A Casa Grande de Temer tem as bênçãos de Sarney e Malafaia, o velho e o novo coronel

Temer fala em “pacificação do Brasil”, mas com paz só para os mesmos de sempre. A esta tentativa de retorno ao arcaico “Ordem e Progresso”, negros e negras levantaram cartazes diante da FIESP, a “Casa Grande Moderna”. Em um deles, a resposta: “Se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”.

Esta coluna do El País tem três atos: o dos negros diante da FIESP, uma entrevista com Eugênio Lima sobre por que a FIESP é a Casa Grande Moderna, e minhas próprias reflexões sobre este governo que se inicia com as bênçãos de Sarney e de Malafaia.

Há tanto para entender neste momento, mas o mais urgente talvez seja investigar com muito mais profundidade o projeto político das igrejas evangélicas, assim como suas repercussões sobre a vida cotidiana. A capacidade de ocupação de poder da bancada evangélica tem se mostrado muito mais acelerada do que nossa capacidade de análise.

Protesto na avenida Paulista, no dia 13 de maio. Foto: João Luiz Guimarães

Protesto na avenida Paulista, no dia 13 de maio. Foto: João Luiz Guimarães

As elites que apoiam o impeachment ainda não compreenderam: seus privilégios continuarão a ser contestados

Primeiro ato: negros protestam contra o racismo diante da FIESP

Sexta-feira, 13 de Maio de 2016. Avenida Paulista, vão do MASP (Museu de Arte de São Paulo), 12h30. Um grupo de homens negros e de mulheres negras se organiza para marcar com um ato chamado Em Legítima Defesa o momento do Brasil e os 128 anos da abolição da escravatura no país. “O racismo é golpe”, diz o DJ e ator-MC Eugênio Lima. “Ele tira o pertencimento de toda uma população em detrimento de outra.” Eugênio lembra que os afrodescendentes são maioria no Brasil: “A população afrodescendente é 53% da população brasileira”. Negros, negras e negrex – o termo transgênero — representam a si mesmos no ato “no segundo dia do governo usurpador”. Cada um deles levanta um cartaz. Caminham em fila até o que chamam de “Casa Grande Moderna”: o prédio da FIESP, epicentro dos movimentos pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, quartel-general dos verde-amarelos. Diante do imponente edifício da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, postam-se um ao lado do outro e erguem suas frases em absoluto silêncio.

“USP sem cotas é golpe. Rota é golpe. Meritocracia é golpe. Luana morta é golpe. Direita racista é golpe. Feminicídio e hipersexualização da mulher negra é golpe. Ausência de negros nos espaços públicos é golpe. Machismo é golpe. Eu ser suspeito é golpe. Teatro sem negro é golpe. Blackface é golpe. Mulata é golpe. Me seguir no mercado é golpe. Medo branco.” E a pergunta:

– Abolição é golpe?

Manifestantes protestam em frente à sede da FIESP, na avenida Paulista. Foto: João Luiz Guimarães

Manifestantes protestam em frente à sede da FIESP, na avenida Paulista. Foto: João Luiz Guimarães

Um dia antes, Michel Temer (PMDB) havia tomado posse como presidente interino, após o afastamento da presidente Dilma Rousseff (PT) pelo Senado, anunciando um “governo de salvação nacional”. Compôs um ministério inteiramente branco e colocou como ministro da Justiça e da Cidadania Alexandre de Moraes, ex-secretário de Segurança Pública do governador Geraldo Alckmin (PSDB), relacionado por grande parcela dos movimentos negros e dos ligados aos direitos humanos como o mais recente responsável pela política de extermínio da juventude negra pela polícia do Estado de São Paulo.

A cena perturba os motoristas no trânsito lento da Avenida Paulista. Nas calçadas começa a juntar gente que volta do almoço ou se dirige a algum restaurante. “Que bobagem, não tem racismo no Brasil” e “Vão trabalhar, vagabundos!” são as frases mais ouvidas na plateia espontânea. Ao meu lado, uma dupla de amigos para. Um deles diz, em tom bem alto: “Não existe nada disso! Que frescura!”. Me apresento como jornalista e pergunto: “Por quê?” Ele apresenta-se como José Batista Sobrinho, 76 anos, médico oftalmologista, eleitor do PSDB. E responde:

– Esse racismo no Brasil não existe. Quero dizer, racismo existe no mundo inteiro. Mas no Brasil não é acentuado. Agora, por exemplo: você jamais se casaria com um preto.

– Por que o senhor acha isso?, pergunto.

– Parece que é algo internamente que você, como branca, não aceita. Porque você acha que essa raça é mais feia que a sua raça. Mas não é por isso que você vai discriminá-los. É uma pessoa igual a você. Frequenta a minha casa, frequenta a minha mesa, não tem problema nenhum. É uma pessoa igual a mim. Mas eu não me casaria com uma preta.

– Por quê?

– Não gosto. Tem alguns componentes que eu não gosto, coisas íntimas. Preferia uma pessoa diferente, mais clara. Questão de afinidade, de empatia. Mas não é por isso que vou discriminá-las.

José Batista Sobrinho.  Foto: Eliane Brum

José Batista Sobrinho. Foto: Eliane Brum

– O senhor é a favor ou contra o impeachment da presidente?

– É lógico que sou a favor. Ela quebrou o país. A convulsão social taí. E quem é culpado disso é o PT. Não sou contra o Bolsa Família. Mas tinha que ser Bolsa-Escola, como era no tempo da Ruth Cardoso. Agora é Bolsa-Voto. Vou lhe dar o nome de uma cidade da Bahia que não tem ninguém trabalhando, todo mundo com Bolsa Família. No Nordeste, você não encontra uma doméstica pra trabalhar, porque tudo agora tem Bolsa Família. Mas não sou de Direita, não, não aceito isso.

– Como o senhor se define?

– Sou um liberal correto.

Três jovens mulheres, duas brancas e uma negra, observam o protesto. Os comentários são altos o suficiente para que se possa ouvi-los: “Quero ver esses negões aí na hora de casar. Se vão casar com essas negonas aí. Querem é brancas”. Risadas.

O grupo começa a repetir, alto, as frases dos cartazes. Na calçada, um homem grita para os motoristas dos carros: “Buzina! Buzina! Bu-zi-na!”. Quer que as buzinas abafem as vozes que denunciam o racismo. De repente, berra, furioso, para uma mulher num carro: “Enfia no cu, sua vaca!”.

Pergunto a ele por que disse isso. Ele apresenta-se como Fábio Andrade da Silva, 46 anos, segurança. E responde:

– Ela mostrou o dedo pra mim. É falta de elegância, é petista, é maloquera.

– E o impeachment?

– Sou a favor! Tou acampado aqui (na FIESP) há 58 dias.

– E o que acha dessa manifestação contra o racismo?

– São tudo desempregado, tudo com cargo comissionado do PT.

Fábio Andrade da Silva. Foto: Eliane Brum

Fábio Andrade da Silva. Foto: Eliane Brum

Faço uma foto dele. Ele comenta, referindo-se às mulheres negras:

– Eu não vou gastar minha bateria (do celular) pra tirar foto dumas mundrunga dessas aí.

– O que é mundrunga?

– Não sabe? Vá no dicionário que vai saber.

E sai gargalhando com um amigo.

O grupo se retira em silêncio. E volta para o MASP. Em legítima defesa.

Leia o texto completo na minha coluna no El País

Temer e a Casa Grande se iludem

As elites que apoiam o impeachment ainda não compreenderam: seus privilégios continuarão a ser contestados

Protesto na avenida Paulista, no dia 13 de maio. JOÃO LUIZ GUIMARÃES

Protesto na avenida Paulista, no dia 13 de maio. JOÃO LUIZ GUIMARÃES

Primeiro ato: negros protestam contra o racismo diante da FIESP

Sexta-feira, 13 de Maio de 2016. Avenida Paulista, vão do MASP (Museu de Arte de São Paulo), 12h30. Um grupo de homens negros e de mulheres negras se organiza para marcar com um ato chamado Em Legítima Defesa o momento do Brasil e os 128 anos da abolição da escravatura no país. “O racismo é golpe”, diz o DJ e ator-MC Eugênio Lima. “Ele tira o pertencimento de toda uma população em detrimento de outra.” Eugênio lembra que os afrodescendentes são maioria no Brasil: “A população afrodescendente é 53% da população brasileira”. Negros, negras e negrex – o termo transgênero — representam a si mesmos no ato “no segundo dia do governo usurpador”. Cada um deles levanta um cartaz. Caminham em fila até o que chamam de “Casa Grande Moderna”: o prédio da FIESP, epicentro dos movimentos pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, quartel-general dos verde-amarelos. Diante do imponente edifício da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, postam-se um ao lado do outro e erguem suas frases em absoluto silêncio.

“USP sem cotas é golpe. Rota é golpe. Meritocracia é golpe. Luana morta é golpe. Direita racista é golpe. Feminicídio e hipersexualização da mulher negra é golpe. Ausência de negros nos espaços públicos é golpe. Machismo é golpe. Eu ser suspeito é golpe. Teatro sem negro é golpe. Blackface é golpe. Mulata é golpe. Me seguir no mercado é golpe. Medo branco.” E a pergunta:

– Abolição é golpe?

Manifestantes protestam em frente à sede da FIESP, na avenida Paulista. JOÃO LUIZ GUIMARÃES

Manifestantes protestam em frente à sede da FIESP, na avenida Paulista. JOÃO LUIZ GUIMARÃES

Um dia antes, Michel Temer (PMDB) havia tomado posse como presidente interino, após o afastamento da presidente Dilma Rousseff (PT) pelo Senado, anunciando um “governo de salvação nacional”. Compôs um ministério inteiramente branco e colocou como ministro da Justiça e da Cidadania Alexandre de Moraes, ex-secretário de Segurança Pública do governador Geraldo Alckmin (PSDB), relacionado por grande parcela dos movimentos negros e dos ligados aos direitos humanos como o mais recente responsável pela política de extermínio da juventude negra pela polícia do Estado de São Paulo.

A cena perturba os motoristas no trânsito lento da Avenida Paulista. Nas calçadas começa a juntar gente que volta do almoço ou se dirige a algum restaurante. “Que bobagem, não tem racismo no Brasil” e “Vão trabalhar, vagabundos!” são as frases mais ouvidas na plateia espontânea. Ao meu lado, uma dupla de amigos para. Um deles diz, em tom bem alto: “Não existe nada disso! Que frescura!”. Me apresento como jornalista e pergunto: “Por quê?” Ele apresenta-se como José Batista Sobrinho, 76 anos, médico oftalmologista, eleitor do PSDB. E responde:

– Esse racismo no Brasil não existe. Quero dizer, racismo existe no mundo inteiro. Mas no Brasil não é acentuado. Agora, por exemplo: você jamais se casaria com um preto.

– Por que o senhor acha isso?, pergunto.

– Parece que é algo internamente que você, como branca, não aceita. Porque você acha que essa raça é mais feia que a sua raça. Mas não é por isso que você vai discriminá-los. É uma pessoa igual a você. Frequenta a minha casa, frequenta a minha mesa, não tem problema nenhum. É uma pessoa igual a mim. Mas eu não me casaria com uma preta.

– Por quê?

– Não gosto. Tem alguns componentes que eu não gosto, coisas íntimas. Preferia uma pessoa diferente, mais clara. Questão de afinidade, de empatia. Mas não é por isso que vou discriminá-las.

José Batista Sobrinho. ELIANE BRUM

José Batista Sobrinho. ELIANE BRUM

– O senhor é a favor ou contra o impeachment da presidente?

– É lógico que sou a favor. Ela quebrou o país. A convulsão social taí. E quem é culpado disso é o PT. Não sou contra o Bolsa Família. Mas tinha que ser Bolsa-Escola, como era no tempo da Ruth Cardoso. Agora é Bolsa-Voto. Vou lhe dar o nome de uma cidade da Bahia que não tem ninguém trabalhando, todo mundo com Bolsa Família. No Nordeste, você não encontra uma doméstica pra trabalhar, porque tudo agora tem Bolsa Família. Mas não sou de Direita, não, não aceito isso.

– Como o senhor se define?

– Sou um liberal correto.

Três jovens mulheres, duas brancas e uma negra, observam o protesto. Os comentários são altos o suficiente para que se possa ouvi-los: “Quero ver esses negões aí na hora de casar. Se vão casar com essas negonas aí. Querem é brancas”. Risadas.

O grupo começa a repetir, alto, as frases dos cartazes. Na calçada, um homem grita para os motoristas dos carros: “Buzina! Buzina! Bu-zi-na!”. Quer que as buzinas abafem as vozes que denunciam o racismo. De repente, berra, furioso, para uma mulher num carro: “Enfia no cu, sua vaca!”.

Pergunto a ele por que disse isso. Ele apresenta-se como Fábio Andrade da Silva, 46 anos, segurança. E responde:

– Ela mostrou o dedo pra mim. É falta de elegância, é petista, é maloquera.

– E o impeachment?

– Sou a favor! Tou acampado aqui (na FIESP) há 58 dias.

– E o que acha dessa manifestação contra o racismo?

– São tudo desempregado, tudo com cargo comissionado do PT.

Fábio Andrade da Silva. ELIANE BRUM

Fábio Andrade da Silva. ELIANE BRUM

Faço uma foto dele. Ele comenta, referindo-se às mulheres negras:
– Eu não vou gastar minha bateria (do celular) pra tirar foto dumas mundrunga dessas aí.

– O que é mundrunga?

– Não sabe? Vá no dicionário que vai saber.

E sai gargalhando com um amigo.

O grupo se retira em silêncio. E volta para o MASP. Em legítima defesa.

Segundo ato: entrevista no vão do MASP sobre por que a FIESP é a “Casa Grande Moderna”

O teatro tem sido um dos espaços mais criativos (e contundentes) no questionamento do racismo que atravessa a sociedade brasileira. Nos últimos anos tornou-se também um espaço de irrupção das tensões raciais que por décadas foram encobertas por mitos como o da “democracia racial”. O DJ e ator-MC Eugênio Lima, 48 anos, é um dos protagonistas dessa cena com múltiplas vozes. Em 2015, ele foi o mediador do debate realizado no Itaú Cultural após os protestos contra o uso de blackface numa peça. O evento foi um ponto de inflexão na luta contra o racismo, ao questionar os privilégios dos brancos nos espaços da cultura. Em Legítima Defesa surgiu a partir de outra polêmica: a peça Exhibit B, o controverso espetáculo do sul-africano Brett Bailey, que foi contestado como “racista” por parte dos movimentos negros brasileiros, ao reproduzir cenas em que os negros eram colocados em jaulas para exibição. Sua apresentação na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo acabou sendo cancelada, sob a alegação de “problemas de custo”. Por não se sentirem ouvidos no debate, os atores que participariam da produção criaram o Em Legítima Defesa e convidaram Eugênio para dirigi-los em ações. Uma de suas performances aconteceu no Teatro Municipal de São Paulo, símbolo cultural das elites paulistanas. A FIESP foi escolhida por ser identificada como a “Casa Grande Moderna”

joao 5Pergunta: Quais são os significados da escolha deste dia para o ato?

Resposta: A performance sobre a Abolição já iríamos fazer. A ironia do destino foi que o dia 13 de maio coincidiu com o segundo dia do governo usurpador. Essa ironia simbólica foi invisibilizada. Talvez o gabinete desse presidente interino seja o mais próximo de uma ação conservadora no Brasil desde 1964, e muito parecido com os gabinetes conservadores da Monarquia. São todos homens, todos brancos, com uma idade mais avançada, com vasto histórico sobre a política. Isso tudo foi construindo mais camadas simbólicas para esse momento. Esse governo não tem voto, não foi eleito pelo povo. Esse processo é um golpe político parlamentar.

P: Como você responde à pergunta escrita no cartaz que você ergueu: “Abolição é golpe?”.

R: A Abolição é golpe no sentido de que é apresentada como uma benesse do estado monárquico. A primeira coisa, portanto, é (a necessidade de) desinvisibilizar o primeiro grande movimento de massa deste país, que é o movimento abolicionista. A segunda coisa é que, ao dizer livres afinal, seríamos livres para tudo. Com o passar do tempo, essa ideia de liberdade vai sendo subtraída pela exclusão contínua. A política de imigração, quando se incentiva a população europeia a vir para o Brasil, é onde mais aparece a cara do Apartheid brasileiro. Foi um golpe na medida em que você tem um país com a maior população escrava do mundo, você faz a Abolição da escravidão e não existe nenhuma política de Estado para um problema que foi criado dentro da concepção de Estado. Isso é golpe.

P: E hoje, você acha que a Abolição já aconteceu?

R: A abolição é um projeto incompleto. Só que os efeitos desse projeto incompleto estão no extermínio da juventude negra, e este é um projeto muito nítido. Esse projeto é o eixo fundamental de uma política de controle populacional, criada em simbiose com um aparato jurídico-policial que está fundamentado em dois pontos centrais. Um deles é o encarceramento em massa: o Brasil é a quarta maior população carcerária do mundo e a única entre as quatro primeiras que continua a crescer. Isso está baseado numa espécie de “naturalização do racismo”, seja na ideia de “suspeito cor padrão”, seja na ideia de que negro/homem/pobre é igual a ser “bandido”. Estas são justificativas para uma atuação diferenciada tanto da polícia quanto da justiça no que diz respeito a negros e brancos no Brasil. Negros têm geralmente penas mais duras do que os brancos, pelos mesmos crimes cometidos.

P: E o segundo eixo?

R: É o da “vida matável”. A polícia vive a lógica de uma guerra, seja contra o crime, seja contra as chamadas “classes perigosas”. Ou seja, a polícia combate um inimigo comum, com táticas de guerra e aparatos de segurança importados de outros países, principalmente países que vivem guerras contra populações determinadas, como por exemplo o estado de Israel. Nessa lógica, é preciso se perguntar: quem é a população negra, pobre e periférica? É a população civil do exército inimigo. Uma vida matável é uma vida dispensável. Mas, como o racismo internalizado nas corporações policiais é sistêmico, essa lógica atravessa o tratamento de todo negro/negra, independentemente de sua classe social. É como se ser negro/negra fosse uma “espécie de sujeito a ser combatido”. E isso tem lastro no comportamento social, que, de maneira geral, tenta negar a existência de racismo. Isso é o que a professora Vera Malaguti Batista (socióloga que pesquisa o tema da criminalidade no Brasil contemporâneo) define como “Medo Branco”: a ideia dessa conflitividade óbvia, de que um dia o país, que é majoritariamente negro, vai se insurgir, de que um dia haverá um grande conflito social se o “morro descer”. E isso só pode ser evitado com uma dura e mortífera política de controle. Daí a nitidez do projeto de extermínio da juventude negra. O genocídio da juventude negra é real e imenso, mas o senso comum trata como se fosse uma exceção, uma anomalia – e não uma política.

P: Qual é a sua análise sobre o fato de o ministério de Temer não ter um único negro?

R: É uma mimese. Não só não ter um negro, como não ter uma mulher. Assim como suprimir, colocar sob a égide do Ministério da Justiça os Direitos Humanos e a Igualdade Racial. (Temer extinguiu o Ministérios das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e colocou tudo sob o guarda-chuva de um Ministério da Justiça e da Cidadania). Esse governo é ilegítimo até nisso. O país é signatário de tratados em Direitos humanos, o país é signatário de tratados de Combate ao Racismo. Não é uma coisa que eu, como governante, posso decidir, mas uma política de Estado. E, como política de Estado, independe de quem está no governo.

P: Por que você diz que a FIESP é a Casa Grande?

R: É a Casa Grande Moderna. Ela representou um projeto que é, numa ponta, a subtração de direitos constituídos, na medida em que essa pauta nunca passou pelo crivo eleitoral. Essa é a primeira coisa. Não é uma pauta do conjunto da população. Assim, só pode ser feita na surdina. A segunda coisa é que ela agiu de maneira clara e nítida incentivando ações fascistas. Insultando, racializando o discurso, diminuindo. E utilizou recursos que são públicos para financiamento de ações constituídas dentro do âmbito privado, como no financiamento dessas passeatas (a favor do impeachment). Esse jeito é o jeito da Casa Grande. Eu não estou chamando a FIESP de Casa Grande apenas porque são os herdeiros dos escravocratas. Mas por causa da lógica da Casa Grande. A Casa Grande organiza a sociedade, organiza o Estado à sua semelhança. O que era a Casa Grande? A Casa Grande era a Igreja, a Casa grande era o hospital, a Casa Grande era o Estado, a Casa Grande era tudo. A Casa Grande é onde tudo orbita. Essa é a metáfora do que essas forças reunidas em torno da FIESP fizeram neste momento histórico. Um momento análogo ao de 1964, já que a FIESP já fez isso antes, porque o golpe de 1964 foi civil, além de militar.

P: Qual é a importância da denúncia do racismo neste momento?

R: O racismo tem que ser uma pauta transversal, porque ele desmascara todas as relações. O racismo é aquilo que não pode ser dito. Quando você coloca que essa meritocracia é baseada no status racial, você vai começando a colocar por terra um monte de coisas. Que esses privilégios constituem uma espécie de golpe no direito de todo mundo, porque (o branco) já nasce com esses privilégios que estão constituídos no nível de cultura do país, embrenhados nos hábitos. Então, (o branco) tem uma vantagem adaptativa muito grande. Você vê como a ação coercitiva dos braços armados do Estado são violentos com a população negra do país. Assim, se invisibiliza um dado que jamais poderia ser invisibilizado, o de que somos um dos países que mais mata a sua juventude.

P: O que você achou da escolha do novo ministro da Justiça e da Cidadania, Alexandre de Moraes?

R: Eu acho muito ruim que uma pessoa que se dirija a movimentos sociais como “guerrilhas” seja ministro da Justiça de qualquer país. Eu acho ofensivo ao conjunto da população brasileira um ministro da Justiça que condecora policiais que agrediram estudantes secundaristas. Um ministro da Justiça que acha que Política é Polícia.

P: O que fazer diante disso?

R: Esse é o momento em que a juventude negra e a multiplicidade da presença negra na sociedade precisam lutar de todas as maneiras pela desinvisibilização dessas questões. Uma das coisas mais cruéis dessa história é a ideia de que a reorganização das elites pode dar o tom de todas as questões. Como se a nossa história fosse uma sequência de reorganizações das nossas elites. Como se não existisse uma outra historia possível que não seja essa. É um momento muito triste. Por isso é o momento de constituirmos vocabulário político, mas sobretudo poético. Porque encaro isso como uma narrativa, que utiliza todos os seus símbolos para constituir o senso comum. E como o racismo é transversal, assim como o machismo é transversal, eles são capazes de desvelar essa narrativa.

P: E as imagens?

R: As imagens são muito potentes. Você olha o ministério e diz: “Caramba, mas só tem homens? E brancos? E muito velhos?”. Não que a idade seja um problema em si, mas eles são a cara de uma maneira de fazer política. São figuras calcadas numa série de questões que representam interesses coorporativos muito nítidos. Uma pauta que não foi nem eleita, que sequer passaria pelo crivo das ruas, que sequer passaria por uma eleição para governador. Só pra lembrar: o presidente da FIESP tentou essa pauta no governo do estado de São Paulo (nas eleições de 2014, Paulo Skaf era o candidato do PMDB). E nem isso ele conseguiu. Nem a unanimidade dentro da própria Direita. Então, este é um governo ilegítimo e é um governo usurpador. E, neste sentido, é tão claro, e é claro mesmo, é branco, que até as forças do capitalismo reconhecem que esse processo é questionável.

Terceiro Ato: reflexões sobre o governo que se inicia com as bênçãos de Sarney e de Malafaia

O período democrático que se seguiu à ditadura civil-militar no Brasil foi chamado de “Nova República”. É possível que tenha se encerrado. É preciso encontrar um nome para denominar o período ainda indefinido do governo de Michel Temer (PMDB), iniciado em 12 de maio, após o afastamento da presidente Dilma Rousseff pelo Senado. Como nomear esse momento, ao mesmo tempo novo e velho, na trajetória do país, é algo em disputa. Encontrar esse vocabulário próprio, plural, como já escrevi aqui e como é tão bem dito por Eugênio Lima, faz parte dos desafios do atual cenário. É com políticas culturais que um país constrói voz própria. Como se sabe, Temer extinguiu a pasta da Cultura.

Michel Temer, rodeado de ministros e políticos, ao tomar posse como presidente interino no dia 12 de maio, em Brasília. FELIPE DANA/AP PHOTO (Reprodução do El País)

Michel Temer, rodeado de ministros e políticos, ao tomar posse como presidente interino no dia 12 de maio, em Brasília. FELIPE DANA/AP PHOTO (Reprodução do El País)

A imagem do ministério de Temer produz estranhamento. É como um retrato que já nasce amarelado. Só brancos, só velhos, só homens. Nenhuma mulher, nenhum negro. Esse retrato é uma imagem poderosa porque não representa o Brasil atual. É também uma mensagem poderosa. Apesar de mencionarem muito o “futuro”, o que interessa a Temer e seus aliados para seguirem garantindo apoio é afirmar o passado. A mensagem gerada pela escolha do ministério reafirma a ideia de que o Brasil voltou a uma espécie de ordem estabelecida. E há até setores que podem comemorar esse feito, como se de fato se tratasse apenas de um retorno ao que sempre foi e jamais deveria ter deixado de ser. Mas, para compreender essa fotografia, é preciso entender que simplesmente voltar já não é possível.

Temer e as forças que protagonizaram esse momento podem até acreditar que dá para voltar ao passado que representam, mas se equivocam. Não dá para retornar ao Brasil pré-cotas raciais, ao Brasil antes do #meuprimeiroassédio, ao Brasil antes do Bolsa Família e do protagonismo das mulheres chefes de família, ao Brasil em que os mais pobres aceitavam não ter acesso ao consumo, ao Brasil em que pobre não chegava à universidade, ao Brasil em que estudantes de escolas públicas aceitavam calados serem violados em seus direitos mais básicos. Essa ideia pode até ser acalentada por Temer e pelas forças que permitiram que ele assumisse o poder. Mas é desejo, não fato.

A ideia de que as elites podem escrever toda a história do país, e reescrever, e suprimir capítulos, e dizer qual é a narrativa que vai preponderar sobre todas as outras não se sustenta no Brasil do presente. O ato dos negros, negras e negrex diante da FIESP é uma pequena grande cena. Os exemplos irrompem em todos os cantos. Quem acredita que as forças criativas que emergiram em 2013 podem ser silenciadas é um mau leitor do momento histórico. E isso vale para os antipetistas e vale também para os petistas. Os movimentos sociais agora são outros. E se lançam com palavras novas – e próprias.

Há muito de velho e há também algo novo no ministério de Temer, como uma imagem desse pacto de elites. Há pelo menos um investigado pela Lava Jato, Romero Jucá (PMDB). E um sobre o qual há dois pedidos de inquérito, Henrique Alves (PMDB). Há Alexandre de Moraes (PSDB), um ministro da Justiça que condecora policiais que espancam estudantes adolescentes. Há um ministro da Agricultura, Blairo Maggi, que mudou do PR para o PP para garantir seu nome para o ministério. Maggi, conhecido como “o rei da soja”, já foi o vencedor do prêmio “Motosserra de Ouro”, dado pelo Greenpeace, em reconhecimento à sua colaboração para a destruição do meio ambiente. Há Osmar Terra (PMDB), defensor ferrenho de uma política de drogas comprovadamente ultrapassada, ligada ao extermínio da juventude negra e ao encarceramento massivo dos mais pobres. Há vários que estiveram com Dilma Rousseff até a véspera, como Gilberto Kassab (PSD) e Leonardo Picciani (PMDB). E mesmo os mais jovens são herdeiros de velhos clãs ligados ao PMDB, como Sarney e Barbalho, entre outros. “Notáveis” não há. Mas, como se viu, há notórios.

Mas também há algo que parece velho, mas é novo. Porque não é novo apenas aquilo que achamos que deve ser. Trata-se do bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcos Pereira (PRB). Se há algo pouco compreendido e investigado no Brasil é o crescimento das igrejas evangélicas no país. Primeiro, colocam-se todas na mesma caixa, e elas são bem diferentes entre si. O espectro é amplo. As que mais têm crescido não representam um projeto religioso. O que representam é um projeto econômico e, principalmente, político. É aí que mora o perigo. Marcos Pereira é o arquiteto que fez o PRB, partido ligado à Igreja Universal e à TV Record, duas frentes da mesma construção política, ganhar musculatura no Congresso. É urgente que se compreenda melhor o crescimento de algumas igrejas evangélicas no país e seus respectivos projetos de poder para que se entenda o país. Vale a pena perceber também que a Igreja Católica, outrora tão ativa na política brasileira, teve pouca ressonância no desfecho que levou Temer ao poder.

Há dois atos de Temer que têm grande força simbólica para a compreensão do pacto instalado no Planalto. No dia da votação do impeachment no Senado, 11 de maio, ele só deixou o Palácio do Jaburu, onde parlamentares vinham lhe beijar a mão, para beijar uma mão mais poderosa que a dele, a de José Sarney, esse personagem que atravessa a ditadura e a redemocratização. As digitais de Sarney estão por toda parte, em especial no setor elétrico do país. Isso é velho. E forte.

No dia seguinte, após a posse como presidente interino, Temer recebeu a bênção de Silas Malafaia, o mais truculento líder evangélico do país, e rezou com expoentes da bancada evangélica, como o pastor e deputado Marco Feliciano (PSC), cuja atuação nefasta dispensa apresentações. Isso é novo. E forte. É preciso decodificar essas duas cenas com mais profundidade do que temos feito.

A imagem de um Lula alquebrado, quase distraído, ao lado de Dilma Rousseff, durante o discurso de despedida diante do Planalto, dá margem a muitas interpretações. Lula não disfarçava. Talvez porque não quisesse, talvez porque já não pudesse. Seu rosto estava devastado. Era um fim. Independentemente do que vai acontecer com Dilma e principalmente com o PT nos próximos meses, e que está longe de estar dado, ali havia um fim. Se este final significar uma autocrítica feroz do PT sobre suas escolhas no poder, não só o campo das esquerdas ganha, como o país.

Para citar apenas uma cena desse longo e acidentado roteiro: foi Eduardo Cunha quem peregrinou pelas igrejas evangélicas a serviço de Dilma Rousseff e do PT na campanha eleitoral de 2010, assegurando aos pastores que a então candidata era contra o aborto. Naquele momento, o PT rifou uma de suas bandeiras históricas em troca do voto religioso e dos aliados de ocasião. Cunha, obviamente, sempre esteve a serviço apenas de si mesmo. Este é um momento emblemático. E é apenas um. Há que se passar a limpo todos eles.

Há que se passar a limpo a tal das escolhas feitas em nome da palavra mais horrenda do léxico político recente: “governabilidade”. A única saída digna para o PT é enfrentar as contradições e fazer autocrítica. Mas não parece que seja isso que vai acontecer. Mais uma vez. É bem mais fácil ser apenas vítima. E também mais conveniente para 2018. Mas já era tempo de entender que o mais conveniente e mais fácil custa caro logo ali.

Quem briga com os fatos sempre acaba perdendo em algum momento. Se Dilma foi afastada e o PT encontra-se nesse buraco é também por escolher desviar das contradições – ou mesmo encobri-las. E isso vale também para as esquerdas que preferiram fazer de conta que era possível perdoar o imperdoável, como Belo Monte. E que continuam a fazer de conta, deixando esse campo desorganizado e abrindo um vazio que logo será ocupado, sabe-se lá pelo quê.

O rosto devastado de Lula, ao lado de uma Dilma em seu derradeiro discurso, e a cena do ministério de Temer, com papagaios de pirata como Aécio Neves (PSDB), evocam também uma interrogação sobre quem são os profissionais do ramo. Parte das elites bajula Lula desde que ele era um líder sindical do ABC, vale rever a cena do Gallery, em 1979, quando Lula vai jantar na boate dos ricos a convite da revista Manchete. Na campanha de 2002, ele desfilou em terno Armani pelos salões da elite paulistana abertos por Marta Suplicy, que sabemos bem o que fez nos verões passados e o que faz hoje. Assim como pelo casal Eleonora Mendes Caldeira e Ivo Rosset. Era o operário que chegou ao paraíso.

Dali em diante Lula gostou cada vez mais dessa bajulação dos salões. E o mesmo vale para muitos do PT. Em algum momento, eles acharam que eram os donos da bola desse jogo viciado, sem perceber que eram observados de perto – e com algum divertimento – por cartolas tão velhos quanto o diabo. Na política, no empresariado, na justiça. E Lula acreditou que era mesmo um ungido, bastando abrir a boca para chamar as massas para si, enquanto cada vez mais se distanciava delas também na produção simbólica de imagens.

Tudo indica que Lula e o PT não compreenderam por completo a complexidade do jogo e a fragilidade do seu lugar nele. Escolheram jogar o jogo do adversário e abriram mão de questionar as regras, achando que podiam seguir ganhando. Dilma, por sua vez, provou-se um dos maiores equívocos de Lula, até então famoso por sua intuição política. Até (quase) o final acreditaram que podiam virar a partida decisiva. A ironia maior é o fato de que quem ficou ao lado de Lula, Dilma e o PT foi a torcida a qual tinham virado as costas ao rifar bandeiras históricas.

A face devastada de Lula contém muitos significados. Um deles pode ser decodificado como o rosto entre a surpresa e a mágoa do menino que achava que para sempre seria o dono da bola. Mas descobriu que nunca foi de fato o dono da bola. O sorriso de escárnio dos ministros de Temer e de seus apoiadores, a expressão de euforia mal contida do próprio Temer, pareciam dizer: “Tolinhos, os profissionais agora vão cuidar de tudo”. É a arrepiante volta dos que nunca foram.

Houve um momento em que o PT poderia ter mudado o jogo. E não mudou. Não é possível seguir acreditando que tudo o que aconteceu foi por que o PT mudou o jogo. O impeachment se tornou viável exatamente pelo motivo contrário: porque o PT não mudou o jogo no principal. E essa é a parte incontornável.

Mas a história não está dada. O Brasil não é o que era. O passado não volta. O lema positivista “Ordem e Progresso”, que Temer pegou emprestado da bandeira, como lembrou o escritor Sérgio Rodrigues em artigo no jornal O Estado de S. Paulo, já era conservador quando proclamaram a República, no final do século 19. Em entrevista exclusiva ao Fantástico, programa da TV Globo, no domingo, 15 de maio, Temer respondeu que um dos legados que gostaria de deixar é “a pacificação do Brasil”.

A “pacificação” proposta por Temer é cada um voltar a ocupar seu lugar racial e social como se essa fosse a organização natural das coisas. A “pacificação” de Temer é paz apenas para alguns. A esse desejo de retorno da velha ordem das elites e do progresso para os mesmos de sempre contrapõe-se hoje a frase poderosa, quase um mantra, escrita em um dos cartazes levantados na Paulista na performance dos ativistas negros: “Se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”.

Tanto o PT quanto aqueles que agora estão (ou continuam) no poder ainda não compreenderam a potência de 2013. A polifonia que ocupou as ruas naquele momento, para além de qualquer controle possível, segue nas ruas, apesar das bombas de gás da polícia. É essa a força simbólica dos negros e negras e negrexque se postaram diante da “Casa Grande Moderna”. Em legítima defesa.

Quem acha que é o fim da história ainda não entendeu que ela mal começou.

(Publicado no El País em 18 de maio de 2016)

 

Dilma compôs seu réquiem em Belo Monte

Dilma e o PT não serão julgados pelo Congresso. No tempo da História, serão julgados por brasileiros como João da Silva. Em 5 de maio, Dilma compôs seu réquiem ao inaugurar Belo Monte. Já vem compondo há muitos anos. Assim como Lula e o PT, ao reproduzir o projeto da ditadura para a Amazônia.

Peço a especial atenção de vocês para uma parte deste texto de minha coluna no El País, onde conto do surto de gripe nas aldeias da região do Xingu. Surto agravado pelas comemorações do Dia do Índio, em mais uma ironia brutal. Já morreram quatro bebês indígenas. Se os indígenas já são ignorados ou massacrados em dias “normais”, podemos imaginar como isso se agrava no caos atual. Se não houver visibilidade para aqueles que adoecem e morrem, a tragédia será maior.

Carolina Reis. ISA/Divulgação

Carolina Reis. ISA/Divulgação

 

O julgamento mais rigoroso da presidente e do PT, no tempo da História, será feito por brasileiros como João da Silva

 

Na quinta-feira, 5 de maio, Raimunda desligou a TV na casa da periferia de Altamira, no Pará. O noticiário local começava a transmitir a inauguração da usina hidrelétrica de Belo Monte por Dilma Rousseff (PT). Era um gesto pequeno, o de desligar o botão da TV. Era o esforço de Raimunda para proteger João da voz da presidente. Deitado na rede, sem movimento nas pernas, ele já não é capaz de proteger a si mesmo. Em Belo Monte, Dilma discursava, ovacionada por uma claque de movimentos sociais, denunciando o “golpe” para tirá-la do poder. Mas a palavra final sobre o legado da presidente não será do Congresso. O réquiem de Dilma Rousseff, no tempo da História, é o silêncio de João da Silva.

No aeroporto de Altamira, Liviane, uma das sete filhas de João e de Raimunda, erguia um cartaz: “De mulher para mulher. Dilma – você me deixou órfã de pai vivo”.

Dilma Rousseff não viu. Ela deu apenas uns poucos passos em terra. Em seguida pegou um helicóptero para o território seguro da hidrelétrica de Belo Monte. A presidente sobrevoou a cidade e o rio. Mas era no chão que o drama se desenrolava.

Se João tivesse escutado o discurso de Dilma, ele saberia qual foi a palavra escolhida pela presidente para definir Belo Monte:

– Essa usina é do tamanho desse povo. É grandiosa. É uma usina grandiosa. A melhor forma de descrever Belo Monte é essa palavra: grandiosa.

As palavras, João descobriu há pouco mais de um ano, podem matar. É por isso que ele não consegue escutar nem “Norte Energia”, a empresa concessionária que materializou a usina no amazônico Xingu. Nem “Belo Monte”. Nem “Dilma Rousseff”. E ninguém conhecerá sua opinião sobre o adjetivo escolhido pela presidente: “grandiosa”.

Quando sua filha escreve, no cartaz que Dilma não leu, que é órfã de pai vivo, ela conta de uma morte que começou em 23 de março de 2015. João era um dos milhares de atingidos por Belo Monte. Ele vivia com Raimunda numa ilha do Xingu, a Barriguda. Nas palavras da Norte Energia e do governo federal, ele era um dos milhares de “removidos”. Mas as palavras não são as mesmas para todos.

Para João, ele foi “expulso”. Naquela data, ele e Raimunda estavam no escritório da empresa esperando o veredicto. João, que trabalhava desde os oito anos de idade, e só na ilha encontrara um lugar sem fome, acreditava receber um valor que lhe permitisse recomeçar a vida, mais uma vez. Mas o preposto da empresa foi taxativo: 23 mil reais. João percebeu ali que, aos 63 anos, estava condenado à miséria. No momento da revelação, ele quis matar o dono das palavras que o esfaqueavam. Mas João da Silva não é homem que mata. Paralisou por inteiro. A fala, as pernas. E teve de ser carregado para fora do escritório. Foi naquele momento que João começou a morrer. Para Raimunda e as filhas, foi naquele momento que João começou a ser “assassinado”.

Mais tarde, quando recuperou as palavras e voltou a dar alguns passos, bem devagar, João disse:

– Se eu fizesse um dano com um grande, um grande lá de dentro, talvez melhorasse para os outros. Eu sacrificava a minha vida, mas a dos outros melhorava. (…) O país brasileiro não tem justiça.

João e Raimunda. Lilo Clareto

João e Raimunda. Lilo Clareto

Quando disse isso, João ainda podia escutar as palavras. Agora, já não pode. Em breve, saberemos por quê. Como as três palavras se tornaram proibidas para ele, João não pôde ouvir o que Dilma Rousseff afirmou em seguida:

– Sabemos que essa usina foi objeto de controvérsias. Muito mais pelo desconhecimento do que pelo fato de ela ser uma usina com problemas. As pessoas desconheciam o que era Belo Monte.

Se João não estivesse proibido de escutar, teria ouvido que pessoas como ele “desconhecem” Belo Monte. O que isso faria com João?

As “controvérsias” citadas por Dilma seriam a mesada de 30 mil aos indígenas ou as delações da Lava Jato sobre propinas?

O que Dilma Rousseff define como “controvérsias” seriam as 25 ações movidas pelo Ministério Público Federal, uma delas acusando o Estado e a Norte Energia pelo etnocídio – morte cultural – de povos indígenas? Ou a controvérsia seria a mesada de 30 mil reais em mercadorias que as aldeias atingidas receberam por dois anos da empresa, como se o Brasil estivesse fixado no ano de 1500, ao trocar vida por espelhinhos? Ou o aumento de 127% da desnutrição infantil nas aldeias neste período? Ou os milhares de atingidos abandonados em total desamparo pelo seu governo, “negociando” diretamente com a Norte Energia, já que a Defensoria Pública da União só conseguiu alcançar Altamira quando a obra já estava perto da conclusão? Ou todos aqueles que assinaram com o dedo papéis que não eram capazes de ler, mas que os condenavam ao desterro?

Talvez não. É possível que “as controvérsias” citadas pela presidente sejam as delações premiadas de executivos de empreiteiras no curso da Operação Lava Jato. Como dirigentes da Andrade Gutierrez, que teriam afirmado a existência de propinas no valor de 150 milhões de reais vindas de Belo Monte para financiamento de campanhas do PT e do PMDB. Dilma Rousseff não especificou o que entendia por “controvérsias”.

É possível afirmar que a presidente desconhece João. Se o conhecesse, e ele ainda pudesse usar as palavras proibidas, Dilma Rousseff saberia que João da Silva conhece Belo Monte. E que sua mulher, Raimunda da Silva, conhece inclusive o perfume de Belo Monte. Para ela, Belo Monte tem cheiro de queimado. Em 31 de agosto de 2015, a Norte Energia botou fogo na casa deles. Quando Raimunda alcançou a ilha para retirar seus pertences, encontrou cinzas. Um técnico da Norte Energia já tinha dito que a casa dela não era uma casa, mas um “tapiri”. Raimunda sabe que as palavras violentam. E reagiu: “Na sua linguagem ela pode ser tudo isso aí, moço. Mas, na minha, é minha casa. E eu me sentia bem nela, viu?”.

Dilma Rousseff desconhece João da Silva, mas ele a conhece tanto que não pode escutar o seu nome, ou sua voz. Se pudesse, João ouviria mais uma parte do discurso da presidente.

– Quero dizer que esse empreendimento de Belo Monte me orgulha muito pelo que ele produziu de ganhos sociais e ambientais.

Quatro crianças indígenas morreram no surto de gripe que ameaça as aldeias da região dias antes do discurso da presidente

No momento em que Dilma discursava, quatro crianças indígenas já tinham morrido de gripe no período de dois dias, entre 29 e 30 de abril. É importante lembrar de seus nomes em tão curta vida: Kinai Parakanã, 1 ano; Irey Xikrin, sete meses; Kropiti Xikrin, 11 meses; Kokoprekti Xikrin, 1 mês e 22 dias. Em documento datado de 1 de maio, o Distrito Sanitário Especial Indígena de Altamira relata a gravidade do surto de síndrome gripal nas aldeias, com a ocorrência de diarreia, especialmente para as crianças de até cinco anos. Assim como a deficiência da estrutura para combater a ameaça à saúde indígena. Mostra também que o quadro se agravou após as comemorações relativas ao Dia do Índio, em Altamira, quando aldeias que ainda não haviam sido atingidas foram contaminadas após a volta dos indígenas da cidade. Naquela semana, a Norte Energia promoveu o I Festival de Cultura Indígena Asurini e Araweté, com a presença de dezenas de pessoas dessas etnias. O surto de gripe em curso foi ignorado nos festejos. As homenagens ameaçam virar morte.

Leia o texto completo na minha coluna no El País

 

Para quem quiser compreender a atual conjuntura de Belo Monte e da Amazônia, mais artigos, entrevistas e reportagens, aqui:

2011

Belo Monte (Foto: Lilo Clareto)

31/10/2011
Belo Monte, nosso dinheiro e o bigode do Sarney
Um dos mais respeitados especialistas na área energética do país, o professor da USP Célio Bermann, fala sobre a “caixa preta” do setor, controlado por José Sarney, e o jogo pesado e lucrativo que domina a maior obra do PAC. Conta também sua experiência como assessor de Dilma Rousseff no Ministério de Minas e Energia

17/10/2011
A pequenez do Brasil Grande
A ditadura acabou, mas a palavra “desenvolvimento” continua sendo torturada para confessar o que o governo deseja que o povo acredite

26/09/2011
Devemos ter medo de Dilma Dinamite?
As mulheres que a primeira presidente prefere não escutar

05/09/2011
Um procurador contra Belo Monte
Conheça o homem que se tornou o flagelo do governo ao lutar contra a maior e mais polêmica obra do PAC

06/06/2011
Se a Amazônia é nossa, por que não cuidamos dela?
Para boa parte dos brasileiros, a floresta não passa de uma abstração

2012

28/01/2012
A Amazônia, segundo um morto e um fugitivo

Dois homens denunciaram a quatro órgãos federais e dois estaduais uma milionária operação criminosa que rouba ipê de dentro de áreas de preservação da floresta amazônica, no Pará. Depois da denúncia, um foi assassinado – e o outro foge pelo Brasil com a família, sem nenhuma proteção do governo. A partir do relato desses dois homens, é possível unir a Amazônia dos bárbaros à floresta dos nobres

04/06/2012
Dom Erwin Kräutler: “Lula e Dilma passarão para a História como predadores da Amazônia”
O lendário bispo do Xingu, ameaçado de morte e sob escolta policial há seis anos, afirma que o PT traiu os povos da Amazônia e a causa ambiental. Afirma também que Belo Monte causará a destruição do Xingu e o genocídio das etnias indígenas que habitam a região há séculos. Há 47 anos no epicentro da guerra cada vez menos silenciosa e invisível travada na Amazônia, Dom Erwin Kräutler encarna um capítulo da história do Brasil

Dom Erwin (Foto: Lilo Clareto)

2013

08/04/2013
À margem do pai
Na floresta amazônica, um homem confronta sua solidão quando um filho seu é picado por uma cobra, o outro por escorpião. Como salvá-los sem nenhum acesso à saúde? O dia a dia dos protetores da Terra do Meio, onde não morrer é um golpe de sorte

2014

31/03/2014
A ditadura que não diz seu nome
O imaginário sobre a Amazônia e os povos indígenas, forjado pelo regime de exceção, é possivelmente a herança autoritária mais persistente na mente dos brasileiros de hoje, incluindo parte dos que estão no poder. E a que mais faz estragos na democracia

15/09/2014
A não gente que não vive no Tapajós
A extraordinária saga de Montanha e Mangabal, da escravidão nos seringais à propaganda do governo que pretende botar uma hidrelétrica na terra que habitam há quase 150 anos

As crianças de Montanha e Mangabal (Foto: Lilo Clareto)

29/9/2014
Diálogos sobre o fim do mundo
Do Antropoceno à Idade da Terra, de Dilma Rousseff a Marina Silva, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e a filósofa Déborah Danowski pensam o planeta e o Brasil a partir da degradação da vida causada pela mudança climática

01/12/2014
Belo Monte: a anatomia de um etnocídio

A procuradora da República Thais Santi conta como a terceira maior hidrelétrica do mundo vai se tornando fato consumado numa operação de suspensão da ordem jurídica, misturando o público e o privado e causando uma catástrofe indígena e ambiental de proporções amazônicas

2015

16/02/2015
O pescador sem rio e sem letras
À beira de Belo Monte, uma história pequena numa obra gigante. Que tamanho tem uma vida humana?

07/07/2015
Belo Monte, empreiteiras e espelhinhos
Como a mistura explosiva entre o público e o privado, entre o Estado brasileiro e as grandes construtoras, ergueu um monumento à violência, à beira do Xingu, na Amazônia

14/09/2015
O dia em que a casa foi expulsa de casa
A maior liderança popular do Xingu foi arrancada do seu lugar pela hidrelétrica de Belo Monte, a obra mais brutal –e ainda impune– da redemocratização do Brasil

Antonia Melo (Foto: Lilo Clareto)

22/09/2015
Vítimas de uma guerra amazônica
Expulsos por Belo Monte, Raimunda e João tornam-se refugiados em seu próprio país

João e Raimunda (Foto: Lilo Clareto)

2016

11/04/2016
O que Belo Monte delata sobre todos os lados
Quando a narrativa da propina se impõe sobre a da violação de direitos humanos, as contradições em jogo neste momento histórico são denunciadas

belo monte again

Dilma compôs seu réquiem em Belo Monte

O julgamento mais rigoroso da presidente e do PT, no tempo da História, será feito por brasileiros como João da Silva

Carolina Reis (Foto: ISA/Divulgação)

Carolina Reis (Foto: ISA/Divulgação)

Na quinta-feira, 5 de maio, Raimunda desligou a TV na casa da periferia de Altamira, no Pará. O noticiário local começava a transmitir a inauguração da usina hidrelétrica de Belo Monte por Dilma Rousseff (PT). Era um gesto pequeno, o de desligar o botão da TV. Era o esforço de Raimunda para proteger João da voz da presidente. Deitado na rede, sem movimento nas pernas, ele já não é capaz de proteger a si mesmo. Em Belo Monte, Dilma discursava, ovacionada por uma claque de movimentos sociais, denunciando o “golpe” para tirá-la do poder. Mas a palavra final sobre o legado da presidente não será do Congresso. O réquiem de Dilma Rousseff, no tempo da História, é o silêncio de João da Silva.

No aeroporto de Altamira, Liviane, uma das sete filhas de João e de Raimunda, erguia um cartaz: “De mulher para mulher. Dilma – você me deixou órfã de pai vivo”.
Dilma Rousseff não viu. Ela deu apenas uns poucos passos em terra. Em seguida pegou um helicóptero para o território seguro da hidrelétrica de Belo Monte. A presidente sobrevoou a cidade e o rio. Mas era no chão que o drama se desenrolava.
Se João tivesse escutado o discurso de Dilma, ele saberia qual foi a palavra escolhida pela presidente para definir Belo Monte:

– Essa usina é do tamanho desse povo. É grandiosa. É uma usina grandiosa. A melhor forma de descrever Belo Monte é essa palavra: grandiosa.

As palavras, João descobriu há pouco mais de um ano, podem matar. É por isso que ele não consegue escutar nem “Norte Energia”, a empresa concessionária que materializou a usina no amazônico Xingu. Nem “Belo Monte”. Nem “Dilma Rousseff”. E ninguém conhecerá sua opinião sobre o adjetivo escolhido pela presidente: “grandiosa”.

Quando sua filha escreve, no cartaz que Dilma não leu, que é órfã de pai vivo, ela conta de uma morte que começou em 23 de março de 2015. João era um dos milhares de atingidos por Belo Monte. Ele vivia com Raimunda numa ilha do Xingu, a Barriguda. Nas palavras da Norte Energia e do governo federal, ele era um dos milhares de “removidos”. Mas as palavras não são as mesmas para todos.

Para João, ele foi “expulso”. Naquela data, ele e Raimunda estavam no escritório da empresa esperando o veredicto. João, que trabalhava desde os oito anos de idade, e só na ilha encontrara um lugar sem fome, acreditava receber um valor que lhe permitisse recomeçar a vida, mais uma vez. Mas o preposto da empresa foi taxativo: 23 mil reais. João percebeu ali que, aos 63 anos, estava condenado à miséria. No momento da revelação, ele quis matar o dono das palavras que o esfaqueavam. Mas João da Silva não é homem que mata. Paralisou por inteiro. A fala, as pernas. E teve de ser carregado para fora do escritório. Foi naquele momento que João começou a morrer. Para Raimunda e as filhas, foi naquele momento que João começou a ser “assassinado”.

Mais tarde, quando recuperou as palavras e voltou a dar alguns passos, bem devagar, João disse:

– Se eu fizesse um dano com um grande, um grande lá de dentro, talvez melhorasse para os outros. Eu sacrificava a minha vida, mas a dos outros melhorava. (…) O país brasileiro não tem justiça.

Raimunda Gomes da Silva e João Pereira da Silva (Foto de Lilo Clareto)

Raimunda Gomes da Silva e João Pereira da Silva (Foto de Lilo Clareto)

Quando disse isso, João ainda podia escutar as palavras. Agora, já não pode. Em breve, saberemos por quê. Como as três palavras se tornaram proibidas para ele, João não pôde ouvir o que Dilma Rousseff afirmou em seguida:

– Sabemos que essa usina foi objeto de controvérsias. Muito mais pelo desconhecimento do que pelo fato de ela ser uma usina com problemas. As pessoas desconheciam o que era Belo Monte.

Se João não estivesse proibido de escutar, teria ouvido que pessoas como ele “desconhecem” Belo Monte. O que isso faria com João?

O que Dilma Rousseff define como “controvérsias” seriam as 25 ações movidas pelo Ministério Público Federal, uma delas acusando o Estado e a Norte Energia pelo etnocídio – morte cultural – de povos indígenas? Ou a controvérsia seria a mesada de 30 mil reais em mercadorias que as aldeias atingidas receberam por dois anos da empresa, como se o Brasil estivesse fixado no ano de 1500, ao trocar vida por espelhinhos? Ou o aumento de 127% da desnutrição infantil nas aldeias neste período? Ou os milhares de atingidos abandonados em total desamparo pelo seu governo, “negociando” diretamente com a Norte Energia, já que a Defensoria Pública da União só conseguiu alcançar Altamira quando a obra já estava perto da conclusão? Ou todos aqueles que assinaram com o dedo papéis que não eram capazes de ler, mas que os condenavam ao desterro?

Talvez não. É possível que “as controvérsias” citadas pela presidente sejam as delações premiadas de executivos de empreiteiras no curso da Operação Lava Jato. Como dirigentes da Andrade Gutierrez, que teriam afirmado a existência de propinas no valor de 150 milhões de reais vindas de Belo Monte para financiamento de campanhas do PT e do PMDB. Dilma Rousseff não especificou o que entendia por “controvérsias”.

É possível afirmar que a presidente desconhece João. Se o conhecesse, e ele ainda pudesse usar as palavras proibidas, Dilma Rousseff saberia que João da Silva conhece Belo Monte. E que sua mulher, Raimunda da Silva, conhece inclusive o perfume de Belo Monte. Para ela, Belo Monte tem cheiro de queimado. Em 31 de agosto de 2015, a Norte Energia botou fogo na casa deles. Quando Raimunda alcançou a ilha para retirar seus pertences, encontrou cinzas. Um técnico da Norte Energia já tinha dito que a casa dela não era uma casa, mas um “tapiri”. Raimunda sabe que as palavras violentam. E reagiu: “Na sua linguagem ela pode ser tudo isso aí, moço. Mas, na minha, é minha casa. E eu me sentia bem nela, viu?”.

Dilma Rousseff desconhece João da Silva, mas ele a conhece tanto que não pode escutar o seu nome, ou sua voz. Se pudesse, João ouviria mais uma parte do discurso da presidente.

– Quero dizer que esse empreendimento de Belo Monte me orgulha muito pelo que ele produziu de ganhos sociais e ambientais.

No momento em que Dilma discursava, quatro crianças indígenas já tinham morrido de gripe no período de dois dias, entre 29 e 30 de abril. É importante lembrar de seus nomes em tão curta vida: Kinai Parakanã, 1 ano; Irey Xikrin, sete meses; Kropiti Xikrin, 11 meses; Kokoprekti Xikrin, 1 mês e 22 dias. Em documento datado de 1 de maio, o Distrito Sanitário Especial Indígena de Altamira relata a gravidade do surto de síndrome gripal nas aldeias, com a ocorrência de diarreia, especialmente para as crianças de até cinco anos. Assim como a deficiência da estrutura para combater a ameaça à saúde indígena. Mostra também que o quadro se agravou após as comemorações relativas ao Dia do Índio, em Altamira, quando aldeias que ainda não haviam sido atingidas foram contaminadas após a volta dos indígenas da cidade. Naquela semana, a Norte Energia promoveu o I Festival de Cultura Indígena Asurini e Araweté, com a presença de dezenas de pessoas dessas etnias. O surto de gripe em curso foi ignorado nos festejos. As homenagens ameaçam virar morte.

Desde que a construção da usina começou, a circulação de indígenas na cidade é muito maior, o que facilita o contágio. O hospital que faz parte das condicionantes da obra está pronto, mas não foi inaugurado nem está equipado. A reestruturação da saúde indígena, uma das obrigações previstas na contrapartida pela obra de Belo Monte, com postos abastecidos e equipes treinadas nas aldeias, para que os indígenas não precisem ir até a cidade em busca de atendimento, não foi concluída.

Em reunião no dia 6 de maio, com a participação de várias instituições, foi criada uma Força Tarefa de Ações Articuladas e deliberada a necessidade da vinda da Força Nacional do SUS, com apoio do Exército para execução de um Plano de Ações emergenciais. “Diante do pronunciamento dos agentes de saúde local de que trazer essas crianças para Altamira e bater nas portas dos hospitais é escolher aonde elas vão morrer, o pedido formulado ao Ministério da Saúde de intervenção da Força Nacional do SUS é, em verdade, um apelo para que o Governo Federal atue para reverter o quadro atual com a mesma rapidez e eficiência com que, nesses últimos anos, atuou para que Belo Monte fosse concluída, mesmo sem a implementação das condicionantes que hoje poderiam evitar novas mortes”, afirma Thais Santi, procuradora da República em Altamira que há anos denuncia o etnocídio indígena causado pela construção da hidrelétrica.

Como Dilma Rousseff apenas sobrevoou a cidade, sem caminhar por suas ruas, não testemunhou o desespero dos indígenas em busca de ajuda. Nem a impotência dos profissionais de saúde diante da falta de estrutura para salvar vidas. Assim como não viu que a rede de esgoto até hoje não está funcionando, e que a contaminação do Xingu só aumenta. Ao festejar os “ganhos ambientais”, ela deve ter esquecido das 16 toneladas de peixes mortas quando o lago da usina encheu. Da infestação de mosquitos nas aldeias em que a vazão do rio baixou. Assim como as denúncias do Dossiê Belo Monte, lançado pelo Instituto Socioambiental, mostrando que construção da usina fez disparar o desmatamento e o comércio ilegal de madeira. Ou que a Terra Indígena Cachoeira Seca, uma das afetadas pela obra, foi a mais desmatada do país em 2013. Ou que dela saiu em 2014 o equivalente a 13 mil caminhões carregados de madeira em apenas um ano.

Como não pisou nas ruas de Altamira nem jamais navegou entre as ilhas incendiadas do Xingu, Dilma Rousseff se autoriza a festejar “ganhos sociais e ambientais de Belo Monte”.

E como em seu discurso celebra “o povo brasileiro”, mas desconhece João da Silva, a presidente não sabe que, em 4 de Setembro de 2015, ele chamou a família para que se matassem na ilha queimada. Naquele momento, as palavras ainda não estavam proibidas para João. Ele explicou por que queria se matar:

– Quero que o mundo saiba que Belo Monte me matou.

Raimunda o impediu: “Tirei a canoa dele. Em qualquer parte do rio ele vai a remo, nadando. Mas na rua ele se perde”. E João restou perdido. Hoje, mais do que ontem.
Se João pudesse escutar a voz de Dilma, ele saberia como ela continuou a discursar:

– Acho importante destacar que, com Belo Monte, nós não levamos só energia para o resto do Brasil. Criamos aqui uma riqueza única, que é colocar à disposição das empresas que quiserem vir aqui, colocar o seu negócio aqui, participar desse estado que tem grandes reservas minerais, grande potencial agrícola, podem vir aqui, porque não vai faltar energia.

Belo Monte costuma ser apresentada como a terceira maior hidrelétrica do mundo, com 11.233 megawatts do que no jargão técnico se chama de “capacidade instalada”. O que o governo costuma esquecer de citar é que, na temporada de seca do Xingu, a produção de energia baixa drasticamente. Assim, na média, Belo Monte vai produzir de fato 4.571 megawatts, o que a coloca como uma das hidrelétricas menos produtivas na relação entre capacidade instalada e energia firme. É por essa razão que alguns pesquisadores da área energética sempre repetiram que nem mesmo sob o ponto de vista da produção de energia o empreendimento se justifica.

Nesta parte do seu discurso, Dilma, a guerrilheira torturada pela ditadura, reproduz como presidente a mesma ideologia para a Amazônia defendida por seus algozes. Para a ditadura civil-militar (1964-1985), a região era vista como um território para exploração, a floresta era também um corpo a ser violado e torturado. Dilma faz ressoar a propaganda do “Brasil Grande” dos generais, do progresso representado pelas grandes obras, pelos projetos gigantescos de mineração, pela ideia de transformar a mata em soja e pasto pra boi, como se isso fosse desenvolvimento e como se isso fosse sustentável. É como se a presidente tivesse ficado congelada no século 20.

Um dos buracos artificiais de Belo Monte. LILO CLARETO

Um dos buracos artificiais de Belo Monte (Foto de Lilo Clareto)

A repetição do discurso do opressor pela oprimida que chega ao poder e, no ponto de vista de parte dos povos da floresta se torna a opressora, é fascinante no que revela sobre o demasiado humano. Mas é um desastre para o Brasil. Neste discurso, Dilma ignora os desafios da mudança climática, assim como os desafios de um presente que só tem chance de alcançar o futuro se aprender com os povos tradicionais, se valorizar a biodiversidade em vez da destruição. Dilma Rousseff ignora a época em que vive, assim como os debates mais profundos dessa época.

Dessa ignorância resultam obras como Belo Monte, tão deslocadas no Xingu quanto no século 21. E resulta outra sombra gigantesca que avança sobre a região neste exato momento: Belo Sun. A mineradora canadense pressiona para protagonizar “o maior programa de exploração de ouro do Brasil”, bem ao lado da hidrelétrica. Está prevista a extração de mais de 37 milhões de toneladas de ouro nos primeiros 11 anos, um número tão “grandioso” que se torna difícil traduzi-lo numa imagem. Belo Sun chegou a ter a cerimônia de liberação marcada para abril, mas o governo do estado do Pará voltou atrás. Belo Sun poderá ser um flagelo ainda maior do que Belo Monte. Para o Xingu, para o Brasil, para o mundo. Que as duas tenham “belo” no nome é a prova do cinismo que fez João da Silva passar a temer as palavras.

Ele, que foi um dos operários da hidrelétrica de Tucuruí, construída na Amazônia pela ditadura, passou a acreditar que a barragem de Belo Monte vai se romper. Desde que a tragédia de Mariana assombrou o mundo, João teme essa outra catástrofe. A imagem é uma representação da destruição produzida por Belo Monte na vida de João.
A tragédia de João e Raimunda foi documentada na reportagem “Vítimas de uma guerra amazônica”. A Norte Energia negou ter queimado a casa deles na ilha, assim como ter cometido qualquer ilegalidade. Em seguida, procurou Raimunda para um acordo extrajudicial. Nos termos do documento: “A fim de evitar a propositura de ações judiciais indenizatórias recíprocas, ou ações judiciais de qualquer outra natureza, haja vista uma polêmica instaurada, inclusive com repercussão na mídia internacional”. Ofereceram um “complemento” de R$ 108. 856,97aos R$ 23.046,00 pagos no início do ano, totalizando um valor de R$ 131.902,97.

A defensora pública federal Mariana Carraro alertou Raimunda de que não era uma indenização justa. Como a casa dela havia sido incinerada, Raimunda poderia ganhar um valor maior se entrasse com uma ação por danos morais. Por outro lado, a defensora informou que uma ação judicial poderia se arrastar por até dez anos. Na casa onde agora vivem, na periferia de Altamira, Raimunda disse a João: “Meu velho, a gente não vai mais ter o leite e a panela. O que a gente faz?”.

Raimunda decidiu, em suas palavras, “ficar com a panela e tentar colocar leite dentro”. O acordo foi assinado em dezembro de 2015. “Foi terrível, um peso enorme”, diz. “Mas eu pensei que, se fosse esperar pela Justiça, meu velho já poderia ter partido para outra dimensão, deixando pra trás esse caso sem solução.” Em janeiro deste ano, a Norte Energia foi autuada pelo IBAMA por queimar a casa de Raimunda e de João, com uma multa no valor de 310 mil reais.

Raimunda fez o acordo por acreditar que precisaria do dinheiro para buscar tratamento para João. Naquele momento, ele afirmava “só enxergar escuridão” e caminhava apenas uns poucos passos antes de precisar se sentar. Às vezes um vizinho avisava: “Seu João está sentado no meio do nada, debaixo do sol. Vai acabar morrendo ali”. O abismo se alargaria no final de janeiro. A filha mais velha de João e Raimunda tentou se suicidar ingerindo veneno de rato. Ficou em coma por oito dias, mas se salvou. Não explicou por que quis acabar com a própria vida. As sete filhas têm o nome iniciado pela letra “L de liberdade”.

Quando Dilma inaugurou Belo Monte, a escuridão dos dias de João já era maior do que quando ele começou a morrer.

– Para concluir, eu quero dizer a vocês que eu tenho imenso orgulho das escolhas que eu fiz. Uma delas, que eu quero destacar mais uma vez, é a construção de Belo Monte como um legado para a população brasileira dessa região, para o povo de Altamira e o povo de Xingu. Mesmo que não seja dos municípios diretamente impactados por Belo Monte, toda essa população vai ser beneficiada direta e indiretamente. Tenho orgulho das escolhas que fiz.

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte/ Fotos: Lilo Clareto

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte (Foto de Lilo Clareto)

Semanas antes dessa demonstração de orgulho da presidente pelo seu legado no Xingu, em 15 de abril, Raimunda se manifestou numa reunião sobre o destino dos ribeirinhos “removidos” por Belo Monte. Falavam muito em “critérios”. Raimunda então disse: “Quero saber qual foi o critério para os defuntos que vocês mataram mas não enterraram”. E lembrou de João, seu marido, “um dos mortos-vivos de Belo Monte”.

Na manhã de 18 de abril, Raimunda conta que três mulheres do serviço social da empresa bateram na porta de sua casa. Como havia sido combinado, as funcionárias não mencionariam que eram da Norte Energia. Ao final da conversa, porém, João desconfiou. E Raimunda foi obrigada a confirmar. João sentiu-se enganado por Raimunda. “Já disse que não quero ninguém dessa empresa na minha casa”, ele gritou. E se fechou. Raimunda achou que João estava “mais estranho” por causa da raiva. E não tentou mais falar com ele.

No dia seguinte, João amanheceu “com o corpo todo enrolado”. Raimunda buscou tratamento em Altamira, onde ouviu que ele teve “um começo de derrame”. Resolveu então procurar uma cidade com mais recursos e o levou para Teresina, capital do Piauí, numa penosa viagem de ônibus de quase dois dias. Uma filha a ajudou, já que João precisava ser carregado. Hospedaram-se numa pensão. A médica diagnosticou que João teve um segundo AVC. O primeiro, segundo ela, teria sido quando João paralisou no escritório da Norte Energia. Se ocorrer um terceiro, João poderá não resistir. No final de abril, Raimunda carregou João de volta para a periferia de Altamira. Na viagem de retorno, o ônibus ficou cinco horas parado na estrada porque uma ponte havia quebrado. Raimunda foi pedir leite numa casa para dar a ele. Deixou João escutando a música “Imagine”, de John Lennon, que ela tem traduzida e gravada no celular para ouvir quando a vida dói. “Imagine todas as pessoas vivendo a vida em paz”.

Raimunda conta: “A médica me disse que não posso estressar ele. Perguntou o que tinha causado essa raiva toda. Expliquei. Ela disse que não podia mais falar essas palavras perto dele, porque ele pode morrer se tiver mais um AVC. Mas eu disse pra ela que não tem como deixar essas palavras de banda em Altamira. Norte Energia, Belo Monte, essas palavras aí tão na cara de todo mundo na cidade. Aí a doutora falou que era para eu dar o meu jeitinho brasileiro. Por isso desliguei a TV pra ele não ouvir a Dilma falar”.

Em 5 de maio, dia em que Dilma Rousseff inaugurou Belo Monte, João da Silva completou 64 anos. Ele não anda mais. Também não come mais sozinho. Ainda fala. Mas não pronuncia as palavras proibidas. Antonia Melo, a maior liderança popular do Xingu, e outras mulheres do Xingu Vivo, um dos poucos movimentos sociais que não foi cooptado pelo governo e se manteve na resistência à Belo Monte, levaram a ele um bolinho de aniversário. Elas tinham acabado de escrever uma carta de resposta ao discurso de Dilma Rousseff: “Hoje você se rebaixou a inaugurar a mais nefasta das obras do governo petista, aquela que manchou a imagem do Brasil em todo o mundo. Uma iniciativa que você herdou das mesmas mentes doentias que te torturaram na prisão”.

Era um encontro de pessoas destroçadas pelo 5 de maio de 2016. Mas ninguém tocou no assunto para não ameaçar a vida de João. “Não tem nada pra comemorar”, João disse. Antonia respondeu: “O senhor tá vivo”. João chorou.

Perto do encerramento do seu discurso, Dilma Rousseff afirmou:

– Qualquer processo que tenta dar um golpe para garantir que os sem votos cheguem à presidência nós devemos repudiar. Temos de afirmar de alto e bom som que a democracia é o lado certo da História.

Em Altamira, Belo Monte é chamada de “Belo Golpe” por aqueles que denunciam o massacre aos direitos constitucionais que a implantação da usina promoveu. Para eles, é no Xingu que o governo do PT consumou o rompimento do Estado de Direito. Não há nenhuma esperança com um governo Temer. Ao contrário. O programa anunciado no documento “Uma Ponte Para o Futuro” é para eles uma ponte para um passado que conhecem bem. O setor elétrico no Brasil, neste governo e em governos passados, tem as digitais do PMDB, como a Operação Lava Jato já começou a mostrar.

A presidente afirmou ainda que o “grande juiz é o povo brasileiro”. E assim despediu-se em Belo Monte:

– Não haverá perdão da História para os golpistas.

A última palavra, porém, não é de Dilma Rousseff. Nem será do Congresso. A derradeira palavra, aquela com que Dilma, Lula e o PT terão de se haver na História, é aquela que João da Silva já não pode mais pronunciar.

João da Silva (Foto de Lilo Clareto)

João da Silva (Foto de Lilo Clareto)

(Publicado no El País em 10 de maio de 2016)