão de bem. Nesse caso não é bala perdida nem achada: é bala preventiva.

Uso: A última aplicação conhecida da lei número 3 do ECA do B ocorreu em 2 de abril de 2015. Eduardo de Jesus Ferreira, de 10 anos, foi baleado na cabeça, na porta da sua casa, no conjunto de favelas do Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro.

Tá com pena? Leva pra casa!

4) Lei Alan: adolescente pobre não pode brincar com celular

Esse aí é outro caso de óbvio ululante. Mas como a gente precisa explicar tudo, vamos lá. Três moleques brincando com um celular numa favela, em cima de bicicletas. O que um policial pensa? Tão fazendo coisa errada, claro. Com certeza as bicicletas são roubadas e o celular também. Aí um deles corre. O que um policial bom faz? Atira, claro. E não vai atirar pra aleijar, que não é um homem cruel, atira logo pra matar, que o Estado não tá podendo arcar com tanto benefício por invalidez assim. Aliás, é o sonho dessa gente. Ter um filho aleijado pela polícia pra ficar mamando nas tetas do Estado sem precisar trabalhar. Aí o moleque cai. O policial, bem educado, pergunta pro amigo que ficou vivo: “Por que vocês estavam correndo?”. O moleque, um desses vendedores de chá mate que ficam assediando os turistas na praia, diz: “A gente tava brincando, senhor”. Pronto, os direitos humanos fazem um escarcéu com essa frase, vai até parar em jornal estrangeiro. Por isso que não pode ter celular na mão de preto. Começam a se achar gente e ficam gravando tudo. Tou aqui, pensando se não é melhor fazer logo um parágrafo extra pra essa lei, proibindo preto e pobre de usar celular. A ver.

Uso: A última aplicação conhecida da lei número 4 do ECA do B ocorreu em 20 de fevereiro de 2015. Alan de Souza Lima, de 15 anos, foi morto pela polícia na favela da Palmeirinha, em Honório Gurgel, subúrbio do Rio de Janeiro.

Tá com pena? Leva pra casa!

5) Lei de Circulação de PP: Pobre e Preto de menor não pode pegar ônibus para ir às praias da Zona Sul

Nessa aí nem botei um nome, porque os marginalzinhos são tantos que a lista ia ter quilômetros. Quem gosta de lei comprida é intelectual. O ECA do B é simples, branco no preto. Em cima do preto! Qualquer mané consegue entender. O cara entra num ônibus com nenhum dinheiro no bolso, mal vestido ou até sem camisa, o que calor nenhum justifica, lá na PQP onde ele mora, e quer ir pras praias da Zona Sul do Rio de Janeiro. Vai fazer o que lá? Arrastão, obviamente. Aí vem aquele papinho de que é uma minoria que faz arrastão, que o resto da pretaiada só quer se divertir na praia. Tenha dó. Mesmo que seja, como vai saber? Não dizem sempre que tem de prevenir o crime? Então, taí. Se não é a polícia, é pessoa de bem como eu que tem de fazer a justiça valer. Levo filho, sobrinho, tudo uns meninos fortes, de academia, menino bom, e tiro essa molecada pelo pescoço de dentro do coletivo. Jogamos tudo lá, de volta à cloaca de onde nunca deveriam ter saído. Depois tomamos um banho de álcool zulu pra descontaminar. O que é que preto tem pra fazer no Leblon, Ipanema, Copacabana, me diga? Nada! No máximo vender um coco, um biscoito Globo, mas assim, controlado, número restrito. Vai querer tomar banho de mar, jogar um vôlei, curtir? É muita falta de ferro no lombo. Desde quando a senzala pega praia? Mesmo que os moleques não assaltem, vão estragar o cartão-postal do Rio com aquelas caras achatadas. Gringo vem aqui gastar seus dólares pra ver garota de Ipanema, loirinha, olho azul. E as mulatas lá naquele outro lugar que a gente sabe bem onde é e pra que serve. Se cada um soubesse o seu lugar, aliás, tava tudo resolvido. O problema do Brasil hoje é que as criaturas não sabem mais o seu lugar. Mas a gente explica pra elas, bem direitinho, numa chave de pescoço, colaborando com o trabalho da polícia, que já não dá mais conta de tanto pobre querendo pegar praia. Preto sai, branco fica. Inverti o nome daquele filme! Pessoalmente, inclusive, eu faria um parágrafo único aqui nesta lei número 5: ônibus pra pobre sair da favela só se for pra trabalhar. O cara mostra a carteira de trabalho registrada pra um policial, na porta do 474, e pode embarcar, com carimbo pra sair e carimbo pra voltar, assinado pelo patrão. Horário determinado, tudo ali certinho, na ponta do lápis, como se diz. Fora daí, se o negão for pego zanzando na Zona Sul, cadeia nele. Nessa aí preciso tirar o chapéu pros paulistas. Não gosto muito de paulista, mas eles sabem fazer as coisas direito quando querem. Não teve lá aquele, como é o nome mesmo? Ah, sim, Rolezinho, só preto pra inventar um nome tão idiota. Então. A ralé queria passear no shopping. E em bando, como se fosse moda adolescente andar em grupo. Polícia neles! Mais de três moleques pretos num shopping é assalto e pronto. Volta pra favela! Vai querer usar grife? Te enxerga, mané! Não tem grife que limpe a tua cara preta, não tem tênis de marca que te faça ficar igual a nós. Repressão neles e tudo resolvido. No Rio o povo de bem também sabe resolver as coisas, esse final de semana foi uma beleza. Revista na pobraiada!

Uso: a mais recente aplicação da Lei de Circulação de PP foi nesse último final de semana, mas pode estar sendo usada agora mesmo. Lei que brasileiro concorda é que nem gripe, pega na hora e se espalha.

Tá com pena? Leva pra casa!

E aqui encerro o ECA do B, um conjunto de cinco leis simples, claras e objetivas. Espero ter colaborado para tranquilizar os turistas que virão para a Olimpíada 2016 ver nossas belezas, conhecer o nosso povo cordial e as maravilhas da nossa terra alegre e hospitaleira. Como é mesmo o lema da Olimpíada mesmo? “Somos Todos Brasil!!!” Uhú!

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O texto acima foi escrito a partir dos fatos reais ocorridos neste ano no Rio de Janeiro e de uma pesquisa sobre os comentários postados nos sites e redes sociais sobre esses fatos, por aqueles que se apresentavam como “cidadãos de bem” ou termos similares. Criar esse texto na primeira pessoa, juntando numa só voz os principais argumentos em circulação, foi uma tentativa de tornar esse discurso de ódio visível. Não da forma habitual, já banalizada, mas a partir do seu deslocamento para um lugar onde ele é estranho. E, assim, produzir estranhamento e incômodo.

Ao deslocar esse discurso de ódio, colocando-o neste espaço, talvez se torne mais difícil banalizar o horror que sai da boca de brasileiros nas ruas virtuais e reais, com espantosa facilidade. Também fica mais complicado aceitar como liberdade de expressão um discurso que legitima um Estado que age acima da Lei, ao criminalizar pobres e negros, naturalizando as suas mortes e a violação de seus direitos pelas forças de segurança pública que também deveriam protegê-los. Enquanto o Estatuto da Criança e do Adolescente é a legislação criticada por setores da sociedade e nunca implementada por completo, o ECA do B é a lei não escrita, mas entranhada no sistema e assumida pelas polícias e por parte da população, a lei fora da lei que rege a prática cotidiana do país.

Dizem que anunciar a ironia estraga a ironia. Até um tempo atrás, eu concordaria de imediato com essa afirmação. Não mais. Hoje, é preciso avisar, porque como já aconteceu com outros colunistas, há quem se identifique tanto com esse discurso que vai fazer dele uma leitura literal e acreditar que eu finalmente “vi a luz”. Para essas pessoas, assim como para seus pares, o que é denúncia se converterá em defesa do ódio e do racismo e do linchamento e da execução. E assim será replicada. Não posso correr esse risco em tempos tão agudos. Usando os instrumentos da ironia e da paródia, busco denunciar quem acredita nesse discurso e o dissemina. Se você se identificou com o texto, é também você que estou denunciando. E talvez uma das frases seja a reprodução de um dos seus comentários na internet. Neste caso, espero que tenha restado algo vivo em você para que tenha a chance de se envergonhar.
Esses quatro meninos foram assassinados no Rio de Janeiro só neste ano de 2015: correndo, brincando, jogando futebol, sentado na porta da casa. E estes foram apenas os que viraram notícia na imprensa. Herinaldo, Alan, Cristian, Jesus. A imagem do corpinho do menino sírio carregado para a praia pelas ondas do Mediterrâneo obrigou a Europa a enxergar a tragédia daqueles que fugiam da guerra em busca de refúgio. E, ao enxergar, comprometer-se com essa dor. Implicar-se. O choque de humanidade teve impacto político.

A imagem do corpo arrebentado à bala de Herinaldo, Christian, Jesus e Alan, porém, parece não ter força para impedir a continuidade do genocídio das crianças e jovens negros e pobres no Brasil. Seus corpos são esvaziados de humanidade e viram objetos, restos cotidianos que já não provocam espanto, para além dos mesmos de sempre. No máximo protestos das comunidades, recebidos a bombas de gás pela polícia e com demonstrações de irritação pelos motoristas, que não querem corpos de criança atrapalhando o tráfego.

Fico pensando: em que praia os pequenos corpos desses brasileiros precisam chegar para serem vistos? Nas praias da Zona Sul carioca já sei que não adianta.

 

(Publicado no El País em 28 de setembro de 2015)

 

Para ser escutado, João quer se matar em sacrifício

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte (FOTOS DE LILO CLARETO)

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte (FOTOS DE LILO CLARETO)

O Brasil tem vítimas de guerra, refugiados do próprio Brasil. E sua dor é maior porque não reconhecida. Nesta minha última viagem para o Xingu encontrei pessoas traumatizadas, incapazes de reinventar uma vida se não forem escutadas. “O buraco, o buraco”, diz João. É uma vítima de catástrofe.

Não é mais uma história dramática entre tantas do Brasil. É a história de um país que chegou ao presente, depois de tanto ser futuro, e se descobriu atolado no passado. O epílogo de um partido que chegou ao poder com a promessa de dar dignidade aos mais pobres e aos mais desprotegidos e os traiu na porção mais distante do centro do poder político e econômico, a Amazônia. Esta é também a anatomia de uma perversão: a de viver numa democracia formal, mas submetido a forças acima da Lei.

João e Raimunda dão sua versão da história do Brasil.

João e Raimunda (FOTOS DE LILO CLARETO)

Leia a reportagem especial no El País.

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Vítimas de uma guerra amazônica

Expulsos por Belo Monte, Raimunda e João tornam-se refugiados em seu próprio país

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte/ Fotos: Lilo Clareto

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte/ Fotos: Lilo Clareto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A saga de João e Raimunda tem seu ápice em dois atos de uma guerra amazônica não reconhecida pelo Estado e pela maioria dos brasileiros. Ainda assim, ela está lá. Aqui. Essa história, decidida neste momento no Pará, na região de Altamira e da bacia de um dos rios mais ricos em biodiversidade da Amazônia, o Xingu, é contada por um homem e por uma mulher, apenas dois entre dezenas de milhares de expulsos pela hidrelétrica de Belo Monte, gente que hoje vaga por um território que não reconhece – e no qual não se reconhece. Mas esta não é mais uma entre tantas narrativas dramáticas em um país assinalado pela violação sistemática dos direitos de negros e de indígenas. Raimunda e João trazem inscritos no corpo uma encruzilhada histórica. A de um país que chegou ao presente, depois de tanto ser futuro, e se descobriu atolado no passado. O epílogo de um partido que chegou ao poder com a promessa de dar dignidade aos mais pobres e aos mais desprotegidos e os traiu na porção mais distante do centro do poder político e econômico, a Amazônia. Esta é também a anatomia de uma perversão: a de viver numa democracia formal, mas submetido a forças acima da Lei. O não reconhecimento da violência sofrida inflige a suas vítimas uma dor ainda maior, e uma sensação de irrealidade que as violenta uma segunda vez. É a experiência de viver não fora da lei, mas sem lei que escava a existência de Raimunda e de João – e os faz escolher destinos diferentes diante da aniquilação.

Raimunda decidiu viver, ainda que carregando seus pedaços. João não sabe como viver. Para ele, só há sentido na morte em sacrifício.

Neste momento, João e Raimunda vivem esse impasse.

Enquanto isso, a Norte Energia espera apenas que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) dê a Licença de Operação da hidrelétrica, mesmo sem que a empresa tenha cumprido as medidas de redução e compensação do impacto, para começar a encher o lago de Belo Monte.

O terceiro ato ainda é uma incerteza.

Raimunda Gomes da Silva e João Pereira da Silva

Raimunda Gomes da Silva e João Pereira da Silva

Ato 1: João perde a fala e trava as pernas para não matar

Segunda-feira, 23 de março de 2015. João Pereira da Silva estava diante do preposto da Norte Energia, a empresa que venceu o leilão de Belo Monte, apresentada como uma das três maiores hidrelétricas do mundo. Ele esperava receber um valor justo pela sua casa, roça e demais benfeitorias, na ilha da qual era expulso pela barragem. Em vez disso, impuseram-lhe o valor de 23 mil reais, insuficiente para comprar uma terra onde pudesse voltar a plantar, pescar e extrair os frutos da floresta para ganhar o sustento. João percebeu ali que estava condenado à miséria, aos 63 anos. E que, para ele, a Lei não valia. Desde os oito anos de idade ele peregrinara por vários Brasis em busca de uma terra sem dono, arrancando cada dia da força dos braços. Depois de um percurso de faltas, João acreditou ter encontrado uma casa e uma existência sem fome na ilha do Xingu. E agora arrancavam-no também dali. João sentiu que era a vida que lhe roubavam, e que ele já não tinha mais juventude nem saúde para recomeçar. Para João, já não haveria uma última fronteira, a esperança de todos os brasileiros sem lugar. Acabavam de lhe tirar tudo, e também o sentido. Para ele, o passado-presente-futuro fora reduzido a um tempo só, que se repetia.

João quis matar o homem na sua frente. Matar não como uma vingança, é preciso compreender. Matar como um sacrifício.

– Se eu fizesse um dano com um grande, um grande lá de dentro, talvez melhorasse para os outros. Eu sacrificava a minha vida, mas a dos outros melhorava. Se eu pudesse, eu passaria por dentro do maior chefe dessa firma, passaria por dentro umas duzentas vezes. E não tenho medo de dizer. Eu era muito satisfeito de fazer isso, mesmo que na mesma hora minha vida se acabasse.

João não conseguiu fazer o gesto. O desejo de matar não virou movimento. João descobriu ali que matar não era um ato possível para ele. As pernas travaram, a fala travou. João imobilizou-se por inteiro para não matar aquele que encarnava a obra que acabava de matá-lo. Sacrificou a si mesmo. Teve de ser carregado pela mulher, Raimunda, e por uma das filhas, para fora do escritório da Norte Energia.

– Eu perdi… Chegou um ponto de eu perder a fala. Perdi tudo. Ficava só espumando. E o nervo travou tudo. Travar de não poder andar. Hoje eu ando um pouco, mas minhas pernas doem, e incham. Minha senhora, não é fácil, ter tanta raiva que trava o corpo.

Desde então, João é um homem traumatizado. Não no sentido banal que a palavra “trauma” ganhou ao se popularizar, mas no sentido do “trauma” como aquilo que não é possível simbolizar, do buraco que não vira marca. Sem saber para onde ir nem onde está, João só consegue andar uns poucos passos e logo precisa sentar-se num banquinho. Quando sai, perde-se porque já não reconhece o território. João tornou-se um desterrado de tudo e também de si. Dias atrás um amigo ligou para Raimunda: “Seu João está sentado no meio do nada, debaixo do sol. Vai morrer ali”. Raimunda pediu a uma das sete filhas para resgatá-lo.

E se, em vez de paralisar, João tivesse conseguido falar naquele dia, o que teria dito?

– Muié, eu teria dito muita coisa. A primeira delas é que o país brasileiro não tem justiça.

João faz uma pausa antes de esclarecer:

– Muié, você tem que entender uma coisa. Não era falar, era fazer. Eu tenho nojo desse pessoal. Que Deus me perdoe, mas eu tenho nojo.

Sem palavra e sem ato, João é uma vítima de catástrofe. E torna-se vítima duas vezes, porque essa catástrofe não é reconhecida pelo seu país. Assim, João também torna-se um sem país, na abissal condição de sentir-se dentro e fora ao mesmo tempo, atingido por uma lei não escrita, ignorado pela lei que deveria inscrevê-lo na trama da cidadania. Para referir-se ao Brasil, a expressão mais frequente de João é “o país brasileiro”. Nessa escolha de linguagem, o Brasil é um corpo ao qual ele não pertence. E, assim, João é condenado como pária.

– Cheguei a dizer e digo. Digo pra Dilma, digo pra Deus, pro Satanás e para qualquer cão que aparecer, que a justiça do país brasileiro é dinheiro. Se Jesus bater aqui, nesse país, os altos empresários catam ele e compram ele. E, se ele se abestalhar, é vendido. Entendeu?

João repete a interrogação “entendeu” muitas vezes. Depois de escutá-lo por algum tempo percebe-se que não é uma bengala de linguagem, como se poderia supor, mas sua certeza de não ser compreendido.

Ato 2: Raimunda descobre que sua casa virou cinzas

Terça-feira, 1 de setembro de 2015. Raimunda Gomes da Silva, 56 anos, chamou um conhecido, comprou dez litros de gasolina para a viagem no rio e fez “um rancho e um frito” para comer no caminho de sua ilha, a Barriguda, no lugar batizado de Furo do Pau Rolado. Partiram às 5 horas da manhã. Um dia antes, na segunda-feira, haviam ligado da Norte Energia: “Dona Raimunda, quando nós podemos tirar os seus resíduos lá da ilha?”. “Resíduos” eram as posses de cozinha e de pesca de Raimunda. Ficou combinado que ela retiraria seus pertences na terça-feira cedo. Depois de duas horas e meia de rio, Raimunda alcançou a sua ilha.

Sua casa, feita de acapu, madeira resistente, ainda queimava.

– Você sabe que, pra te falar a verdade, amiga, eu desci do barco e não senti o solo. Eu não senti o chão no pé, porque aquilo me deu um branco. Ali, na hora, eu não sei o que senti. Porque, quando eu vi de longe, eu não achei que tinha… Quando nós chegamos lá, que eu vi minha casa queimada, eu desci, subi a barreira, sentei, e me apagou, branqueou, eu não sei. Não sei nem lhe falar o que eu sei, o que eu senti, não sei, porque eu não senti nada… Eu fiquei anestesiada do que vi. Porque, como que eles ligam pra eu tirar o que é meu e queimam a casa toda um dia antes? Fiquei parada, pensando na vida, só, viu. Que mundo é esse que a gente vive?

belo monte 3

A Norte Energia não considerava a casa de Raimunda uma casa. Disseram a ela que era um tapiri. Raimunda retrucou: “Na sua linguagem ela pode ser tudo isso aí. Mas, na minha, é minha casa. E eu me sentia bem nela, viu?”. Quando encontrou a casa em cinzas, Raimunda sentou-se na beira do rio.

– Eu nunca imaginei que eles iam tocar fogo. Se eu for tocar fogo no escritório deles, fico presa pro resto da vida. Eles botam fogo na minha casa e não acontece nada. É a profecia do fim do mundo que o meu pai falava, a roda grande passando por dentro da pequena.

Raimunda fez uma Certidão de Ocorrência na Polícia Federal de Altamira. Relatou que, naquele momento, as demolições e “remoções” dos ribeirinhos estavam suspensas pelo IBAMA. A medida havia sido tomada depois que uma inspeção realizada em junho revelara uma série de violações de direitos humanos no processo de expulsão das famílias, em relatório assinado pelo Ministério Público Federal, instituições públicas, organizações não governamentais e acadêmicos do porte de Manuela Carneiro da Cunha (USP/UChicago), Mauro de Almeida (Unicamp) e Sônia Magalhães (UFPA). Mas, ainda assim, a casa de Raimunda queimava.

Ela concluiu:

– Eles têm certeza que podem fazer o que quiserem e nunca vão ser punidos.
E Raimunda, o que acha?

– Eu acho que eles tão certo. Eles têm certeza do que fazem. Talvez eu não tenha certeza do que digo. Mas eles sabem o que fazem.

A procuradora da República em Altamira, Thais Santi, comunicou ao IBAMA o descumprimento da ordem de suspensão das “remoções” e demolições no caso de Raimunda. “A violência dessa atitude de demolir e incendiar a casa dessa moradora é imensurável, pois simboliza a soberania do empreendedor, que mesmo diante de tantos pronunciamentos, das mais diversas instituições, retorna com a mesma postura. A empresa descumpre a determinação do IBAMA, com a certeza de que a consequência não advém. Talvez receba uma multa”, afirma a procuradora. “A empresa está blindada pelo Estado e tem a segurança de que, independentemente do que fizer, obterá a Licença de Operação.”

O Ministério Público Federal já entrou com 23 ações contra Belo Monte, por descumprimento das medidas obrigatórias de redução e compensação do impacto da obra sobre o meio ambiente, os povos tradicionais e a população rural e urbana. Nenhuma delas conseguiu fazer com que a lei fosse cumprida. Seis delas tiveram decisões favoráveis, que em seguida foram derrubadas pelo instrumento autoritário da Suspensão da Segurança, que autoriza a continuidade da obra em nome do “interesse nacional”. A Defensoria Pública da União acaba de entrar com uma ação no valor de R$ 3,5 bilhões contra Belo Monte, para compensar a violação de direitos dos atingidos pela barragem.

Nem o IBAMA nem a Norte Energia responderam aos pedidos de entrevista do EL PAÍS até o fechamento da reportagem.

Diante das cinzas da sua ilha, Raimunda procurou seu pé de pinhão-pajé, plantado na frente da casa.

– Esse pinhão era meu amigo principal. Porque eu acreditava assim. Se eu chegasse de manhã cedo, e ele tivesse com as folhinhas moles, bem coladinhas, naquele dia eu não saía pro rio. Porque ele tava me dizendo algo, na linguagem dele. Tava buscando me proteger de alguma coisa. Mas, se ele tava todo arregaçadinho, eu já tava sabendo que tava tudo bem comigo.

Raimunda buscou seu “amigo principal”, mas ele já era um não havia.

– Agora eu não tenho mais quem me guie.

Raimunda então canta diante das cinzas.

– É muito difícil você ver o que é seu ser queimado. A única maneira pra me expressar é cantando. Pra que a minhas plantas saibam que eu jamais queria que elas fossem queimadas, ou fossem lesionadas. Pra que elas sintam que eu tou aqui. Como elas não sabem falar, e eu não sei a linguagem das plantas, eu canto pra elas. Digo pra elas que o mundo não acaba aqui porque minha casa tá sendo queimada. O mundo ainda tá de pé. Enquanto Deus me der a vida, eu vou levar comigo isso, esperança e fé. Que um dia a Justiça seja verdadeira. Porque agora a Justiça é uma visagem, uma lenda. Dizem que existe, mas os pobres nunca veem.

O Antes: O pai ensina Raimunda a caminhar sem fazer barulho

Raimunda desfila pelo corredor com suas sandálias havaianas. “Olha, caminho com qualquer calçado sem fazer nenhum barulho”, ela diz. Eu faço uma brincadeira que só uma branca que leu muitos contos de fadas é capaz de fazer: “Andar de princesa, né, dona Raimunda?”. Ela me chicoteia na hora: “Andar de quem passou a vida na casa dos outros”.

 Ilha do Xingu queimando para dar lugar à Belo Monte


Ilha do Xingu queimando para dar lugar à Belo Monte

 

 

 

 

 

 

 

 

O pai é a raiz de Raimunda. Ela vai repetindo seu ensinamento enquanto apresenta a dissolução do seu mundo, como se um pudesse costurar o rasgo do outro. Natalino Gomes era bisneto de escravos com muita dor no falar, e uma avó índia canela para apimentar o sangue africano com tropicalidades.

– Meu bisavô passou a corrente para o meu avô, que passou para o meu pai, e assim sucessivamente. Nunca deixou de ser escravo, o meu pai, porque só sabia trabalhar pros outros. Não sabia mexer com esse negócio de dinheiro, nem sabia ler. Meu pai ensinou todos os filhos a não fazer barulho ao andar. Eu fui criada nessa cultura do sim senhor, não senhor. Mas, não, nunca me acostumei.

Talvez Raimunda tenha herdado o arrebatamento da mãe, Maria Francisca Gomes. Ela era mãe de santo do candomblé, desafiando o catolicismo do pai. A mãe era alegre, era livre, no dizer de Raimunda. Tão livre quanto a pobreza permite. Um livre de viver em outras realidades, para além das correntes. A mãe era também arretada, não deixava homem nenhum botar-lhe canga, nem mesmo o marido, muito menos o marido. Quebradeira de coco de babaçu, partia para a lida com uma saia de meninos rodopiando ao seu redor. Raimunda carrega coco desde os cinco anos, quebra-os com o facão desde os sete. Guarda na mão as cicatrizes desse ofício que mutilou tantas crianças, amputando-lhes dedos e futuros. Mas isso foi antes de trotar para a casa dos outros, com passinhos de feltro, aos 10 anos de idade. Aprendeu a ler sozinha, juntando uma letra na outra para ver no que dava. Escola, não conheceu.

Raimunda avisa:

– Eu não levo recado, eu dou.

E então dá:

– A escravidão não acabou, ela só camuflou. A escravidão taí, nua e crua. Num outro modelo, mas tá. Porque ser escrava é isso. É não ter direitos. Olha o que aconteceu com a minha pessoa e com milhares de outros com essa Belo Monte? E cadê a Justiça? Taí, um monte de injustiças na cara da justiça. Então, sou escrava.
Em seguida, Raimunda acha que o recado ainda está curto e decide dá-lo todo:

Raimunda, no rio, com uma bandeira do Brasil na cabeça porque diz que o país também é dela

Raimunda, no rio, com uma bandeira do Brasil na cabeça porque diz que o país também é dela

 

 

 

 

 

 

 

 

– O negro sempre tá na segunda parte da história. Nunca na primeira. Ou na terceira, quem sabe? O primeiro lugar pro negro é muito difícil. É quase impossível.

Se as correntes encurtavam os passos silenciosos de Natalino, o pai de Raimunda, ainda assim ele sonhou. E foi pelo sonho, por essa esperança fininha que circula no corpo dos brasileiros que ainda hoje andam o mapa inteiro em busca de uma terra sem dono, que ele carregou a família para a Amazônia, no encalço de uma terra para quem nada tinha. Não conseguiu, e é por isso que Raimunda diz que o pai morreu escravo. Raimunda seguiu sendo babá, empregada doméstica, em casa alheia, também nas Amazônias do Pará.

Para ela, o pai legou uma série de dizeres, e também algumas profecias. Uma delas é esta, na qual Raimunda vai fazendo pontes entre o passado de escravidão e o presente de escravidão, entre o desterro de um continente ao outro e o desterro dentro do desterro.

– Meu pai dizia que um dia o mundo ia ser movido por um papel. E taí, o dinheiro. Não foi isso o que aconteceu? Belo Monte chegou impondo, derrubando, passando por cima e jogando umas migalhas de papéis que são os dinheiros que eles dão. Não veem que acabaram com aquela pessoa por dentro quando lhe tiram a sua casa. Entendeu? Tiram tudo da pessoa e jogam uns papeizinhos, daí fica assim. Entendeu?
Como João, seu marido, Raimunda também usa esse “entendeu” para concluir as frases, fazendo da interrogação quase uma faca no pescoço do interlocutor. Mas a esse “entendeu” ela dá um outro sentido. Raimunda acredita que ainda pode ser compreendida.

E assim, continua.

– Ninguém vive de dinheiro. Se perde no mato com uma sacola de dinheiro e vê o que o dinheiro vale: nada! Mas fica no mato sem uma sacola de dinheiro, perdido, que você consegue sobreviver. Você acha uma planta, você acha uma fruta, você bebe água. A mata lhe oferece tudo o que você precisa pra viver, pra sobreviver até alguém lhe encontrar. E você, com dinheiro, você morre com ele nas costas, não serve de nada.
Raimunda agarra-se ao chão que são as palavras do pai. Ela ali tem uma raiz que ninguém pode lhe arrancar. E como a catástrofe já estava prevista por aquele que arrastava as correntes, a sensação de que tudo está para além de qualquer controle é brutal, mas não a paralisa: “O papel acabou com o mundo, como meu pai dizia. Ele sabia”. O pai também dizia: “Siga as trilhas”. Raimunda, como se verá mais adiante, sempre dá jeito de encontrar uma trilha.

O Antes: abandonado pelo pai, João ganha o trecho e vira barrageiro

João também nasceu no Maranhão, mas esta não é uma terra de pertencimento para ele. João não migrou, como Raimunda, ele tornou-se um indo. Seu pai foi acometido por uma febre mais forte do que a malária, e que dura muito mais. E às vezes também mata. A do ouro. “Bamburrar”, encontrar tanto ouro que a pobreza será só uma fotografia empoeirada no passado, é o que faz bater o coração de milhares de homens Brasil afora. A cada “fofoca”, como se chama a descoberta de um novo veio de ouro, eles se lançam no território em barco, em ônibus, em pau de arara, em pés, com pouco mais do que a roupa do corpo e um sonho feroz. É a sua maneira de recusar-se a uma só sina, a da miséria, ou a de viver uma vida de aventuras e de consumição, uma vida, como um dia um garimpeiro me disse, de personagem de livro. Ao me dizer, esqueceu-se de que não sabia ler.

Como costuma acontecer no Brasil, em que os pobres são criminalizados toda vez que recusam seu destino e levantam a cabeça caçando horizonte, os garimpeiros são tratados como bandidos, enquanto as grandes mineradoras, as multinacionais, as que arrasam enormes porções de floresta e concentram o lucro, estas são purificadas pela palavra “negócio” ou “empreendimento” ou ainda “desenvolvimento”. Essa metamorfose também acontece neste momento, quando Belo Sun, a mineradora canadense, tenta se instalar bem perto de Belo Monte para explorar imensa jazida de ouro, esmagando os garimpeiros artesanais que por lá vivem há décadas. Se conseguir, terminará de arrasar com o Xingu e com os povos tradicionais, que pertencem à floresta e a preservam para o Brasil e o mundo.

O pai de João era um destes homens febris, que abandonou a família e também esse filho pequeno para consumir-se em seu eldorado íntimo. Tinha terra no chão nordestino e até um pouco de gado, mas não era homem plantado. Embrenhou-se nos garimpos de Itaituba, no Pará, lá onde hoje cresce o cerco do governo para mais duas grandes hidrelétricas: São Luiz do Tapajós e Jatobá. Como a maioria dos garimpeiros, encontrou uma mulher nova, e possivelmente várias outras. As prostitutas chegam antes dos garimpeiros nas fofocas, ou pelo menos junto com eles. Lá são chamadas de “mulher livre”, e os arranjos são variados. Podem ser mulher de um homem só em troca de uma quantidade previamente acertada de gramas de ouro, e cozinhar e lavar e namorar na “corrutela”, a vila que se forma no garimpo, como se esposa fossem. E às vezes se tornam. Quando o pai veio buscar o filho para levá-lo com ele ao garimpo, era tarde para um encontro que nunca houve. O pai tentou duas vezes, numa delas apareceu até de avião. João desacreditou das asas do pai e recusou-se a seguir com ele. Preferiu fazer-se homem quando ainda era menino.

Primeiro João trabalhou na roça de parentes, com oito anos de idade, um fiapo de gente. Aos 12, desgarrou-se. Lançou-se no “trecho”, uma das palavras mais enigmáticas na linguagem variada dos Brasis, que vai ganhando significados diferentes país afora. O trecho é o mundo, é a estrada, é a vida em movimento, é um fora prenhe de possibilidades. João viveu no trecho, trabalhando duro, carregando mais pedras do que podia, inventando músculos quando ainda não os tinha, porque a vida de menino pobre e sem letras é sustentada na força dos braços. Condenado pelo pai, que dizia que “escola de menino é cabo de enxada e cabo de facão”.

João não se filiou ao garimpo, esta era a escolha do pai, do qual ele não se considerava mais filho. Preferiu fazer sua própria filiação. Entre as sinas dos brasileiros pobres, ele escolheu a de se tornar barrageiro, um operário de barragem que vai seguindo a trilha dos grandes projetos do governo. E, quando não há nenhuma grande usina para construir, alista-se em contratos fora do país, negócios assumidos pelas gigantes do setor de construção. “Trabalhei na Mendes Júnior, trabalhei na Queiroz Galvão, trabalhei na Camargo Corrêa, trabalhei na Odebrecht, trabalhei na Andrade Gutierrez, trabalhei na Constran, trabalhei na Construpar. Trabalhei em outras firminhas sem vergonha. Eu sei que foram umas 12 firmas que eu trabalhei.”

João foi peão num jogo que tem como tabuleiro a Amazônia e o Brasil. Nos anos 50, no governo democrático de Juscelino Kubitschek, as empreiteiras construíram Brasília e nunca mais saíram do centro do poder. Cresceram e multiplicaram seus lucros logo em seguida, nos grandes projetos da ditadura civil-militar (1964-1985), com ênfase nas obras megalômanas na Amazônia, como a Transamazônica, uma entre tantas que aniquilaram floresta e vidas. Seguir o dinheiro das grandes empreiteiras é contar pelo menos 60 anos da história do Brasil, um período que vai da segunda metade do século 20 até esses primeiros 15 anos do século 21. Os empregadores de João hoje amargam a cadeia, acusados pela Operação Lava Jato, da Polícia Federal. A operação investiga a corrupção em contratos da Petrobras e, mais recentemente, também do setor elétrico. Delatores já revelaram a prática de propina em Belo Monte, paga ao PMDB e ao PT. A investigação está em curso.

No começo de sua vida de barrageiro, João foi trabalhador braçal. Depois, conquistou uma profissão e tornou-se operador de máquinas. Sua primeira grande hidrelétrica foi Itaipu, no Paraná, a obra binacional que afundou uma das maravilhas do mundo, as Sete Quedas, uma obscenidade sem reparação. Mas foi só em outra hidrelétrica, Tucuruí, que João compreendeu seu papel descartável no jogo comandado por reis e depois por uma rainha. No momento dessa descoberta, João começava o capítulo definitivo da sua vida, ao lado de Raimunda.

O casamento: João e Raimunda se encontram num “pancadão”

Raimunda tinha 16 anos quando conheceu João num baile. “Era um pancadão”, ela informa. “Eu olhei ele, ele olhonimim.” Foi assim, entre o azulado do olho de João e o negro de Raimunda, que se quiseram de imediato. Raimunda foi logo avisando que não era “da tradição de gente que se junta, se quiser me dê aliança e sobrenome e vamos fazer história”. Fizeram. Tempos depois se oficializaram num casamento coletivo. Raimunda enfeitou-se com um vestido lilás, segundo ela “a cor da mulher”. Em seguida, inauguraram uma fileira de filhas, no total de sete mulheres, todas com nome iniciado pela letra “L”. E apenas um filho homem, que morreu de meningite com um ano e cinco meses, batizado como Leodeí:

– Eu trabalhei na casa de uma senhora, e ela tinha um filho que era militar. E ele morreu numa cidade chamada Indonésia. Então eu guardei aquele nome na cabeça, Indonésia… E o sonho da mãe era conhecer essa cidade porque o filho morreu, ficou pra lá. Anos depois, trouxeram os restos mortais, mas não era mais o filho. Eu fiquei pensando comigo… Indonésia… Se a Indonésia é uma cidade que foi guerreada numa guerra inútil, e ela hoje tem paz, quero que a minha filha tenha esse nome. Aí coloquei Lindionésia. E depois vieram a Lindionisia, a Livia, a Liviane, a Leidiane, a Luciene e a Liliane.

Lindionésia é uma síntese e um desejo: depois de João e Raimunda atravessarem uma vida de guerra, a paz inscrita no corpo de letras da filha. A saga, porém, ainda não tem conclusão na concretude dos dias. A paz, na vida de Raimunda e de João, ainda não deixou de ser palavra para virar a coisa que representa. O “L” tem outro porquê:

– É de liberdade. Liberdade de expressão, né? Queria que minhas filhas fossem livres, que tivessem livre expressão de estudar, de brincar, de ser o que quisessem na vida.
Raimunda persegue a paz desde que se entende como Raimunda. Mas, sobre a paz, o pai não deu certeza.

– Meu pai colocou um ‘talvez’, talvez o mundo um dia tenha paz. Ele não deu como certo, e morreu sem encontrar a paz. E eu continuo procurando a paz.

Nesta busca, um dia João apareceu anunciando:

– Tão contratando em Tucuruí.

Foi ali que Raimunda descobriu, como ela diz, “que tem sangue doce pra barragem”. E a condição de peão revelou-se para João em toda a sua magnitude. Se antes ele andava de barragem em barragem, de obra em obra, agora ele tinha uma família. João não podia mais percorrer o trecho, ele precisava enraizar-se. Enquanto uma das barragens mais devastadoras da ditadura era construída também pelas suas mãos, no rio Tocantins, no Pará, João e Raimunda fizeram pouso e fizeram casa. Ao final, descobriram o que acontecia quando o rio é barrado, a floresta é inundada e um pedaço da Amazônia se finda. É Raimunda quem conta sobre o momento em que o círculo se fechou para João, e ele teve a revelação:

– Meu João trabalhou em Tucuruí a partir de 1976. Em 1983, ele se deu conta que tava feito pombo. Porque o pombo, ele faz o ninho, e no dia em que ele bota o ovo, ele começa a desmantelar o ninho. No dia em que termina de tirar o derradeiro fagulho do ninho, o filho já foi embora. E ele tava fazendo isso, mesmo. Porque ele trabalhou, comprou uma terra e uma casa com o dinheiro da barragem que construía, e essa mesma barragem alagou tudo nosso.

 A Hidrelétrica de Tucuruí era um projeto da ditadura. E não se negociava na ditadura: Ilha do Xingu sendo derrubada por causa da hidrelétrica


A Hidrelétrica de Tucuruí era um projeto da ditadura. E não se negociava na ditadura:
Ilha do Xingu sendo derrubada por causa da hidrelétrica

– E lá a gente era, eu não vou dizer burra, mas desinformada. O que aconteceu? Meu lote valia dois barão. Naquele tempo, era um dinheiro muito alto. Então, a Eletronorte falou o seguinte: “Eu não posso lhe depositar esse dinheiro sem o título da terra”. Nós tinha terra legalizada. E nunca mais nós vimos esse título. E não podia provar, porque era a palavra deles contra a nossa. Então, além de perder tudo, ficamos por mentirosos, de frente pra uma Justiça que tava lá. Por isso que eu me revolto com a Justiça, por conta disso. Nunca tivemos o que fazer. Não tinha como pagar um advogado, não tinha como pagar nada. Deram outra terra pra gente, que não tinha quem aguentasse os mosquitos nem as pragas. A água subiu por causa da barragem, e apodreceu toda a vegetação. Se formou um mar de insetos. Não tinha como sobreviver ali. O que que nós fizemos? Pegamos os filhos pequenos e fomos pra Marabá (na beira da Transamazônica) no finalzinho de 1985. Não deu certo. Em 1988 fomos pra Altamira.

Em Altamira, João e Raimunda descobriram que havia um lugar para pobre ficar rico: a floresta. Mas isso foi depois.

Antes, João passou por ainda mais duas provações. Logo depois de Tucuruí, ele partiu para o Iraque, contratado pela construtora Mendes Júnior Internacional. João, que se sentia vítima de uma guerra não declarada, foi despachado para o outro lado do mundo, para construir “uma pista para tanques de guerra”. Sofreu um ano longe da família. Quis voltar lá pelo meio, mas tinha assinado contrato. De lá ditou a Francenildo, o amigo que sabia escrever, uma carta para Raimunda. Terminou dizendo: “Só o amor constrói”. A carta está plastificada, como uma prova de que o amor deles constrói pontes entre exílios.

Depois da expulsão pela Hidrelétrica de Tucuruí, Raimunda tornou-se uma documentadora. Guarda tudo, registra tudo, agarra-se aos papéis. João também mudou. Da experiência de construir em países do Oriente Médio, ele faz uma analogia com Belo Monte:

– Conheci vários países, mas só vi o que acontece aqui, no país brasileiro, em lugar com terrorismo. Aqui, a empresa escolhe o dia de matar hoje e o dia de matar amanhã. Entendeu? Justiça não existe.

Em outra ocasião, João migrou pelo “país brasileiro” em busca de trabalho. Explica com essa lembrança por que não é capaz de pedir esmola, embora não tenha mais como ganhar o pão, desde que foi expulso da ilha:

– Eu nunca pedi nada, me acho com vergonha. Eu não tenho cara pra isso. Eu tenho cara de morrer de fome, mas não tenho coragem de pedir. Entendeu? Numa ocasião eu fui pra uma firma em Imperatriz (Maranhão), lá perto de Marabá (Pará). Eu tava com 50 contos. E já tava com três dias sem comer. Não comia porque aquele dinheiro era pro transporte. De noite eu tô num banco lá na rodoviária, um cara diz pra outro: “Rapaz, lá na cidade de Balsas (Maranhão) tão fichando gente por 3 e por 4”. Eu saí e comprei a passagem com os cinquenta contos. Sobrou cinco. Cheguei lá, eram cinco horas da manhã. Já passei na frente do escritório e vi logo a placa. “Não ficho ninguém. E não insista”. Mas eu, pra tirar a dúvida, tomei um café lá na rodoviária, de cinco contos sobrou só um, e fui caçar emprego. Quando eu passava nos restaurantes, naqueles restaurantes que tavam comendo, eu pedia um copo de água e bebia. Quando foi meio dia, eu voltei lá e falei pro cara: “Rapaz, não tem emprego e eu não tenho dinheiro pra nada. Acabou a minha condição”. Ele disse: “Olha, deixa a boroca (bolsa) aí. Você trabalha de estivador?”. Eu respondi: “Trabalho de qualquer coisa”. Arrumou uma carreira com oitocentos sacos de adubo, pra descarregar na fazenda perto. Aí, o que acontece? Antes do meio da carreta, eu já não dei mais conta. Tinha uma garrafa de água assim, e eu bebi a água e fui me esmorecendo, me esmorecendo, até que eu arriei mesmo. Contei que fazia quatro dias que não comia. Quando terminaram de botar o adubo, a mesa tava lá, pronta pro pessoal jantar. Queria que a senhora visse, de tudo. E botei duas colheres de arroz assim, botei um pedacinho de carne no prato. Mexi assim, comi a metade. Aí saí pra beber um copo de água. E vomitei tudinho. Na farmácia tomei uma injeção. Aquela injeção pra fortalecer. Fiquei lá um mês e pouco trabalhando. Mas nunca perdi a resistência e nem a esperança. Mas, muié, o que faz eu perder tudo é na situação que eu tou. Com que força eu vou trabalhar, agora que tou velho e doente? Eu não tenho mais resistência pra começar tudo de novo. E não sei pedir.

Quando reencontrou o rio, agora não mais para violentá-lo, mas para colher os peixes, João encontrou-se.

Paisagem do Xingu em parte ainda não afetada pela usina

Paisagem do Xingu em parte ainda não afetada pela usina

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A virada: João e Raimunda se descobrem ricos

A virada do milênio marcou a descoberta da floresta. Não como um contra ou um fora, mas como parte. Depois de peregrinar pelo que era chamado de progresso e só encontrar tribulação, João e Raimunda foram acolhidos por uma das centenas de ilhas do Xingu. Aprenderam a extrair o alimento da floresta, a plantar sem violar a terra, a pescar e a navegar no rio. Adotaram a vida dos ribeirinhos pescadores e agroextrativistas, que vivem em dupla casa, uma na rua, uma na ilha ou na beira do rio. “Rua” é como o povo que mora na floresta chama a cidade, o que já é muito revelador de sua visão de mundo. A casa na rua é para a venda dos produtos na feira, para resolver as oficialidades da burocracia, que sempre são muitas, para buscar tratamento para doenças mais enroscadas, para o estudo dos filhos; a casa na ilha ou na beira do rio é onde se ganha a vida e se vive livre. Pela primeira vez, João e Raimunda sentiram que haviam chegado. Tinham um lugar, nada lhes faltava. A fome era um passado.

Trataram de enraizar-se fundo. A vida era assim:

– Tinha nossa casa na ilha, de onde a gente trazia o peixe, o feijão, o milho, o abacaxi, a banana, o murici, a cebolinha, o cheiro verde, a chicória. Tudo isso era fonte de renda. Tudo isso eu fazia dinheiro. Do rio, eu tirava a cédula maior. Vinha pra cidade com as coisas que plantava, e com o meu peixe, e já cheguei a fazer mil e duzentos reais na semana, em dinheiro livre. Eu mesma ficava mais na rua, porque comecei a me envolver com movimento social. Meu marido morava lá na ilha. Quando ele vinha com o peixe, no sábado, eu vendia o peixe na feira e voltava com ele. E vinha de lá na quarta-feira no barco de linha. Ficava aqui esperando ele de novo com o peixe. A nossa rotina era essa. Nas férias, final de ano, eu ficava lá, com ele. Então, a nossa vida era um vaivém. Quando você vive no rio, você entende o rio que nem ele lhe entende. Você respeita o limite dele, que ele respeita o seu. É uma parceria entre você e as águas. É assim, ó: o remo é a minha caneta e o rio é a minha lousa.
Primeiro João e Raimunda compraram uma palafita nos baixões de Altamira, depois construíram uma casa de alvenaria. Raimunda faz questão de esclarecer que mesmo na palafita ela deu jeito de ter suíte, porque gosta muito de suíte.

– O sonho de uma casa na terra firme era muito longo. Ter um casa no chão. O rio nos deu. Consegui comprar minha geladeira, consegui comprar minha televisão, meu fogão a gás, meu botijão. Consegui comprar a minha cama, o meu colchão do jeito que eu queria. Eu fui na loja, comprei, porque eu sabia que o rio ia me dar retorno, eu ia poder pagar a prestação. O rio era meu banco, era meu cartão de crédito, era meu supermercado, era a minha farmácia, a minha loja. Tudo eu tirei do rio. Tudo o que eu tenho hoje veio de dentro do Xingu. O que o rio não dava, a terra dava.

Já não eram mais migrantes, João e Raimunda haviam finalmente chegado. Raimunda então entranhou-se nas lutas de Altamira e da Amazônia. A das mulheres, a da terra, a do meio ambiente. Filiou-se ao Partido dos Trabalhadores (PT), tornou-se militante de movimentos sociais. Ela agora pertencia. Seu verbo não era mais um ir, mas um ficar. Quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o poder, pela primeira vez, em 2003, os movimentos sociais de Altamira e da região acreditaram que o projeto da hidrelétrica de Belo Monte estaria sepultado de vez.

Desde os anos 70, na ditadura civil-militar, a usina no Xingu era uma ameaça que ressurgia a cada governo, mesmo na redemocratização do país. No passado, a Eletronorte a chamou de Kararaô, palavra que é um grito de guerra na língua dos Kaiapó. Em 1989, produziu-se a cena histórica: a índia Tuíra encostou um facão no pescoço do diretor da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes. Tuíra demonstrava no gesto a resistência à barragem de um rio mítico, que era vida, cultura, espiritualidade e sustento para os povos tradicionais. A fotografia correu mundo. A Eletronorte recuou e trocou o nome da usina para Belo Monte. Nenhum governo conseguiu tirar Belo Monte do papel. E então Lula assumiu o poder com o voto da maioria das lideranças e dos militantes dos movimentos sociais da Amazônia. Um trabalhador, um sofredor, um homem do povo que conhecia a dor do povo. A partir daquele momento, Raimunda achou que a paz tinha chegado. O talvez do pai virava certeza.

É nesse momento, e não em qualquer um, que Sofia entra na vida de Raimunda. E torna-se sua mais íntima companheira. “É uma neguinha, cabelinho ruim, amarradinho”, descreve Raimunda. Sofia é uma boneca, a primeira boneca da vida de Raimunda. Ela estava num encontro de mulheres, em Belém do Pará, quando viu um homem vendendo bonecas na rua. Sofia custou cinco reais. Raimunda achou caro. Mas já tinha se encantado. Deu a ela esse nome por conta de uma história contada por uma freira de Manaus, sobre uma alemã chamada Sofia, que havia sido uma criança pobre e, ao crescer, criou uma instituição para cuidar de crianças pobres. Sofia agora cuida de Raimunda. E já acompanhou-a na Marcha das Margaridas, das trabalhadoras rurais, extrativistas, indígenas e quilombolas, na Rio+20, por todo canto. Escondida, porque João garante que “vão bulir” com Raimunda se descobrirem que ela carrega uma boneca na bolsa, ela, uma avó de 15 netos. “A Sofia significa para mim uma paz profunda, que não tem resposta”, poetiza Raimunda.

É no momento em que encontra um lugar que Raimunda pode ter até uma boneca.

– Eu não fui criança, porque trabalhei muito. Também não tive juventude. Por isso não dou minha velhice. Não abro espaço pra ninguém. Minhas filhas dizem que tou ficando perturbada. Nada, eu tou é vivendo.

Raimundo com a boneca Sofia

Raimundo com a boneca Sofia

Demorou alguns anos para que Raimunda e tantos outros compreendessem que haviam sido traídos. Lula era um sindicalista do ABC paulista, sua visão de mundo era a da indústria, do concreto, da cidade grande. Progresso, para um operário, era ter carro, TV de tela plana, churrasco no fim de semana. Progresso, para um país, era transformar a Amazônia em soja e pasto pra boi, exploração de minérios por grandes mineradoras para exportação de commodities (matérias-primas). Lula não tinha o menor conhecimento sobre esse outro viver, o da floresta. Mudança climática não fazia parte do seu universo. Seu projeto para a Amazônia era o mesmo da ditadura, que considerava a região uma questão de segurança nacional, um deserto de gente e um corpo para espoliação. A única voz no governo federal e no PT com alguma força para se contrapor a essa visão estacionada no século 20 era Marina Silva, ambientalista que se criou nos seringais do Acre e teve como um dos mentores o líder Chico Mendes, assassinado em 1988 por sua luta pela floresta. Marina só suportou a pressão até 2008, quando deixou o Ministério do Meio Ambiente e logo depois o PT.

Raimunda e as principais lideranças do Xingu perceberam tarde demais que somente Lula poderia tirar Belo Monte do papel. Ao trair os compromissos de campanha, por um lado o PT no poder desmobilizou os movimentos sociais, por outro os cooptou. A resistência, que por décadas foi coesa, rachou. O setor elétrico atravessou governos como um feudo do coronel do Maranhão, o oligarca José Sarney (PMDB). Um exemplo: José Antônio Muniz Lopes, o homem que teve o facão de Tuíra no pescoço, em 1989, é hoje, em 2015, o presidente do Conselho de Administração da Eletronorte e o diretor de transmissão da Eletrobras, já tendo ocupado diversos outros cargos de comando, nas décadas de 90 e 2000. “A Eletronorte é a mesma antes e agora”, resume Raimunda. “Só mudou a coleira, o cachorro é o mesmo.” Mas só o PT e Lula teriam força política para minar a resistência e fazer de Belo Monte uma realidade de toneladas de concreto no meio do Xingu.

Essa é a arquitetura que se mostrou capaz de consumar uma obra gigantesca e ultrapassada, na aliança entre os grupos que atuam desde o passado e o grupo do presente, uma alquimia que talvez a Operação Lava Jato possa começar a desvendar. São também esses interesses que atravessam governos que podem explicar por que Belo Monte vai se tornando fato consumado, mesmo violando a Constituição, com um governo cada vez mais fragilizado e parte dos donos das empreiteiras que a constroem presa por corrupção. Belo Monte é o nó que, quando totalmente desfeito, revelará o Brasil.

Para Raimunda, restou uma conclusão. O PT, para ela, não significava um partido a mais no poder, mas um projeto político que se confundia com sua busca de um lugar no país – e com a crença de que esse lugar existia. O simbolismo para ela era uma literalidade. Ao sentir-se traída, desacreditou:

– Se o Lula visse esse povo que o elegeu, jamais faria Belo Monte. É difícil pra mim falar isso, mas eu votei no Lula e votei na Dilma. E eles nos traíram. Porque o Lula disse claramente que Belo Monte não ia sair. E depois a Dilma falou que Belo Monte era preciso, que não tinha como voltar atrás. Eles são traidores da humanidade. Ah, meu pai do céu! Se eu visse eles, eu não diria. Eu avançaria na cara deles tudo, pra tomar vergonha. Que presidente é esse que mente pra nação? Eu não voto é mais nunca. Se eu não precisasse do título de eleitor, eu rasgava. Como eu preciso dele, não posso rasgar. Meu plano é não botar mais meu voto na urna. Eu vou lá e justifico. Eu não sei se é certo, mas esse é o meu plano.

Belo Monte é onde o PT traiu não a classe média, mas sua razão de ser: os mais frágeis e os mais desprotegidos, os historicamente arrancados da sua terra, como os indígenas, os historicamente exilados dentro do próprio país, como Raimunda e João. É nesse ponto do mapa, a última fronteira para quem palmilhou o Brasil inteiro em busca de paz, que o discurso petista em defesa dos pobres gira em falso há muito mais tempo. Mas como a Amazônia é um longe para o centro-sul, essas vozes foram ignoradas.

Raimunda quer falar:

– Eu vou dizer mais uma coisa: o rio tá doente, os peixes tão noiados, tão tudo grogues por causa do pouco oxigênio. Ninguém tem noção do tamanho desse monstro aí no Xingu. Ninguém sabe o que vai acontecer quando começar a funcionar. Ninguém.

Barragem

Barragem

Interrupção: “Belo Monstro” barra a vida de Raimunda e de João

Depois de travar as pernas e a fala no escritório da Norte Energia, João não voltou mais a ser o mesmo homem que varou Brasis e fomes. Em maio de 2015, Raimunda o levou para a capital, Belém do Pará, em busca de tratamento. Só voltariam de lá no fim de agosto. Nesse período, as filhas trataram de fazer a mudança da casa na cidade, porque sabiam que a mãe não permitiria se estivesse em Altamira, disposta a resistir até que o valor fosse justo. Quando Raimunda e João voltaram, já não tinham mais casa “na rua”. Em troca, tinham recebido 84 mil reais, valor insuficiente para comprar uma casa do mesmo tamanho e qualidade, e em localização similar. Raimunda reciclou 3.500 tijolos das casas demolidas dos vizinhos para começar a sua num loteamento fora da cidade. A canoa São Sebastião, nome dado em homenagem ao santo injustiçado, flechado tantas e tantas vezes, tornou-se um monumento à insanidade, objeto deslocado nos fundos da casa, em terra firme e a quilômetros do rio. Raimunda planeja fazer dela um banco para visitas quando a casa ficar pronta.

Dos três cachorros que viviam com João e Raimunda na ilha, dois não suportaram viver amarrados na cidade e morreram. Barão do Triunfo, um cachorro grande, mestiço de Fila, que se instalava na proa do barco para cuidar da casa na ilha, quando os donos estavam fora, morreu primeiro. “Dei esse nome porque ele era um lorde”, explica Raimunda. Xena, uma pitbull que ganhou o nome por ser “tão autoritária quanto a princesa”, personagem de filmes e de animação, foi a segunda a amanhecer morta. “Eu não podia deixar eles soltos na rua, porque na cidade eles são violentos. Mas não sabia que iam morrer. Se soubesse, tinha deixado eles morrerem soltos, pra morrer livres. Morreram na coleira”, lamenta uma Raimunda culpada. “Eu mesma não sei se um dia vou me libertar dessa coleira que a Norte Energia me botou. Vivo errando, me perdendo, indo pra uma casa que não existe mais. Deus não deu asas pra cobra porque ela já tinha veneno. Essa Norte Energia tem os dois, asas e veneno.” O único que restou foi o vira-lata Negão, “um cachorro que não se emociona assim tão fácil”. Negão, sem nome de princesa nem de barão, é um sobrevivente. Como Raimunda.

Ela documentou em fotos e vídeos o “antes, o durante e o depois de Belo Monte”. Assim, pode provar tudo o que diz. No “durante”, duas de suas filhas chegaram a trabalhar na construção da hidrelétrica, uma na cozinha, outra na mecânica. Raimunda peleou com elas. “Isso é que nem dinheiro de jogo, vocês não podem fazer isso comigo”, esbravejou. “Demorou, mas libertei minhas filhas.” De máquina fotográfica cor de rosa em punho, registrou até a Força Nacional protegendo Belo Monte do povo: “Veja bem, eles acham que sou eu a ameaça!”.

A documentação de Raimunda é um percurso de memória, ao mesmo tempo brutal e poético. Enquanto ela mostra as imagens, vai narrando a sua travessia.

A vida antes de Belo Monte:

– Documentei toda a minha história esperando o futuro, e o futuro taí. Antes de Belo Monte, a minha história era essa. Ó, a minha casa. O meu plantio, o meu pomarzinho, tudo limpo. Tudo varridinho, direitinho. Aqui o meu velho com a roça dele, limpando o chão. Aqui é capim-de-cheiro pra remédio, pra dor de barriga, essas coisa assim. Aqui é o murici carregado, é uma outra fase. Olhe esse pé de murici! Eles queimaram. Tá tudo queimado. Aqui, amigos me visitando. Macaxeira, muito bonito de se ver. Olhe. O meu cachorro, o Negão, aqui. Então, isso aqui, pra eles, não é nada. Pra mim era tudo. O meu amigo é esse aqui que eu tou falando, que era o pé de pinhão. Chegava em casa era o primeiro que eu via. Meu pinhão pajé. Olhe a beira do rio. Aqui, ó. O meu outro cachorro, que morreu só de tristeza porque não era acostumado com coleira, e eu amarrei. Aqui a gente vai parar.

A vida durante Belo Monte:

– Agora vou lhe mostrar durante Belo Monte. Durante o processo de vaivém, vaivém, vaivém. Aqui é o meu barco. Aqui, ó. Esse aqui é o meu fogão a gás, à lenha… A sobrevivência do rio é muito gostosa. Pra quem sabe o que é isso. Pra quem não sabe, não dá valor. Meu marido roçando… Óia. Plantando macaxeira, que ia chegar a chuva, então já tava se prevenindo. O meu cachorro, que já não tenho mais…O outro cachorro, também morreu. O meu velho. São 38 anos de convivência, sempre juntos. Eu corto, e ele planta. Hoje ele tá sentado numa cadeira, esperando sair minha casa. Aqui o final de semana em que eu cerquei, por causa das galinhas, pra fazer um plantio de cebolinha, mas não deu certo, porque as galinhas são mais rápidas do que eu. Esse aqui é meu velho branco de olho azul, um gato. Que hoje tá… Eu digo pra ele que ele não tá inútil, porque eu ainda vejo ele na minha frente. Então, ele ainda é meu gato. E tem um outro ângulo da ilha, aqui, que é onde ela tá produtiva. Deixa eu lhe mostrar aqui…As plantas que foram queimadas. As que eram mais próximas da casa eles queimaram, acabaram com tudo. Aqui é no inverno. Ó, a gente planta e colhe durante a cheia, por conta que a cheia, ela vem, mas ela tem a data certa. Olhe o meu canteiro, as cebolinhas…Cheiro verde… Eu tirando o tomate, o gengibre, que é pra dor de cabeça, dor de barriga e bucho inchado. Remédio caseiro. E aqui eu, dentro d’água, que eu adoro água, também. Aqui, eu com medo de uma cobra, que ela tinha ido na minha frente, eu fui atrás dela. Mas ela foi mais rápida que eu, foi embora. A gente dorme na rede durante o inverno. O meu neto, que ia pra ficar umas férias comigo. Meu pé de capim-santo, ele também não morre na água, ó, fica um tempo submerso. Só se cobrir essas folhinhas aqui que ele morre. Mas, se ele respirar, ele não morre. Minha casa, que pra Norte Energia não era uma casa. Bananeira… ó, os cacho de banana. Tudo carregado. A macaxeira toda de pé. Olha lá o milho. Aqui, ó. O milho todo carregado. Aqui, eu com medo da cobra de novo. Ela com medo de mim, eu com medo dela. Então, isso aqui… é o fim de uma história da vida de uma ilha, que pra mim é muito importante. Porque eu não vivia na ilha. Eu vivia dela, e ela vivia de mim. Porque a gente era como amiga. Abacaxi. Mais milho verde. Ó, o milho lá atrás. Olha esse cacho de banana, o tamanho. Deixa eu pegar pra você ver. Essa aqui, olha, além de ser uma fruta pra alimentação, ela é um antídoto contra inseto. Tem o pescador que vive na ilha, e eu vivia da ilha. Cultivava ela, e ela me cultivava. A gente era amiga. Entendeu? Deixa eu lhe mostrar uma foto aqui em que o rio se despede, vai embora.

A vida depois de Belo Monte:

– Aqui sou eu, pensando… Quando será esse dia, que eu não quero sair? O meu genro dizendo que já era, não tem mais jeito pra fazer nada, é isso mesmo. E eu falando pra ele que eu ainda tinha esperança. Aqui eu dizendo pras minhas plantas que eu ia, mas eu voltava. Mas era só história, que eu não voltei. Meu véio pensando se voltava lá um dia, ou não: “Será que eu ainda volto aqui?”. Eu falei: “Não sei, Deus que sabe”. Óia eu olhando pro horizonte, pedindo a Deus que deixasse a gente ficar na ilha. Meu marido chorando. Isso aqui tá tudo queimado. A Norte Energia queimou. Olhe aí. Toda aquela beleza que eu lhe mostrei, aquele murici, aquela coisa mais linda…Tá aqui, sapecado. Eu fui lá, registrei de novo. Registrei o antes, o durante e o depois de Belo Monte. Aqui, ó. Não sobrou nada. Diz que um crime sempre deixa uma prova. Eles deixaram. Aqui, ó. A impunidade só existe porque a Justiça não se manifesta. Enquanto a Justiça tiver com aquela venda na cara, que é aquela estátua que fizeram lá em Brasília, é assim, ó. A Justiça só vê quem ela quer. Quem não quer, ela não vê.

Raimunda quer escrever um livro. Já tem o título: “História de um pescador: antes, durante e depois de Belo Monte”. Começa a acreditar que o único lugar seu será a sua cova. Já encomendou a mortalha: “de cetim, em branco da paz”.

Terceiro ato: o impasse

Raimunda desenhou a planta da casa nova com o cuidado de que ela seja bem diferente daquela que foi destruída. “Eu não quero mais porta que entre pela frente, quero uma porta que entre de lado, porque quero que meu futuro seja diferente. Então, comecei pela infraestrutura da casa”, explica. “Quando eu entrar nessa casa hoje, eu não quero chegar pensando que tou na outra.” Raimunda marcou toda a história na casa nova, ainda em construção: as paredes são verdes, “porque é a esperança no futuro”, os rodapés são marrons, para mostrar “a barreira da barragem”, as grades das janelas são pretas, “em sinal de luto”. “Tudo na minha vida tem uma história”, ela reforça. E tem.

Raimunda e João

Raimunda e João

Raimunda é uma criadora de sentidos, e por isso consegue seguir a vida. João, não. No dia em que paralisou, ele perdeu a capacidade de criar sentidos. Por dentro, ainda está travado. João viu demais, e o excesso de lucidez o cegou. Agora, não consegue voltar. “Perdi a ponta da meada. Estou dentro dessa casa hoje, mas de fato, toda hora, eu não tenho casa. Eu não tenho casa. Entendeu? Eu tou fora. Me perco. Não sei onde tou. Perdi o rumo de tudo”, inflama-se, os olhos de rio, mas um rio de amazônica tempestade. “Estou pior que a Dilma, porque ela perdeu o rumo do país, mas eu perdi o rumo de casa.”

É este hoje o impasse entre João e Raimunda.

Raimunda diz:

– Sou uma pindova, uma palmeira muito perseguida lá no Maranhão. Quanto mais casca Belo Monte arranca de mim, mais eu me renovo. Fiquei queimada por dentro, como a minha ilha, mas me renovo. A pindova é assim, ninguém mata ela com fogo nem arrancando nem com nada. Ela volta. Como eu. Já venho de uma naturalidade de pessoas muito sofridas, o sofrimento faz parte da nossa história. Não vou morrer porque peguei porrada. De jeito nenhum, sou descendente de escravos e de uma etnia indígena quase extinta. Então, venho de um povo sofrido lá da base. Sou pindova e quero viver.

João responde, e é como se os dois estivessem num diálogo de repentistas:

– Mas eu não sou assim. Quando eu perdi a ilha, eu perdi a minha vida. Eu perdi a linha. Parou ali, entendeu? Daqui pra frente eu só vejo escuridão na minha vista. Eu não vejo mais aquele mundo limpo. Eu só vejo escuridão. Fico aqui, olhando pro mundo, procurando a mim mesmo. Quem sabe me responder essa procura? Ninguém. O buraco na minha vida, o buraco na minha vida…

O impasse atingiu seu ápice em 4 de setembro de 2015. Nessa data, João “enlouqueceu” dentro de casa. Raimunda conta:

– O João chamou a família pra ir lá na ilha queimada. Pra servir de mártir. Ele quer se matar lá, como protesto. Eu disse que não ia nem deixava ele ir. Se ele se matar lá na ilha, avisei que deixo ele lá, pra ser comido pelos urubus. Por isso tirei a canoa dele. Qualquer parte do rio ele vai a remo, nadando. Mas na rua ele se perde.

João encerra seu repente brutal:

– Eu quero que o mundo saiba que Belo Monte me matou.

(Publicado no El País em 22 de setembro de 2015)

 

 

Adeus, Arapujá

Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu, vive há mais de uma década com escolta policial para não ser assassinado por sua luta pela floresta amazônica, pelos povos tradicionais e pelos mais pobres. Ao ver a ilha de Arapujá, cartão-postal de Altamira, ser destruída para dar lugar à hidrelétrica de Belo Monte, escreveu essa carta-desabafo. Arapujá é apenas uma das muitas ilhas que desaparecerão se Belo Monte começar a operar.

Dom Erwin Kräutler, em 2014, na janela da sua casa em Altamira, olhando para a ilha de Arapujá, então intacta (Fotos de Lilo Clareto)

Dom Erwin Kräutler, em 2014, na sacada da sua casa em Altamira, diante da ilha de Arapujá, ainda intacta  (Fotos de Lilo Clareto)

Choro, não sei se é de raiva, de revolta ou de tristeza. Creio que é pelas três razões ao mesmo tempo. É um profundo pesar, uma dor compungente, dilacerante. Sinto-me como alguém que é açoitado sem dó e piedade. E é inocente. Depois da tortura, já coberto de hematomas, que adianta provar a inocência!

E lá em cima, nos gabinetes confortáveis da capital federal, defendem a legalidade da destruição do Xingu. Invocam a tese do “interesse nacional“.

Você pode imaginar o que significa para mim o afogamento da ilha Arapujá? Durante cinquenta anos a contemplei com carinho, sempre que a mirava (Alta-mira) da janela de meu quarto ou escritório na “rua da frente”. E oitenta anos atrás, já meus tios Eurico e Guilherme se encantaram com essa beleza!

É um pedaço de mim que agora vai para o fundo.

Erwin Kräutler
Bispo do Xingu

 

A ilha de Arapujá hoje, destruída por Belo Monte

A ilha de Arapujá hoje, destruída por Belo Monte


Leia a entrevista com Dom Erwin Kräutler:

04/06/2012
Dom Erwin Kräutler: “Lula e Dilma passarão para a História como predadores da Amazônia”

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