O golpe e os golpeados

Minha coluna desta semana no El País fala sobre o esvaziamento das palavras, no Brasil atual. Da pietà negra da favela que pintou o rosto com o sangue do filho ao cuspe do Jean Wyllys no Bolsonaro.  Relaciono ainda ao novo filme da Tata Amaral, “Trago Comigo“.

Acho que estamos além da censura, porque a censura teme as palavras e as proíbe. Hoje, em plena democracia, estamos mergulhados num outro tipo de horror: as palavras já não dizem. Como poderiam nos contar os Guarani Kaiowá, e na semana passada foi assassinado mais um deles, a palavra dos brancos não age. E, por não agir, já não é. No Brasil atual, as palavras viraram fantasmas. E é desta perspectiva que vejo a disputa do “golpe”.

Foto: Pablo Jacob/Agência O Globo

Foto: Pablo Jacob/Agência O Globo

A barbárie de um país em que as palavras já não dizem

Sheila da Silva desceu o morro do Querosene para comprar três batatas, uma cenoura e pão. Ouviu tiros. Não parou. Apenas seguiu, porque tiros não lhe são estranhos. Sheila da Silva começava a escalar o morro quando os vizinhos a avisaram que uma bala perdida tinha encontrado a cabeça do seu filho e, assim, se tornado uma bala achada. Ela subiu a escadaria correndo, o peito arfando, o ar em falta. Na porta da casa, o corpo do filho coberto por um lençol. Ela ergueu o lençol. Viu o sangue. A mãe mergulhou os dedos e pintou o rosto com o sangue do filho.

A cena ocorreu em 10 de junho, no Rio de Janeiro. Com ela, a pietà negra do Brasil atravessou o esvaziamento das palavras. O rosto onde se misturam lágrimas e sangue, documentado pelo fotógrafo Pablo Jacob, da Agência O Globo, foi estampado nos jornais. Por um efêmero instante, que já começa a passar, a morte de um jovem negro e pobre em uma favela carioca virou notícia. Sua mãe fez dela um ato. Não fosse vida, seria arte.

Sheila ouviu os tiros e seguiu adiante. Ela tinha que seguir adiante torcendo para que as balas fossem para outros filhos, outras mães. E voltou com sua sacola com batata, cenoura e pão. Ela ainda não sabia que a bala desta vez era para ela. Ainda nem havia sangue, mas a imagem já era terrível, porque cotidiana, invisível. A mulher que segue apesar dos tiros e volta com batata, cenoura e pão, furiosamente humana, buscando um espaço de rotina, um fragmento de normalidade, em meio a uma guerra que ela nunca pôde ganhar. E guerras que não se pode ganhar não são guerras, mas massacres. E então ela corre, esbaforida. E desta vez a batata, a cenoura, o pão já não podem lhe salvar.

A pietà pinta o rosto com o sangue do filho para se fazer humana no horror. E então nos alcança. Mas é uma guerreira desde sempre derrotada, porque nos alcança apenas por um instante, e logo será esquecida. E depois do seu, outros filhos já foram perfurados à bala. E seu sangue correu por becos, vielas e escadarias, misturando-se ao esgoto dos rios e riachos contaminados que serpenteiam pelas periferias.

A pietà da favela não ampara o corpo morto do filho como na imagem renascentista. Ela ultrapassa o gesto, porque aqui não há renascenças. Faz do sangue do filho a sua pele, converte o sangue dele no seu, carrega-o em si. Ritualiza. Neste gesto, ela denuncia duas tragédias: o genocídio da juventude negra que, desta vez, alcançou seu filho e o fato de que “genocídio” é uma palavra que, no Brasil, já não diz. Se para a dor da mãe que perde um filho não há nome, não existe palavra que dê conta, há um outro horror, e este aponta para o Brasil. A tragédia brasileira é que as palavras existem, mas já não dizem.

Porque, se não há escuta, não há dizer. As palavras tornam-se cartas enviadas que jamais chegam ao seu destino. Cartas extraviadas, perdidas. Se o outro é um endereço sempre errado, uma casa já desabitada, não há ouvidos, não há resposta. Num país em que as palavras deixam de dizer, resta o sangue. As palavras que as mães poderiam dizer, as palavras que de fato dizem, não perfuram nenhum tímpano, não ferem nenhum coração, não movem consciência alguma. Diante do corpo morto do filho, a pietà negra precisa vestir o sangue, encarnar, porque as palavras desencarnaram. No Brasil, as palavras são fantasmas.

Leia o texto completo na minha coluna no El País

(…) No filme Trago Comigo, de Tata Amaral, que acabou de estrear nos cinemas do Brasil, o mais potente são as tarjas pretas. A obra entremeia uma narrativa de ficção com depoimentos de pessoas reais. Um diretor de teatro, vivido por Carlos Alberto Riccelli, é um guerrilheiro da ditadura preso, torturado e exilado, que esqueceu de um capítulo vital da sua história. Para a reinauguração de um teatro que fora abandonado, um teatro cheio de pó, teias de aranha e silêncios, como esse canto da sua memória, ele encena uma peça que é sua própria história, o capítulo apagado de sua história. Para lembrar de si, encena a realidade como ficção. Mas, para que lembremos nós, os que assistem, de que é de realidade que se trata, torturados pelo regime civil-militar contam sua estadia nos porões da repressão.

Entre a manipulação da Bíblia e a posse da Vagina

Na coluna desta semana do El País, busco ampliar os significados dos protestos contra a cultura do estupro. E recolocar a oposição e a situação a partir destes movimentos, para além da falsa polarização. No Brasil atual, é preciso ligar muitos pontos.

TOMAZ SILVA/AGBR

TOMAZ SILVA/AGBR

Os protestos contra a cultura do estupro apontam para onde se movem os Brasis e onde de fato está a oposição

 

O levante das mulheres contra a cultura do estupro no país governado pelo interino Michel Temer (PMDB) e pelo Congresso mais retrógrado desde a redemocratização forma o retrato mais preciso desse momento histórico tão particular do Brasil. A oposição atual não é entre um governo chamado de “golpista” e um governo que já foi apresentado como “popular”. Ou entre a presidente afastada pelo processo de impeachment e o vice que conspirou para afastá-la. O embate é entre o Brasil que emergiu das manifestações de junho de 2013 e o Brasil que se agarra aos privilégios de classe, de raça e de gênero. É esse o confronto político mais amplo que determina o curso dos dias.

Nem Temer, PMDB e partidos aliados representam todas as forças conservadoras de um lado, nem Dilma Rousseff, Lula e o PT são capazes de representar o outro campo. Como a Operação Lava Jato já mostrou, com todas as críticas que se pode – e se deve – fazer aos seus flagrantes abusos e aos personalismos inaceitáveis de alguns servidores públicos, PMDB e PT são, em alguns aspectos cruciais, mais semelhantes do que diferentes. Em alguns aspectos, obviamente não todos, mais sócios que se desentenderam do que opositores de fato políticos, no que a política tem de mais profunda, que é a sua potência transformadora. É fundamental compreender onde de fato está a oposição hoje, para além do Impeachment x Golpe.

Esta é a parte que Temer, o PMDB e as demais forças que apoiaram o impedimento de Dilma Rousseff parecem não ter compreendido. E também por isso as primeiras semanas do Governo provisório tiveram tantos recuos e pelo menos duas baixas de ministros. Apesar da sobra de esperteza dos protagonistas, eles parecem de fato ter acreditado que o país pudesse simplesmente retroceder e as velhas forças se rearranjarem mais uma vez – sem oposição. Assim como ter acreditado que a oposição, a partir de certo momento, era o PT. Acreditaram na falsa polarização, sem perceber que o país hoje é muito mais complexo.

“Homens brancos e velhos”. A reação ao ministério de Temer mostrou de imediato de onde viria a oposição. Gênero, raça e protagonismo jovem. A política para além dos partidos, a política que em 2013 expulsou os partidos das ruas.

Duas fotografias, um abismo. Nas ruas do país, as mulheres escrevem na pele nua que seus corpos lhe pertencem ao protestar contra a cultura do estupro depois das violações coletivas de duas meninas, uma no Rio, outra no Piauí. O que Temer faz? Chama para ocupar a rebaixada secretaria de Políticas para Mulheres uma evangélica, Fátima Pelaes (PMDB), que já se declarou contra o aborto mesmo em casos de estupro. Ou o presidente interino tem uma deficiência cognitiva ou obedece a mandamentos menos declarados.

Ao extinguir justamente o ministério que contemplava as políticas de gênero, raça e direitos humanos, e ao extinguir o Ministério da Cultura, que fomenta a expressão dessas políticas, Temer já havia demonstrado que nem ele nem as forças que o apoiaram compreendem o país que tanto querem governar. Teve de correr atrás do prejuízo e de mulheres que concordassem em fazer parte do governo. Foi obrigado a recuar e a devolver o Ministério da Cultura à Esplanada.

Esses recuos são mais reveladores do que os ministros demitidos após o vazamento de gravações em que teriam conspirado contra a Lava Jato, porque apontam para as forças que demandam a ampliação da política. E que denunciam a crise de representação mais profunda. É por estas forças, estas políticas que não há como voltar ao Brasil do passado. O presente é outro, o presente é fluxo. É possível que os esquemas de corrupção se rearranjem de outra maneira, como ocorreu na Itália. Mas é bastante improvável que mulheres, negros e LGBTs parem de questionar os privilégios de gênero e de raça, assim como os crimes de gênero e de raça. Os povos da floresta são uma outra força, ainda obscurecida, que deverá ganhar mais e mais visibilidade com o avanço da crise climática.

Este Brasil que vai às ruas protestar contra a cultura do estupro, contra o genocídio da juventude negra, contra a corrosão das escolas públicas, onde estudam os mais pobres, representa a grande potência criativa deste momento. Muito se tem falado sobre a perda das conquistas da década passada, evidenciada por fatos como os mais de 11 milhões de desempregados atuais. É importante perceber, porém, que há ganhos que não retrocedem. A primeira geração de jovens negros que chegou à universidade não vai deixar de pressionar pela ampliação dos acessos. Assim como as mulheres que se empoderaram ao receber o Bolsa Família já se tornaram outras.

É fundamental identificar onde está o movimento. E onde está a paralisia. Ou mesmo o retrocesso. Descolados do Brasil que se move, nem o governo nem o Congresso têm resposta. Em parte, porque sequer entendem o que dizem as manifestantes que ocuparam as ruas.

Leia o texto completo na minha coluna no El País

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