Tupi or not to be

Minha coluna no El País:

 

Foto: Antonio Augusto/ Câmara dos Deputados (Fotos Públicas, 17/04/2016)

Foto: Antonio Augusto/ Câmara dos Deputados (Fotos Públicas, 17/04/2016)

Em nome de Deus e do New York Times, a disputa do impeachment e dos Brasis

O 17 de abril de 2016 tornou explícito que esta não é apenas uma crise política e uma crise econômica. Mas também uma crise de identidade, de ética e de estética. Os holofotes lançados sobre a Câmara dos Deputados, em transmissão ao vivo pela TV, iluminou o horror. E iluminou o horror mesmo para aqueles que torciam pela aprovação da abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff. No dia seguinte, algo também revelador aconteceu: a disputa foi levada ao território “estrangeiro”. Não uma disputa qualquer, mas a disputa sobre como nomear o acontecido. Vale a pena seguir essa pista.

A imprensa internacional aponta para o Brasil e diz, com variações, que o espetáculo é ridículo, o que aconteceu foi um circo. A presidente Dilma Rousseff e o PT vão disputar lá fora o nome da coisa: é um golpe – ou um “coup”. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), despacha dois enviados especiais para garantir outra narrativa: o impeachment é legítimo, as instituições brasileiras funcionam, tudo está dentro das normas. Vozes se erguem para acusar Dilma Rousseff de expor o Brasil no “exterior”, prejudicando a imagem do país, reduzindo-o a uma “republiqueta de bananas”. Na ONU, Dilma recua da palavra “golpe” e escolhe, para oficialmente representá-la, outra palavra, uma que não constitui quebra: “retrocesso”. Não é ali que se dá a disputa. A guerra está no território dos narradores. E os narradores contemporâneos encontram-se em grande parte (ainda) na imprensa.

A disputa do impeachment aprofundou o que já havia sido exposto nas manifestações de 2013: a crise da imprensa brasileira não é apenas de modelo de negócios, mas de credibilidade. Como acontece com os partidos políticos, a da imprensa é também uma crise de representação, já que parcelas significativas da população não se reconhecem na cobertura. Neste sentido, o olhar do outro, aqui representado pela imprensa internacional, devolve algo sem o qual não se faz jornalismo que mereça este nome: devolve o espanto, lugar de partida de quem deseja decifrar o mundo que vê.

E, a partir do espanto, busca compreender como uma presidente democraticamente eleita por 54 milhões de votos, sem crime de responsabilidade comprovado, tem a abertura de seu processo de impeachment comandado por um réu do Supremo Tribunal Federal, numa Câmara em que parte dos deputados é investigada por crimes que vão de corrupção ao uso de trabalho escravo, num espetáculo que desvela pelo grotesco as fraturas históricas do país.

A narrativa construída por uma parte da imprensa brasileira sobre o momento mais complexo da história recente do país, a forma como essa parcela da mídia ocupa seu papel como protagonista, assim como as consequências dessa atuação, merecem toda atenção. Possivelmente muitos livros serão escritos sobre esse tema, as perguntas recém começaram a ser feitas. Nesse artigo, porém, quero seguir uma outra pista, que considero fascinante demais para ser perdida. Também não se trata aqui de analisar o que a imprensa de outros países disse de fato – e que está longe de ser homogêneo como se quer vender. Não se trata aqui “deles”, mas de “nós”.

A pista que investigo aqui parte da interrogação sobre o que significa levar a disputa narrativa ao território simbólico do grande outro, “o estrangeiro”. E não qualquer estrangeiro, mas o que fala principalmente inglês, depois alemão e francês e espanhol (da Espanha, não da América Latina). E o que significa dar a essa entidade, chamada “imprensa estrangeira”, a palavra para nomear o que aconteceu – e acontece – no Brasil.

O que é o horror, este que nos persegue desde o domingo 17 de abril? O horror é a impossibilidade da palavra. O horror é também uma infância que nunca acaba. É tudo menos banal que num dos momentos mais ricos de sentidos da história recente faltem palavras para narrar o Brasil. Em parte porque elas foram barradas pelos muros de um lado e outro, interditando o diálogo. E palavras que não atravessam produzem silenciamento. Em parte porque as palavras foram distorcidas, violadas e esvaziadas. E isso produz apagamento.

Mas há mais do que isso. É tudo menos banal que as palavras que faltam sejam procuradas em outro lugar. Porque, se não conseguimos construir uma narrativa em nome próprio, como constituir um país?

Este é o abismo, como sabiam os modernistas de 22. Ou este ainda é o abismo. Que ainda o seja vai demandar que nos lancemos na tarefa imperativa de encontrar as palavras que agora faltam. Ou de inventá-las. Não na língua de Camões, mas “nas línguas que roçam a de Camões”, como cantou Caetano Veloso.

Que em vez disso nos lancemos em busca de que o outro nos nomeie, de que o outro diga o nome da coisa que se passa aqui, é bem revelador. Agora menos a Europa e mais os Estados Unidos, agora menos Paris e mais Nova York, agora menos Le Monde e mais New York Times. Como se diante da cena ainda por decifrar não fôssemos capazes de falar em nome próprio.

Leia o texto completo na minha coluna no El País

Tupi or not to be

Em nome de Deus e do New York Times, a disputa do impeachment e dos Brasis

O 17 de abril de 2016 tornou explícito que esta não é apenas uma crise política e uma crise econômica. Mas também uma crise de identidade, de ética e de estética. Os holofotes lançados sobre a Câmara dos Deputados, em transmissão ao vivo pela TV, iluminaram o horror. E iluminaram o horror mesmo para aqueles que torciam pela aprovação da abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff. No dia seguinte, algo também revelador aconteceu: a disputa foi levada ao território “estrangeiro”. Não uma disputa qualquer, mas a disputa sobre como nomear o acontecido. Vale a pena seguir essa pista.

A imprensa internacional aponta para o Brasil e diz, com variações, que o espetáculo é ridículo, o que aconteceu foi um circo. A presidente Dilma Rousseff e o PT vão disputar lá fora o nome da coisa: é um golpe – ou um “coup”. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), despacha dois enviados especiais para garantir outra narrativa: o impeachment é legítimo, as instituições brasileiras funcionam, tudo está dentro das normas. Vozes se erguem para acusar Dilma Rousseff de expor o Brasil no “exterior”, prejudicando a imagem do país, reduzindo-o a uma “republiqueta de bananas”. Na ONU, Dilma recua da palavra “golpe” e escolhe, para oficialmente representá-la, outra palavra, uma que não constitui quebra: “retrocesso”. Não é ali que se dá a disputa. A guerra está no território dos narradores. E os narradores contemporâneos encontram-se em grande parte (ainda) na imprensa.

A disputa do impeachment aprofundou o que já havia sido exposto nas manifestações de 2013: a crise da imprensa brasileira não é apenas de modelo de negócios, mas de credibilidade. Como acontece com os partidos políticos, a da imprensa é também uma crise de representação, já que parcelas significativas da população não se reconhecem na cobertura. Neste sentido, o olhar do outro, aqui representado pela imprensa internacional, devolve algo sem o qual não se faz jornalismo que mereça este nome: devolve o espanto, lugar de partida de quem deseja decifrar o mundo que vê.

E, a partir do espanto, busca compreender como uma presidente democraticamente eleita por 54 milhões de votos, sem crime de responsabilidade comprovado, tem a abertura de seu processo de impeachment comandado por um réu do Supremo Tribunal Federal, numa Câmara em que parte dos deputados é investigada por crimes que vão de corrupção ao uso de trabalho escravo, num espetáculo que desvela pelo grotesco as fraturas históricas do país.

A narrativa construída por uma parte da imprensa brasileira sobre o momento mais complexo da história recente do país, a forma como essa parcela da mídia ocupa seu papel como protagonista, assim como as consequências dessa atuação, merecem toda atenção. Possivelmente muitos livros serão escritos sobre esse tema, as perguntas recém começaram a ser feitas. Nesse artigo, porém, quero seguir uma outra pista, que considero fascinante demais para ser perdida. Também não se trata aqui de analisar o que a imprensa de outros países disse de fato – e que está longe de ser homogêneo como se quer vender. Não se trata aqui “deles”, mas de “nós”.

A pista que investigo aqui parte da interrogação sobre o que significa levar a disputa narrativa ao território simbólico do grande outro, “o estrangeiro”. E não qualquer estrangeiro, mas o que fala principalmente inglês, depois alemão e francês e espanhol (da Espanha, não da América Latina). E o que significa dar a essa entidade, chamada “imprensa estrangeira”, a palavra para nomear o que aconteceu – e acontece – no Brasil.

O que é o horror, este que nos persegue desde o domingo 17 de abril? O horror é a impossibilidade da palavra. O horror é também uma infância que nunca acaba. É tudo menos banal que num dos momentos mais ricos de sentidos da história recente faltem palavras para narrar o Brasil. Em parte porque elas foram barradas pelos muros de um lado e outro, interditando o diálogo. E palavras que não atravessam produzem silenciamento. Em parte porque as palavras foram distorcidas, violadas e esvaziadas. E isso produz apagamento.

Mas há mais do que isso. É tudo menos banal que as palavras que faltam sejam procuradas em outro lugar. Porque, se não conseguimos construir uma narrativa em nome próprio, como constituir um país?

Este é o abismo, como sabiam os modernistas de 22. Ou este ainda é o abismo. Que ainda o seja vai demandar que nos lancemos na tarefa imperativa de encontrar as palavras que agora faltam. Ou de inventá-las. Não na língua de Camões, mas “nas línguas que roçam a de Camões”, como cantou Caetano Veloso.

Que em vez disso nos lancemos em busca de que o outro nos nomeie, de que o outro diga o nome da coisa que se passa aqui, é bem revelador. Agora menos a Europa e mais os Estados Unidos, agora menos Paris e mais Nova York, agora menos Le Monde e mais New York Times. Como se diante da cena ainda por decifrar não fôssemos capazes de falar em nome próprio.

E aqui, sempre vale a pena sublinhar, não se trata de nenhuma invocação de nacionalismos ou de purismos aos moldes Aldo Rebelo. É bem o contrário disso. O outro, seja ele quem ou o quê for, pode e deve falar sobre nós. É importante que fale. Mas a interrogação aqui é outra: é por que delegamos a ele a palavra que não somos capazes de encontrar – ou de criar. E que diz respeito ao próprio jogo de identidade/desidentidade essencial à construção de uma pessoa – e também de um país. E como isso está na própria raiz da crise.

O Brasil, este que nasce pela invasão dos europeus e promove primeiro o genocídio indígena, depois o dos negros escravizados – ambos ainda em curso, vale dizer –, nasce com a carta do português Pero Vaz de Caminha. Parte da nossa trajetória é narrada pelo olhar de viajantes notáveis, como o francês Auguste de Saint-Hilaire. O que se diz do Brasil, e que portanto o constitui como narrativa, é dito em língua estrangeira, como todo país que nasce da usurpação do corpo de um outro.

O Brasil, estrangeiro a si mesmo, já que o que aqui existia em 1500 não era Brasil, é constituído pelo conflito, pela dominação e pelo extermínio expressado também na construção da língua. A língua portuguesa, ainda que tenha se imposto junto com seus falantes, foi tomada ela mesma pelos invadidos e pelos escravizados. Ou pelas línguas indígenas primeiro, pelas africanas depois. Não fosse essa contra-invasão pela palavra, a resistência dos invadidos e dos escravos, não seria possível existir um país em nome próprio. Persiste e resiste nas curvas do corpo da língua portuguesa a vida dos mortos.

Essa construção é um campo de conflitos permanente. Basta lembrar as batalhas ocorridas nos últimos anos entre a tal norma culta do português e as variações do português brasileiro, consideradas pelas elites como indesejáveis e menores – “erradas”. Basta escutar as línguas criadas nas periferias urbanas e na floresta amazônica, as línguas vivas que disputam o nome próprio do Brasil. Que no momento em que se disputa a narrativa sobre a coisa que aqui acontece, ou sobre o nome da coisa que aqui acontece, ela seja levada à língua do “estrangeiro”, talvez seja “a nossa mais completa tradução”.

Há muitas razões e significados. Mas talvez exista também uma nostalgia do colonizador. Uma demanda de paternidade. Ou de autoridade. Digam vocês, os que sabem, o que acontece aqui. Deem-nos um nome.

Nossas elites, como se sabe, são jecas. Primeiro cortejavam a França, agora é tudo em inglês. Americano, de preferência. Os Estados Unidos como a colônia que conseguiu virar metrópole e, por fim, a grande potência mundial. Que uma parcela da imprensa e das elites seja agora achincalhada em inglês é uma ironia das mais interessantes.

Com a ascensão de Lula ao poder, o primeiro presidente que não pertencia às elites, a expectativa de alguns, entre os quais me incluo, era a da fundação de uma nova ideia de país. Dito de outra forma, que o Brasil fosse menos um imitador e mais um criador. E isso também na economia.

Eduardo Viveiros de Castro coloca bem essa perspectiva numa entrevista dada ao Outras Palavras, em 2012, quando já se sabia que essa possibilidade tinha sido perdida, pelo menos no governo Lula: “Penso, de qualquer forma, que se deve insistir na ideia de que o Brasil tem – ou, a essa altura, teria – as condições ecológicas, geográficas, culturais de desenvolver um novo estilo de civilização, um que não seja uma cópia empobrecida do modelo americano e norte-europeu. Poderíamos começar a experimentar, timidamente que fosse, algum tipo de alternativa aos paradigmas tecno-econômicos desenvolvidos na Europa moderna. Mas imagino que, se algum país vai acabar fazendo isso no mundo, será a China. Verdade que os chineses têm 5.000 anos de história cultural praticamente contínua, e o que nós temos a oferecer são apenas 500 anos de dominação europeia e uma triste história de etnocídio, deliberado ou não. Mesmo assim, é indesculpável a falta de inventividade da sociedade brasileira, pelo menos das suas elites políticas e intelectuais, que perderam várias ocasiões de se inspirarem nas soluções socioculturais que os povos brasileiros historicamente ofereceram, e de assim articular as condições de uma civilização brasileira minimamente diferente dos comerciais de TV”.

Lula, como bem sabemos, adotou um modelo de desenvolvimento que ignorava o maior desafio desse momento histórico, a mudança climática. E Dilma Rousseff mostrou-se uma governante com pensamento cimentado no século 20, às vezes no 19. Mas é na produção simbólica que fica claro como ainda se tratava de “vencer” no campo do outro. Ou de ser reconhecido “pelos grandes” – ou “pelos adultos”.

Lula termina seu segundo mandato festejado na Europa e nos Estados Unidos como aquele que incluiu dezenas de milhões de brasileiros no mundo do consumo. A “invenção” do Brasil era deveras interessante: tirar pessoas da pobreza sem mexer na renda dos mais ricos. Com esse milagre made in Brazil, Lula só poderia ser “o cara de Obama”. “This is my man, right there. I love this guy”, disse o presidente americano em 2009. “The most popular politician on Earth”.

O que ficou encoberto no meio da festa é que a “mágica” obedecia a uma receita velha: exportação de matérias-primas, como o Brasil fazia desde os primórdios. Também esquecia-se de dizer que essa “criação” era feita na base da destruição do meio ambiente, como sempre foi desde 1500. A novidade não era tão nova assim. E tão logo o encanto se desfez, os mais ricos, em cuja renda os governos do PT não tocaram, se voltaram contra Dilma Rousseff.

O destinatário da produção de símbolos revela-se na escolha dos acontecimentos que deveriam mostrar, de forma definitiva, que o eterno país do futuro finalmente havia chegado a um presente glorioso. Dois eventos internacionais, dois eventos para o mundo ver: a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016.

Há um sujeito confuso nessa narrativa. Um sujeito sujeitado. Quando se joga no campo do outro, segundo os termos do outro, se perde por 7X1. A Olimpíada é assombrada por um mosquito, vilão arcaico que denuncia velhas mazelas como a falta de saneamento básico. E a nova ciclovia do Rio desaba matando duas pessoas no mesmo dia em que a tocha olímpica é acesa na Grécia. A construção, tanto a simbólica quanto a concreta, não para em pé. Lost in translation.

Será sempre lost in translation enquanto não se encontrar o nome próprio. Enquanto o Brasil não falar em nome próprio. Enquanto o Brasil seguir insistindo em ser descoberto quando o que precisa é se inventar. Essa realidade é o cenário da extraordinária peça de Felipe Hirsch e Os Ultralíricos, A Tragédia Latino-Americana, em que os blocos são construídos para em seguida desabarem e serem rearranjados para logo depois virarem ruínas e tudo então ser mais uma vez reconstruído para desabar de novo e de novo e de novo.

Sobre esses blocos em permanente construção e dissolução, Pero Vaz de Caminha recita sua carta, agora narrada em inventiva prosa pelo escritor Reinaldo Moraes. Para parodiar o português, o brasileiro invade a língua do invasor. “Antão dizia eu que antes de alguém ter tempo de dizer chupa! já saltávamos aos cangotes daquelas fêmeas naturaes, feitos javalis resfolegantes de animalesco e represado d’sejo, e elas viram o que era bom pa tosse, pá. E às vezes que por qualquer razão já não queriam mais ter seus urifícios frequentados brutalmente pela nossa nobre gente, dávamos-lhes uns cascudos, mor d’elas calarem as matracas, e nelas mandávamos grosso fumo, pá, refodidas vezes, e era pimba na pombinha e peroba na peladinha! Aquilo era um vidão, pá”.

Criar o que pode ser chamado de um “em nome próprio” foi o desafio dos principais movimentos culturais do século 20, dos modernistas de 22 ao Cinema Novo e à Tropicália. Não por coincidência, processos interrompidos por ditaduras. Em 2013, o novo voltou a ocupar as ruas com enorme potência, para ser reprimido pelas bombas de gás da Polícia Militar e pela violência da palavra “vândalos”, usada pela imprensa conservadora para silenciar o que não queria escutar ou o que não era capaz de interpretar.

É de 2013 que ainda se trata hoje, e se tratará por muito tempo. Do que já não pode ser contido, do que reivindica novas palavras para poder ser dito. Não mais como discurso, como nos movimentos da modernidade, mas como fragmentos, ou como discurso contra discurso, em nossa principal irrupção estética de pós-modernidade.

O Brasil não é pátria nem mátria, mas fátria, como cantou Caetano. Para encontrar as palavras com que construiremos a narrativa do hoje é preciso olhar para Oswald de Andrade, para Villa-Lobos, para Glauber Rocha, para Zé Celso Martinez Corrêa, para Davi Kopenawa e Ailton Krenak, para Mano Brown e Emicida, para Eliakin Rufino, para Sérgio Vaz, para Laerte, para Mundano. Para tantos. Para o perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro. Para a literatura de Carolina Maria de Jesus. Para a Comissão da Verdade. A dos crimes da ditadura. E a dos crimes da democracia.

Para o funk das que não são recatadas e que comandam seus próprios lares. Para as famílias que têm dois homens e nenhuma mulher e as que têm uma mulher e outra mulher, para as que tem três padrastos e nenhuma madrasta, para as de uma mulher só. E para as mulheres que antes foram homens. Para os deuses que se recusam a ser vítimas de estelionato no microfone do parlamento.

Para refundar o Brasil é preciso perceber que as periferias são o centro. Que nossa capital simbólica não é São Paulo, mas Altamira.

Inevitável lembrar de Terra em transe (1967), filme de Glauber Rocha.

Diz o jornalista, depois de descobrir que as palavras são inúteis:

– Não é possível esta festa de bandeiras, com guerra e Cristo na mesma posição. Não é possível a potência da fé, não é possível a ingenuidade da fé. (…) Não assumimos a nossa violência, não assumimos nossas ideias, o ódio dos bárbaros adormecidos que somos. Não assumimos nosso passado. (…) Não é possível acreditar que tudo isso é verdade…. Até quando suportaremos, até quando além da fé e da esperança suportaremos…

Diz o político que se corrompeu:

– Aprenderão! Aprenderão! Nominarei essa terra. Botarei essas histéricas tradições em ordem. Pela força. Pelo amor da força. Pela harmonia universal dos infernos chegaremos a uma civilização!

O que fazer diante do horror? Retomar a palavra, a que atravessa os muros. Enfrentar o desafio de construir uma narrativa, necessariamente polifônica, sobre o momento, em todos os espaços. Não desviando das contradições, para evitar que elas manchem a limpidez do discurso. Ao contrário. Abraçando-as, porque elas criam o discurso.

O nome da coisa é a palavra que precisamos encontrar para inventar o Brasil.

(Publicado no El País em 25 de abril de 2016)

Brazil is going through an identity crisis, not just an impeachment

Meu artigo no The Guardian:

 Brazilian politicians celebrate the vote to launch impeachment proceedings against President Rousseff. Photograph: Evaristo Sa/AFP/Getty Images (The Guardian)

Brazilian politicians celebrate the vote to launch impeachment proceedings against President Rousseff. Photograph: Evaristo Sa/AFP/Getty Images (The Guardian)

Yes, this may be a coup against democracy: but for the country’s sake Rouseff’s Workers’ party must own up its own role in corruption

When Brazil’s congress voted yesterday to launch impeachment proceedings against President Dilma Rousseff, democracy took the form of a farce. The attempt to remove the democratically elected president – who won 54 million votes and is not charged with any crimes – was led by a man accused of corruption and money laundering: Eduardo Cunha, the speaker of the lower house. On this historic day, Brazilians learned a dangerous lesson about their young democracy: their votes aren’t worth much.

With 367 of the 513 deputies backing impeachment, Rousseff may now be removed from office for delaying fund transfers to state banks so that the government’s finances would appear healthier than they are, and for allegedly violating budget laws. Brazil’s leaders have often resorted to this budgetary trick. Unlike the president, a good share of those who voted to oust her are under investigation for crimes ranging from corruption to the use of slave labour.

If the senate – the upper house – now decides to carry out an impeachment trial, Rousseff will be suspended for a maximum of 180 days and the vice-president – Michel Temer, known in Brazil as the “vice conspirator” – will take over. If Rousseff is convicted, Temer (like Cunha, a member of the conservative Democratic Movement party, or PMDB) will stay.

Temer’s latest betrayal of his former running mate was an inventive wiretap – of himself. Assuming Rousseff would be ousted, days before the vote he used WhatsApp to “accidentally” send a recording of his proposed victory speech to party cohorts, announcing what his plans would be as president. To borrow the biblical images so popular in congress, compared to Temer, Judas is a rookie.

Leia o artigo completo aqui. 

O que Belo Monte delata sobre todos os lados

Posicionar-se, neste momento do Brasil, é uma cadeira de pregos. Belo Monte é uma estaca. Sem enfrentar as contradições, não dá.

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte (FOTOS DE LILO CLARETO)

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte (Foto: Lilo Clareto)

Quando a narrativa da propina se impõe sobre a da violação de direitos humanos, as contradições em jogo neste momento histórico são denunciadas

 

E Belo Monte finalmente chegou às manchetes da grande imprensa – e aos corações e mentes dos “cidadãos de bem” deste Brasil – como denúncia. Segundo a Folha de S. Paulo, Otávio Marques de Azevedo, ex-presidente da Andrade Gutierrez, uma das maiores empreiteiras do país, revelou à Operação Lava Jato um esquema de propinas no valor de 150 milhões de reais envolvendo a hidrelétrica. O dinheiro seria dividido em partes iguais entre PT e PMDB e teria sido entregue pelas construtoras envolvidas na obra da hidrelétrica na forma de doações legais às campanhas eleitorais de 2010, 2012 e 2014. Basicamente, lavagem de dinheiro de propina via financiamento de campanha. Se o esquema exposto em delação premiada for comprovado – e só depois disso – Belo Monte poderá alcançar a presidente Dilma Rousseff.

Há algo, porém, que a relação entre as delações premiadas da Operação Lava Jato sobre Belo Monte já expõe de forma explícita. Onde está o valor – ou onde estão as prioridades. A hidrelétrica só se torna objeto de denúncia quando a ela é relacionado um esquema de propinas que ainda precisa ser comprovado. Em seguida, setores que sempre defenderam a construção de Belo Monte e a enalteceram como uma “magistral obra de engenharia”, como se fosse a parte boa do governo de Dilma Rousseff, passam a denunciar a usina na expectativa de que, desta vez, a presidente seja alcançada.

Acontece com Belo Monte o que aconteceu com o tema da corrupção: ele passa a ser apropriado pela direita. Ou, dito de outro modo: as denúncias envolvendo a construção da hidrelétrica são sequestradas para dentro do amplo guarda-chuva da corrupção. Com mais entusiasmo, porque, se comprovadas, Belo Monte pode levar ao que faltava, uma ligação com a campanha de 2014. Diante das denúncias, Dilma Rousseff e a Norte Energia, empresa concessionária, negaram irregularidades.

Essa apropriação é particularmente interessante porque aponta as dificuldades de parte da esquerda neste momento. Se o esquema de propinas ainda precisa ser comprovado, as violações de direitos humanos e a destruição ambiental produzidas pela hidrelétrica estão fartamente documentadas. Mas a esquerda ligada ao PT silenciou sobre essa violência todos esses anos. E silenciou mais uma vez quando a licença de operação foi dada à hidrelétrica sem que a empresa tivesse cumprido a totalidade das condicionantes que, como o nome diz, eram as condições para que pudesse funcionar. Se o tema dos direitos humanos não é exclusivo de um campo ideológico, é certo que sempre foi um tema caro à esquerda. Por ter silenciado, esta esquerda se deslegitima. E já não sabe o que é num momento em que precisa desesperadamente provar sua diferença com relação aos que lhe apontam um dedo acusatório.

Belo Monte torna-se, assim, um problema também para todos aqueles que, de forma suprapartidária, apresentam-se “contra o golpe” e “em defesa da democracia”. O ponto defendido é claro: ao posicionar-se contra o impeachment de Dilma Rousseff porque não há base legal para ele, defende-se a escolha das urnas, o voto, a democracia. Mas, ainda assim, a maioria dos participantes destes atos e manifestos precisam repetir o tempo todo que a defesa da democracia não se confunde com a defesa do governo, na medida em que vários aspectos deste governo são indefensáveis. É tudo menos fácil se manifestar pela democracia e o cumprimento integral do mandato de Dilma Rousseff enquanto, ao mesmo tempo, a presidente sanciona a lei antiterrorismo que, conforme a interpretação de quem aplica a lei, pode criminalizar justamente manifestações e movimentos sociais.

Essa dificuldade aumenta quando Belo Monte desponta no noticiário e no discurso do oponente como uma denúncia de corrupção. É fácil afirmar que este governo está sendo atacado, e com ele a democracia, porque “defendeu os direitos dos mais pobres”, como foi repetido em todos os atos e manifestações que acompanhei. Esta é uma parte da verdade, mas bem longe de ser o todo. É muito mais difícil dizer algo como “este governo violou os direitos dos mais desamparados para construir a hidrelétrica de Belo Monte” ou “a hidrelétrica de Belo Monte, uma das maiores obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), produziu o etnocídio de povos indígenas”. E concluir: “Mas ainda assim é preciso defender a democracia e a escolha das urnas”. É possível afirmar isso, mas complica-se. É preciso enfrentar a complicação – e pronunciar todas as palavras, abandonando de uma vez as mistificações que facilitam o discurso.

Belo Monte torna-se o incontornável neste momento. Quando o processo de implantação da hidrelétrica entra na pauta da direita, abrigado no guarda-chuva da corrupção, o que setores da esquerda vão fazer? Há duas alternativas: recolocar as prioridades, o que significa incluir o possível esquema de corrupção no campo dos direitos humanos e ambientais, ou silenciar mais uma vez.

É pela sequência de silêncios constrangedores, quando não covardes, das contradições não enfrentadas, dos enfrentamentos adiados porque havia uma eleição a ganhar, uma disputa a vencer, uma guinada à esquerda para fazer ou ainda o “menos pior” a ser defendido, que tudo o que de melhor os que se posicionam “em defesa da democracia” podem dizer hoje é que defender a democracia não significa defender o governo. É isso – ou assumir-se a serviço do apagamento.

Mas, é preciso alertar mais uma vez, Belo Monte é o incontornável. O processo histórico já provou que silenciar sobre as verdades que não convêm para vencer uma disputa no campo da política é uma escolha perigosa. Só me parece possível defender a democracia, sem defender o governo, enfrentando as contradições deste ato. No caso de Belo Monte, isso significa enfrentar as violações de direitos consumadas antes, durante e depois da obra. Enfrentar as violações de direitos humanos e a destruição ambiental que acontecem agora, neste momento, no Xingu. E que não podem, mais uma vez, ser invisibilizadas em nome das conveniências – ou ser reduzidas a um esquema de propinas ainda por ser comprovado.

Leia o texto completo na minha coluna no El País

Para quem quiser compreender a atual conjuntura de Belo Monte e da Amazônia, mais artigos, entrevistas e reportagens, aqui:

 

2011

Belo Monte (Foto: Lilo Clareto)

Belo Monte (Foto: Lilo Clareto)

31/10/2011
Belo Monte, nosso dinheiro e o bigode do Sarney
Um dos mais respeitados especialistas na área energética do país, o professor da USP Célio Bermann, fala sobre a “caixa preta” do setor, controlado por José Sarney, e o jogo pesado e lucrativo que domina a maior obra do PAC. Conta também sua experiência como assessor de Dilma Rousseff no Ministério de Minas e Energia

17/10/2011
A pequenez do Brasil Grande
A ditadura acabou, mas a palavra “desenvolvimento” continua sendo torturada para confessar o que o governo deseja que o povo acredite

26/09/2011
Devemos ter medo de Dilma Dinamite?
As mulheres que a primeira presidente prefere não escutar

05/09/2011
Um procurador contra Belo Monte
Conheça o homem que se tornou o flagelo do governo ao lutar contra a maior e mais polêmica obra do PAC

06/06/2011
Se a Amazônia é nossa, por que não cuidamos dela?
Para boa parte dos brasileiros, a floresta não passa de uma abstração

2012

28/01/2012
A Amazônia, segundo um morto e um fugitivo

Dois homens denunciaram a quatro órgãos federais e dois estaduais uma milionária operação criminosa que rouba ipê de dentro de áreas de preservação da floresta amazônica, no Pará. Depois da denúncia, um foi assassinado – e o outro foge pelo Brasil com a família, sem nenhuma proteção do governo. A partir do relato desses dois homens, é possível unir a Amazônia dos bárbaros à floresta dos nobres

04/06/2012
Dom Erwin Kräutler: “Lula e Dilma passarão para a História como predadores da Amazônia”
O lendário bispo do Xingu, ameaçado de morte e sob escolta policial há seis anos, afirma que o PT traiu os povos da Amazônia e a causa ambiental. Afirma também que Belo Monte causará a destruição do Xingu e o genocídio das etnias indígenas que habitam a região há séculos. Há 47 anos no epicentro da guerra cada vez menos silenciosa e invisível travada na Amazônia, Dom Erwin Kräutler encarna um capítulo da história do Brasil

Dom Erwin (Foto: Lilo Clareto)

Dom Erwin (Foto: Lilo Clareto)

2013

08/04/2013
À margem do pai
Na floresta amazônica, um homem confronta sua solidão quando um filho seu é picado por uma cobra, o outro por escorpião. Como salvá-los sem nenhum acesso à saúde? O dia a dia dos protetores da Terra do Meio, onde não morrer é um golpe de sorte

2014

31/03/2014
A ditadura que não diz seu nome
O imaginário sobre a Amazônia e os povos indígenas, forjado pelo regime de exceção, é possivelmente a herança autoritária mais persistente na mente dos brasileiros de hoje, incluindo parte dos que estão no poder. E a que mais faz estragos na democracia

15/09/2014
A não gente que não vive no Tapajós
A extraordinária saga de Montanha e Mangabal, da escravidão nos seringais à propaganda do governo que pretende botar uma hidrelétrica na terra que habitam há quase 150 anos

As crianças de Montanha e Mangabal (Foto: Lilo Clareto)

As crianças de Montanha e Mangabal (Foto: Lilo Clareto)

29/9/2014
Diálogos sobre o fim do mundo
Do Antropoceno à Idade da Terra, de Dilma Rousseff a Marina Silva, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e a filósofa Déborah Danowski pensam o planeta e o Brasil a partir da degradação da vida causada pela mudança climática

01/12/2014
Belo Monte: a anatomia de um etnocídio

A procuradora da República Thais Santi conta como a terceira maior hidrelétrica do mundo vai se tornando fato consumado numa operação de suspensão da ordem jurídica, misturando o público e o privado e causando uma catástrofe indígena e ambiental de proporções amazônicas

2015

16/02/2015
O pescador sem rio e sem letras
À beira de Belo Monte, uma história pequena numa obra gigante. Que tamanho tem uma vida humana?

07/07/2015
Belo Monte, empreiteiras e espelhinhos
Como a mistura explosiva entre o público e o privado, entre o Estado brasileiro e as grandes construtoras, ergueu um monumento à violência, à beira do Xingu, na Amazônia

14/09/2015
O dia em que a casa foi expulsa de casa
A maior liderança popular do Xingu foi arrancada do seu lugar pela hidrelétrica de Belo Monte, a obra mais brutal –e ainda impune– da redemocratização do Brasil

Antonia Melo (Foto: Lilo Clareto)

Antonia Melo (Foto: Lilo Clareto)

22/09/2015
Vítimas de uma guerra amazônica
Expulsos por Belo Monte, Raimunda e João tornam-se refugiados em seu próprio país

João e Raimunda (Foto: Lilo Clareto)

João e Raimunda (Foto: Lilo Clareto)

 

 

 

O que Belo Monte delata sobre todos os lados

Quando a narrativa da propina se impõe sobre a da violação de direitos humanos, as contradições em jogo neste momento histórico são denunciadas

Um dos buracos artificiais de Belo Monte. LILO CLARETO

Um dos buracos artificiais de Belo Monte. LILO CLARETO

E Belo Monte finalmente chegou às manchetes da grande imprensa – e aos corações e mentes dos “cidadãos de bem” deste Brasil – como denúncia. Segundo a Folha de S. Paulo, Otávio Marques de Azevedo, ex-presidente da Andrade Gutierrez, uma das maiores empreiteiras do país, revelou à Operação Lava Jato um esquema de propinas no valor de 150 milhões de reais envolvendo a hidrelétrica. O dinheiro seria dividido em partes iguais entre PT e PMDB e teria sido entregue pelas construtoras envolvidas na obra da hidrelétrica na forma de doações legais às campanhas eleitorais de 2010, 2012 e 2014. Basicamente, lavagem de dinheiro de propina via financiamento de campanha. Se o esquema exposto em delação premiada for comprovado – e só depois disso – Belo Monte poderá alcançar a presidente Dilma Rousseff.

Há algo, porém, que a relação entre as delações premiadas da Operação Lava Jato sobre Belo Monte já expõe de forma explícita. Onde está o valor – ou onde estão as prioridades. A hidrelétrica só se torna objeto de denúncia quando a ela é relacionado um esquema de propinas que ainda precisa ser comprovado. Em seguida, setores que sempre defenderam a construção de Belo Monte e a enalteceram como uma “magistral obra de engenharia”, como se fosse a parte boa do governo de Dilma Rousseff, passam a denunciar a usina na expectativa de que, desta vez, a presidente seja alcançada.

Acontece com Belo Monte o que aconteceu com o tema da corrupção: ele passa a ser apropriado pela direita. Ou, dito de outro modo: as denúncias envolvendo a construção da hidrelétrica são sequestradas para dentro do amplo guarda-chuva da corrupção. Com mais entusiasmo, porque, se comprovadas, Belo Monte pode levar ao que faltava, uma ligação com a campanha de 2014. Diante das denúncias, Dilma Rousseff e a Norte Energia, empresa concessionária, negaram irregularidades.

Essa apropriação é particularmente interessante porque aponta as dificuldades de parte da esquerda neste momento. Se o esquema de propinas ainda precisa ser comprovado, as violações de direitos humanos e a destruição ambiental produzidas pela hidrelétrica estão fartamente documentadas. Mas a esquerda ligada ao PT silenciou sobre essa violência todos esses anos. E silenciou mais uma vez quando a licença de operação foi dada à hidrelétrica sem que a empresa tivesse cumprido a totalidade das condicionantes que, como o nome diz, eram as condições para que pudesse funcionar. Se o tema dos direitos humanos não é exclusivo de um campo ideológico, é certo que sempre foi um tema caro à esquerda. Por ter silenciado, esta esquerda se deslegitima. E já não sabe o que é num momento em que precisa desesperadamente provar sua diferença com relação aos que lhe apontam um dedo acusatório.

Belo Monte torna-se, assim, um problema também para todos aqueles que, de forma suprapartidária, apresentam-se “contra o golpe” e “em defesa da democracia”. O ponto defendido é claro: ao posicionar-se contra o impeachment de Dilma Rousseff porque não há base legal para ele, defende-se a escolha das urnas, o voto, a democracia. Mas, ainda assim, a maioria dos participantes destes atos e manifestos precisam repetir o tempo todo que a defesa da democracia não se confunde com a defesa do governo, na medida em que vários aspectos deste governo são indefensáveis. É tudo menos fácil se manifestar pela democracia e o cumprimento integral do mandato de Dilma Rousseff enquanto, ao mesmo tempo, a presidente sanciona a lei antiterrorismo que, conforme a interpretação de quem aplica a lei, pode criminalizar justamente manifestações e movimentos sociais.

Essa dificuldade aumenta quando Belo Monte desponta no noticiário e no discurso do oponente como uma denúncia de corrupção. É fácil afirmar que este governo está sendo atacado, e com ele a democracia, porque “defendeu os direitos dos mais pobres”, como foi repetido em todos os atos e manifestações que acompanhei. Esta é uma parte da verdade, mas bem longe de ser o todo. É muito mais difícil dizer algo como “este governo violou os direitos dos mais desamparados para construir a hidrelétrica de Belo Monte” ou “a hidrelétrica de Belo Monte, uma das maiores obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), produziu o etnocídio de povos indígenas”. E concluir: “Mas ainda assim é preciso defender a democracia e a escolha das urnas”. É possível afirmar isso, mas complica-se. É preciso enfrentar a complicação – e pronunciar todas as palavras, abandonando de uma vez as mistificações que facilitam o discurso.

Belo Monte torna-se o incontornável neste momento. Quando o processo de implantação da hidrelétrica entra na pauta da direita, abrigado no guarda-chuva da corrupção, o que setores da esquerda vão fazer? Há duas alternativas: recolocar as prioridades, o que significa incluir o possível esquema de corrupção no campo dos direitos humanos e ambientais, ou silenciar mais uma vez.

É pela sequência de silêncios constrangedores, quando não covardes, das contradições não enfrentadas, dos enfrentamentos adiados porque havia uma eleição a ganhar, uma disputa a vencer, uma guinada à esquerda para fazer ou ainda o “menos pior” a ser defendido, que tudo o que de melhor os que se posicionam “em defesa da democracia” podem dizer hoje é que defender a democracia não significa defender o governo. É isso – ou assumir-se a serviço do apagamento.

Mas, é preciso alertar mais uma vez, Belo Monte é o incontornável. O processo histórico já provou que silenciar sobre as verdades que não convêm para vencer uma disputa no campo da política é uma escolha perigosa. Só me parece possível defender a democracia, sem defender o governo, enfrentando as contradições deste ato. No caso de Belo Monte, isso significa enfrentar as violações de direitos consumadas antes, durante e depois da obra. Enfrentar as violações de direitos humanos e a destruição ambiental que acontecem agora, neste momento, no Xingu. E que não podem, mais uma vez, ser invisibilizadas em nome das conveniências – ou ser reduzidas a um esquema de propinas ainda por ser comprovado.

Escrevi, mais de uma vez, nos últimos anos, que Belo Monte, quando totalmente desvelada, é o nó que revelará o Brasil. Essa obra gigantesca contém a anatomia inteira das relações entre empreiteiras e governos (no plural) que assinala a história do país desde a construção de Brasília, em meados do século passado. Que essa operação entre Estado e empreiteiras tenha começado a ser desenhada na construção da capital do país, um monumento modernista erigido sobre a destruição da natureza representada pelo Cerrado, é de um simbolismo explícito. E cá estamos nós, mais de meio século depois, diante de Belo Monte, um monumento deslocado no meio do Xingu, um dos rios mais ricos em biodiversidade da Amazônia, no momento da história em que já não é possível negar a ação do homem na mudança climática.

Se Belo Monte for reduzida a um capítulo da Operação Lava Jato, apagam-se livros inteiros. É isso que, de novo, não se pode permitir que aconteça. Só há chance de “refundar a democracia no Brasil” – ou a República –, como alguns têm defendido, se Belo Monte for enxergada com tudo o que é. Para muito além do que a Lava Jato pode mostrar. É preciso olhar o “Belo Monstro”, como é chamada na região do Xingu, no olho. Para descobrir que estão todos lá, amarelos e vermelhos, brancos, qualquer cor. Direita, esquerda. Belo Monte é um monumento que expõe as contradições tanto dos que gritam “contra a corrupção” e “pelo impeachment de Dilma Rousseff” – quanto dos que gritam “em defesa da democracia” e “contra o golpe”. Em Belo Monte, pouca gente não tem sangue nas mãos.

Vale a pena lembrar alguns episódios dessa história em movimento.

– Belo Monte vai sair!

Esta foi a frase de Dilma Rousseff, então ministra das Minas e Energia de Lula, em 2004. É importante prestar atenção na data: essa cena ocorreu no segundo ano do primeiro mandato de Lula. À declaração, seguiu-se um murro na mesa. Dilma então se levantou e deu as costas para os representantes dos movimentos sociais da região, que cobravam coerência do PT, partido que apoiaram e ao qual a maioria estava filiada. Essa cena, contada por Antonia Melo, a maior liderança viva do Xingu, é a síntese da escolha que o partido fez, lá atrás, ao anunciar que a hidrelétrica seria construída de qualquer maneira e antes de escutar os diretamente afetados por ela, numa decisão prévia, anterior à análise das consequências. Ali, já estava muito dito – senão tudo. Para quem estivesse disposto a escutar, é claro. Quase ninguém estava. É também ali que se explica a escolha de Dilma Rousseff para ser sucessora de Lula.

Entre o murro da ministra e o início da geração de energia por Belo Monte, ocorrido na semana passada, passaram-se 12 anos. E uma das maiores coleções de violações de direitos da história recente do Brasil. Belo Monte é mais do que um mostruário de crimes socioambientais: é um monstruário. Já era muito antes de as primeiras delações premiadas revelarem as supostas propinas envolvendo a obra, já era muito antes de o juiz Sérgio Moro, dos procuradores e da Polícia Federal sequer sonharem com a Lava Jato. E ninguém, de lado nenhum, pode dizer que não sabia, que não foi informado. Desinformação é um luxo não disponível neste momento.

Em 2011, por exemplo, Célio Bermann, professor da Universidade de São Paulo (USP) especializado na área energética, afirmou em entrevista: “Não se trata de construir uma usina para produzir energia elétrica. Uma vez construída, alguém vai precisar produzir energia elétrica, mas não é para isso que Belo Monte está sendo construída. O que está em jogo é a utilização do dinheiro público e especialmente no espaço de cinco, seis anos em que o empreendimento será construído. É neste momento que se fatura. É na construção o momento onde corre o dinheiro. É quando prefeitos, vereadores, governadores são comprados e essa situação é mantida. Estou sendo muito claro ao expor a minha percepção do que é uma usina hidrelétrica como Belo Monte”. E depois: “Há as pessoas que ganham pela obra – fabricantes de equipamentos, empreiteiras. E há quem ganhe não financeiramente, mas politicamente, por permitir que essa articulação seja possível, porque é esse pessoal que vai bancar a campanha para o próximo mandato”.

Bermann tinha credenciais para afirmar o que afirmava. Ele havia participado dos debates da área energética e ambiental para a elaboração do programa de Lula na campanha de 2002 e foi assessor de Dilma Rousseff entre 2003 e 2004, no Ministério de Minas e Energia. Desfiliou-se do PT, segundo ele, quando “o bigode do Sarney estava aparecendo muito nas fotos”. Em 2011, declarações como as do professor, fora das redes socioambientais, eram fortemente desqualificadas. Quem apontava as já claríssimas contradições de Belo Monte era acusado de não compreender as necessidades do desenvolvimento do país.

Vale a pena recuar mais alguns anos e reler a entrevista dada pelo economista Delfim Netto, ex-ministro da ditadura civil-militar, à revista Veja, no início de 2007. Ao defender o Programa de Aceleração do Crescimento de Lula, seu novo amigo, Delfim afirmou: “O mérito do plano foi recuperar um projeto de desenvolvimento econômico e procurar acender o espírito animal dos empresários. O setor privado precisa de duas garantias para investir: a de que haverá crescimento e a de que não faltará energia. Se houver essas duas garantias, os investimentos virão. Veja o caso do complexo hidrelétrico Belo Monte, no Rio Xingu. Por mais nobre que seja a questão indígena, é absurdo exigir dos investidores que reduzam pela metade a potência de energia prevista num projeto gigantesco porque doze índios cocorocós moram na região e um jesuíta quer publicar a gramática cocorocó em alemão”.

Segundo a Folha de S. Paulo, Flávio Barra, alto executivo da Andrade Gutierrez, afirmou em delação premiada que Delfim Netto teria recebido 15 milhões de reais de propina para acomodar os interesses das empreiteiras na formação dos consórcios da usina de Belo Monte. Ainda segundo o mesmo jornal, Delfim “refutou de maneira veemente” as acusações por meio de seus advogados.

A “acomodação” das empreiteiras na obra de Belo Monte foi explícita. Em 2010, pouco antes do leilão da usina, grandes empreiteiras, como Camargo Corrêa e Odebrecht, desistiram subitamente da disputa, alegando falta de “condições econômico-financeiras”. O leilão foi vencido por um grupo de empreiteiras de menor porte, sob o nome de “Norte Energia”. Para simular uma concorrência, havia outro grupo, do qual participavam pelo menos uma das grandes, a Andrade Gutierrez. Este grupo foi derrotado.

Duas operações ocorreram na sequência. Numa delas, as empreiteiras pequenas foram deixando o consórcio vencedor, até que ele assumiu a configuração atual da Norte Energia: principalmente estatais do setor, como Eletrobras e Eletronorte, e fundos de pensão. Na outra operação, a Norte Energia contratou as grandes empreiteiras para que executassem a obra, assim como as menores que haviam deixado o consórcio. O conjunto de empreiteiras formou o terceiro elemento, além do Estado e da Norte Energia: o chamado Consórcio Construtor Belo Monte. É na construção, como se sabe, que está o dinheiro.

Essa “engenharia” não é nenhuma novidade. Tudo isso foi contado, poucos acharam que valia a pena pelo menos um espanto. O que importava era o “desenvolvimento”. E, para alguns setores, a manutenção da crença de que o PT, ainda que associado com as velhas oligarquias políticas, seguia sendo um partido de esquerda. E, assim, sem estranhezas maiores, com escassez de perguntas – por parte de todos os lados e também de parte da imprensa –, Belo Monte foi construída em grande parte com dinheiro público, vindo do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Vale lembrar que, entre o leilão da usina e o início da operação, o valor estimado da obra saltou de 19 para mais de 30 bilhões de reais.

O suposto esquema de propinas recém começou a ser investigado. Delação é início, não conclusão. Mas a violação de direitos humanos e a destruição ambiental que resultou dessa articulação entre público e privado estão, como já foi dito, amplamente documentadas. Essa engenharia já era bem conhecida – e teve, vale sublinhar, respaldo de parte do Judiciário. É uma vergonha que só a partir das delações premiadas da Lava Jato exista espanto, porque isso é muito revelador de que a vida dos mais vulneráveis pouco importa. Não apenas para este governo, mas para a maioria da população brasileira, independentemente do lado em que está ou da cor da roupa que veste. E isso, gostaria de avisar aos que bradam contra a corrupção, é corrupção. A sua, e não apenas a do governo.

Quando indígenas, ribeirinhos e pescadores atingidos, assim como moradores dos baixões de Altamira, fizeram protestos contra Belo Monte, este governo colocou a Força Nacional para defender a Norte Energia. Lideranças e movimentos sociais foram criminalizados. Milhares de pessoas foram expulsas de suas casas e também de ilhas do Xingu, perdendo o seu modo de vida, suas relações comunitárias, seu pertencimento.

Este governo deixou essa população sem nenhuma proteção jurídica para enfrentar a banca de advogados da Norte Energia. E, portanto, sem chance de negociar em termos minimamente aceitáveis sua “remoção compulsória”. Analfabetos assinaram com o dedo documentos que não eram capazes de ler. Somente quando a obra se aproximava do fim, no início de 2015, um grupo itinerante da Defensoria Pública da União conseguiu vencer todas as resistências e alcançar Altamira.

Essa violência foi vivida por Otávio das Chagas, o pescador sem rio e sem letras, por Raimunda, que teve sua casa incendiada pela Norte Energia, por João, que paralisou a voz e as pernas no escritório da empresa, e por Antonia Melo, que quase perdeu o coração antes de perder a casa. Apenas alguns exemplos cujas histórias podem ser lidas entre os milhares de refugiados de seu próprio país gerados por Belo Monte.

Por que tão poucos se indignaram? Quem denuncia um golpe contra a democracia precisa enfrentar essa pergunta. Quem defende o impeachment de Dilma Rousseff também. No momento em que Dom Erwin Kräutler, o bispo do Xingu que há mais de dez anos é obrigado a andar com escolta policial para não ser assassinado por sua luta pela floresta, afirmou que “Lula e Dilma são traidores da Amazônia”, será que os setores da esquerda que se calaram concluíram que Dom Erwin estava a serviço da direita? E os indignados com a corrupção, acham que o problema é só a suposta propina?

Vejamos o que aconteceu com aqueles que Delfim Netto chamou de “doze índios cocorocós”. A Norte Energia deu, por dois anos, uma “mesada” de 30.000 reais em mercadorias para as aldeias indígenas atingidas. Foi o que técnicos chamaram de “o maior processo de cooptação de lideranças indígenas e desestruturação social”. Aldeias racharam, os indígenas pararam de plantar suas roças porque a comida chegava em latinhas, mesmo povos de recente contato passaram a consumir açúcar, salgadinhos e refrigerantes.

Em vez de aplicar os recursos na redução e na compensação dos impactos causados pela obra, o dinheiro foi usado para a distribuição dos espelhinhos modernos, mais de 500 anos depois da invasão dos europeus, em plena democracia. A desnutrição infantil nas aldeias indígenas aumentou em 127% entre 2010 e 2012, mas indiozinhos desnutridos por obra de uma empresa financiada por dinheiro público parecem não comover os “cidadãos de bem”. Ninguém bateu panelas por eles.

A lógica determinaria que, no momento em que uma das maiores obras do PAC atinge aldeias indígenas, o governo, no mínimo, fortalecesse o órgão de proteção. Curiosamente, neste período, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) foi esvaziada: em Altamira, o quadro de funcionários foi reduzido de 60 para 23 servidores. Os caciques passaram a negociar diretamente com a Norte Energia, Belo Monte virou um balcão em que direitos eram trocados por aparelhos de TV.

Tudo isso aconteceu – e acontece. Nos últimos meses, os impactos causados pelo enchimento do lago da usina começaram a se tornar evidentes, toneladas de peixes morreram e aldeias indígenas foram tomadas por uma invasão de mosquitos. As famílias ribeirinhas, ainda mais invisíveis que os indígenas, lutam para que sejam cumpridas as ações que permitem a retomada do seu modo de vida enquanto sentem, dia após dia, as chances de sobrevivência encolherem. Hoje, a situação é ainda pior, com uma empresa que já conseguiu tudo o que queria e um governo que não governa.

Quem melhor explicou a anatomia de Belo Monte, em que Estado e empreendedor perversamente se misturam, foi Thais Santi, procuradora da República em Altamira. “Belo Monte é o caso perfeito para se estudar o mundo em que tudo é possível. Hannah Arendt lia os estados totalitários. Ela lia o mundo do genocídio judeu. E eu acho que é possível ler Belo Monte da mesma maneira”, afirmou em entrevista a esta coluna. “A sustentação de Belo Monte não é jurídica. É no Fato, que a cada dia se consuma mais. O mundo do tudo é possível é um mundo aterrorizante, em que o Direito não põe limite. O mundo do tudo possível é Belo Monte.”

Procuradores da República no Pará denunciaram as violações da lei cometidas no processo de Belo Monte em mais de 20 ações na Justiça. Parte delas teve decisão liminar favorável em primeira instância, para em seguida ser derrubada por presidentes de tribunais por um instrumento autoritário chamado de “suspensão de segurança”. Pela alegação de que há perigo de “ocorrência de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”, o mérito da ação não é julgado nestas decisões. Foi também assim que o governo de Dilma Rousseff conseguiu, com a complacência de parte do Judiciário, garantir que a Norte Energia tornasse Belo Monte um fato consumado no meio do Xingu, barrando o rio e toda a possibilidade de questionar as ilegalidades no processo de implantação da hidrelétrica. Quando as ações contra Belo Monte finalmente forem julgadas no mérito, a destruição de floresta e de vidas humanas e não humanas já estará consumada há muito.

Talvez o mais revelador da hipocrisia que atravessa a sociedade brasileira fique ainda mais explícita na ação que denuncia o etnocídio indígena. Em 121 páginas, os procuradores revelam passo a passo a destruição cultural de povos indígenas promovida pela Norte Energia e o Estado, com a consequente vulnerabilidade física. E pedem o reconhecimento de que “o processo de implementação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte constitui ação etnocida do Estado brasileiro, da concessionária Norte Energia e da FUNAI”.

A ação, levada ao Judiciário em dezembro de 2015, é inédita na justiça brasileira, mas foi ignorada pela maior parte da imprensa. As manifestações, de um lado e outro, estavam em curso, mas etnocídio indígena nunca entrou na pauta. Que Delfim Netto, como se viu, manifeste descaso pela vida e pelo destino de homens, mulheres e crianças indígenas, entende-se ao lembrar que ele foi ministro de uma ditadura que exterminou aldeias inteiras. Mas e os brasileiros que querem “moralizar” esse país? Ou os que defendem “a democracia, contra o golpe”?

Neste momento, os refugiados de Belo Monte estão lá, enfrentando dia após dia uma catástrofe humanitária ignorada pelo restante do país. Em ofício datado de 7 de abril, a procuradora Thais Santi alerta: “da forma como se fez (e faz), o projeto de Belo Monte se materializa como um motor de eliminação da vida humana na Volta Grande do Xingu”. Quem acha que sua vida está muito ruim, precisa se lembrar que tudo o que piora, piora muito mais para os mais frágeis. Mais ainda se sua dor é geograficamente longe do centro de decisões políticas e econômicas do país.

O esquema de propinas de Belo Monte possivelmente será revelado por completo pela Lava Jato. Mas e o resto? Como se combate a corrupção dos tantos que se calaram esses anos todos? A corrupção como cidadão, como gente, a corrupção íntima? Como se combate a corrupção que atravessa todos os lados do Brasil falsamente polarizado? É este o nó que precisa ser desatado. Ou, mais uma vez, tudo mudará para continuar igual.

Se Belo Monte não for enfrentada, na totalidade do que representa, no tanto que diz sobre as fraturas históricas deste país, para muito além da suposta propina, nenhuma proposta é séria. Não há como acusar só o outro nesta história. Esta é a parte incômoda. Ninguém gosta de não se sentir tão limpinho assim, ou que seu lado certo não é tão certo assim. Belo Monte é incontornável em qualquer manifesto ou manifestação, de qualquer lado e também para além dos lados.

Restringir a tragédia de Belo Monte à propina é também uma forma de contorná-la. É possivelmente o que vai acontecer. Porque a podridão do Brasil também está exposta no fato de que a propina causa comoção e revolta, mas a destruição da vida de indígenas, ribeirinhos e pobres urbanos, assim como do rio e da floresta, mostrou-se, na prática, perfeitamente aceitável esses anos todos.

A maior denúncia é justamente o fato de que Belo Monte só vira denúncia quando aparece um esquema de propinas que, se comprovado, pode atingir a última campanha presidencial. É aí que se revela o que tem valor. E o quanto a indignação é seletiva e depende dos fins. Se compactuarmos que este é o valor no que se refere à Belo Monte, em nome do qual tantos tiveram suas vidas aniquiladas para que as engrenagens seguissem se movendo, não seremos diferentes daqueles que acusamos. Se não houver mudança no que tem valor, não haverá mudança nenhuma.

Como defendo, artigo após artigo, colocar-se fora do Brasil falsamente polarizado é uma posição. Não fujo a ela. O mais difícil neste momento do Brasil é enfrentar as contradições – e resistir à tentação de contorná-las. Seria muito mais fácil se houvesse um lado bom e o outro mau. Mas não há. Cada posição é espinhosa, é uma cadeira de pregos. O prego maior, praticamente uma estaca, é Belo Monte, ainda que muitos sigam se recusando a enxergar. Belo Monte é a versão mais completa das contradições dos governos Lula-Dilma e também do país, por isso é incontornável neste momento. Está lá, milhares de toneladas de cimento e de aço sobre o Xingu que contam uma história terrível.

Por isso, é duro. Mas só há posição honesta assumindo e enfrentando as contradições. A minha posição segue sendo contra o impeachment, enquanto não houver base legal para o impeachment, conforme o que está previsto na Constituição. E até agora não há. É uma pequena ironia pessoal, mas, como cidadã, tenho o dever de defender o voto de todos aqueles que ignoraram o que foi contado sobre Belo Monte. E, assim, ou por deliberadamente ignorar ou por achar pouco importante, elegeram esta presidente e este projeto para a Amazônia. Defender o voto da maioria não é uma escolha, mas uma obrigação. Defendo a manutenção do Estado de Direito porque defendi a manutenção do Estado de Direito que os governos de Lula e de Dilma Rousseff romperam para materializar Belo Monte.

Belo Monte é incontornável. A história mostrará. Que venham os dias.

(Publicado no El País em 11 de abril de 2016)