Acima dos muros

Não há nada mais transgressor neste momento que o diálogo.

Na coluna desta semana, no El País, convidei quatro pensadores cuja posição é estar nem num lado nem no outro, para responder a três perguntas sobre a crise atual. A ideia é dar espaço para as vozes abafadas, fora das narrativas da polarização. Não para construir um terceiro discurso – ou um terceiro lado. Não há homogeneidade. Os discursos devem permanecer múltiplos. Atravessar os muros com palavras, mas em várias direções.

Espero que esse texto possa alcançar o desejo que o moveu, provocar mais diálogo, conversa.

Foto: João Luiz Guimarães

Foto: João Luiz Guimarães

Nem de um lado nem de outro: o que dizem aqueles que têm, como posição, uma recusa às narrativas de adesão

Em cima do muro. Isentão. Colaboracionista do golpe. Covarde. Omisso. Ingênuo. Burro.

Estes são alguns dos nomes dados a quem não está em nenhum dos lados do Brasil polarizado. Não se alinha – muito menos se enfileira – nem na narrativa #ImpeachmentJá nem na “#NãoVaiTerGolpe. Nem amarelo, nem vermelho. E, assim, é achincalhado pelos dois lados, como traidor de ambos.

Como disse Bruno Cava: “Me situo nesse lugar nada confortável de ser a esquerda que a direita gosta – e a direita que a esquerda gosta. Mas que, no fundo, ninguém gosta. Lugar de pensamento que ainda balbucia, mas que ainda pensa”. Ou, nas palavras de Bruno Torturra, que se apresenta como “desidentificado”: “Prefiro a vertigem da desidentificação do que o falso refúgio das bandeiras de sempre”.

Como afirmei em meu artigo anterior, não estar em nenhum dos lados é posição. E forte. Silenciá-la, pela desqualificação, é uma perda num momento em que, mais do que nunca, as vozes precisam ser ampliadas e não reduzidas. Muito menos caladas. “Os discursos partidários, pronunciados por muitos e sempre da mesma forma, tem sufocado, com sua abundância repetitiva, os discursos independentes”, diz Pablo Ortellado. Ou, na expressão de Moysés Pinto Neto: “É como um vórtice bipolar, sugando tudo para seu interior e reduzindo todas as posições às suas referências”.

O país está, aparentemente, dividido por muros que impedem qualquer contato que não seja aos gritos. Ou que se realiza pelo espancamento, na tentativa de deletar literalmente o outro do espaço público. Os muros dos condomínios fechados, as cercas eletrificadas ganharam as ruas. E ninguém mais se escuta, cada pessoa um muro em si mesma, um portão armado, um vidro blindado e com insufilm.

É preciso promover o desarmamento. É necessário tentar enxergar acima dos muros – e derrubá-los. Não a marretadas, mas pelo instrumento mais subversivo desse momento histórico: o diálogo. A conversa que só pode acontecer pelo reconhecimento do outro como alguém que pensa diferente, não como um inimigo a ser eliminado.

É muito duro sustentar o lugar de não saber. Penso que é com essa dificuldade que também nos deparamos. Tenho dúvidas se não é por isso que uma parte das pessoas, à direita e à esquerda, prefere aderir ao conforto de uma das narrativas, para pelo menos se iludir que há uma resposta, que há alguém que sabe. Aderir como tentativa de estancar a angústia de sentir-se sem chão. Talvez seja o momento de suportar o não saber e acolher as incertezas. Mas em movimento, no movimento da busca.

No que se refere ao campo das esquerdas, também tenho dúvidas se não há, de novo, mais uma exortação ao “menos pior”, à eterna esperança da tal guinada à esquerda. Ou algo correspondente ao “voto útil” aplicado às manifestações. Mais uma conclamação, como se viu em eleições recentes e especialmente na última. Será que os dias seguintes não mostraram, de forma bastante eloquente, que isso já não deu certo? Que isso só alargou o abismo e que já passou da hora de encarar o buraco e enfrentar os conflitos, por mais duro que seja, para que pelo menos exista uma chance de criar possibilidades?

O diálogo é tão urgente que tem de ser provocado em todos os lugares. Percebi que, neste momento, nem na minha própria coluna de opinião posso falar sozinha. Convidei para este espaço, para nos ajudar a nos movermos, para além do que cada um acredita, algumas pessoas que têm ousado pensar e escrever, em geral em blogs e nas redes, sobre esse momento tão movediço, em que poucos se arriscam a dizer além do já dito. E a pensar fora das narrativas de adesão de um e outro lado. Estas, que já decoramos.

Trago para este espaço as vozes abafadas, as daqueles que não estão “em cima do muro”, mas “acima dos muros”, no plural. Moysés Pinto Neto é escritor, professor da Universidade Luterana do Brasil, graduado em direito e doutor em filosofia. Sua leitura do Brasil pode ser acompanhada no blog O Ingovernável. Bruno Torturra se dedica a experimentar novos caminhos para a participação política e para o jornalismo, a partir das possibilidades de hiperconexão. Fundou a Mídia Ninja, essencial na cobertura de Junho de 2013, e se distanciou dela a partir do final daquele ano. Hoje, toca o Estúdio Fluxo. Pablo Ortellado é filósofo, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas na Universidade de São Paulo e coautor de Vinte centavos: a luta contra o aumento, entre outros. Ele testemunhou, como pesquisador, todas as manifestações contra e a favor do impeachment organizadas em São Paulo. Bruno Cava, autor de A multidão foi ao deserto, entre outros livros, e blogueiro do Quadrado dos Loucos, também é um atento investigador das ruas, pesquisador de lutas e movimentos urbanos há 11 anos, associado à Universidade Nômade.

Eles responderam, por e-mail, a três perguntas propostas por mim. Embora esses quatro interlocutores estejam próximos do campo das esquerdas, há diferenças consideráveis no seu modo de compreender esse momento. E há quem considere o conceito de esquerda, assim como o de direita, superados, insuficientes e redutores. De modos diferentes, os quatro são observadores atentos de Junho de 2013 – o ponto de inflexão que não parece ter sido compreendido por protagonistas de ambos os lados.

A ideia, aqui, não é construir um terceiro discurso – ou um terceiro lado. Isso também seria empobrecedor. Não há homogeneidade. E é mais interessante que ela não exista, que os discursos possam ser múltiplos. Talvez, por isso, também seja difícil – ou mesmo impossível – nomear esse fora dentro. Ou esse além dos muros.

A transgressão necessária, nesse momento tão delicado, é atravessar os muros com palavras. Mas essas palavras têm várias direções.

Leia o texto completo na minha coluna no El País

Acima dos muros

Nem de um lado nem de outro: o que dizem aqueles que têm, como posição, uma recusa às narrativas de adesão

Foto de João Luiz Guimarães

Foto de João Luiz Guimarães

Em cima do muro. Isentão. Colaboracionista do golpe. Covarde. Omisso. Ingênuo. Burro.

Estes são alguns dos nomes dados a quem não está em nenhum dos lados do Brasil polarizado. Não se alinha – muito menos se enfileira – nem na narrativa #ImpeachmentJá nem na “#NãoVaiTerGolpe. Nem amarelo, nem vermelho. E, assim, é achincalhado pelos dois lados, como traidor de ambos.

Como disse Bruno Cava: “Me situo nesse lugar nada confortável de ser a esquerda que a direita gosta – e a direita que a esquerda gosta. Mas que, no fundo, ninguém gosta. Lugar de pensamento que ainda balbucia, mas que ainda pensa”. Ou, nas palavras de Bruno Torturra, que se apresenta como “desidentificado”: “Prefiro a vertigem da desidentificação do que o falso refúgio das bandeiras de sempre”.

Como afirmei em meu artigo anterior, não estar em nenhum dos lados é posição. E forte. Silenciá-la, pela desqualificação, é uma perda num momento em que, mais do que nunca, as vozes precisam ser ampliadas e não reduzidas. Muito menos caladas. “Os discursos partidários, pronunciados por muitos e sempre da mesma forma, tem sufocado, com sua abundância repetitiva, os discursos independentes”, diz Pablo Ortellado. Ou, na expressão de Moysés Pinto Neto: “É como um vórtice bipolar, sugando tudo para seu interior e reduzindo todas as posições às suas referências”.

O país está, aparentemente, dividido por muros que impedem qualquer contato que não seja aos gritos. Ou que se realiza pelo espancamento, na tentativa de deletar literalmente o outro do espaço público. Os muros dos condomínios fechados, as cercas eletrificadas ganharam as ruas. E ninguém mais se escuta, cada pessoa um muro em si mesma, um portão armado, um vidro blindado e com insufilm.

É preciso promover o desarmamento. É necessário tentar enxergar acima dos muros – e derrubá-los. Não a marretadas, mas pelo instrumento mais subversivo desse momento histórico: o diálogo. A conversa que só pode acontecer pelo reconhecimento do outro como alguém que pensa diferente, não como um inimigo a ser eliminado.

É muito duro sustentar o lugar de não saber. Penso que é com essa dificuldade que também nos deparamos. Tenho dúvidas se não é por isso que uma parte das pessoas, à direita e à esquerda, prefere aderir ao conforto de uma das narrativas, para pelo menos se iludir que há uma resposta, que há alguém que sabe. Aderir como tentativa de estancar a angústia de sentir-se sem chão. Talvez seja o momento de suportar o não saber e acolher as incertezas. Mas em movimento, no movimento da busca.

No que se refere ao campo das esquerdas, também tenho dúvidas se não há, de novo, mais uma exortação ao “menos pior”, à eterna esperança da tal guinada à esquerda. Ou algo correspondente ao “voto útil” aplicado às manifestações. Mais uma conclamação, como se viu em eleições recentes e especialmente na última. Será que os dias seguintes não mostraram, de forma bastante eloquente, que isso já não deu certo? Que isso só alargou o abismo e que já passou da hora de encarar o buraco e enfrentar os conflitos, por mais duro que seja, para que pelo menos exista uma chance de criar possibilidades?

O diálogo é tão urgente que tem de ser provocado em todos os lugares. Percebi que, neste momento, nem na minha própria coluna de opinião posso falar sozinha. Convidei para este espaço, para nos ajudar a nos movermos, para além do que cada um acredita, algumas pessoas que têm ousado pensar e escrever, em geral em blogs e nas redes, sobre esse momento tão movediço, em que poucos se arriscam a dizer além do já dito. E a pensar fora das narrativas de adesão de um e outro lado. Estas, que já decoramos.

Trago para este espaço as vozes abafadas, as daqueles que não estão “em cima do muro”, mas “acima dos muros”, no plural. Moysés Pinto Neto é escritor, professor da Universidade Luterana do Brasil, graduado em direito e doutor em filosofia. Sua leitura do Brasil pode ser acompanhada no blog O Ingovernável. Bruno Torturra se dedica a experimentar novos caminhos para a participação política e para o jornalismo, a partir das possibilidades de hiperconexão. Fundou a Mídia Ninja, essencial na cobertura de Junho de 2013, e se distanciou dela a partir do final daquele ano. Hoje, toca o Estúdio Fluxo. Pablo Ortellado é filósofo, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas na Universidade de São Paulo e coautor de Vinte centavos: a luta contra o aumento, entre outros. Ele testemunhou, como pesquisador, todas as manifestações contra e a favor do impeachment organizadas em São Paulo. Bruno Cava, autor de A multidão foi ao deserto, entre outros livros, e blogueiro do Quadrado dos Loucos, também é um atento investigador das ruas, pesquisador de lutas e movimentos urbanos há 11 anos, associado à Universidade Nômade.

Eles responderam, por e-mail, a três perguntas propostas por mim. Embora esses quatro interlocutores estejam próximos do campo das esquerdas, há diferenças consideráveis no seu modo de compreender esse momento. E há quem considere o conceito de esquerda, assim como o de direita, superados, insuficientes e redutores. De modos diferentes, os quatro são observadores atentos de Junho de 2013 – o ponto de inflexão que não parece ter sido compreendido por protagonistas de ambos os lados.

A ideia, aqui, não é construir um terceiro discurso – ou um terceiro lado. Isso também seria empobrecedor. Não há homogeneidade. E é mais interessante que ela não exista, que os discursos possam ser múltiplos. Talvez, por isso, também seja difícil – ou mesmo impossível – nomear esse fora dentro. Ou esse além dos muros.

A transgressão necessária, nesse momento tão delicado, é atravessar os muros com palavras. Mas essas palavras têm várias direções.

1) Por que você não está em nenhum dos lados ou dos polos da chamada “polarização do país”?

Moysés Pinto Neto – Não estar em um dos lados não significa não ter posição – sou contrário ao impeachment por questões jurídicas e políticas. Significa simplesmente não subscrever as duas principais narrativas. De um lado, a narrativa oposicionista, que define o PT como uma quadrilha que se apropriou do Estado para se manter no poder, garantindo sua permanência por meio de fraudes eleitorais e manobras populistas. De outro, a narrativa governista, que define o que está ocorrendo como um golpe de Estado travado pelas forças conservadoras, com vistas a atingir o processo de inclusão social levado a cabo nos últimos 12 anos. O problema é que essas narrativas estão incompletas.

A oposição desenha o cenário de modo a transformar o PT em alvo principal e ignora, propositalmente, a dimensão estrutural e universal que está sendo revelada nos processos de investigação da Operação Lava Jato. A situação, por sua vez, prende-se a importantes questões formais, baseadas em instituições jurídicas, mas não enfrenta o mérito de que o estrutural não elimina a responsabilidade de quem se envolveu e aprofundou o processo, muitas vezes blindando de forma idolátrica o partido contra toda e qualquer crítica.

Há tempos vem se construindo uma crítica ao modelo baseado numa noção de progresso unidimensional, que mede o sucesso das políticas públicas por meio dos índices quantitativos de crescimento, se sustenta em alianças com latifundiários, oligopólios econômicos e no alinhamento político com o “Centrão”. A corrupção não foi um acidente, mas parte de um programa que aceitou como fato consumado a existência desse complexo oligopolista para promover o crescimento nacional. Os movimentos sociais de 2013 entenderam perfeitamente esse mecanismo quando usaram o lema #NAOVAITERCOPA.

Não estar na polarização significa ampliar narrativas que têm sido reprimidas em nome da simplificação maniqueísta.

Bruno Torturra – Enxergar o país sob a lente da polarização já se provou algo pior do que simplista. É, a essa altura, alucinatório. De certa forma, a polarização é o exato oposto do que estamos vivendo na política institucional – escancaradamente promíscua, fisiológica e amalgamada.

Hoje, vejo a polarização mais como um fenômeno entrópico de comunicação do que político. Ela se destaca e exerce toda essa força gravitacional em ruas, jornais e timelines justamente pela dificuldade imensa de leitura de uma paisagem política caótica, trágica e complexa demais para ser resumida em posts, manchetes ou palavras de ordem.

Essa complexidade é uma barreira enorme para novos léxicos, lideranças, símbolos e campos de identificação emergirem e se tornarem forças relevantes, críticas e propositivas no debate. É um terreno minado para a assertividade. Mas, à medida que a crise se aprofunda, crescem também a ansiedade pública e a necessidade de respostas, de posições firmes. Então os polos – por mais disfuncionais que sejam – se tornam os únicos aspectos facilmente identificáveis do terreno.

É uma pena, porque esse teatro esconde a causa que poderia, em um ambiente racional, unir grande parte dos dois campos e uma massa de desidentificados no caminho: a completa refundação do sistema de financiamento eleitoral em nome de um mais barato, público e transparente.

Pablo Ortellado – Essa polarização política, ao meu ver, tem dois motivos principais. O primeiro é o aparecimento, no Brasil, do que os americanos chamaram de “guerras culturais”, que são as disputas geradas pela moralização do debate político. Essa moralização aparece na proeminência no debate político de temas como casamento gay, aborto e endurecimento penal, em detrimento de questões tradicionais de política econômica e social. Além disso, a moralização aparece também no tratamento moral dado a esses temas clássicos da política econômica e social que opõe, de um lado, uma moralidade punitiva, associada à direita conservadora e, de outro, uma moralidade compreensiva, associada à esquerda progressista.

Assim, o Bolsa Família, por exemplo, não é mais discutido na chave da sua eficácia ou eficiência no combate à pobreza, mas suscita dois discursos morais inconciliáveis. Para um lado, ele é um instrumento que premia a indolência, a incapacidade de poupança e a falta de empreendedorismo. Para o outro, ele é uma política solidária que mitiga uma injusta pobreza estrutural.

Com a moralização da política, o debate perde as referências comuns e se torna apenas o agressivo choque de visões morais de mundo. Essa moralização do debate é reforçada e está entrelaçada com a rivalidade entre os dois grandes partidos políticos brasileiros, o PT e o PSDB, que organizam as demais forças políticas. Como estão bastante organizados e enraizados em diversos setores da sociedade brasileira, cada um deles tem a capacidade de coordenar um discurso unitário. Pouco importa se essa orquestração é fruto da adesão espontânea dos partidários a argumentos e frases de efeito ou se emana como ordem de um centro político. O resultado é que cada partido tem um discurso pronto, fechado e autorreferente que é igual em toda a parte: nas redes sociais, nos meios de comunicação e na conversa cotidiana.

Esses discursos partidários, pronunciados por muitas pessoas, sempre da mesma forma e em todos os lugares, sufocam, com sua abundância repetitiva, os discursos independentes que, pela própria natureza, são singulares e descoordenados. Fugir da polarização é, portanto, condição para pensar e para agir com autonomia e independência.

Bruno Cava – Fala-se em terceira via, mas estou do lado de uma segunda via, em relação a um sistema político-partidário esgotado, onde as polarizações dos líderes escondem barganhas, promessas e posicionamentos que, por trás da retórica, não passam da reposição do mesmo jogo de sempre. Então, estou polarizado contra essa falsa polarização, e é o que me faz continuar pensando.

Diante do clamor por mudanças pelo país inteiro, em todos os segmentos, os protagonistas dessa crise simulam que estão mudando, para que tudo continue como está. Seja essa simulação na forma da guinada à esquerda, seja na do fim do petismo. A diferença, em termos de dinâmica, entre as duas, está na capacidade de falar para fora. O verde-e-amarelo e a pauta anticorrupção são inclusivos e tendem a funcionar como guarda-chuva para as indignações, ao mesmo tempo que símbolos partidários não são bem vistos e podem ser vaiados. O vermelho e a invocação de pertencer a um grupo específico, a esquerda, faz da outra manifestação uma espécie de prova de coesão, com contornos claros.

Isto talvez explique, em parte, a diferença quantitativa entre uma e outra: a pessoa indignada, que não está acostumada a ir a manifestações, tende a ir nas de verde-e-amarelo. Eu acho isso particularmente irônico, porque, quando gritávamos “Não vai ter Copa”, nos protestos de 2014, vestíamos preto e vermelho. Mas, naquele período, boa parte da esquerda dizia que não era hora de manifestar, que era hora de torcer. Ou seja: há apenas dois anos, era imoral *não* vestir verde-e-amarelo. Agora, essas mesmas pessoas atribuem ao verde-e-amarelo uma conotação negativa.

O grito antipolítico ou anticorrupção exprime uma tendência mundial de rejeição do atual sistema representativo, na sua dimensão política, econômica e ambiental, que não corresponde às potencialidades de uma democracia hoje possível, mas que é sistematicamente bloqueada. Atrás do “anti”, do “não”, do repúdio geral à figura do político, existe um “sim” maior, como vimos nas jornadas de junho de 2013, no Brasil, em Gezi Park, na Turquia, no movimento do 15M na Espanha, nas revoluções árabes, em todo um ciclo vivido intensamente pelo mundo. É possível trabalhar com esse sim.

2) Se você não está em nenhum dos lados, onde você está? Que posição é esta? E como nomeia esse “lugar” onde você está?

Moysés – Esse lugar tem tido sua nomeação proibida. Antigamente, chamavam pejorativamente de “terceira via”, agora chamam de “isento”. Na realidade, se “terceira via” se confunde com o liberalismo envergonhado de Tony Blair e “isento” se confunde com “sem posição”, não vejo como esses termos poderiam ser adequados. Trata-se da tentativa do “vórtice” bipolar de sugar tudo para seu interior, reduzindo todas as posições às suas referências.

Esse “lugar” surge desde Junho de 2013, quando houve oportunidade inédita de enfrentar velhas oligarquias com novas forças políticas, formadas a partir de uma transição geracional mergulhada em uma mutação tecnológica e cultural. Ele parte da falência da democracia representativa em contexto mundial, cuja crise se expressa pela presença sintomática de movimentos críticos ao sistema (como Espanha e Grécia), pelo descontentamento popular com questões globais, apropriado pela extrema-direita (com Le Pen, Donald Trump etc), pelos coletivos auto-organizados (como Zapatistas, Rojava) e, por fim, com revoltas violentas difusas nas periferias e com fundamentalismos.

O contexto atual ainda coloca a questão emergencial do “Antropoceno”, a entrada em um período geológico no qual o fator humano desempenha papel central na organização da Terra. A continuidade do programa de crescimento econômico baseado na hiperprodução e no hiperconsumo não faz mais qualquer sentido em um contexto material em que é necessário reduzir nosso impacto.

Alguns se perguntam se a própria noção de “esquerda” é útil para pensar esse porvir, entendendo-a como um marcador identitário que restringe a capacidade de disseminação das lutas e promove um fechamento “condominial”, que gradualmente se apaixona pelas próprias ideias. E, quanto mais caminha ao extremo, mais rígida, em um sentido quase militar, se torna a identidade.

Por outro lado, mesmo se considerarmos a crise da mediação e a crise ecológica como novos termômetros políticos, que reposicionam a polaridade, é difícil simplesmente negar a existência de uma diferença que corta ao meio as posições: para onde vão essas transformações sociais, ecológicas, tecnológicas. A divisão social em dois grandes grupos, aqueles que são donos de tudo e de todos os direitos e aqueles que não têm direito algum, reduzidos à condição de “vida nua”, parece ser o fio que corta necessariamente toda visão acerca do futuro, mesmo que marcada por esses novos termômetros.

Assim, pode até ser que o significante “esquerda” não diga mais nada sobre o porvir, já que sua herança humanista e parlamentar não dá conta dos problemas que o Antropoceno coloca. Do mesmo modo que a linguagem política dos direitos humanos pode ser insuficiente para compreender o contexto pluricultural que emerge no cenário globalizado, eliminado o privilégio ocidental de se colocar como a própria humanidade. Mas é inegável que há uma herança aí a ser apropriada: a luta por justiça que ultrapassa a noção de mera sobrevivência. A luta por justiça contra a divisão da sociedade em duas, uma com tudo e outra com nada.

Torturra – Acho que meu lugar é o da travessia. Impossível de ser posicionado com precisão. Pode ser um lugar muito desconfortável, mas necessário. Sempre me considerei – e ainda me considero – alguém de esquerda. Mas acredito realmente que a definição desse termo está, como todo o resto, em crise. Porque fica muito difícil saber o que é esquerda quando não sabemos mais onde está o norte. Quando não temos mais a clareza de que futuro, qual ideia de sociedade e democracia nosso campo vai oferecer para o século 21.

A forma, estética e ética das esquerdas do século 20 não dão mais conta. Por isso, nesse momento, eu acredito que a melhor posição não seja um “lado”, mas uma atitude desarmada, racional e realista. Abraçar a dúvida. Para, quando possível, ter mais clareza de léxico, propostas e ação. Para isso recorro às duas bases da minha formação política. Por um lado, autores iluministas e valores de crítica e autocrítica permanente. De rever e adaptar minhas opiniões aos fatos, nunca o oposto. E, do outro lado, voltando a buscar experiências psicodélicas com plantas e substâncias enteógenas – psicoativos que favorecem uma reconexão entre a natureza e seus processos. Elas me ajudam muito a compreender o intraduzível. A enxergar a política como uma propriedade emergente da psique humana. E trazem um pouco de calma no caos, alguma perspectiva e relativa lucidez nesse momento.

Ortellado – Me coloco fora da rivalidade dos partidos políticos, colaborando como posso com os movimentos sociais “autônomos”. Como dizem os zapatistas, busco estar “abaixo e à esquerda”. À esquerda no espectro político e abaixo (fora) do sistema partidário.

Acho que há uma conexão entre as manifestações de junho de 2013 e os protestos pró-impeachment de 2015 e 2016. Para além de qualquer dúvida, Junho de 2013 resgatou o protesto de rua como instrumento de pressão política e esse elemento foi incorporado no repertório de ação política, à direita e à esquerda.

Mas, de maneira mais profunda, pesquisas de opinião que conduzimos com os manifestantes anti-Dilma, em 2015, mostraram que eles compartilham as demandas centrais dos protestos de junho de 2013, que podem ser resumidas em: 1) rejeição da representação política; 2) defesa do sistema de direitos sociais. Ao contrário do que parecia, os manifestantes anti-Dilma não eram anti-petistas seletivos, mas desconfiavam de todo o sistema político, PT à frente. Além disso, defendiam de maneira surpreendentemente forte a universalidade, o caráter público e a gratuidade dos sistemas de educação e saúde.

Minha explicação para isso é a seguinte: Junho de 2013 despertou uma grande indignação transversal na sociedade brasileira contra o sistema político e em defesa de direitos sociais, a partir dos protestos pela redução da tarifa convocados pelo Movimento Passe Livre (MPL). Essa indignação mais ampla ficou órfã quando o MPL, por questões próprias do seu modo de fazer política, se recolheu ao seu trabalho de base voltado para a mobilidade urbana. Sem atores políticos à esquerda que fossem organizados e desvinculados de partidos políticos, essa indignação foi assumida como causa pelos novos grupos de direita, que começaram a transformar o impulso anti-institucional em antipetismo, atribuindo a má qualidade dos serviços públicos à corrupção. O passo seguinte, no qual trabalham agora, é transformar a crítica à corrupção numa crítica ao tamanho do Estado, propondo como solução a desconstrução dos serviços públicos.

Cava – Tenho discursos, trejeitos e instintos de uma cultura de esquerda. Hoje vivo essa tradição como uma limitação do meu poder de agir. Me desconecta da alteridade, me paralisa pelo medo. A multiplicidade de modos de vida no mundo, hoje, não admite essa dicotomia entre “pessoas de direita” ou “pessoas de esquerda”. É artificial, forçada, e costuma servir apenas para fazer cordões sanitários entre grupos e redes mais amplos e transversais.

Como falar em esquerda e direita como estruturante do mundo político depois da Hungria 56 ou da Primavera de Praga 68? Talvez funcionasse em algum lugar do século 19, mas hoje existem vários polos que não encaixam bem aí, como direitos das minorias, ambientalismo, cultura digital, pensamento ameríndio etc.

Mas já sou de uma geração que não é mais a da fundação do PT, mas do ciclo alterglobalização de Seattle e Gênova, que tinha no zapatismo uma grande referência, se informava pelo CMI (Centro de Mídia Independente) e militava pela mundialização das lutas. Então, já é uma geração em êxodo com relação às formas engessadas que a esquerda assume, seja no movimento estudantil, nos sindicatos, nos movimentos sociais.

O ciclo de “ocupas” brasileiras no período de 2011-12 teve o efeito de demonstrar que se fortalece uma tendência transformadora que não passa pela esquerda. Ao contrário, seus símbolos representam elementos indesejados: aparelhamento, velhas lideranças, estruturas pesadas e centralizadas.

Em 2013, esse movimento de êxodo se tornou massivo e generalizado: no Rio tivemos lutas pelo transporte, moradia, anticorrupção nas obras da Copa e nas licitações de linhas de ônibus, contra a cura gay, campanha “Cadê o Amarildo?”, greves metropolitanas com professores e garis. Porém, para parte da esquerda, era mais importante proteger símbolos do que transformar o mundo.

De lá pra cá, ser de esquerda virou um tipo de estado civil, com cobranças, obrigações, certidões. Em vez de ficar estático, tento seguir os prolongamentos da tendência que citei, que hoje aparece de modo espalhado. É um tipo de solidão, pois sem lugar de conforto, mas que é compartilhada por muitos na solidão mesma, como um bloco do “nós sozinhos”. Num trocadilho com a música do Los Hermanos, quero dizer com isso o bloco dos sem representação, dos sem nome, daquele que está sozinho no deserto, mas encontra outros sozinhos. E sozinhos juntos se faz um povo nômade. Um deserto que é uma produção: não de solidão, de isolamento, mas de solidão ativa, recomeço, bando.

3) O que está acontecendo com o Brasil, visto deste lugar? Quais são os riscos deste momento histórico? E como sair desse impasse?

Moysés – Estamos nos tornando um novo país: as várias autoimagens brasileiras estão se dissolvendo. De baixo para cima, em contraste com o imaginário da mestiçagem, da malandragem e da cordialidade. E de cima para baixo, com o imaginário do coronelismo, da liderança paternal e do patrimonialismo. Os conflitos se estabelecem em nível micro e macro, ao mesmo tempo, colocando a sociedade em estado de hiperpolitização estressante.

A democracia implementada desde a Constituição de 1988 transformou o país, com a estabilidade do Plano Real e a inclusão social do período lulista. Mas a etapa posterior ainda está por ser escrita.

Contrariando suas ideias iniciais, o PT cada vez mais se identifica com o imaginário tipicamente trabalhista. Busca instaurar um Estado de bem-estar social nos moldes do capitalismo industrial nacionalista, que serviu de base para sua construção europeia. Mas esse contexto, hoje, com o poder de pressão do mercado financeiro, a dissolução de fronteiras culturais, a crise migratória e a universalidade dos problemas ecológicos, não está mais presente.

O grande risco, inerente a qualquer desconstrução, é que esse processo seja suspenso em nome de um gesto de unificação forçada. A “antipolítica” que emergiu em 2013, tanto à direita quanto à esquerda, mas que está presente e visível no mundo inteiro, pode ser capitalizada de diversas formas, tendo em comum apenas a rejeição em bloco de todo sistema de mediação.

Deslocando o problema para a conjuntura, parece nítido que o buraco da “corrupção” não vai ser tampado apenas com “garantismo” (defesa das garantias individuais e da legalidade nos processos de persecução criminal). Para que a esquerda se rearticule, precisará dar uma resposta a isso que não passe apenas por mudanças legais e mais punitivismo. O próprio punitivismo é uma demanda que envolve a nostalgia pela coesão social absoluta: sua luta “contra a impunidade” é uma tentativa de restabelecer laços sociais em estado de tremor, de buscar reafirmar a lei como elemento unificador.

Talvez o governismo simplesmente não seja mais capaz de dar essa resposta, dado que está envolvido até os ossos com a defesa do projeto atual. A reiterada defesa da Odebrecht por Lula é significativa disso. Mas certamente a esquerda, entendida como perspectiva de transformação social com justiça, precisará de uma resposta e mudança estrutural desse cenário e projeto, para que possa se reposicionar politicamente, despertando aquilo que é essencial ao vínculo com o Outro: a confiança.

A transformação do país passa, portanto, por um novo pensamento, um novo programa experimental e novas formas de organização. Sair do impasse atual da crise das mediações demanda repensá-las de modo radical: sem dogmas e abrindo mão das velhas identidades, escapando da polarização que herdamos do século 20 e que já não é capaz de dar conta da imensa quantidade de problemas que o século 21 passou a apresentar.

Torturra – Tentando resumir o impossível, me parece que não apenas o governo, mas o Brasil inteiro está sofrendo as consequências gravíssimas de um auto-engano generalizado. Cada ator dessa crise – dos cidadãos aos partidos e instituições – está vivendo em profunda negação da autocrítica e responsabilidades pessoais. E buscando culpas em agentes no “outro polo”. O “corrupto”, o “golpista”, o “indignado seletivo”, o “omisso” é sempre o outro.

Isso explica um pouco da imprevisibilidade e da escalada punitivista no país. E explica o próprio impeachment. Para mim, a deposição de Dilma não é um golpe, como muitos preferem chamar. Mas a culminação dessa sanha literalmente expiatória. Que é liberar a culpa de todo um organismo político e social pela imolação de um corpo em praça pública. Uma sociedade afogada em contradições, uma imprensa majoritariamente cínica e um congresso encalacrado em escândalos querem assar a pizza da Lava Jato usando a presidente como lenha.

O risco, nesse momento, é altíssimo. E talvez o desenrolar da crise já esteja com o script definido. Mas, caso o impeachment seja o grande “pacificador”, a irracionalidade vai sair vitoriosa, confirmada e livre para capitalizar eleitoralmente. Em nome da unificação nacional, vamos perder a chance de discutir, pautar e refundar o sistema de financiamento eleitoral. Dado o enorme vácuo de novas e críveis lideranças, oportunistas e demagogos podem ocupar esse espaço em muito breve.

Minha tênue esperança, nesse momento, vem, justamente, de acreditar que o enorme e pouco reconhecido campo dos desidentificados seja o mais fértil do país. Que essa metástase do corpo político possa ser capaz de abrir caminho para o aprofundamento da nossa própria ideia de democracia, para além do voto. Como? Nem me arrisco a ser objetivo aqui. Mas penso que direitos humanos, transparência de gastos, um respeito incondicional aos ecossistemas e uma maior permeabilidade do Estado à participação cidadã devem ser os norteadores de qualquer nova visão política de país. Por isso, meu único mantra a esse ponto é o seguinte: manter as perspectivas mais amplas do que as expectativas. É duro, mas hoje prefiro a vertigem da desidentificação do que o falso refúgio das bandeiras de sempre.

Ortellado – Por um lado, a questão do impeachment está ofuscando questões mais substantivas, relativas à perda de direitos sociais, que estão sendo promovidas, com ênfase diferente, pelos dois grupos políticos em disputa. Por outro lado, um impeachment agora terá com certeza grandes repercussões no futuro próximo. As pedaladas, que nada mais são do que uma manobra contábil, são um pretexto ridículo para remover uma presidente que perdeu popularidade e apoio político no Congresso. Nessa chave, impedir a presidente agora é um recurso abusivo e perigoso, porque impeachment não é recall – votação de meio de mandato pela permanência ou não do mandatário. Ainda que o processo seja legal e institucional, ele banaliza um instrumento que devia ser utilizado de maneira excepcional. No entanto, se alguns dos indícios levantados pela Lava Jato se confirmarem – por exemplo, as acusações feitas pelo senador Delcídio Amaral –, aí sim teremos motivos para um pedido de impeachment. Mas ainda não é o caso.

Independentemente de tudo isso, o que estamos vendo agora é um ataque aos direitos sociais. Começou com a limitação do seguro-desemprego, passou por cortes expressivos nos gastos sociais e caminha rapidamente para cortes nas aposentadorias. Seja quem for que ganhe a disputa, provavelmente teremos redução de direitos. Por isso, a questão mais importante agora é fortalecer os movimentos sociais, principalmente aqueles que atuam por fora do sistema político. Consolidar os movimentos sociais que estão fora do modelo petista de fusão entre partido e movimento.

O PT não é um partido social-democrata tradicional, como o Partido Social-Democrata alemão ou o Partido Trabalhista inglês. No modelo social-democrata europeu, o partido tenta controlar e dar orientação aos movimentos, desde fora, oferecendo a eles um planejamento político de longo prazo. O PT é o contrário disso: é um partido construído em grande medida pela base, a partir da convergência de quase todos os movimentos sociais atuantes no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Isso gerou um modelo de participação e colaboração entre sociedade civil e Estado que vemos tanto na participação de movimentos na direção do partido, como em instrumentos institucionais de participação no Estado, como as conferências, os conselhos e as audiências públicas.

A partir dos anos 1990 e 2000, esse modelo, que se tornou dominante, começa a ser rejeitado pelos novos movimentos sociais construídos pelos mais jovens. É esse processo de construção – que vemos no Movimento Passe Livre, no movimento dos estudantes secundaristas, no novo movimento feminista, nos movimentos contra a violência policial nas periferias, entre muitos outros – que precisa ser amadurecido, para inaugurarmos uma nova etapa na esquerda brasileira, na qual a sociedade civil pressiona o Estado por mais direitos desde fora.

Cava – Gramsci dizia que crise é quando o velho já morreu e o novo ainda não pôde nascer, intervalo durante o qual ocorrem as mais diversas expressões mórbidas. O problema é que nenhuma das posições que está sobre a colina deixa o novo nascer, o que está levando o país – e o mundo – ao ponto do paroxismo. O maior risco é tirar a escolha das pessoas. É a chantagem em tom policial de que você tem que escolher um lado, senão… É preciso desconfiar de qualquer campo de possibilidades em que você não tenha escolha, e diante disso escolher a escolha.

Quando se coloca que há poucas escolhas, ou o afunilamento em apenas duas, “tudo” ou “nada”, seria interessante deslocar essa colocação: que tipo de agência eu – e cada eu é muitos, muitas redes – posso construir assim? Se enquadrarmos a intensa mobilização social no Brasil de 2016 como uma dicotomia, será que não cancelamos qualquer possibilidade de agência?

Por exemplo: no dia 18 de março, em São Paulo, onde estive, o PT colocou pra girar toda a sua estrutura na capital e cidades vizinhas, aglutinou todas as forças sindicais, das juventudes, dos movimentos sociais, e contou com o reforço das pessoas ligadas à oposição de esquerda e, sobremaneira, da universidade. O problema é que, conforme o ato ia evoluindo, ele era sucessivamente verticalizado em palavras de ordem, até atingir o clímax que foi o discurso do Lula. Toda a organização se deu de modo arborescente, quase um zigurate, para Lula falar. Lula sai dali e vai negociar com os caciques do PMDB, como vinha fazendo no ano passado, com o poder de barganha conferido pelo orçamento do governo.

Foi uma capitalização política em que os participantes tiveram pouca ou nenhuma agência. Ou pior, se agenciaram para favorecer não o que queriam, a “guinada à esquerda”, mas a blindagem do sistema político ao único vetor que conseguiu passar pela brecha de Junho de 2013, a operação Lava Jato – o que é a delícia e o drama dela, uma operação policial. A abertura das planilhas de obras e campanhas apenas está comprovando o que já desconfiávamos: como em termos de financiamento político e compromissos ocultos os principais partidos não diferem em nada. Nessa crise de esfacelamento, se a Lava Jato está exercendo o papel de Glasnost de uma governabilidade desenvolvimentista, o desastre ambiental em Mariana foi o seu Chernobyl.

Nas jornadas de junho de 2013, os coletivos pelo passe livre questionaram as planilhas do transporte coletivo municipal, para examinar os negócios e pegar os “pulos do gato”. Além dos obstáculos colocados pela repressão, se deparavam com uma contabilidade paralela, onde se enroscam os acordões empresariais e políticos-eleitorais. Hoje, três anos depois, a Lava Jato está escancarando as caixas pretas da governabilidade, relativas às grandes obras, os contratos públicos, os projetos urbanos.

Podemos levar adiante esse questionamento. Essa, aliás, não foi só uma das demandas de Junho, como também de uma recente mobilização em favor de uma constituinte por reforma política, centrada no financiamento eleitoral, mas paralisada com a desculpa da ausência de “correlação de forças”. Hoje, essa correlação não mudou para favorecer as mudanças?

Spinoza falava, sobre a servidão voluntária, que não se pode enganar o desejo. Você pode frustrar o interesse – e não o desejo. Seria interessante perguntar então, por qual mecanismo se é levado a lutar pela própria frustração, pelo próprio fracasso. Daí tantas leituras “existencialistas” – signo de interiorização de uma crise onde não se encontra agência – que vão falar em angústia, desespero etc. Claro que, em 18 de março, ouvi inúmeros relatos sobre isso, existiam margens, linhas de fuga, grupos deslocados com relação à verticalização. Dentro da massa vermelha havia matilhas.

Mas isso passa justamente por não se deixar subjetivar por um lado como contraposição ao outro, e buscar a terceira margem – a segunda via, em termos de potência de agir. Isso não significa não agir ou não decidir. Eu só acredito em refugiar-se quando tem um sentido tático, como quem se joga no chão pra escapar de uma bomba, mas logo se levanta e faz alguma coisa.

É preciso agir sim, falar, estar nas ruas, debater nas redes, enxergar linhas minoritárias em meio aos macro-blocos que cobram coesão. Existe uma energia grande à solta, buscando emergir desde as jornadas de junho de 2013, que a polarização partidária vem violentando de maneira ortopédica. Aconteceu algo semelhante na Argentina de 2001, que desembocou no movimento de panelaços e piqueteiros com o grito que se vayan todos. Sem respostas à altura da parte do sistema político-representativo, a indignação vai fazer um strike que nem no boliche.

A crise é um momento em que temos a oportunidade de viver intensamente o nosso tempo histórico. Em que o futuro é uma incógnita, em que podemos portanto contribuir, num sentido ou em outro, para materializar esse futuro aqui e agora. Querer sair do impasse já é, em certa medida, negá-lo. Como se existisse uma saída à mão, um “abre-te sésamo”. A esquerda, quando fala em “saída pela esquerda”, lembra o Barão de Munchhausen: para sair do atoleiro, resolveu puxar-se pelos próprios cabelos. Vai arrancar alguns, mas não vai sair.

Eu não tenho a resposta do “como fazer” em sentido estrito, ela não vai sair de uma fala ou análise individual. Na verdade, ela só pode ser desdobrada de um campo de relações, redes e agenciamentos de que cada um já participa, mesmo que isto signifique divorciar-se de alguns deles, porque crises também são momentos de reconfiguração. Junho de 2013 foi vivido assim por bastante gente: como tempo que urge.

Temos que assumir o impasse como potência. Não tem como sair, tem que entrar nele.

(Publicado no El País em 28 de março de 2016)

 

“Só tem credibilidade quem investiga, checa e se importa com a precisão”

eliane em zh abre

Por RODRIGO LOPES/Zero Hora – “Sou uma escutadeira que escreve. Repórter desde 1988, documentarista desde 2005, ficcionista desde 2011.” Assim, em eterna mutação, quase sempre em transição, Eliane Brum se define, em seu site desacontecimentos.com. Uma das mais premiadas jornalistas do país, natural de Ijuí, ela trabalhou 11 anos como repórter de ZH e 10 na revista Época. Desde 2010, atua como freelancer. Tem se dedicado muito à internet, com textos para os jornais El País e The Guardian sobre temas polêmicos. Para debater sobre o futuro – e o presente – do jornalismo, Eliane, 49 anos, é a primeira convidada de 2016 do evento Em Pauta ZH – Debates sobre Jornalismo. O encontro será na próxima quarta-feira, às 19h30min, para convidados. Nesta semana, a jornalista concedeu a seguinte entrevista por e-mail.

A crise política e econômica do país coincide com a preocupação sobre como financiar e manter o jornalismo. Veículos tradicionais estão em xeque, e a imprensa alternativa ganha a confiança momentânea das pessoas, mas não mantém atenção a longo prazo. Como você analisa o jornalismo atual e o futuro?

O jornalismo vive uma crise do modelo de negócios há vários anos, desde que a internet mudou o mundo e também a forma como as pessoas têm acesso, produzem e se relacionam com a informação. Nas manifestações de junho de 2013, ficou claro que, no Brasil, essa crise da imprensa era também uma crise de credibilidade. Parte da população, em especial os mais jovens, não se sentia representada pelos políticos e partidos tradicionais, mas também não se sentia representada pela mídia tradicional. Iniciativas como Mídia Ninja foram decisivas para que a população tivesse acesso a outras narrativas sobre os protestos, feitas a partir das ruas, já que, em certos momentos, parte dos jornalistas da imprensa tradicional só conseguiu cobrir as manifestações de helicóptero ou do alto dos prédios. A crise política é um momento crucial para o Brasil – e também para a imprensa. Essa dupla crise vivida pela imprensa, a do modelo de negócios e a da credibilidade, ganhou contornos mais visíveis neste momento histórico. A imprensa tem um papel fundamental numa democracia. E a imprensa brasileira, em especial o impresso, que sempre foi relacionado a uma narrativa de maior profundidade, está muito frágil. As redações estão muito menores, com suas equipes reduzidas. As demissões, em geral, atingiram os jornalistas mais experientes, que seriam imprescindíveis neste momento, porque entendem sua responsabilidade, assim como as armadilhas que precisam evitar cair num momento tão delicado, com tantas pressões e cascas de banana pelo caminho. São também estes que seriam mais capazes de fazer a resistência internamente, já que toda redação é um campo de conflitos. Essas ausências e essa fragilidade se fazem sentir claramente neste momento em que o tempo no Brasil está acelerado. Dias atrás, escrevi um artigo para o jornal britânico The Guardian e explicava que, no Brasil, uma pessoa assistia à posse do Lula como ministro, ia ao banheiro e, ao voltar, a nomeação já tinha sido cassada por um juiz de primeira instância. Como fazer bom jornalismo diante desta velocidade? Cabe à imprensa contextualizar, com responsabilidade e sem histeria, o que está acontecendo. Cabe, especialmente, fazer reportagem, seu grande diferencial como narradora da história em movimento. Há pouca reportagem de fato na cobertura da crise e da Operação Lava-Jato. Há mais o que autores como o jornalista Solano Nascimento chamam de “jornalismo sobre investigações”, muito diferente de “jornalismo de investigação”. A imprensa se baseia no que é vazado pela Polícia Federal, pelo Ministério Público Federal e pelo juiz Sergio Moro. E não em suas próprias investigações, com raras e honrosas exceções. Esse lugar de mera reprodutora do que convém para investigadores vazar ou divulgar, às vezes sem checagem ou crítica, é perigoso: a imprensa fica vulnerável a manipulações. E o leitor corre risco de ser mal informado, com graves consequências para a sociedade. Ao mesmo tempo, com os sites dos jornais precisando ser abastecidos, há muita pressa. E é difícil fazer bom jornalismo com pressa. Assim, também podemos testemunhar alguns jornais e noticiários de TV “comprando”, ou mesmo aderindo a versões, e apresentando-as como verdade. E, pior do que isso, apresentando-as como a verdade inteira. Acho que setores da imprensa brasileira terão que dar muitas explicações para a História sobre o seu papel na atual crise. Ou a imprensa se mostra à altura do momento ou será cobrada por isso no futuro. Junta-se a isso uma crise de credibilidade que só cresce entre parcelas da população e temos um momento muito delicado para o jornalismo. A crise política atual mostra também o quanto é frágil uma democracia sem uma imprensa forte e responsável, consciente do seu papel histórico de documentar a sua época com honestidade.

Como conciliar a produção frenética de informações em tempo real com a necessidade de imersão em reportagens de qualidade?

Para te responder, preciso contextualizar um pouco. Durante o século 20, a imprensa foi a narradora hegemônica do seu tempo. A partir da internet, a imprensa deixou de ter essa posição confortável. A imprensa, desde especialmente a segunda década deste século 21, só será uma narradora importante sobre o seu tempo, sobre o que chamo de história em movimento, se souber valorizar a reportagem, o grande diferencial do jornalismo sobre outras narrativas. Ainda se faz grande reportagem no Brasil. Muito menos do que seria necessário, mas ainda existe. Tanto na imprensa que agora é chamada de “tradicional” como na “alternativa”. O que me parece que sofreu mais com a crise do modelo de negócios é a cobertura cotidiana. Esta é a tragédia maior da imprensa, e, portanto, da sociedade. A cobertura cotidiana é cada vez mais precária, rasa e fragmentada. Vivemos um momento histórico difícil, duro, mas também fascinante. Mas os Brasis, porque não existe um Brasil só, não estão sendo contados cotidianamente pela imprensa. Há enormes porções descobertas, narrativas que nunca serão escritas, capítulos inteiros perdidos. Acho isso doloroso. Uma catástrofe literalmente silenciosa. Para ficar mais claro, podemos pensar num exemplo. Nenhum veículo cobriu cotidianamente a usina hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, a maior obra do setor elétrico do país. Mais de R$ 30 bilhões em jogo, a maior parte deles vinda do BNDES, e nenhum veículo, grande ou pequeno, cobriu cotidianamente a construção, com suas vastas implicações e violações de direitos. Na ditadura militar, com toda a censura que existia, se cobria melhor a Amazônia do que hoje, na democracia. A hidrelétrica de Tucuruí teve cobertura cotidiana. Belo Monte, não. Houve algumas grandes reportagens, mas não houve cotidiano. E essa ausência da imprensa teve consequências gravíssimas que só agora começam a se tornar mais claras. No que se refere à questão da velocidade, é importante dizer que não cabe à imprensa ocupar o lugar das redes sociais. Cada vez que uma matéria se parece mais com um post no Facebook, o jornalismo despenca mais um degrau rumo à irrelevância. Se não há reportagem, para que imprensa? Meu vizinho faz ótimos posts no Facebook, mas o que ele faz não é jornalismo. O problema é parte da imprensa fazer posts como o meu vizinho e apresentar isso como reportagem. Acho que é um grande erro sacrificar pilares do jornalismo como a investigação, a precisão e a checagem rigorosa para ganhar alguns minutos de vantagem. Que vitória é essa se o que fica é justamente mais e mais irrelevância, que vai custar a história? Como leitora, não leio o mais rápido, eu leio o que tem credibilidade. E só tem credibilidade aquele que sabemos que investiga, checa e se importa com a precisão. Isso vale para a matéria cotidiana, vale para a grande reportagem. Se não se obedece aos critérios do que é jornalismo, é simples: não é jornalismo. Então, não me parece que seja questão apenas da aceleração do tempo, trazida pela internet. O problema é bem maior. É triste que alguns veículos tradicionais estejam enterrando a sua história para competir com posts de redes sociais. A única competição que vale a pena para o jornalismo é a que se dá em torno da qualidade, da profundidade e da credibilidade do conteúdo.

Como financiar o jornalismo sem comprometer algo crucial para a credibilidade da reportagem: a independência e a transparência?

Esta é uma resposta que ainda precisa ser construída. O bom jornalismo custa caro. Reportagem custa caro. É preciso, às vezes, ficar semanas num arquivo, sem nenhum glamour, engolindo pó, para encontrar uma primeira pista para uma investigação. E, às vezes, essas semanas não dão em nada. Assim como é preciso pagar gente experiente que seja capaz de entender para onde olhar, assim como entender o que vê. Repórteres mais velhos, que possam formar a geração seguinte. Essa geração, a que formava a geração seguinte, foi deletada das redações porque custava mais caro. É preciso trazê-la de volta. Há no Brasil vários modelos convivendo, mas ainda não encontramos um modelo que garanta a independência e a total transparência. A maior parte das novas iniciativas tem modelos colaborativos e não lucrativos, como por exemplo A Pública e a Repórter Brasil, agências de reportagem que têm feito um trabalho competente. Nestes casos, as grandes reportagens são financiadas por fundações internacionais. Há também experiências pontuais com crowdfunding (financiamento coletivo via doações do público na internet). Mas esses modelos também têm limites. Acho que a melhor maneira, a mais transparente, a que realmente garantiria independência, seria o financiamento pelo público. Seria preciso formar um leitor que considere importante ter uma imprensa competente e que se disponha a pagar por informação de qualidade e de profundidade. Faço parte dos jornalistas que sonham que a reportagem possa ser paga com um clique. Literalmente um clique, não pode ser mais complicado do que isso. E que esse clique pague o salário do repórter e os custos da próxima reportagem. Por exemplo: uma reportagem ou artigo ou entrevista que tenha 30 mil acessos, o que é totalmente viável, a R$ 1 por acesso. Mas isso ainda precisa ser construído junto com a sociedade, com este novo leitor. O que posso afirmar é que, nesta construção, é preciso resgatar algo fundamental que, em grande parte, se perdeu: a separação Estado-Igreja – ou editorial-comercial. A imprensa precisa ser “laica”. O editorial não pode estar contaminado pelo financiamento. Hoje, em grande parte dos casos, está. Já é bem complicado que esteja contaminado. Tudo fica pior ainda porque nem sempre isso é contado ao leitor. Quando o editorial está contaminado pelo financiamento, a reportagem já fica sob suspeição desde o início. Seja qual for a saída, é preciso que ela garanta a separação Estado-Igreja.

Você publicou seis livros – cinco de não ficção e um romance – e também escreveu crônicas e contos. Como se dá essa transição do jornalismo, que lida com fatos reais, para a ficção?

Costumo descrever a reportagem como um movimento profundo. E bem difícil de fazer, que cobra um preço alto de quem a ela se arrisca. Como se sabe, a reportagem se faz na rua, com os pés enfiados na lama dos acontecimentos. Antes de ir para a rua concreta, porém, é preciso atravessar a rua de si mesmo. É preciso fazer esse movimento profundo que consiste em se desabitar de si para ser habitado pelo mundo do outro – ou pelo mundo que é o outro. Desabitar-se de si no sentido de se despir das suas visões de mundo, de seus preconceitos, de seus julgamentos, de uma determinada forma de ser e de estar no mundo, para se deixar habitar por uma outra experiência. E, depois, empreender o caminho de volta, o que não é nada fácil. Se um repórter não faz este movimento, em vez de escrever sobre um outro escreverá apenas sobre si mesmo. É claro que esse movimento jamais é completo, mas é o que nos leva mais perto da complexidade dessa outra experiência, das tantas verdades, porque nunca há uma só verdade, e também das tantas contradições e nuances. Se um repórter não atravessa a rua de si mesmo, pode ir até o outro lado do mundo e passar um ano lá, que vai voltar escrevendo sobre o que já sabia antes de partir, porque de fato não partiu nem retornou, mas sim permaneceu simbolicamente no mesmo lugar. Já o movimento da ficção é semelhante, mas com o sentido inverso. Na ficção é preciso ter a ousadia de se deixar possuir pelos outros que vivem nas nossas profundezas abissais. Ou, dito de outro modo, se deixar possuir pelos outros de si. Costumo dizer que a ficção é feita no mesmo lugar em que vivem aqueles peixes cegos, fantasmagóricos, que a gente vê nos documentários da National Geographic. Gosto muito de ficção de terror e também de ficção científica. Escrevendo meu romance descobri duas coisas: a primeira é que não há nada mais aterrorizante do que ser possuído por si mesmo. A segunda é que há realidades que só a ficção suporta. Ou há realidades que precisam ser inventadas para serem contadas.

O que dá mais satisfação: reportagem ou ficção?

A reportagem. Não me importo com a felicidade. A felicidade, para mim, diz respeito ao mundo do consumo. Me interesso pela alegria, essa experiência complexa, rara, que diz respeito também à resistência. É quando faço reportagem que tenho alegria. Mesmo quando o que experimento e testemunho é devastador, sinto que estou onde deveria estar. Escutar as pessoas, coisa que um repórter faz com todos os sentidos, me dá profunda alegria. É na rua que eu me sinto em casa.

Em um de seus textos mais recentes, você escreveu que considera a polarização ¿mais uma falsificação entre tantas neste momento conturbado do país¿. Por outro lado, assistimos a discussões inflamadas, com pessoas destilando ódio. Como as vozes mais ponderadas podem ser ouvidas em meio a posições tão extremadas?

Como ser ouvido, não sei. Mas acredito que é preciso seguir dizendo. E é preciso seguir dizendo sem gritar. Quem grita não ouve nem quer ouvir. Gritar como forma de se mover no mundo é um ato extremamente autoritário, porque silencia a voz do outro. E, silenciando a voz do outro, mata-se o outro simbolicamente. O espaço público precisa voltar a ser o espaço da alteridade. Precisamos conviver com os diferentes e com as diferenças. Precisamos voltar a nos interessar por ouvir. Precisamos voltar a conversar. Nesse texto que você cita, escrevo que, diante da brutal descrença nos políticos e nos partidos, podemos perceber algo paradoxal: uma vontade feroz de crença. Isso é bem perigoso. Na política, mesmo os crentes precisam ser ateus. Precisamos nos mover na política pela razão, não pela fé. Mover-se pela razão implica escutar e duvidar, do que nos é dado rapidamente a ver e também de nossas certezas. Implica responsabilizar-se pelas próprias escolhas. No caso da imprensa, é preciso voltar a perguntar, voltar a fazer muitas perguntas, e resistir à tentação das conclusões rápidas demais, peremptórias demais. A adesão pela fé, na esfera da política, só nos traz messianismos, tenha o messias a cara que tiver. É mais fácil cultuar um messias, seja ele quem for. Mas somos nós que precisamos achar um jeito de construir um país, o que dá muito mais trabalho. E não vamos conseguir fazer isso gritando. Nem nos colocando como a encarnação do bem – e os que pensam diferente como a encarnação do mal. Precisamos refletir mais sobre um traço da cultura brasileira, um traço que atravessa a nossa história. Somos um país de linchadores. Em vez de justiça, vingança. É fundamental que, neste momento histórico tão delicado, lutemos por justiça e repudiemos a vingança. Do contrário, nada de realmente profundo mudará no Brasil.

Os movimentos feministas têm alcançado maior visibilidade, com campanhas como #meuprimeiroassedio e “Vai ter shortinho sim!”. Mas também crescem as reações conservadoras: o Congresso aprovou projeto que impõe mais restrições ao aborto. Como avalia esse cenário?

Temos vivido tempos extremamente duros. A política que me anima é esta, a de campanhas como #meuprimeiroassedio, assim como movimentos dos estudantes das escolas públicas de São Paulo. Porque isso também é política, é gente fazendo política e ocupando o espaço público politicamente. São um alento, uma prova de que algo se move em meio a esta aparente paralisia. Ao mesmo tempo, temos o Congresso mais conservador desde a redemocratização. E também um Congresso extremamente corrupto. Para este Congresso, em especial para a chamada Bancada BBB (Boi, Bala e Bíblia), o corpo das mulheres é moeda de chantagem. Milhares de brasileiras, a maioria delas jovens e negras, morrem todos os anos por abortos malfeitos e clandestinos, porque não há interesse em discutir seriamente a descriminalização. Não há interesse porque é preciso manter o aborto como moeda eleitoral e de barganhas. Na prática, como qualquer um que não seja hipócrita sabe, o aborto é liberado no Brasil para quem pode pagar. Só é crime para as mais pobres. E também por isso, porque “só” mata as mais pobres, a maioria delas negras, é possível manter o aborto como moeda de chantagem. Insisto nisso, porque o aborto é também uma questão de classe e de raça no Brasil. Diz respeito à desigualdade e ao racismo, duas de nossas fraturas maiores. Por isso, precisamos ser muito gratos a essas mulheres mais jovens que estão levando a luta pela autonomia sobre os seus corpos, sobre suas vidas adiante. Elas devolvem a beleza da política que está sendo reduzida e enxovalhada neste Congresso que chantageia com a vida das mulheres.

PARA LER

Primeiro dos seis livros de Eliane, O Avesso da Lenda, refez, 70 anos depois, os 25 mil quilômetros da Coluna Prestes: “Considero minha reportagem fundadora. Foi quando descobri não o Brasil, mas os Brasis”. No seguinte, reuniu textos da série A Vida que Ninguém Vê: “É nela que consigo me definir e me assumir como uma repórter de desacontecimentos”. O Olho da Rua mostra bastidores de suas reportagens, e Uma Duas, seu romance, é uma trama de ódio e afeto entre mãe e filha. A Menina Quebrada traz crônicas e artigos, e meus desacontecimentos revisita suas memórias de infância. Sua reportagem mais premiada é O Povo do Meio, fundamental para a criação da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, no Pará: “Fui a primeira jornalista a chegar até lá num momento em que eles estavam ameaçados de morte pelos grileiros e não eram reconhecidos pelo país oficial”.

PARA VER

Eliane é codiretora e corroteirista de dois documentários. Uma História Severina (2005) acompanha a luta de Severina, uma pernambucana pobre e analfabeta, para interromper a gestação de seu bebê anencéfalo. Gretchen Filme Estrada (2010) narra a última turnê e a primeira campanha política da rainha do rebolado, que, em 2008, candidatou-se à prefeita da Ilha de Itamaracá (PE) pela coligação PPS-PV.

eliane em zh

O Troféu Mulher Imprensa que vocês me deram

Quero agradecer aqui a todos que votaram em mim para o Troféu Mulher Imprensa.

As colegas que concorriam ao prêmio na categoria de Mídias Sociais são mulheres incríveis, que fazem um trabalho muito importante, e têm criado novos espaços de debate dos temas de fato relevantes desse país e também dos vários feminismos, pela via do jornalismo. Quando vi a lista de candidatas, pensei que qualquer uma que ganhasse representaria muito bem todas nós. E só isso já faria aquela ser uma “eleição” diferente. Pelo menos nela não haveria “crise de representação”.

Ter recebido o voto de vocês, como um reconhecimento do meu trabalho, é muito importante pra mim, por várias razões e também porque sou alguém que escreve textos longos na internet e que se move pelas dúvidas. Sempre defendi que a melhor notícia para o jornalismo, trazida pela internet, era a possibilidade de resgatar a profundidade no jornalismo, tantas vezes comprometida por tantas motivos e também pela escassez de papel. Muitas vezes minhas reportagens demoravam a ser publicadas porque não havia ‘páginas’ disponíveis. A disputa pelas páginas sempre foi uma disputa no campo da política, e uma disputa bem árdua para quem escolheu escrever sobre desacontecimentos e sobre aqueles à margem da narrativa.

Assim, passei parte da minha vida de repórter ouvindo que leitor não gostava de textos longos. Ou não tinha tempo para textos longos. Em seguida, a minha geração passou a ouvir que a internet era para textos curtos e imediatos. Decidi ir na contramão disso. Ocupo meu espaço, hoje principalmente no El País, com longos artigos de opinião, assim como com entrevistas de profundidade, nas quais o entrevistado pode desenvolver o seu pensamento com contexto e profundidade, e ocupo também com grandes reportagens. Hoje, a internet me dá a tecnologia para provar que, sim, os leitores leem textos longos, desde que sua inteligência e o seu tempo sejam respeitados.

Essa é uma bandeira cara para mim, como jornalista, porque é uma bandeira pelo jornalismo de profundidade. Ser reconhecida por este jornalismo, que nada tem nem de rápido nem de instantâneo nem de fácil, me dá uma grande alegria. Agradeço a cada um de vocês por me ler e por debater o que escrevo em seus espaços, concordar e discordar com respeito, fazer com que minhas palavras possam ser pontos de partida para conversas outras. Nunca foi tão importante combater o ódio com diálogo, com o reconhecimento de que o outro tem algo a dizer que pode nos mover. E vice-versa. Precisamos muito derrubar os muros da surdez e fazer pontes de palavras.

Muito obrigada pela companhia nessa conversa sem ponto final.

Confira aqui todas as vencedoras do Troféu Mulher Imprensa.

Brazil’s judiciary is no longer just an institution – it has now gained a face

Meu artigo de sexta-feira no The Guardian:

Protesters outside the Planalto presidential palace in Brasilia on 17 March. Photograph: Evaristo Sa/AFP/Getty Images (The Guardian)

Protesters outside the Planalto presidential palace in Brasilia on 17 March. Photograph: Evaristo Sa/AFP/Getty Images (The Guardian)

Federal judge Sérgio Moro has become the high-profile face of the campaign to impeach Dilma Rousseff. But is he overstepping the mark?

Brazil is suffering from convulsions. At first it was one a week, then one every day. Then everything began to change by the hour.

On Thursday 17 March, Brazilians tuned in to watch as former president Luiz Inácio “Lula” da Silva was sworn in as a cabinet minister. Then they went to use the toilet or get a drink, and by the time they came back his appointment had already been blocked by a judge.

It is possible that by the time you read this article Brazil will have experienced further convulsions and what happened on Thursday will already be a distant memory. The reason for this is that Brazil is currently fighting fire with fire. The firefighters pretend not to realise that if the country goes up in flames once and for all, everyone will get burned.

Brazil is a country in uproar. The demonstrators in favour of the impeachment of the president are in uproar. The demonstrators opposed to her impeachment are in uproar. Both sides are in uproar against those who refuse to side one way or the other.

The politicians suspected of corruption are in uproar, accusing other people of being the thieves. And vice versa. A sector of the media has stopped asking questions in favour of roaring foregone conclusions.

It is like being trapped in a recurring nightmare. Just when you think that the country has reached rock bottom, it sinks to a whole new level. And from there it goes on to plummet even greater depths.

In the face of the current crisis, which is not only political and economic but also one of identity, the worst thing that could happen to Brazil would be to turn back the clock; instead of tackling its chronic defects in order to build a future, recreating the nation’s past in its own image and likeness. The risk of this happening has looked ever more likely in recent days. And given the loss of faith in politicians and traditional political parties, dogged by charges of corruption, the judiciary has been filling the political void.

(…)

 

Leia aqui.

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