Cunha, o nosso vilão do Batman

A coluna desta semana no El País fala sobre Eduardo Cunha, “o perverso que goza em nome de Jesus”. Busquei analisar esse personagem que nos corrompe a todos ao pedir nossa adesão como crentes.

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), na semana passada. / FERNANDO BIZERRA JR. (EFE)

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), na semana passada. / FERNANDO BIZERRA JR. (EFE)

Como a perversão se expressa na política e submete os brasileiros à farsa levada ao status de realidade

 

A sensação é cada vez mais estranha ao se abrir os jornais, ligar a TV no noticiário ou acessar os sites de notícias da internet. Dia após dia, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) diz isso, afirma aquilo, declara aquele outro, alerta e ameaça. E nega as contas na Suíça. Tem lá sua assinatura, seu passaporte diplomático, seu endereço. Mas ele nega. O fato de negar o que a pilha de provas já demonstrou inegável é um direito de qualquer um. A maioria vai para a cadeia negando ter cometido o crime que a colocou lá. O problema são os outros verbos. Como é que tal personagem se tornou – e continua sendo – tão central na vida do país, a ponto de seguir manipulando e chantageando com as grande questões do momento, com as votações importantes? Como Eduardo Cunha ainda diz, afirma, declara, alerta e ameaça nas manchetes dos jornais? Como o que é farsa pode ser apresentado como fato? O cotidiano do Brasil e dos brasileiros tornou-se uma experiência perversa. A de viver dia após dia uma abominação como se fosse normalidade. Essa vivência vai provocando uma sensação crescente de deslocamento e vertigem. Não se sabe o quanto isso custará para o país, objetivamente, e o quanto custará na expressão política da subjetividade. Mas custará. Porque já custa demasiado.

Até o mais obtuso sabe que Eduardo Cunha continua no palco porque ainda tem utilidade para os projetos de poder de um lado e de outro. Entre esses dois lados que se digladiam não há oposição. Esta é outra farsa e também é por isso que se pode levar a sério um farsante como Cunha. A pauta conservadora para o país já foi estabelecida, o que se disputa é o poder de executá-la. Mas, se Cunha é apenas a expressão de uma operação política muito mais ampla, profunda e que nem começou com ele nem acabará com ele, na qual o papel do PMDB é central, ele não pode ter a importância de sua individualidade negada. Se o Brasil já teve muitos Cunhas, em vários aspectos, também não teve nenhum Cunha, em outros. Como todo vilão, o personagem é fascinante e totalmente singular.

Eduardo Cunha parece ser um perverso. Aquele que denega: vê mas finge que não viu, é mas finge que não é. Ele não seguiria ditando os dias de Brasília não fosse o homem perfeito para o papel. Para que a maioria possa fingir que disputa os rumos do país, quando disputa apenas o seu próprio, é preciso o fingidor maior, o mestre de cerimônias deste espetáculo. A sensação esquisita ao abrir o jornal ou a internet ou ligar a TV no noticiário se dá porque essa farsa pede uma adesão. A nossa adesão. É aí que (também) está a perversão.

É evidente que Cunha não espera que alguém acredite, entre outras coisas, que ele não tem contas na Suíça, como segue afirmando sem piscar. Ele sabe que (quase) ninguém acredita nisso. Mas isso não impede que Cunha espere que possamos agir como crentes. Essa também é parte do estranhamento ao entrar em contato com o noticiário: somos convocados a uma adesão pela crença, o que, de novo, perverte a experiência da política.

É como se, em algum nível íntimo, ele se divertisse muito com a possibilidade de transformar a realidade numa negação coletiva. Para o perverso, o outro não conta como outro. O outro – nós – somos apenas os suportes para a sua satisfação. Denunciado por corrupção e lavagem de dinheiro, ele fala em nome de Jesus, registra uma frota de carros de luxo numa empresa com o nome Jesus.com, discursa para os eleitores evangélicos que Deus o colocou na presidência da Câmara. Cunha é o perverso que goza em nome de Jesus.

Leia mais na minha coluna no El País.

 

THINK OLGA PRIMEIRO ASSEDIO

A semana passada foi nefasta para as mulheres (e para todos), por causa desse projeto de Eduardo Cunha aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que dificulta o aborto legal e especialmente o aborto de gravidez resultante de estupro, e também pelos comentários abusivos no Twitter sobre a menina de 12 anos, participante do Masterchef Junior. Mas houve uma reação, talvez o único tipo de movimento político que nos dá alento no momento atual: a campanha #PrimeiroAssédio, promovida pelo Think Olga.

 

Evelyn Ruman/ Divulgação

Evelyn Ruman/ Divulgação

Participei da campanha relembrando um texto mais antigo, onde conto o meu primeiro assédio e alguns outros: “Vagina

Para quem fala em pedofilia, seja para abusar da menina no Twitter, seja para condenar os assediadores como “pedófilos”, gostaria de lembrar que, ao contrário do que parece acontecer com aqueles que se manifestaram no Twitter (e que devem ser responsabilizados por isso), os pedófilos sofrem. Não todos, mas uma parte significativa deles. Entendi isso escutando-os. Relembro então outro artigo mais antigo: “Pedófilo é gente?”

Eduardo Cunha, o nosso vilão do Batman

Como a perversão se expressa na política e submete os brasileiros à farsa levada ao status de realidade

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), na semana passada. FERNANDO BIZERRA JR. EFE (Reprodução do El País)

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), na semana passada. FERNANDO BIZERRA JR. EFE (Reprodução do El País)

A sensação é cada vez mais estranha ao se abrir os jornais, ligar a TV no noticiário ou acessar os sites de notícias da internet. Dia após dia, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) diz isso, afirma aquilo, declara aquele outro, alerta e ameaça. E nega as contas na Suíça. Tem lá sua assinatura, seu passaporte diplomático, seu endereço. Mas ele nega. O fato de negar o que a pilha de provas já demonstrou inegável é um direito de qualquer um. A maioria vai para a cadeia negando ter cometido o crime que a colocou lá. O problema são os outros verbos. Como é que tal personagem se tornou – e continua sendo – tão central na vida do país, a ponto de seguir manipulando e chantageando com as grandes questões do momento, com as votações importantes? Como Eduardo Cunha ainda diz, afirma, declara, alerta e ameaça nas manchetes dos jornais? Como o que é farsa pode ser apresentado como fato? O cotidiano do Brasil e dos brasileiros tornou-se uma experiência perversa. A de viver dia após dia uma abominação como se fosse normalidade. Essa vivência vai provocando uma sensação crescente de deslocamento e vertigem. Não se sabe o quanto isso custará para o país, objetivamente, e o quanto custará na expressão política da subjetividade. Mas custará. Porque já custa demasiado.

Até o mais obtuso sabe que Eduardo Cunha continua no palco porque ainda tem utilidade para os projetos de poder de um lado e de outro. Entre esses dois lados que se digladiam não há oposição. Esta é outra farsa e também é por isso que se pode levar a sério um farsante como Cunha. A pauta conservadora para o país já foi estabelecida, o que se disputa é o poder de executá-la. Mas, se Cunha é apenas a expressão de uma operação política muito mais ampla, profunda e que nem começou com ele nem acabará com ele, na qual o papel do PMDB é central, ele não pode ter a importância de sua individualidade negada. Se o Brasil já teve muitos Cunhas, em vários aspectos, também não teve nenhum Cunha, em outros. Como todo vilão, o personagem é fascinante e totalmente singular.

Eduardo Cunha parece ser um perverso. Aquele que denega: vê mas finge que não viu, é mas finge que não é. Ele não seguiria ditando os dias de Brasília não fosse o homem perfeito para o papel. Para que a maioria possa fingir que disputa os rumos do país, quando disputa apenas o seu próprio, é preciso o fingidor maior, o mestre de cerimônias deste espetáculo. A sensação esquisita ao abrir o jornal ou a internet ou ligar a TV no noticiário se dá porque essa farsa pede uma adesão. A nossa adesão. É aí que (também) está a perversão.

É evidente que Cunha não espera que alguém acredite, entre outras coisas, que ele não tem contas na Suíça, como segue afirmando sem piscar. Ele sabe que (quase) ninguém acredita nisso. Mas isso não impede que Cunha espere que possamos agir como crentes. Essa também é parte do estranhamento ao entrar em contato com o noticiário: somos convocados a uma adesão pela crença, o que, de novo, perverte a experiência da política.

É como se, em algum nível íntimo, ele se divertisse muito com a possibilidade de transformar a realidade numa negação coletiva. Para o perverso, o outro não conta como outro. O outro – nós – é apenas o suporte para a sua satisfação. Denunciado por corrupção e lavagem de dinheiro, ele fala em nome de Jesus, registra uma frota de carros de luxo numa empresa com o nome Jesus.com, discursa para os eleitores evangélicos que Deus o colocou na presidência da Câmara. Cunha é o perverso que goza em nome de Jesus.

Neste sentido, Cunha se assemelha a um vilão do Batman: todos muito singulares, mas com o traço da perversão em comum. Só que Batman e seus vilões extraordinários são ficção. Ao produzir o deslocamento na esfera pública, Eduardo Cunha faz da farsa a realidade. Este é talvez o seu maior poder – o poder que lhe permite ainda ter poder. Abaixo da farsa maior, desenrolam-se todas as outras, como a do PSDB fingindo pedir seu afastamento, quando o apoia nos bastidores, na expectativa de que ele leve adiante o impeachment de Dilma Rousseff, ou a do Planalto também negociando com ele, mas pelo motivo contrário, para que ele não leve adiante o impedimento da presidente. Ou todos aqueles parlamentares que temem o dia em que Cunha abrir a boca para contar algumas histórias pouco edificantes que os envolvem. Para estes, é preciso manter figuras como Cunha com algo a perder. Do contrário, o país ganha, mas muitos dos atores do Congresso perdem.

Se tudo fosse encenado como uma sátira política, no teatro e não no Congresso, seria um ótimo espetáculo. A perversão é que a farsa se apresenta como realidade, e torna-se realidade. Eduardo Cunha nos corrompe a todos porque, da forma como a encenação evolui, somos parte dela. A encenação engolfa a plateia e já não sabemos onde fica a saída do teatro, porque já não há teatro. Já é a vida. Talvez por isso, para muitos, tem sido dias de vertigem.

Simplificando. É como se, todo dia, aquele que está colocado no lugar de autoridade afirmasse: o céu é vermelho com bolinhas verdes. E a imprensa reproduzisse: fulano afirma que o céu é vermelho com bolinhas verdes. Aí há outras autoridades dizendo que não, está provado que o céu é azul e não tem bolinhas. Mas, no dia seguinte, está lá a repetição: o céu é vermelho com bolinhas verdes. E as pessoas estão lá, debaixo do céu azul, mas assistindo ou lendo as notícias não como uma comédia ou uma sátira ou uma farsa, mas como se sério fosse. E sério é. Porque a autoridade continua sendo autoridade, apesar de afirmar que o céu é vermelho com bolinhas verdes. E as demais autoridades do campo da política, mesmo as que se apresentam em polos opostos, negociam com o cara do céu vermelho com as bolinhas verdes, como se esta fosse a normalidade institucional. É impossível não ir se sentindo esquisito e duvidando da própria sanidade num mundo como este.

Aí a coisa vai piorando. A cada semana vai piorando. Na passada, por exemplo. Políticos fizeram uma homenagem a Eduardo Cunha inaugurando seu retrato oficial na galeria de ex-líderes da bancada do PMDB na Câmara. O episódio é uma versão invertida de O retrato de Dorian Gray. Na obra clássica de Oscar Wilde, o retrato é escondido dos olhos do público porque vai absorvendo as marcas do tempo e dos crimes cometidos pelo personagem na vida real. Na crônica política do país, porém, o sentido é outro. O retrato exposto cristaliza a perversão: a de um homem ser homenageado, com palmas e discursos laudatórios, no momento em que está denunciado por corrupção e que as provas de contas na Suíça, possivelmente abastecidas por dinheiro público, se acumulam. A perversão é a da lei que não valeria para o retratado, ganhando o seu monumento na parede. Se o retrato de Dorian Gray precisa ser oculto porque denuncia o retratado, o de Eduardo Cunha ganha o espaço público porque o retratado, para os seus pares, está além da denúncia. É verdade que houve protestos, mas a homenagem foi realizada. E o homenageado segue como o terceiro na linha sucessória da presidência do país. O retrato do corrupto, ao ser exposto como virtude, corrompe a todos.

Mas o retrato de Eduardo Cunha não é o episódio mais revelador da semana. É na aprovação do projeto de lei proposto por ele pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara que a anatomia da perversão se revela em sua completa amplitude. Cunha quer regular o corpo das mulheres e tenta – e está conseguindo – dificultar as possibilidades de aborto previstas por lei. Em especial, uma delas: a interrupção da gravidez resultante de estupro. Ao fazer um projeto punindo os agentes de saúde que garantirem os meios para uma mulher abortar, o que ele tenta fazer é burlar a Constituição. Quando o projeto determina que as mulheres precisam comprovar o estupro com exame de corpo de delito é a palavra da mulher que ele esvazia. Porque é exatamente isso que um perverso faz: ele esvazia o outro, neste caso as mulheres, porque o outro só existe para servir aos seus interesses. O outro não é uma pessoa, não é um sujeito de direitos, não é alguém com uma história. É apenas um meio, um corpo, um objeto submetido ao gozo do perverso.

Vale a pena prestar atenção a este trecho do projeto de autoria de Cunha, com apoio da bancada da Bíblia: “Trata-se, ainda, de garantir a máxima efetividade às normas constitucionais, que preceituam a inviolabilidade do direito à vida. Urge, portanto, uma reforma legislativa que previna a irrupção de um sério problema de saúde pública”. Ora, o “sério problema de saúde pública” existe há muito. O aborto é a quinta causa de morte materna no país. Quem mais morre são as mulheres pobres, a maioria delas jovens e negras, que não podem pagar por uma clínica segura, como as mais ricas, nem podem contar com o Sistema Único de Saúde (SUS). Ao tentar dificultar os poucos casos cuja interrupção da gravidez é permitida, em especial o aborto em caso de estupro, e criminalizar os profissionais de saúde que dão assistência às mulheres nesta situação, o que Cunha tenta fazer é exatamente o contrário do que diz: o que ele tenta fazer é atropelar a Constituição, dificultando a aplicação da lei, e não aumentando a sua efetividade. A lei, para o perverso, não vale para ele. Ao contrário: a lei é dele e vale sobre o outro.

Para um perverso, a relação com a lei é a do desmentido. Cunha sabe que existe a lei, mas a denega. Tudo o que rege e regula as relações humanas e entre cidadãos não o regula, já que o outro não conta como pessoa. O perverso invoca a lei, mas apenas como um fingidor. O perverso que legisla, como Cunha, faz da lei uma farsa. E goza dessa impostura. O perverso jamais goza com o outro, ele goza do outro. Mas por que Cunha transforma justamente o corpo e a vida das mulheres em objetos de sua perversão? Porque esta é a sua obra-prima, sua masterpiece: o moralista sem moral é o farsante que atingiu a perfeição.

Em nome da moralidade religiosa, ele promove a morte das mulheres anunciando que defende a vida. Em nome de Jesus, o perverso pode ter contas na Suíça abastecidas com o dinheiro público que falta nos hospitais e pregar a imoralidade de uma mulher interromper uma gravidez resultante de um estupro. Para o perverso só há um sagrado: o seu gozo. Por isso, Eduardo Cunha pode discursar para eleitores evangélicos sobre sua ascensão à presidência da Câmara: “Deus me colocou lá! Eu sempre digo, Silas (Malafaia), se Deus me colocou lá, ele saberá sempre honrar o trabalho que ele fez!”. Assim, no discurso do perverso, não é Cunha quem honra Deus, mas Deus é quem honra Cunha. Nem o próprio Jesus ousou dizer algo assim para o povo em seus sermões bíblicos.

O mais desafiador será acompanhar até onde isso pode ir. Não há como sustentar tal surrealismo por tanto tempo mais, mas saber até onde conseguem levar será crucial para compreender o país. Porque já foi muito mais longe do que as previsões mais pessimistas. Para o destino do perverso ainda se pode contar com a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e o Supremo Tribunal Federal. Em algum momento, cumprido o rito do Estado de direito, é possível que se conclua que o lugar de Eduardo Cunha não é na presidência da Câmara, mas na cadeia. Para o fim do Estado de perversão não há desfecho no horizonte.

Os perversos em posições de poder não são exclusividade do Brasil. Na semana que passou, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, chegou ao extremo de diminuir a responsabilidade de Adolf Hitler no extermínio de seis milhões de judeus, para tentar colocar o mundo contra os palestinos. Segundo o israelense, o Holocausto teria sido ideia de um religioso palestino – e não do líder nazista. A afirmação foi rechaçada, com todas as letras, por vários políticos influentes de Israel, entre eles o presidente, Reuven Rivlin, e o líder da oposição, Isaac Herzog: não se manipularia com a História. O primeiro-ministro israelense ouviu então da chanceler alemã, Angela Merkel: “A responsabilidade pelo Holocausto é da Alemanha”. E, antes, do seu porta-voz: “Nós, alemães, conhecemos muito bem a origem do racismo criminoso do nacional-socialismo que conduziu ao Holocausto. Ensina-se nas escolas e não podemos permitir que se esqueça a responsabilidade única da Alemanha nesse crime contra a humanidade”.

Os perversos estão por toda parte – e sempre estarão. A vertigem que sentimos diante do noticiário é que no Brasil parece não existir nenhum político de grande estatura disposto a denunciar a farsa sem tergiversar. E, assim, cumprir o dever público de assumir sua responsabilidade histórica com o país.

(Publicado no El País em 26 de outubro de 2015)

A “safada” que “abandonou” seu bebê

Minha coluna no El País é sobre a mais recente mulher demonizada por supostamente “abandonar” seu bebê. As mulheres ainda são torturadas pelo mito da maternidade e pela fantasia de que toda mulher que dá à luz é mãe.

Sacola onde foi encontrado o bebê, no bairro paulistano de Higienópolis. / EDU SILVA (FUTURA PRESS / FOLHAPRESS)

Sacola onde foi encontrado o bebê, no bairro paulistano de Higienópolis. / EDU SILVA (FUTURA PRESS / FOLHAPRESS)

Como o mito da maternidade demoniza as mulheres ainda hoje e as reduz a mães desnaturadas ou criminosas, só toleradas se forem consideradas “loucas”.

Nos últimos dias, o Brasil elegeu uma nova vilã para lançar na fogueira do moralismo. Sandra Maria dos Santos Queiroz, 37 anos, é uma nordestina de Vitória da Conquista, na Bahia, que migrou para São Paulo para trabalhar como empregada doméstica. No domingo, 4 de outubro, Sandra pariu sozinha, escondida no banheiro anexo ao quarto de empregada, a sua terceira criança. O primeiro, um garoto de 17 anos, é criado por parentes na Bahia. A segunda, uma menina de três anos, vive com ela na casa dos patrões, no bairro nobre de Higienópolis. Sandra escondeu a gravidez por nove meses e passou por todas as dores do parto, que tanto atemorizam as mulheres, sem fazer alarde. Cortou ela mesma o cordão umbilical. Amamentou a criança, embrulhou-a, colocou-a não em qualquer sacola, mas numa bem chique – “Au Pied de Cochon”, nome de um restaurante tradicional de Paris –, o que diz muito. Deixou-a embaixo de uma árvore, diante de um prédio. Escondeu-se e ficou esperando até ter certeza de que o bebê seria encontrado. Neste momento, outro empregado da vizinhança, o zelador Francisco de Assis Marinho, migrante da Paraíba, estranhou a sacola, levantou-a, pelo peso concluiu que era roupa, e deixou-a cair. O bebê chorou. Francisco chamou a polícia, sonhou com adotar a menina, afirmou que sentiu amor imediato pela criança. No drama de Higienópolis, emergem dos bastidores da cena cotidiana do bairro dois personagens em geral invisíveis: o zelador e a doméstica. Ele tornou-se o herói. Ela, a mãe desnaturada.

“Safada” é o termo que outro trabalhador das zonas cinzentas, um segurança, escolhe para se referir à Sandra, como conta a repórter Camila Moraes, num texto imprescindível. “Por que você abandonou a criança?”, gritavam jornalistas, quando ela foi detida pela polícia. No Brasil, “abandonar” um bebê é crime punido com até três anos de prisão, pena que pode aumentar em um terço quando é a mãe ou outro parente próximo que consuma o ato. Sandra foi flagrada por câmeras de segurança instaladas para detectar estranhos ao bairro. Ela foi identificada, levada para a delegacia e exposta. Depois, liberada para esperar a sentença. O bebê foi levado a um hospital, já teve alta e pode ser colocado para adoção.

Neste enredo da vida real, Francisco, o zelador, encarna o lado virtuoso do homem que não fecundou, mas quer se tornar pai. E, assim, apaga a ausência eloquente do homem pelo qual quase ninguém pergunta, aquele que é tão responsável pela gravidez quanto Sandra. Ela, Sandra, só pode ser transformada em vilã por ser vítima do mito da maternidade.

Leia mais na minha coluna no El País

Nesta coluna também falo de um filme que recomendo a todos, previsto para estrear no Brasil em 5 de novembro: Olmo e A Gaivota, de Petra Costa (que fez o lindo Elena) e Lea Glob, com produção executiva do Tim Robbins.

 

Na última sexta-feira (9/10), publiquei um artigo no The Guardian, sobre o atual momento do Brasil:

In Brazil’s political drama, all the players are villains

‘Concrete plans for the country itself are flimsier than those giant inflatable Dilma or Lula dolls dressed as convicts seen in current street protests.’ Photograph: Eraldo Peres/AP

‘Concrete plans for the country itself are flimsier than those giant inflatable Dilma or Lula dolls dressed as convicts seen in current street protests.’ Photograph: Eraldo Peres/AP

A “safada” que “abandonou” seu bebê

Como o mito da maternidade demoniza as mulheres ainda hoje e as reduz a mães desnaturadas ou criminosas, só toleradas se forem consideradas “loucas”

Nos últimos dias, o Brasil elegeu uma nova vilã para lançar na fogueira do moralismo. Sandra Maria dos Santos Queiroz, 37 anos, é uma nordestina de Vitória da Conquista, na Bahia, que migrou para São Paulo para trabalhar como empregada doméstica. No domingo, 4 de outubro, Sandra pariu sozinha, escondida no banheiro anexo ao quarto de empregada, a sua terceira criança. O primeiro, um garoto de 17 anos, é criado por parentes na Bahia. A segunda, uma menina de três anos, vive com ela na casa dos patrões, no bairro nobre de Higienópolis. Sandra escondeu a gravidez por nove meses e passou por todas as dores do parto, que tanto atemorizam as mulheres, sem fazer alarde. Cortou ela mesma o cordão umbilical. Amamentou a criança, embrulhou-a, colocou-a não em qualquer sacola, mas numa bem chique – “Au Pied de Cochon”, nome de um restaurante tradicional de Paris –, o que diz muito. Deixou-a embaixo de uma árvore, diante de um prédio. Escondeu-se e ficou esperando até ter certeza de que o bebê seria encontrado. Neste momento, outro empregado da vizinhança, o zelador Francisco de Assis Marinho, migrante da Paraíba, estranhou a sacola, levantou-a, pelo peso concluiu que era roupa, e deixou-a cair. O bebê chorou. Francisco chamou a polícia, sonhou com adotar a menina, afirmou que sentiu amor imediato pela criança. No drama de Higienópolis, emergem dos bastidores da cena cotidiana do bairro dois personagens em geral invisíveis: o zelador e a doméstica. Ele tornou-se o herói. Ela, a mãe desnaturada.

“Safada” é o termo que outro trabalhador das zonas cinzentas, um segurança, escolhe para se referir à Sandra, como conta a repórter Camila Moraes, num texto imprescindível. “Por que você abandonou a criança?”, gritavam jornalistas, quando ela foi detida pela polícia. No Brasil, “abandonar” um bebê é crime punido com até três anos de prisão, pena que pode aumentar em um terço quando é a mãe ou outro parente próximo que consuma o ato. Sandra foi flagrada por câmeras de segurança instaladas para detectar estranhos ao bairro. Ela foi identificada, levada para a delegacia e exposta. Depois, liberada para esperar a sentença. O bebê foi levado a um hospital, já teve alta e pode ser colocado para adoção.

Neste enredo da vida real, Francisco, o zelador, encarna o lado virtuoso do homem que não fecundou, mas quer se tornar pai. E, assim, apaga a ausência eloquente do homem pelo qual quase ninguém pergunta, aquele que é tão responsável pela gravidez quanto Sandra. Ela, Sandra, só pode ser transformada em vilã por ser vítima do mito da maternidade.

Nos últimos anos, o Brasil viu crescer um movimento forte, criativo e solidário, de defesa e resgate do parto natural e humanizado, para que a mulher recupere o protagonismo no nascimento das crianças, sequestrado pela autoridade médica no país campeão mundial de cesarianas. Também há um movimento forte e bem mais antigo, nascido junto com os vários feminismos, pela descriminalização do aborto.

No Brasil, o aborto só é permitido em três casos: gravidez resultante de estupro, risco de morte para a mulher e gestação de feto anencefálico, uma anomalia incompatível com a vida. Na prática, o aborto obedece à lógica do apartheid racial e social que rege o cotidiano do país: é acessível às mulheres que podem pagar por ele em clínicas seguras e vetado para as mulheres que não podem pagar por ele, as mais pobres, a maioria delas negras e jovens, que dependem do Sistema Único de Saúde (SUS). Estas se submetem a charlatões e a condições perigosas, ou apelam para expedientes solitários e desesperados. Muitas morrem na tentativa de interromper a gestação de uma criança que não querem ou não podem ter, fazendo do aborto a quinta causa de morte materna no país. A criminalização do aborto é, na prática, uma máquina estatal de produzir cadáveres femininos. E também órfãos, já que parte destas mulheres têm outros filhos esperando-as em casa. Pesquisas mostram que a morte da mãe multiplica as fragilidades e acentua a miséria, condenando a família que restou.

Defender o protagonismo das mulheres no parto e defender o direito de as mulheres decidirem se querem ou não levar uma gestação adiante não é uma coisa e outra coisa. É a mesma coisa, embora parte das militantes de um movimento e outro não encarem dessa forma. Trata-se do respeito à autonomia da mulher sobre o seu corpo, hoje submetido pela autoridade médica, no primeiro caso, pelo Estado, no segundo. E há que se dar um passo a mais se as mulheres contemporâneas quiserem recuperar o controle sobre si mesmas: é preciso lutar ao lado de Sandra – e de todas as Sandras – para que ela não seja reduzida a uma pária social.

Para isso, é preciso confrontar o mito da maternidade, que esmaga as mulheres há tantos séculos. A ideia de que ser mãe é a realização suprema de qualquer mulher e de que nos tornamos mulheres mais completas ao vivermos a experiência da maternidade é uma armadilha na qual algumas de nós caem alegremente. Outras até mesmo se atiram. Ainda hoje, mulheres que não têm filhos são vistas por muitas de suas contemporâneas esclarecidas como uma espécie de ser pela metade. Ora histérica, ora frustrada. Para sempre incompleta. No mesmo sentido, é preciso combater a ideia de que a maternidade é feliz. E feliz mesmo quando é triste, o clássico clichê do “ser mãe é padecer no paraíso”. O lugar mitificado dado à maternidade por uma série de razões históricas reduz mulheres como Sandra a “safadas”, no jargão popular, a criminosas no Código Penal.

Também jornalistas agrediram Sandra com a pergunta supostamente legítima: “Por que você abandonou a criança?”. Digo supostamente legítima porque o verbo “abandonar” já revela um julgamento – e não um fato. E de imediato produz um estigma, com grande repercussão no imaginário: o da mãe “abandonadora”. Se foi abandono ou não, só a história de Sandra poderá mostrar. O fato é que ela deixou a criança ao pé de uma árvore. Com o que sabemos, o mais provável é que ela não abandonou o bebê. Ela talvez tenha dado a criança. E a mudança do verbo – de “abandonar” para “dar” – pode mudar a interpretação do movimento feito por Sandra.

Na medida das suas circunstâncias, desejando ficar anônima por medo de perder o emprego, como ela diria depois, planejou deixar a criança num local visível, para que fosse encontrada o mais rapidamente possível. E certificou-se de que isso aconteceria. Conhecedora dos hábitos da vizinhança, Sandra sabia que alguém se surpreenderia com a sacola junto a uma árvore. Como disse Francisco, o zelador que resgatou o bebê: “Sei que domingo não é dia de coleta de lixo. Fiquei curioso (com a sacola)”.

Sandra também sabe que domingo não é dia de coleta de lixo. E que a sacola despertaria a curiosidade daqueles que precisam zelar pela limpeza diante dos prédios, sob pena de perder seus empregos. Vale lembrar que a clássica cena de filme de Hollywood, em que a mãe desesperada deixa o bebê na porta de uma mansão, toca a campainha e esconde-se aos prantos para ter certeza de que seu bebê ficará em boas mãos, não é possível na metrópole murada, o território de cada um protegido por grades, alarmes e cercas eletrificadas. Sandra fez a versão possível dessa cena, que no cinema desperta tanta compaixão e lágrimas pela mulher, e na vida real apenas fúria e dedos em riste. Deixou a criança no melhor lugar que podia, junto a uma árvore. E esperou.

Diante da pergunta de por que abandonou o bebê, Sandra, tapando o rosto, disse: “Por desespero”. É obrigatório escutar essa resposta. “Por desespero.” A profundidade das circunstâncias de Sandra não são conhecidas. Mas é possível compreender o pouco que se sabe: uma migrante nordestina trabalhando como doméstica em São Paulo, com um filho adolescente criado longe dela, outra filha pequena criada na casa dos patrões. Como ter um terceiro filho? Neste momento, como o enredo é mais do que previsível, berram os de sempre, salivando seu ódio: “Mas na hora de fazer gostou, né?”. O gozo da mulher é sempre passível de punição. Há sempre uma sem-vergonhice embutida na sexualidade da mulher. Afinal, na moralidade cristã, o sexo só pode ser justificado pela reprodução. E assim, o “safada” usado pelo segurança para se referir à Sandra ganha também a conotação sexual, já que ela não quis se tornar mãe daquela criança, esvaziando o ato sexual de legitimidade moral e transformando-o numa “safadeza”.

Reconhecer a complexidade do ato de Sandra não é tirar a responsabilidade de Sandra. Esta seria apenas mais uma violência contra ela. Tratar como “incapaz” ou como “louca” aquela que escolhe não ser mãe parece ser a única justificativa aceitável para a sociedade. É isso ou o linchamento moral – e às vezes físico. Como se a “safada” só pudesse ser parcialmente redimida ao ser convertida em “doida”. E como se de “safada” a “doida” houvesse uma melhora de status. Alternativas que respeitem a autonomia e a dignidade da mulher inexistem neste caso, e isso deveria revoltar homens e mulheres dispostos ao pensamento.

Reconhecer a complexidade do ato de Sandra é reconhecer que a maternidade pode não ser a escolha de todas. E pelas mais variadas razões, que deveriam dizer respeito apenas àquelas que escolhem. Reconhecer a complexidade do ato de Sandra é, principalmente, reconhecer que a maternidade pode ser aterrorizante mesmo para aquelas que escolhem se tornar mães. Nesta época em que tudo pode ser dito de forma testemunhal nas redes sociais, é hora de abrir a temporada de relatos confessionais sobre o quanto a gravidez pode provocar pavor mesmo para aquelas mulheres que sonharam com ela e a planejaram e têm todas as condições materiais para criar seus filhos. Uma situação, é fundamental lembrar, totalmente distante da realidade de Sandra, que não tinha nenhuma dessas condições.

É preciso dizer, bem alto e com todas as palavras, que para muitas de nós, mulheres, a criança crescendo no útero, alimentando-se de nós, é um alien. Esta foi também a minha sensação ao engravidar e experimentar a gravidez. A frase mais perfeita sobre o potencial de horror contido na experiência da maternidade é expressado nessa frase da escritora francesa Colette Audry: “Uma nova pessoa que entrou na sua vida sem vir de fora”. Pode ter algo mais aterrorizante do que esse estranho íntimo que invade as suas entranhas desde dentro e cresce sem parar e que um dia terá de sair dali? Eu só mudaria nessa frase a palavra “pessoa”. Minha sensação, e a de outras mulheres com quem conversei, é de que não temos a certeza de que é de fato uma pessoa. Pode ter qualquer forma esse alienígena. E essa também é uma expectativa bastante assombradora sobre o momento do parto.

Neste ponto, há outro tabu que precisamos quebrar com urgência. A de que a mulher ama seu filho desde sempre e é mãe desde o momento da gestação. O ato de engravidar e parir não torna uma mulher também uma mãe, nem torna a criança que nasce um filho. Tanto a mãe quanto o filho se tornam – ou não. São dois os nascimentos dessa história. Só um deles é certeza. Se haverá o segundo parto, aquele em que nasce uma mãe e um filho, não se sabe. Lembro-me de que, ao voltar para casa depois do parto, fiquei sozinha no meu quarto com a criança. Eu olhei para ela, ela olhou para mim. Nós duas choramos. Eu me perguntava: “quem é esta?”. Até hoje estou buscando a resposta, o que é fascinante. Naquela indagação empreendi o longo e incompleto caminho que me tornou mãe – e que tornou aquela menina minha filha.

No caso de Sandra e de tantas, por uma série de circunstâncias que se dão em cada história – sempre única, singular e intransferível –, pode haver o ato da gravidez e do parto sem que isso signifique tornar-se mãe e tornar-se filho. No caso de Sandra e de tantas, poderá existir uma outra mulher que se tornará mãe daquela criança e fará dela um filho, sem passar pela gravidez e pelo parto. Ou haverá um homem que se tornará mãe daquela criança e fará dela um filho. A maternidade não é prerrogativa exclusiva da mulher, nem tem nada a ver com gênero. Às vezes, inclusive, é coletiva. Tudo o que NÃO precisamos neste momento da história, e esse pode ser um alerta importante para muitas militantes, é de supermães, competindo para ver quem é mais extraordinária do que a outra. Supermãe é o superlativo que nos apequena a todas, a começar por aquela que arrota sua competência na maternagem. Quando nos tornamos de fato mães, somos todas condenadas apenas à imperfeição do possível.

O aumento do número de mulheres no cinema, na literatura e nas artes, assim como no jornalismo, tem impactado no questionamento de mitos como o da maternidade. É nesse contexto que se insere um filme muito delicado exibido no Festival do Rio, no início de outubro, que estreará nos cinemas brasileiros em novembro. Em Olmo e A Gaivota, um casal de atores do Théâtre du Soleil, Olivia Corsini e Serge Nicolaï, representam a si mesmos na experiência da gravidez real da atriz, enquanto é encenada a peça A Gaivota, do russo Anton Tchekhov. O documentário é dirigido pela brasileira Petra Costa, do belíssimo Elena, e pela dinamarquesa Lea Glob, com produção executiva de Tim Robbins.

(Alerta de spoiler: quem preferir assistir ao filme sem nada saber sobre ele, pule os próximos três parágrafos e volte ao texto em seguida.)

Como a gravidez é de risco, Olivia precisa deixar a peça e o mundo do teatro, onde ela e Serge viviam muito mais na pele de outros personagens do que na própria. Olivia terá de fazer algo ainda mais arriscado do que representar a Arkádina da peça de Tchekhov, não por acaso uma atriz com medo de envelhecer e perder o lugar. Olivia terá de vestir o próprio corpo invadido por essa criatura desconhecida e voraz. A certo momento, Olivia diz: “Todas as mulheres me dizem que ah, a gravidez, que momento extraordinário, que momento maravilhoso… Só se for depois”. Mais tarde, um dos seus dentes amolece. Uma amiga explica a ela, com naturalidade acachapante, que é usual perder dentes durante a gestação, “porque o bebê precisa de cálcio”. Olivia fica aterrorizada: “Como se fosse normal perder pedaços…”. Ela sente que há um “alien” dentro dela, alimentando-se dela, “impondo as regras do jogo”.

Entre Olivia e Serge, que continua no mundo em que sempre esteve, o corpo habitado na maior parte do tempo apenas por personagens da ficção, a tensão é crescente. Numa discussão, Olivia quer saber se a atriz que a substituiu é melhor do que ela, porque afinal também há isso. Desde que engravidou, ela já não é nem a atriz principal nem a mais jovem, mas aquela que envelhece e que não sabe se haverá um lugar para ela depois do parto. Serge diz que está cansado e que cada um deles tem seu própria cotidiano pesado: “Tenho o meu presente, e você tem o seu”. Olivia retruca com um gesto: “Stop!”. E continua: “Meu presente é seu também, mas só eu o carrego”.

Olmo e A Gaivota é um filme precioso. Ao final sabemos o que todas as mulheres intuem ao engravidar. Muito mais do que a sagração do feminino, a experiência da maternidade é o sepultamento da mulher que existia antes. Haverá outra, que ainda precisará saber quem é, mas não aquela. Todo nascimento de um filho é também o nascimento de uma mãe – e a morte de uma das tantas mulheres que somos ao longo de uma vida. Fascinante, sim. Assustador, também. O contrário de fácil ou de simples.

Olivia tem a ver comigo, Sandra tem a ver comigo. Estamos todas implicadas nesse mito da maternidade que nos esmaga e que lamentavelmente ajudamos a reproduzir. Somos cúmplices de nossos algozes históricos quando chamamos uma mulher como Sandra de “safada”, por ter escolhido não se tornar mãe da forma desesperada e desesperadora que suas circunstâncias lhe permitiram. Nem posso alcançar a solidão e o horror de Sandra parindo um bebê num banheiro, escondida, cortando ela mesma o cordão umbilical, amamentando a criança para poder entregá-la para ser adotada por quem dela poderia se tornar mãe.

Para alcançarmos a dignidade, precisamos dizer o mais difícil. O muito mais difícil: #SomosTodasSandra. Eu sou.

 

(Publicado no El País em 12 de outubro de 2015)