Massacre anunciado na Anapu de Dorothy Stang

“Já conferi na lista, mãe. Meu nome não está lá”, garantiu Leoci Resplandes de Sousa, poucos dias antes de ter o corpo transformado numa peneira. Na maioria das cidades, poderiam ser muitas as listas. Aprovação no vestibular, contratados por alguma empresa, selecionados para algum concurso público. Mas não em Anapu, cidade do estado do Pará que entrou no mapa mental do Brasil e do mundo em 2005, quando a freira Dorothy Stang foi executada com seis tiros por defender os direitos dos mais pobres à terra e, com isso, confrontar os interesses dos grileiros (ladrões de terras públicas). Em Anapu, no Pará, 13 anos pós o assassinato da missionária, a lista ainda é a de camponeses marcados para morrer.

O pai do menino de 11 anos foi a vítima mais recente dos conflitos de terra em Anapu, no Pará, mas certamente não será o último a tombar no Brasil sem justiça LILO CLARETO (Reprodução do El País)

O pai do menino de 11 anos foi a vítima mais recente dos conflitos de terra em Anapu, no Pará, mas certamente não será o último a tombar no Brasil sem justiça LILO CLARETO (Reprodução do El País)

A tensão no Pará, lugar mais letal do mundo para defensores da terra ou do meio ambiente, tornou-se ainda mais explosiva do que na época em que a missionária foi assassinada

Leia na minha coluna no El País 

Entrevista: Brasil, o “eterno país do futuro” que se viu “atolado no passado”

No Público, jornal de Portugal, respondo a duas perguntas sobre o Brasil feitas pela ótima Mariana Correia Pinto. Está dentro de uma reportagem maior, que ela fez sobre os brasileiros chegando em Portugal para viver.

 

Fotos: Lilo Clareto

Fotos: Lilo Clareto

ENTREVISTA

Brasil: o “eterno país do futuro” que se viu “atolado no passado”

Há um país em “profundo desencanto” e em crise. Mas há também resistência e reinvenção. Os “Brasis” possíveis pelos olhos da jornalista, documentarista e escritora Eliane Brum.

MARIANA CORREIA PINTO
20 de Julho de 2018, 8:38
Leia o original em Público

Se perante um acontecimento o mundo estiver a olhar para um lado, é provável que Eliane Brum esteja a fitar o sentido contrário. Repórter, documentarista e escritora, nascida em 1966 em Ijuí, no Brasil, Eliane define-se como “uma escutadeira que escreve” — porque acredita que é nesse dom de saber ouvir que está boa parte do segredo de um bom jornalista. E ela escuta, muitas vezes “a vida que ninguém vê” (como diz o título de um dos seus livros), as que raramente são notícia, encontrando nelas o princípio de tudo. Na Amazónia, onde faz reportagem há 20 anos e para onde se mudou em Agosto passado, tem conhecido esse Brasil que não faz manchetes de jornal. Nesse país que jamais se conjuga no singular pode estar a resposta de futuro, disse ao P3 numa mini-entrevista feita por email. As lições dos invisíveis, as crises do Brasil, erros e virtudes e as novas gerações num breve olhar da jornalista mais premiada do Brasil, autora de vários livros e colaboradora do El País e do The Guardian.

Para uma “escutadeira” de histórias, como você mesma se define, alguém que está habituada a ver as vidas que ninguém vê, que narrativas tem ouvido nesse Brasil de hoje que ainda a surpreendem?

Acho que não se pode falar no Brasil no singular. São Brasis, muito diferentes entre si. Embora esse seja um momento extremamente duro para o país — e para boa parte do mundo —, há Brasis invisíveis com uma imensa força criadora. Faço reportagens na Amazónia há duas décadas, mas desde Agosto do ano passado moro em Altamira (Pará), no rio Xingu, e acompanho muito de perto os movimentos dos povos da floresta. Nessa época em que a mudança climática provocada pela nossa espécie se tornou o grande desafio, esses povos nos apontam uma outra forma de ser e de estar no mundo. Temos muito a aprender com eles se quisermos ter uma vida possível neste planeta. Eles nos trazem uma outra relação com o tempo e com os recursos naturais. Essa relação questiona profundamente as escolhas que nos trouxeram até esse momento tão grave. Acho fascinante escutar pessoas que vivem a partir de lógicas tão diferentes, que questionam com sua própria existência aquilo que naturalizamos como o único jeito de viver. Pergunto a eles o que é pobreza, eles me dizem que “ser pobre é não ter escolha”. Pergunto o que é riqueza, eles me dizem que “ser rico é não precisar de dinheiro para viver bem”. O orgulho da maioria dos ribeirinhos da Amazónia, por exemplo, é nunca ter tido um emprego ou um patrão, é ter vivido uma vida sem ninguém mandando neles. Vivem da floresta, mas sem uma lógica de posse da floresta. É importante perceber que, hoje, talvez a única relevância do Brasil no cenário internacional é ter no seu território a maior porção da maior floresta tropical do mundo. Mas, se existe floresta em pé, é por conta dos povos da floresta. Onde eles já foram expulsos ou exterminados, a devastação é enorme. O conhecimento dos povos da floresta, que são os que eu escuto como repórter actualmente, é fundamental para que o Brasil possa criar uma experiência diferente de todas as outras em vez de copiar, e copiar mal, experiências de outros países que já se mostraram perversas e excludentes. Infelizmente, o Brasil que detém o poder económico e político ignora os Brasis mais originais e, aceleradamente, os destrói.

O meu trabalho centra-se nessa vaga migratória de brasileiros que está a ver em Portugal uma geografia de futuro que de certa forma deixou de encontrar no Brasil. Como tem acompanhado esse fenómeno e de que forma acha que ele pode reflectir-se no futuro do seu país?

Uma grande questão do nosso tempo, e não só no Brasil, é a dificuldade de imaginar um futuro que não seja uma distopia. Duas crises muito profundas nos levaram a essa situação: a crise climática e a crise da democracia como sistema capaz de garantir a melhoria da vida das pessoas. Quando a gente não consegue imaginar um futuro, fica muito difícil viver no presente. O presente é resultado também do futuro que somos capazes de imaginar.
No Brasil, esse momento é agravado por um profundo desencanto. Essa actual geração de jovens brasileiros cresceu na primeira década deste século, um período em que o Brasil, eterno país do futuro, acreditou ter finalmente chegado ao presente. Nos últimos anos, porém, o Brasil se descobriu atolado no passado. E se descobriu de forma brutal e acelerada. Por quase uma década acreditamos ter uma democracia estável, a pobreza havia diminuído, grandes eventos mundiais seriam sediados no Brasil, como a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016, e o futuro parecia não só garantido, como brilhante. De repente, tudo se corroeu de forma acelerada, a corrupção virou a marca do país, a mudança pela via da política se tornou desacreditada, os ódios explodiram, os conflitos históricos, aqueles que jamais foram enfrentados com o empenho necessário, como o racismo e a desigualdade, se revelaram em toda a sua urgência. Assim, o desejo de buscar um outro país onde seja possível imaginar um futuro no qual se queira viver é compreensível.
Por outro lado, acho triste que parte dessa geração não consiga se sentir responsável pela criação de um futuro possível. Acho que a desresponsabilização também é uma marca da juventude actual. Corroemos o sentido de comunidade e de convivência entre os diferentes, o que resulta na corrosão do sentido de responsabilidade com o outro. As soluções acabam sendo sempre pela via individual, o que importa é salvar o meu ou aquilo que é dos “meus”, em vez de buscar juntos, construir juntos, se sentir parte da criação de um país possível para a maioria.
Então, se é legítimo buscar um lugar melhor para viver, também é triste não se sentir responsável por criar um futuro possível, não se sentir parte da construção de um país mais igualitário, não achar que tenha algo a ver com a sua comunidade. Mas esta é uma parcela dessa geração, não o todo. Quem anda pelos Brasis vê muitos jovens pressionando pela ampliação da participação democrática, criando alternativas criativas e fazendo movimentos de mudança. Tenho conhecido jovens maravilhosos, totalmente comprometidos com a refundação tanto da democracia como do sentido de comunidade.

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A esquerda tem que condenar Ortega

Uma esquerda que deixa Daniel Ortega matar em seu nome e não tem dignidade para se manifestar contra a ditadura e o massacre com ações e palavras claras está sumida em uma crise muito maior do que supõe.

Protestas en Nicaragua contra la represión de presidente Daniel Ortega. INTI OCON AFP (Reprodução do El País)

Protestas en Nicaragua contra la represión de presidente Daniel Ortega. INTI OCON AFP (Reprodução do El País)

Nicaragua se ha convertido en una dictadura que mata a sus opositores

Leia no El País Madri (somente em espanhol)

Bolsonaro e a autoverdade

Embora o conteúdo do que Bolsonaro diz obviamente influencia no apoio do seu eleitorado, me parece que ele é mais beneficiado pelo fenômeno que aqui estou chamando de autoverdade. O ato de dizer “tudo” e o como diz o que diz parece ser mais importante do que o conteúdo. A estética é decodificada como ética. Ou colocada no mesmo lugar. E este não é um dado qualquer.

Por isso também é possível se desconectar do conteúdo real de suas falas, como fazem tantos de seus eleitores. E por isso é tão difícil que a sua desconstrução, por meio do conteúdo, tenha efeito sobre os seus eleitores. Quando a imprensa mostra que Bolsonaro se revelou um deputado medíocre, que ganhou seu salário e benefícios fazendo quase nada no Congresso, quando mostra que ele nada tem de novo, mas sim é um político tão tradicional como outros ou até mais tradicional do que muitos, quando mostra que falta consistência no seu discurso, assim como projeto que justifique seu pleito à presidência, há pouco ou nenhum efeito sobre os seus eleitores. Porque o conteúdo pouco importa. As agências de checagem são um bom instrumento para combater as notícias e as declarações falsas de candidatos, mas têm pouca eficácia para combater a autoverdade.

Jair Bolsonaro é recepcionado em Salvador U.MARCELINO REUTERS (Reprodução do El País)

Jair Bolsonaro é recepcionado em Salvador U.MARCELINO REUTERS (Reprodução do El País)

Como a valorização do ato de dizer, mais do que o conteúdo do que se diz, vai impactar a eleição no Brasil

Leia na minha coluna no El País

 

 

 

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