Sobre aborto, deficiência e limites

Não há respostas fáceis. Só consigo enfrentar a complexidade do debate com dúvidas

barriga-gravida

A possível ligação entre o zika vírus e a microcefalia obrigou o Brasil a encarar seus tabus

Uma doença nunca é só uma doença. Ela nos conta de desigualdades e falências, e também de paixões. O zika vírus, desde que foi associado à microcefalia, tem revolvido as profundezas do pântano em que a sociedade brasileira esconde seus preconceitos e totalitarismos, muitas vezes trazendo-os à superfície cobertos por uma máscara de virtude. É dessa matéria fervente o debate sobre a permissão do aborto em casos de microcefalia. Diante da crise sanitária revelada pelo Aedes brasilis, como o mosquito vetor já foi chamado de forma tão oportuna, o futuro próximo depende de que sejamos capazes de pensar, mesmo que isso signifique chamuscar as mãos. Pensar e conversar, o que implica vestir a pele do outro antes de sair repetindo os velhos clichês usados como escudos contra mudanças. Se não formos capazes de superar o comportamento de torcida de futebol nem mesmo diante de uma epidemia considerada “emergência global”, o mosquito é o menor dos nossos problemas.

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Escutar é justamente debater. Aqueles que não querem debater aborto no Brasil precisam assumir que não se importam com a prisão e a morte de mulheres jovens e pobres, a maioria delas negras, já que estes são os fatos. Precisam assumir também que não se importam que o acesso ao aborto reproduza a desigualdade racial e social do Brasil, ao tornar-se acessível e seguro para quem pode pagar e criminalizado e mortífero para quem não pode. Quem se importa, debate os fatos. E escuta a posição do outro, mesmo que seja muito diferente da sua. Viver é mover-se.

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Assim, as crianças que nascerem com microcefalia por conta do zika, uma ligação que ainda não está totalmente esclarecida, não estão condenadas a uma vida sem vida. Mas podem estar condenadas a uma vida muito menos autônoma, muito menos cidadã, muito mais restritiva por conta das barreiras sociais que já deveriam ter sido derrubadas e não foram. São vítimas, neste caso, de duas falências: a das políticas sanitárias, que permitiram a proliferação do mosquito, e a das políticas de inclusão.

Neste caso, assim como acontece com o aborto, também são os mais pobres os que mais sofrem as consequências da precariedade das políticas públicas, assim como os efeitos da discriminação que permite a desigualdade de direitos. E os mais pobres no Brasil, como se sabe, são em sua maioria negros. A maior parte dos casos de microcefalia estão entre mulheres pobres do Nordeste, e são elas as que mais sofrerão com a epopeia que será incluir uma criança com deficiências num sistema de saúde pública precário e numa sociedade que discriminará seus filhos em todos os espaços e oportunidades.

Quando o zika vírus provoca um debate sobre a deficiência, é fundamental que todos nos esforcemos para qualificá-lo. Diante de um cenário dramático, o melhor caminho é fazer da crise uma oportunidade para tornar o país mais justo.

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EL PAÍS/NACHO DOCE (REUTERS)

EL PAÍS/NACHO DOCE (REUTERS)

Leia o texto completo na minha coluna no El País

Sobre aborto, deficiência e limites

A possível ligação entre o zika vírus e a microcefalia obrigou o Brasil a encarar seus tabus

Reprodução do El País

Reprodução do El País

Uma doença nunca é só uma doença. Ela nos conta de desigualdades e falências, e também de paixões. O zika vírus, desde que foi associado à microcefalia, tem revolvido as profundezas do pântano em que a sociedade brasileira esconde seus preconceitos e totalitarismos, muitas vezes trazendo-os à superfície cobertos por uma máscara de virtude. É dessa matéria fervente o debate sobre a permissão do aborto em casos de microcefalia. Diante da crise sanitária revelada pelo Aedes brasilis, como o mosquito vetor já foi chamado de forma tão oportuna, o futuro próximo depende de que sejamos capazes de pensar, mesmo que isso signifique chamuscar as mãos. Pensar e conversar, o que implica vestir a pele do outro antes de sair repetindo os velhos clichês usados como escudos contra mudanças. Se não formos capazes de superar o comportamento de torcida de futebol nem mesmo diante de uma epidemia considerada “emergência global”, o mosquito é o menor dos nossos problemas.

O aborto

No Brasil, o aborto só é permitido em caso de gravidez resultante de estupro, risco de morte da gestante e anencefalia do feto. Neste último caso, a liberação foi permitida pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, por se tratar de uma condição incompatível com a vida. Prevaleceu a tese de que não haveria ali uma vida a ser protegida e, portanto, obrigar uma mulher a levar uma gestação em que ao final haveria um caixão e não um berço era afrontar a sua dignidade e submetê-la à tortura. Aquelas mulheres que encontrassem sentido em completar uma gravidez de feto anencefálico seguiriam, obviamente, com seus direitos garantidos.

Este é um ponto importante: o respeito ao direito de escolha de cada mulher, a partir de suas condições concretas e subjetivas, da teia de sentidos construída por cada uma para se mover pelo mundo. Quando o aborto é permitido, em nenhum momento essa liberação tira de qualquer mulher o direito de não fazê-lo. O que acontece é a ampliação de direitos – e não o estreitamento. Quem entende que fazer um aborto é o mais coerente para a sua vida faz. Quem entende que não – não faz. Preciso informar ao leitor que participei ativamente do debate do aborto de feto anencefálico. Como repórter, na cobertura do tema, e num documentário chamado Uma História Severina, no qual é narrada a luta por autorização judicial travada por uma mulher nordestina, pobre e analfabeta, para interromper a gestação de um feto anencefálico.

Embora no Brasil o aborto só seja legalmente permitido em três casos, a prática é inteiramente outra. E compreender isso é fundamental para qualquer debate honesto. Na vida de todos os dias, o aborto é liberado para quem por ele pode pagar. Se uma mulher de classe média ou alta engravidar, e por diferentes motivos essa gravidez for indesejada, ela vai a uma clínica particular, paga entre 5 mil e 15 mil reais e interrompe a gestação com considerável segurança. Seus dilemas são pessoais, internos, já que a decisão de abortar costuma ser difícil, mesmo quando há convicção pessoal de que é impossível levar aquela gestação adiante. Mas essa mulher não precisa temer ser presa, muito menos morrer por um aborto mal feito. Isso quase certamente não acontecerá com ela.

Com as mulheres pobres, sim. Para elas, abortar significa correr o risco de ser presa como criminosa e significa correr o risco de morrer. Como uma clínica segura, com boas condições sanitárias e profissionais preparados, custa entre 6 e 17 salários mínimos, ela só poderá se arriscar a esquemas muito inseguros. A cada ano, há mais de 200 mil atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS)por complicações pós-aborto, a maioria deles por procedimentos induzidos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são realizados mais de 1 milhão de abortos inseguros por ano no Brasil. O aborto é a quinta causa de mortalidade materna no país.

Os números de atendimentos no SUS por complicações pós-aborto provam que dezenas de milhares de mulheres pobres estavam tão desesperadas que se arriscaram a serem presas e também a morrer. E, mesmo assim, acreditaram que esse risco era menor do que o de levar a gestação até o fim. Aqui é preciso interromper o texto por um parágrafo para, juntos, tentarmos nos colocar na pele dessa mulher. E é preciso fazer isso para além do ódio contra as mulheres, arraigado na sociedade brasileira. É preciso pensar – e não odiar, que é muito mais fácil.

Quem se arrisca a ser presa e a morrer está se arriscando a muito. Está arriscando tudo. Assim, é possível concordarmos, ao menos, que os fatos demonstram que aborto não é um ato banal para essas mulheres, mas uma necessidade profunda, movida por condições objetivas e subjetivas que só elas conhecem intimamente. Então, cuidado antes de sair apontando um dedo acusatório: nenhuma delas aborta sem um motivo muito forte. E isso tem de ser escutado por qualquer sociedade que queira se nortear pela ética.

Escutar é justamente debater. Aqueles que não querem debater aborto no Brasil precisam assumir que não se importam com a prisão e a morte de mulheres jovens e pobres, a maioria delas negras, já que estes são os fatos. Precisam assumir também que não se importam que o acesso ao aborto reproduza a desigualdade racial e social do Brasil, ao tornar-se acessível e seguro para quem pode pagar e criminalizado e mortífero para quem não pode. Quem se importa, debate os fatos. E escuta a posição do outro, mesmo que seja muito diferente da sua. Viver é mover-se.

E aqui, vale sublinhar, estamos falando apenas do pior. Mesmo nos casos em que o aborto é consumado sem complicações, é possível pelo menos imaginar o nível de pavor que uma mulher enfrenta ao se arriscar a fazê-lo em condições tão terríveis e sem nenhum amparo. É um pesadelo, e é um pesadelo que agora mesmo, neste instante, está sendo vivido por uma mulher em situação de extrema fragilidade. Não me parece que seja possível viver ignorando as mulheres que sofrem. E é assim que a sociedade brasileira tem vivido.

O aborto costuma surgir no debate público como moeda eleitoral. Em busca do voto religioso, candidatos da direita a esquerda têm se omitido ou chantageado com a vida das mulheres. Esta é mais uma evidência da corrosão da política tradicional, que tem se mostrado capaz de leiloar qualquer princípio: primeiro em nome de vencer a eleição, depois em nome dessa indecência que tem sido chamada de “governabilidade”.

Quando o zika vírus provoca um debate sobre o aborto, é fundamental que todos nos esforcemos para qualificá-lo. Diante de um cenário dramático, o melhor caminho é fazer da crise uma oportunidade para tornar o país mais justo.

A deficiência

No debate da interrupção da gravidez de feto anencefálico, certo tipo de religioso sem escrúpulos de mentir usava o falso argumento de que a proposta era “abortar deficientes”. Era um golpe muito baixo – e muito desrespeitoso. Nunca houve comprovação de um anencéfalo vivendo neste mundo. Se vivia além de dias ou meses, e mesmo isso só ocorria em casos raríssimos, não era anencéfalo, mas uma pessoa com outra malformação, esta compatível com a vida. Mas anunciava-se na internet como um anencéfalo. Como se sabe, a mentira apresentada como verdade, mais ainda quando acompanhada de uma imagem, é um forte instrumento de manipulação das mentes que preferem aderir a pensar.

No caso da microcefalia, sim, são crianças com deficiências. A malformação cerebral pode causar diferentes níveis de problemas, dos menos aos mais graves. E, sim, essas pessoas têm vida. O fato de terem dificuldades de ordem física ou mental não torna essa vida mais ou menos significativa. É aí que a sociedade brasileira falha miseravelmente.

De todos os discriminados deste mundo tantas vezes sórdido que vivemos, as pessoas com deficiências estão entre as mais violadas. O que pode ser pior do que ser decodificado como “uma vida indesejada”? O que pode ser mais esmagador do que ser aquele que “deu errado” ou ser aquele que porta “uma falha”? O que pode ser mais opressor do que “alguém que não deveria existir”?

É muito brutal. E é também uma grande estupidez. Infelizmente, essa estupidez persiste em todas as esferas, inclusive no governo. Só a ignorância pode explicar um ministro da Saúde, como foi o caso de Marcelo Castro (PMDB), referir-se ao nascimento de pessoas com microcefalia como “uma geração de sequelados”. Quando difundida por quem decide sobre políticas públicas de saúde, a ignorância é criminosa.

Por que é uma estupidez? Porque o que cada um faz com a sua vida – e com as suas limitações – é totalmente singular. Ninguém pode dizer, com base nas deficiências físicas ou mentais de alguém, que essa pessoa não poderá ter uma vida plena, com sentidos que ela vai construir e reconstruir a partir das suas possibilidades. Quando pessoas com deficiências provocadas pelas mais variadas causas assumem um protagonismo no mundo, viram histórias exemplares de superação, transformam-se em livros e filmes, ganham prêmios e homenagens, tornam-se nomes de ruas e instituições. Qualquer um pode se lembrar rapidamente de vários exemplos em cinco minutos. Mas todas as outras pessoas com deficiências são massacradas como entraves, como indesejados. Ou “sequelados”, como disse o ministro.

Quem não tem limites nesse mundo? Só as pessoas das campanhas publicitárias de “uma vida sem limites”, um dos slogans mais cretinos que já inventaram. A questão é que pessoas com deficiências não têm apenas limites, mas barreiras físicas e sociais. Desde falta de acesso a prédios a cadeirantes, para ficar num exemplo bem óbvio, até o muro muito mais difícil de ser ultrapassado, que é o olhar do outro, ao vê-lo como uma “vida indesejada”, um sub-humano.

Vale a pena conferir o que diz a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interações com as diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. A vida de alguém, portanto, não é determinada pela deficiência. Mas sim pelo encontro desse corpo com a cultura. A única deformação instransponível é a de uma sociedade que, em vez de derrubar barreiras, as ergue.

Uma das barreiras mais abomináveis é justamente a da escola, aquela que deveria alargar os horizontes das crianças pelo processo emancipatório da educação. Agora mesmo tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação movida pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN) para sustar alguns dos efeitos da Lei Brasileira de Inclusão (LBI). As escolas particulares querem se livrar da obrigatoriedade de assegurar educação aos estudantes com deficiências.

Como escreveu Lucio Carvalho, ativista e um dos editores do site Inclusive, é um NÃO em caixa alta: “O que muitas pessoas sentem, percebem, interpretam ou identificam em uma ação assim, com objetivos tão claros e explícitos, é um rotundo NÃO social. Um enorme NÃO. Um NÃO sem metáforas. Um NÃO é aqui o seu lugar. Um NÃO pense que o seu filho ou filha está apto a pertencer a este mundo. Um NÃO sonoroso que pode ramificar-se em: NÃO temos vagas, NÃO temos preparo, NÃO temos recursos, NÃO temos acessibilidade, NÃO queremos saber disso aqui, NÃO temos o menor interesse em sair dessa posição, NÃO isso, NÃO aquilo. E mais uma série de NÃOS que repercutem na individualidade, ainda que de muitas formas”.

Carvalho acrescenta: “Além da escola, o preconceito contra a deficiência se expressa de muitas outras maneiras: no isolamento imposto pelo convívio social muitas vezes dificultado; na invisibilidade das pessoas que pouco se veem representadas e reconhecidas nos produtos culturais e nos meios de comunicação; no acesso ao trabalho, por exemplo, quando são comumente vistas como pessoas de menor capacidade e sua presença é tolerada muitas vezes apenas por obrigação legal e formal”.

A maioria das pessoas prefere jamais pensar no que é ter uma deficiência e não poder ter uma vida digna, uma vida com invenção e com sentidos, não por causa de uma “falha” no corpo, mas pela deformação dos “normais”. Não é que a sociedade não pressione pelo derrubada das barreiras físicas e sociais ou pela promoção de políticas públicas de inclusão, que garantam o acesso à cidadania das pessoas com deficiência. É muito pior do que isso. Como se vê na ação movida pela CONFENEN, a sociedade quer derrubar os poucos direitos que se conseguiu garantir até agora. Quando se pensa que são estabelecimentos de ensino que movem uma ação como essa, é ainda mais desesperador. Mas este é apenas um caso entre tantos. Há muros no olhar da maioria.

Às vezes, raramente, emerge delicadeza nessas horas brutas. Como a mãe de um aluno que foi à escola privada do filho agradecer por terem colocado na sala de aula um menino com deficiência. Ela disse: “Meu filho melhorou tanto ao conviver com esse garoto, que eu vim aqui para agradecer. Sou eu, como mãe, que tenho de agradecer à mãe desse menino, por tudo o que ela deu à nossa família ao matricular seu filho nessa escola. Meu filho ganhou muito mais do que o filho dela, tenho certeza”. É a inversão, a inversão que coloca as coisas no lugar. A inversão que mostra que invertido estava antes.

Conto ainda uma outra história real, só possível pelo direito de inclusão na escola. Dois garotos estudaram juntos por três anos. Um deles tinha diagnóstico de autismo. Quando a puberdade se aproximou, aos 11 anos, o menino perguntou à mãe porque o colega estava tão agitado. A mãe respondeu: “Imagina o que é você não ter condições de entender que essas mudanças que estão acontecendo no seu corpo fazem você ser a mesma pessoa. Cada dia você acorda e tem a angústia de não se saber o mesmo”. O menino então disse: “Entendi. É como se o corpo dele fosse um sabonete que a mão, molhada, que é a cabeça, não conseguisse segurar”. Isso é conviver e aprender com as diferenças. Isso é educação, aquela que ensina a fazer o movimento de alcançar uma experiência diversa de estar no mundo.

A pessoa que se arrisca à experiência não é aquela que “tolera” o outro, que tem uma deficiência, como se fosse magnânima porque tolera, como se fosse uma enorme concessão que se expressa pela condescendência. Como acontece com tantos ao considerar que já é uma grande coisa cumprimentar com um sorriso a pessoa com deficiência que trabalha na mesma sala por determinação legal. Ou quando reclamam que o “deficiente” não é simpático, já que deveria estar eternamente agradecido e subserviente porque lhe concederam um lugar, ainda que num canto. Quem faz o mundo dar um passo à frente são aqueles que percebem que a experiência de viver se amplia ao conviver com as diferenças. Que veem diversidade e riqueza onde outros veem inferioridade e fracasso.

Assim, as crianças que nascerem com microcefalia por conta do zika, uma ligação que ainda não está totalmente esclarecida, não estão condenadas a uma vida sem vida. Mas podem estar condenadas a uma vida muito menos autônoma, muito menos cidadã, muito mais restritiva por conta das barreiras sociais que já deveriam ter sido derrubadas e não foram. São vítimas, neste caso, de duas falências: a das políticas sanitárias, que permitiram a proliferação do mosquito, e a das políticas de inclusão.

Neste caso, assim como acontece com o aborto, também são os mais pobres os que mais sofrem as consequências da precariedade das políticas públicas, assim como os efeitos da discriminação que permite a desigualdade de direitos. E os mais pobres no Brasil, como se sabe, são em sua maioria negros. A maior parte dos casos de microcefalia estão entre mulheres pobres do Nordeste, e são elas as que mais sofrerão com a epopeia que será incluir uma criança com deficiências num sistema de saúde pública precário e numa sociedade que discriminará seus filhos em todos os espaços e oportunidades.

Quando o zika vírus provoca um debate sobre a deficiência, é fundamental que todos nos esforcemos para qualificá-lo. Diante de um cenário dramático, o melhor caminho é fazer da crise uma oportunidade para tornar o país mais justo.

É possível juntar aborto e deficiência?

Está em curso uma ação junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) que pretende pleitear, entre várias medidas, a permissão do aborto devido à microcefalia e, ao mesmo tempo, a dignidade das crianças com deficiências que nascerem destas gestações. A ideia é garantir direitos: tanto os direitos das mulheres que querem interromper a gestação de um feto com malformação, num caso em que a doença foi causada por falhas das políticas públicas do Estado, como o direito das mulheres que querem levar essa gestação até o fim, com a garantia de que seus filhos terão acesso a tratamento e políticas de inclusão asseguradas. Trata-se, portanto, de ampliação de direitos, e não de encurtamento. E também de respeito a escolhas diferentes.

A articulação é idealizada por parte do grupo que, em 2004, levou a ação de interrupção da gravidez de feto anencefálico ao STF, no qual se destaca a organização não governamental ANIS – Instituto de Bioética. A Organização Mundial da Saúde já se manifestou em defesa da descriminalização do aborto em casos de microcefalia.

Em reportagem publicada na Folha de S. Paulo, a repórter Cláudia Collucci mostrou que, diante da possibilidade de ter um filho com microcefalia, mulheres já começaram a fazer abortos, mesmo em gestações planejadas. Como a microcefalia só é diagnosticada por volta do terceiro trimestre de gestação, a interrupção tem sido feita como “prevenção”, já que não há certeza de que a malformação ocorrerá. Também já têm sido relatados casos de homens que abandonam suas companheiras depois de nascerem bebês com microcefalia.

A questão da desigualdade de novo é determinante: na prática, quem não tem direito de interromper a gestação nestes casos são justamente as mais pobres, que não podem pagar por um aborto em clínicas seguras. São também elas que encontram as maiores barreiras para criar um filho com deficiências, num Estado que falha na garantia de acesso a tratamento de saúde e acesso pleno à cidadania. É imperativo discutir o aborto com a seriedade que merece um tema de saúde pública.

Como acontece sempre que surge a palavra “aborto”, porém, tão logo a ação foi anunciada em artigos na imprensa ergueram-se os punhos e terçaram-se as armas. Me interesso por gritos que expressam dores, mas não por aqueles programados para calar a voz do outro. Não acho que este seja um debate com respostas fáceis. É preciso enfrentar a complexidade. E só consigo enfrentá-la com dúvidas.

Meu incômodo com a proposta de permitir que mulheres com gestações de fetos com microcefalia façam aborto é a relação estabelecida com a deficiência. Penso que mulheres grávidas de fetos com microcefalia devem poder abortar, se assim o quiserem, porque têm o direito de decidir sobre o seu corpo – e não porque o direito ao aborto é justificado pelo nascimento de uma criança com deficiências, ainda que essa situação tenha sido causada por negligência do Estado. Ter ou não um filho é uma decisão individual, íntima, de cada mulher. Ao Estado cabe garantir que sua escolha seja protegida, em qualquer um dos casos.

A questão complicadora do debate em curso, porém, é que o tema do aborto ainda é um tabu na sociedade brasileira. Assim, o movimento estratégico possível seria lutar para garantir pelo menos que essas mulheres pobres, que desejam interromper uma gestação de feto com microcefalia, possam fazê-lo em segurança, contando com os serviços públicos de saúde. Sem correr o risco, portanto, de serem presas ou mesmo de perderem a vida. Essa ideia ganha legitimidade pela necessidade de lidar com o mundo real. Se não é possível garantir ainda o amplo direito das mulheres sobre seus corpos, como é assegurado em vários países, em geral os mais desenvolvidos, pelo menos se conseguiria reduzir a desigualdade e a injustiça, ao proteger as mais frágeis neste caso específico. Lutar pontualmente pelo possível, já que o justo está distante.

Faz muito sentido. Mas, ainda assim, tenho dúvidas. Temo que a ideia de que o aborto deve ser autorizado porque o feto apresenta microcefalia possa ter consequências perigosas. Porque, ainda que seja em nome de uma causa justa, proteger a escolha das mulheres mais pobres, inevitavelmente reforça a crença de que uma vida com deficiências é uma vida indesejada – ou condenada ao fracasso. E qualquer possibilidade de reforçar esse preconceito tão arraigado, com consequências tão terríveis na vida de milhões de pessoas, é um risco grande demais. E um risco com repercussões cujas dimensões não podemos prever. Há um efeito desse discurso sobre quem nasceu com deficiências e vive neste mundo.

Neste sentido, é ilustrativa uma discussão ocorrida em São Paulo, durante um encontro informal entre ativistas de direitos humanos, no qual a ação foi tema de debate inflamado. Um dos ativistas defendia que, num assunto tabu como o aborto, era preciso ir avançando pelas bordas, até que as mulheres finalmente tivessem seus direitos reprodutivos respeitados e autonomia sobre os seus corpos. Por isso, defendia a ação. Afinal, o aborto é responsável pela morte de mulheres jovens, a maioria pobres. Outra ativista retrucou: “Mas este é o mesmo princípio da governabilidade, em nome do qual tanto absurdo foi cometido. É justificar concessões inaceitáveis em nome de um bem supostamente maior. Mas não avançamos e não garantimos direitos quando a discussão do aborto se dá em torno da deficiência. O aborto é um direito da mulher, que não pode estar ligado ao julgamento público sobre qual vida vale a pena existir e qual não vale”.

Não há mesmo respostas fáceis numa situação de tanta dor. Mas, também por isso, é preciso se arriscar ao debate, para que ele possa nos levar mais longe, num momento tão crucial.

Me lanço nele com um pensamento bem custoso. Defendo ativamente a autonomia das mulheres sobre os seus úteros. Defendo, portanto, o direito amplo ao aborto. Os motivos de cada uma para fazê-lo a cada uma pertencem. Não acho que o Estado ou a sociedade possam interrogá-las sobre razões íntimas, apenas garantir que sua opção seja assegurada na esfera pública. Ponto. Mas o argumento público do direito ao aborto porque dessa gestação resultará uma criança com deficiências para mim é um limite. Um limite que escolho não ultrapassar.

(Publicado no El País em 15 de fevereiro de 2016)

Quem precisa da Barbie, tenha o corpo que tiver?

O anúncio de que a Mattel rompeu com o padrão de sua boneca icônica foi celebrado como um triunfo da diversidade e do consumo consciente, mas vale a pena interrogar-se sobre essa “evolução”

Divulgação

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Demorou só 57 anos para a Mattel “descobrir” que as mulheres reais do planeta têm cores e formas variadas. A notícia de que a Barbie ganharia mais três tipos de corpos foi comemorada como uma vitória da diversidade. Por décadas movimentos denunciaram a imposição de um único padrão de beleza. Mas só nos últimos anos, quando as vendas começaram a cair, a Mattel “sensibilizou-se” e reconheceu a multiplicidade das mulheres do mundo. Em 2015, a empresa já tinha iniciado a conversão da Barbie, lançando sua criação com novas tonalidades de pele, penteados e estruturas faciais, sem deixar de manter a “clássica”. Com a inclusão de novas formas, a boneca é lançada agora com sete tons de pele, quatro tipos de corpos, 22 cores de olhos e 24 estilos de cabelos diferentes, na linha que chama de “Fashionistas”. Quando a mudança é anunciada, a Mattel já povoou a Terra com uma superpopulação de suas criaturas loiras, altas e magras. E a cabeça das crianças com um modelo que vai muito além de um padrão de beleza. Barbie é aquela que ensina as meninas que se nasce para consumir. Já foram produzidas mais de 1 bilhão dessas replicantes, há mais Barbies no mundo do que europeus na Europa. Nenhuma delas é “apenas” uma boneca.

Se a pressão dos protestos contra a Barbie e o crescente protagonismo das minorias na afirmação da diversidade conseguiram fazer as vendas do produto caírem a ponto de obrigar uma das maiores fabricantes de brinquedos a se mover, não é pequena essa conquista. Mas é também assustadoramente fascinante observar o capitalismo em ação.

Neste início de 2016, a Mattel conseguiu a façanha de estampar seus novos modelos na imprensa, além das redes sociais, sem pagar um centavo por isso. E com uma imagem positiva. Começou por uma capa da revista Time, com a foto da Barbie e o seguinte título: “Agora nós podemos parar de falar sobre o meu corpo?”. E seguiu em milhares de publicações mundo afora. É com assombrosa candidez que Evelyn Mazzocco, a vice-presidente sênior da Mattel, afirma sem ruborizar: “Acreditamos que temos uma responsabilidade para com as meninas e seus pais de refletir uma visão mais ampla da beleza”. Um detalhe que a descoberta da “responsabilidade” tenha ocorrido só depois de constatar que as vendas da boneca caíram 20%, entre 2012 e 2014, e seguiram caindo no ano passado. A estratégia da Mattel, que parece estar obtendo considerável sucesso, é fazer a liberação dos corpos barbísticos vendendo a imagem de uma empresa afinada com o seu tempo, defensora das “diferenças” e até mesmo inovadora. Se conseguir, se transformará num case obrigatório em livros de marketing, em mais uma prova de que o capitalismo sempre pode contar com a adesão pela fé quando as pessoas são reduzidas a consumidores.

A campanha que inclui vários vídeos mostrando a gênese da “nova” Barbie apresenta a Mattel como a intérprete do “mundo que vemos hoje”. A empresa que durante mais de meio século incutiu um modelo único – e nada inocente – na cabeça das crianças é convertida naquela que celebra as diferenças e ajuda as meninas a se identificar e a conviver num planeta multicultural. “O mundo da Barbie está evoluindo” – é o mote publicitário. Evoluindo para que o essencial possa continuar o mesmo: a lógica do mercado e o retorno das vendas ao mesmo patamar ou mais. Mas isso, obviamente, não é dito.

As cenas são interpretadas por crianças étnica e racialmente variadas – como as novas Barbies, nascidas paras as prateleiras de 150 países do mundo. “É importante que as Barbies sejam diferentes como as pessoas no mundo real”, diz uma das meninas. Executivos da empresa falam da importância da mudança “porque não há um só padrão de como é um corpo bonito”. Ou: “Temos que mostrar às meninas que, independentemente de sua aparência, tudo é possível”. O lema da Barbie, afinal, é #VocêPodeSerTudoQueQuiser. Talvez não exista nada pior para uma criança do que a mentira de que é possível alcançar a completude – ou de que é possível viver sem perdas. Ou ainda de que não haverá limites. Chega a ser criminoso, mas a publicidade varia esse mote em diferentes produtos – e as crianças mal acabaram de nascer e já tem a Barbie lhes sussurrando essa promessa nos ouvidos enquanto sacode os cabelos.

Ao final de um desses vídeos promocionais, uma menina diz: “Essas bonecas se parecem com as pessoas do meu mundo mágico”. É mesmo “mágico” o mundo em que o deus criador da Barbie se torna um avalizador da diversidade, quando não seu próprio inventor. De um certo ângulo, são sinistros os vídeos fofinhos e politicamente corretos do mundo das “Barbies da diversidade”, como já estão sendo chamadas. E um tanto perturbador o cinismo dos executivos da Mattel ao discorrer sobre a importância de respeitar as diferenças com a certeza de que o passado será de imediato esquecido, no átimo de tempo em que um coelho é sacado da cartola ou que um lenço vira pombas. Também na aparição do staff da Mattel há o cuidado com a variedade dos estilos, das cores e das formas, reforçando a mensagem e sendo legitimada por ela. Mas a sensação pode ficar mais esquisita quando se lê no Facebook as mensagens de mulheres e também homens, agradecendo à Mattel por tornar o mundo melhor, mais diverso, plural e tolerante. A maioria “muito feliz” e dizendo “dez vezes obrigada” pela “evolução” da Barbie.

Que modelo de mulher é a Barbie, que reinou por mais de meio século como um ideal feminino a ser atingido? Um que não existe. E não é que Barbie não exista por ser linda demais, inatingível para pobres mortais com seus genes imperfeitos, mas sim por ser bizarra demais, uma arquitetura que literalmente não para em pé. Segundo infográfico do Rehabs.com, graças a sua cinturinha, Barbie só teria espaço para acomodar metade de um rim e alguns centímetros de intestino. Como o pescoço é duas vezes maior do que o de uma mulher e 15 centímetros mais fino, ela não teria como manter a cabeça erguida. Andar, só de quatro. Se fosse uma mulher de carne e osso, Barbie seria uma anoréxica.

É apenas uma boneca, poderiam dizer alguns. Ou até muitos. Mas essa boneca não foi criada para ser “apenas” uma boneca. Barbie é vendida como uma amiga, uma mentora e um modelo a ser seguido, com influência sobre pelo menos duas gerações de mulheres. O que Barbie vende é um modo de vida e de se relacionar com os outros e com o mundo. Seu primeiro processo de “purificação” foi eliminar as origens de seu nascimento, já que ela foi inspirada na boneca alemã Lilli, personagem de quadrinhos eróticos e presente para homens vendido em tabacarias. Lilli seduzia homens ricos na Alemanha do pós-guerra para ter de volta a prosperidade perdida. Quando Barbie foi lançada em 1959 para ser a companheira de crianças, os traços de sua “mãe” devassa tinham sido suavizados, mas ainda assim a “boneca com seios” foi recebida com desconfiança pelas famílias americanas. Pouco a pouco, porém, Barbie foi “evoluindo” para se tornar uma educadora e um “bom exemplo”, uma mentora capaz de ensinar às meninas a serem as mais bem adaptadas e populares, segundo os valores da sociedade americana. Hoje, mais de 90% das garotas entre 3 e 12 anos, nos Estados Unidos, têm uma Barbie, essa boneca que não é uma criança.

A partir do seu corpo impossível é vendida uma série de roupas, sapatos e acessórios, assim como casas, móveis, salões de beleza, lojas, outros bonecos, um mundo inteiro. Mas não qualquer mundo, mas um mundo em que todos os valores são mediados pelo consumo, como se observa nos jogos, filmes e outros produtos do planeta-mercadoria da Barbie. Ser mulher, ensina ela, é ser uma consumidora. No lema #VocêPodeSerTudoQueQuiser, o “Ser” é habilmente usado para encobrir o “Ter”. Ser e Ter com o mesmo significado – ou Ser é Ter. Nisso está implicado que a medida do sucesso de alguém é eliminar qualquer interdição entre o consumidor e o produto. A única forma de “ser” tudo o que quiser é consumir e, assim que a sensação de completude desaparece, o que acontece muito rapidamente, consumir de novo. E de novo. É assim que o planeta que a Barbie difunde de forma tão competente gira.

Desde que a boneca surgiu, Barbie é alvo de protestos. Em 1970, adolescentes já levantavam cartazes em manifestações pela igualdade entre os gêneros: “Eu não sou uma Barbie”. Mas talvez a intervenção mais criativa tenha ocorrido nos anos 90, pela autoproclamada “Organização para a Libertação da Barbie”. O grupo reagia a uma série de falas da boneca e, em especial, a uma em que ela dizia: “Matemática é difícil”. A frase sofreu fortes críticas, por reforçar o estereótipo da mulher bonitinha e burra. Os ativistas trocaram então a voz da Barbie pela voz de outro boneco, este um estereótipo masculino, chamado GI Joe. Quando meninas abriram seus presentes de Natal, sua Barbie loirinha dizia: “Homem morto não conta mentira”.

Existe uma bibliografia em língua inglesa dissecando o corpinho da Barbie. No Brasil, pode ser lido Barbie na educação de meninas: do rosa ao choque (Annablume, 2012). Nele, Fernanda Roveri partiu de sua dissertação de mestrado na Faculdade de Educação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), na qual brinca nos capítulos com os tipos de Barbie: “Barbie Farsa”, “Barbie Lânguida”, “Barbie Tóxica” e “Barbie Tribunal”, para refletir sobre a criatura da Mattel.

Há muitas histórias emblemáticas sobre como são tomadas as decisões que vão interferir no imaginário das crianças. Mas a mais incrível delas talvez seja sobre Ken, o namorado da Barbie. De fato, sobre o pênis de Ken. Houve um dilema na Mattel sobre como contornar essa questão. Conta a autora do livro que acabou se optando por uma alternativa intermediária: Ken usaria uma roupa de banho permanente com “um pequeno volume”. O problema é que, quando a determinação chegou à fábrica no Japão, o engenheiro supervisor decidiu suspender a pintura do short, para facilitar o processo, e calculou que a eliminação da lombada genital reduziria o custo de produção do boneco em um centavo e meio de dólar. Foi para lucrar mais que Ken nasceu eunuco. Fernanda Roveri aponta para a questão de que os fabricantes jamais pensaram que as crianças poderiam ficar traumatizadas com uma Barbie sem vagina, como suspeitaram que poderia ocorrer com um Ken sem pênis. O fato é que os dois bonecos “realistas” com que brincam meninas do mundo inteiro são igualmente castrados.

Mas é nos dois últimos capítulos, “Barbie Tóxica” e “Barbie Tribunal”, que o truque oculto da mágica capitalista do fenômeno Barbie, ao longo das décadas, é revelado. Quem produz a criatura, em que condições de trabalho, de que material, com que efeitos. “Mulheres japonesas, donas de casa, chamadas de ‘pessoas da tarefa doméstica’, costuravam exaustivamente os primeiros trajes da boneca em suas residências. Essas mulheres ficavam cegas para que Barbie pudesse usar tafetá, espetavam seus dedos para que ela pudesse passar o feriado esquiando, curvavam-se e estragavam suas costas para que Barbie não dormisse nua”, escreve a autora, citando relatórios, documentos e livros. “Na Tailândia, centenas de mulheres e crianças enchiam, cortavam, vestiam e montavam a boneca Barbie, ganhando de quatro a sete dólares por um dia de 12 horas trabalhadas. Além do baixo salário, muitas dessas trabalhadoras ficavam com problemas respiratórios, perda de memória e de audição, dores musculares, vômitos, transtornos no sono, menstruações irregulares em razão da contaminação por chumbo, fumaça e outros produtos químicos”. Em 2013, a organização China Labor Watch denunciou as péssimas condições de trabalho e as jornadas exaustivas constatadas em fábricas chinesas ligadas à produção da boneca.

Qual é a linha de montagem planetária da Barbie e os reais bastidores que não viram vídeos publicitários? Esse é um caminho de investigação para quem pretende ser mais do que um mero consumidor abobalhado. O truque do “mágico” no mundo real, afinal, precisa de fartas doses de sangue humano e de destruição ambiental para produzir números superlativos: as vendas da Barbie são estimadas em mais de 1 bilhão de dólares por ano.

Agora, com quatro corpinhos, a roupa de uma Barbie não servirá na outra Barbie. E há também pelo menos dois tipos de pezinhos que pedirão sapatinhos de números diferentes. É um ganho da diversidade, para quem pensa que o mundo não pode prescindir de Barbies? É. Mas também é mais de tudo. Vale a pena ainda observar quais foram os corpos e alturas aceitos pelo mundo Barbie em nome da diversidade. A mais “curvy” está muito longe de ser gorda ou mesmo gordinha. “Espero que vocês não confundam curvilínea com Gorda, cada coisa é uma coisa, mas já é uma diferença enorme do padrão da boneca, e quem sabe um dia teremos uma Barbie GORDA”, postou o Coletivo Gordas Livres, comentando a mudança.

Se existia uma Barbie negra desde o final dos anos 60, período das lutas pelos direitos civis dos negros americanos, a “negritude” se limitava a trocar a cor do plástico da boneca. Agora há muitos mais tons de pele, tipos de cabelo e estruturas faciais, o que também tem sido interpretado como uma conquista. No Brasil não se via Barbies negras nas prateleiras e até hoje quem quer presentear uma criança com uma boneca negra precisa contar com espaços alternativos. Um dos mais conhecidos é a “Preta Pretinha”, uma loja na Vila Madalena, em São Paulo, que há 16 anos faz bonecos artesanais que não se vê no mercado porque fora do padrão estabelecido, por diferentes razões e circunstâncias. Há negros e indígenas. Há orientais. Há cadeirantes, cegos, crianças com membros amputados. Há também bebês carecas, com câncer, procurados por pais de crianças com leucemia. Na medida em que meninos e meninas vão recuperando os cabelos após o tratamento do câncer, podem também ir povoando a cabeça dos seus bonecos com fios. A loja, criada por três irmãs, está ligada a um instituto com o mesmo nome, que trabalha os temas do racismo, discriminação e inclusão. Inspiraram-se na avó, que ao não encontrar bonecas negras para presentear as netas, começou a costurá-las em casa. Como não há uma linha de montagem industrial e planetária, esse tipo de espaço alternativo tem preços mais elevados e jamais poderá competir em custo e escala com empresas do porte da Mattel.

Em janeiro, a foto de Matias, um menino de 4 anos, segurando o boneco do personagem Finn, do filme Star Wars – O Despertar da Força, viralizou na internet. Na legenda da foto, sua mãe escreveu: “Ele nem sabe o que é Star Wars, sabe que o boneco é igual a ele”. Entrevistado, Matias afirmou: “Ele é pretinho igual a mim”. Logo depois, uma fabricante de produtos infantis fez uma fantasia do mesmo boneco negro e colocou a foto de um garoto branco na embalagem. Fortaleceu-se então a campanha “Não me vejo, Não compro!”, exigindo representatividade nas prateleiras. Em 27 de janeiro, no Facebook, a empresa anunciou que convidou Matias para ser o novo modelo da embalagem do produto, “atenta ao movimento global e ouvindo as críticas sobre a falta de diversidade étnica nas peças publicitárias veiculadas no Brasil”.

“Não me vejo, Não compro!” é uma linguagem que os fabricantes de brinquedos entendem muito bem – e escutam. É o que aconteceu com a Mattel, diante da perda de popularidade da Barbie, traduzida em cifrões. E há mesmo o que se comemorar nisso. Afinal, não se reconhecer nos brinquedos oferecidos pelo mercado pode ter efeitos devastadores na vida de uma criança.

O que pode ser perturbador, porém, é a aceitação tácita de que precisamos de Barbies e outros produtos do gênero. De que não há brinquedos ou imaginação fora da indústria. De que é preciso consumir mercadorias do tipo – e de que a autonomia possível é influenciar aquilo que as corporações vendem, reduzindo toda intervenção ao papel de “consumidores conscientes”. Pode ser perturbador constatar que a insubordinação máxima seja não comprar porque não se reconhece. Mas, caso se reconheça no produto que chega às prateleiras, toda a cadeia simbólica e concreta implicada nesse ato está justificada? Será que se reconhecer num brinquedo é o suficiente para se sentir representado? É a naturalização que pode soar preocupante quando se testemunha ativistas comemorarem a “evolução” da Barbie, aceitando sua existência no quarto das meninas como fato consumado, presença imprescindível, já dada, sem questionar as engrenagens mais ocultas que levam a boneca até a vida das crianças.

Quem precisa da Barbie, afinal, tenha ela a forma, a cor e o cabelo que tiver? A pergunta parece ter silenciado.

Quanto mais realista a boneca, menos imaginação precisa a criança. Sem esquecer que “realista” dá conta de uma realidade determinada, planejada e autorizada por uma equipe de profissionais do marketing. E não da realidade como experiência e conflito. Uma boneca serve justamente para se pensar a vida enquanto se brinca. E brincar não é imitar. Para que, então, serve uma Barbie e o seu “mundo mágico” onde #VocêPodeSerTudoQueQuiser? Para que serve uma Barbie, mesmo que seja a “Barbie da diversidade”

Barbie não é mesmo qualquer boneca. Será interessante observar como seu novo esforço de purificação dos pecados, agora em nome do respeito às diferenças, vai “evoluir” nos próximos anos. Talvez seja importante pensar, para além do primeiro entusiasmo, os significados mais profundos de um produto com a carga simbólica de Barbie converter direitos em publicidade.

Barbie, vale a pena lembrar, ganhou uma réplica no museu de cera de Grévin, em Paris. Esta é uma cena perturbadora, porque as outras representações que lá estão são de pessoas que viveram, que tiveram ossos, carne, sangue e história. E lá se imortalizaram em cera. Quando a boneca vira boneca, completa-se a transmutação: Barbie vira gente. Torna-se viva.

Evolução, a palavra escolhida pela Mattel para nomear a mudança de sua criatura, é mais do que reveladora. Como provou Darwin, as espécies vivas, como os humanos, evoluem. Por milhões de anos, na seleção natural. Barbie, mais uma vez, invoca sua “naturalidade”, ainda que “no mundo mágico”. Barbie, a boneca, seja com um ou quatro corpos, segue inventando a vida de meninas de carne e osso.

 

(Publicado no El País em 1º de fevereiro de 2016)

Quem precisa da Barbie, tenha o corpo que tiver?

O anúncio de que a Mattel rompeu com o padrão de sua boneca icônica foi celebrado como um triunfo da diversidade e do consumo consciente, mas vale a pena interrogar-se sobre essa “evolução”

Demorou só 57 anos para a Mattel “descobrir” que as mulheres reais do planeta têm cores e formas variadas. A notícia de que a Barbie ganharia mais três tipos de corpos foi comemorada como uma vitória da diversidade. Por décadas movimentos denunciaram a imposição de um único padrão de beleza. Mas só nos últimos anos, quando as vendas começaram a cair, a Mattel “sensibilizou-se” e reconheceu a multiplicidade das mulheres do mundo. Em 2015, a empresa já tinha iniciado a conversão da Barbie, lançando sua criação com novas tonalidades de pele, penteados e estruturas faciais, sem deixar de manter a “clássica”. Com a inclusão de novas formas, a boneca é lançada agora com sete tons de pele, quatro tipos de corpos, 22 cores de olhos e 24 estilos de cabelos diferentes, na linha que chama de “Fashionistas”. Quando a mudança é anunciada, a Mattel já povoou a Terra com uma superpopulação de suas criaturas loiras, altas e magras. E a cabeça das crianças com um modelo que vai muito além de um padrão de beleza. Barbie é aquela que ensina as meninas que se nasce para consumir. Já foram produzidas mais de 1 bilhão dessas replicantes, há mais Barbies no mundo do que europeus na Europa. Nenhuma delas é “apenas” uma boneca.

Se a pressão dos protestos contra a Barbie e o crescente protagonismo das minorias na afirmação da diversidade conseguiram fazer as vendas do produto caírem a ponto de obrigar uma das maiores fabricantes de brinquedos a se mover, não é pequena essa conquista. Mas é também assustadoramente fascinante observar o capitalismo em ação.

Neste início de 2016, a Mattel conseguiu a façanha de estampar seus novos modelos na imprensa, além das redes sociais, sem pagar um centavo por isso. E com uma imagem positiva. Começou por uma capa da revista Time, com a foto da Barbie e o seguinte título: “Agora nós podemos parar de falar sobre o meu corpo?”. E seguiu em milhares de publicações mundo afora. É com assombrosa candidez que Evelyn Mazzocco, a vice-presidente sênior da Mattel, afirma sem ruborizar: “Acreditamos que temos uma responsabilidade para com as meninas e seus pais de refletir uma visão mais ampla da beleza”. Um detalhe que a descoberta da “responsabilidade” tenha ocorrido só depois de constatar que as vendas da boneca caíram 20%, entre 2012 e 2014, e seguiram caindo no ano passado. A estratégia da Mattel, que parece estar obtendo considerável sucesso, é fazer a liberação dos corpos barbísticos vendendo a imagem de uma empresa afinada com o seu tempo, defensora das “diferenças” e até mesmo inovadora. Se conseguir, se transformará num case obrigatório em livros de marketing, em mais uma prova de que o capitalismo sempre pode contar com a adesão pela fé quando as pessoas são reduzidas a consumidores.

Leia o texto completo na minha coluna no El País

Tarifa não é dinheiro, é tempo

policia

Fotos: Rovena Rosa/Agência Brasil

É por recusar a brutalização da vida que manifestantes se tornam uma ameaça perigosa e são violentamente reprimidos

Tempo não é dinheiro. E tarifa é tempo, não dinheiro. São sobre tempo, portanto, e não sobre dinheiro, os protestos contra o aumento das passagens do transporte público em 2016, como foram os de 2013. Se não for resgatada a potência do que está em jogo nas ruas de São Paulo e de outras cidades do Brasil, tudo se repetirá como farsa. E a Polícia Militar brutalizará os corpos já brutalizados pela tarifa e, principalmente, pela vida monetarizada. A vida reduzida à lógica do capital.

(…)

Vale lembrar da frase de lembrança sempre urgente do professor Antonio Candido, um dos intelectuais brasileiros mais importantes do século 20: “O capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro. Dizer que tempo é dinheiro é uma brutalidade. Tempo é o tecido de nossas vidas”. Quando se vai às ruas protestar contra 20 centavos, como em 2013, ou contra 30 centavos, como agora, em 2016, não é “só” sobre 20 ou 30 centavos. Ainda que seja também, o protesto é principalmente sobre algo que, ainda que o capitalismo bote preço, escapa do capitalismo. Não existe uma “natureza” inerente ao tempo que diga que ele tem preço. Existe política e cultura, existe criação humana.

(…)

 

Quando os manifestantes vão às ruas levantando a bandeira da tarifa zero estão em conflito com a visão de setores dos governos e da sociedade que defendem ideias opostas. Tentar apagar os conflitos, sem enfrentá-los com debate e com escuta, como historicamente o Brasil fez em temas como o racismo, leva a uma “pacificação” que todos sabemos falsa. É o “confronto” – e não o conflito – que pressupõe inimigos a serem esmagados, espancados com golpes de cassetete e intoxicados com gás.

(…)

Vandalizar pessoas em nome da defesa do patrimônio é a ordem para manter a ordem de que gente vale pouco. A tarifa é cara justamente porque a carne humana é barata.

A insubordinação dos que andam, a que a PM é instada a reprimir, é a de dizer que seu tempo tem valor – e este valor não é meramente monetário. É essa a rebelião que precisa ser esmagada antes que avance pelas ruas. O movimento a ser interrompido pela força, antes que interrompa o trânsito dos privilégios, é aquele que lembra que tempo não é dinheiro, mas o tecido da vida. É aquele que reivindica o tempo “para os afetos, para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela, para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis”.

Leia o texto completo na minha coluna no El País

Fotos: Rovena Rosa/Agência Brasil

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