É possível morrer depois da internet?

Com sua festejada “vitória” sobre o Google, o espanhol Mario Costeja tornou-se um personagem trágico do mundo contemporâneo

 

O espanhol Mario Costeja encarnou o paradoxo dessa época ao conquistar o “direito ao esquecimento” e, por isso, ser mais lembrado do que nunca. Nascido em São Paulo, no Brasil, país onde viveu até os nove anos, o advogado reclamava que, ao digitar seu nome no Google, encontrava em destaque um texto que manchava sua reputação. Era uma página do jornal La Vanguardia, publicada em 1998, que relacionava seu nome ao leilão de uma propriedade por dívidas com o governo. Ele pediu que os links para a matéria fossem removidos, mas tanto o jornal quanto o Google recusaram o pedido. Em 13 de maio, o Tribunal de Justiça da União Europeia determinou que buscadores como o Google deverão permitir que pessoas sejam “esquecidas” quando informações já superadas do seu passado forem consideradas lesivas ou sem relevância. O “esquecimento” seria consumado pela supressão de links na internet, exceto em situações nas quais existam razões específicas para serem mantidos, como o papel assumido na vida pública por aquele que reivindica o apagamento ou interesse público que se sobreponha ao interesse individual. A decisão só vale para a Europa. Mas abre um precedente, talvez perigoso, e uma discussão fascinante. Temos o direito de ser esquecidos? E, ainda que chegássemos a conclusão de que temos, como chegou o tribunal europeu, é possível ser esquecido?

Mario Costeja, 56 anos, possivelmente irá descobrir que não. Ele teve uma vitória inédita – não sobre qualquer um, mas sobre um gigante, o Google. Mas, ao ter garantido seu direito de ser esquecido, nunca foi tão lembrado, especialmente no Google. Desde a decisão do tribunal, quando seu nome é digitado no buscador o número de citações é muitas vezes maior. Por várias páginas há matérias na imprensa de diferentes partes do mundo sobre a sua vitória. O que ele queria que fosse esquecido é lembrado em todas elas, já que é a razão pela qual buscou a Justiça. Se antes esse episódio podia, eventualmente, ser recordado por um público interessado, ao acessar o Google, agora jamais será esquecido por um número muito maior e mais variado de pessoas, ao entrar para a história do direito digital, um campo em acirrada disputa.

Mesmo eu, uma brasileira que nunca tinha ouvido falar de Mario Costeja, muito menos de suas supostas dívidas em 1998, estou aqui a escrever mais uma página que será somada à lista do Google. Em entrevista à Folha de S. Paulo, Costeja afirmou que estaria falando pela última vez com a imprensa: “Nunca pensei que podiam existir tantos meios de comunicação no mundo, me chamam de lugares cuja existência quase desconhecia. E recebo convites de TVs de todos os tipos. Mas desejo voltar à minha vida e ao anonimato”. Um desejo ingênuo, talvez, para alguns um golpe de marketing. Costeja será para sempre lembrado por conquistar o direito a ser esquecido.

Há várias implicações nessa decisão do tribunal europeu. Sem contar o debate complexo que tem oposto os direitos à informação e à liberdade de expressão ao direito à privacidade. Mas há uma, subjacente, que me interessa mais: a construção da memória depois da internet. Ou, sendo mais específica, não apenas se é possível ser esquecido, mas um pouco mais: é possível morrer?

Me parece que Mario Costeja queria não ser esquecido, mas controlar a narrativa da sua vida. Ele queria editá-la, cortando as partes que considerava vexatórias e mantendo as mais edificantes. Para ele, não bastava superar pessoalmente um mau momento, era preciso que ninguém soubesse que o tinha vivido. Costeja não está sozinho nesse desejo. Muitos fazem isso todos os dias na internet, esse campo em que cabe tudo, ao escolher o que postar no Facebook, no Twitter, em outras redes sociais, em blogs e sites pessoais, em forma de texto, vídeo, fotos e áudio. Só publicamos aquilo que acreditamos fazer bem para a nossa imagem – e, em última instância, para a nossa memória em construção.

Sabemos que as páginas individuais não são o que somos, mas o que queremos parecer que somos – o que também revela o que somos para além do que queremos mostrar. Nelas temos a possibilidade concreta de apagar, como uma ferramenta disponível, o que estimula uma ilusão de controle que a internet tornou ainda maior. Não se apaga, porém, o que de nós foi reproduzido ou guardado por um outro em seu próprio espaço ou num espaço coletivo, o que uma vez é publicado está para sempre além de nosso controle e de nossas senhas e de nosso limitado poder. Ainda que se apague dos lugares mais visíveis, restará um traço, um rastro, a ação que não pode ser revertida porque já consumada. Se o indivíduo dela não fizer uma marca com a qual possa viver, terá de enfrentá-la como um fantasma sempre pronto a assombrá-lo.

Como na internet tudo é rápido, instantâneo, imediato e, principalmente, “fácil”, há tanto a ilusão de controle como a tentação de controle. Nem me refiro ao embate político na construção da narrativa dos fatos pelos grupos interessados – na construção da história que, de certa forma, só pode existir como interpretação. Concentro-me na narrativa do indivíduo, de cada um de nós, sobre sua própria vida. O que se “esquece”, com muita frequência, é da permanência que a internet ampliou como nunca antes, ao mesmo tempo que se “esquece” da impermanência de nosso ser e estar no mundo. Esquece-se da constante descoberta de que, talvez daqui a alguns anos, podemos não querer mais ser aqueles que fomos – ou do nosso desejo de sermos outros na nossa constante recriação dos sentidos ao longo de uma existência. Temos tomado o instante como um tempo absoluto, sem perceber talvez que o corpo fluido da internet permite algo mais duradouro do que uma gravação em pedra: uma na nuvem.

Mario Costeja queria eliminar uma página de jornal, missão muito mais complicada. E impossível, apesar – e também por causa – de sua estrondosa e inédita vitória em tribunal tão importante. Nesse desejo ele expressa a ilusão contemporânea, que compartilha com todos nós, de poder apagar as marcas de uma vida para o olhar do outro – ou controlar como o outro nos vê. Enorme ilusão, na medida em que as marcas podem ser ressignificadas, mas jamais apagadas. Señor Costeja, a quem só uns poucos e os de perto talvez conheçam de fato, é um personagem trágico do nosso tempo.

Ainda mais trágico pela euforia demonstrada nas entrevistas à imprensa. “Lutar contra o Google é como ir contra Deus”, disse em 2013 ao EL PAÍS, com alguma razão. Senõr Costeja acredita agora ter vencido “Deus”, mas talvez descubra que a onipotência humana é uma batalha muito maior – e desde sempre perdida. Em algum momento, usando um termo psicanalítico, nos descobrimos “castrados”. E é melhor que assim seja.

Ainda assim, é importante perceber que, de forma enviesada, ele conseguiu substituir no topo da lista do Google a matéria específica que tanto o perturbava. Interferiu e produziu uma nova narrativa sobre si mesmo. Uma em que o “perdedor” de 1998 tornou-se o “vitorioso” de 2014. Não é pouco. Mas talvez ele descubra que as versões sobre sua vida estarão para sempre além do seu controle. É no embate narrativo, travado na esfera pública, mas também no interior dos conflitos privados ao longo de uma existência, que a memória de cada um é construída. Nesse movimento de constante criação e recriação de sentidos para o vivido, aquele que é só pode ser duvidando do que é.

É fascinante que nós, aqueles que lutam cotidianamente nos espaços da internet para “existir”, para “ser lembrados” e constantemente reassegurados de seu valor no mundo – “curtidos”, “retuitados”, “seguidos”, “compartilhados” –, numa eternidade que se absolutiza no instante, comecemos a desejar o esquecimento. De certo modo, é preciso ser “esquecido” para poder ser “lembrado” de outras maneiras. É preciso talvez esquecer-se de si por um momento para poder se inventar de um outro jeito, movimento constante e inerente a uma vida que se pretende viva.

O mundo pós-internet nos impõe uma dificuldade muito maior nessa tarefa de reinvenção de si. O excesso de registros que, em grande parte, nós mesmos produzimos, torna mais difícil deixar lembranças para trás, jogá-las na lixeira ou confiná-las numa caixa que podemos escolher quando abrir ou jamais voltar a abrir. Não é possível nem desejável negar o vivido, nem mesmo e especialmente em grandes tragédias, mas é preciso poder transformar aquilo que sangra em marca para poder seguir adiante. E agora que sangramos para sempre num lugar sem tempo, talvez seja mais difícil.

Lembro uma reportagem que li ainda nos anos 90. A internet não era uma realidade para a maioria, o que tornava uma fuga e um desaparecimento algo com mais chances de dar certo do que hoje, quando somos fotografados, filmados e registrados na rua, dentro dos prédios, em toda parte. A partir de uma lista de desaparecidos – aquelas pessoas que vão comprar cigarro na esquina e nunca mais voltam –, o jornalista tentou localizar esses personagens para descobrir o que tinha acontecido com cada um. Descobriu que, numa parte significativa dos casos, pelo menos de sua amostragem, os que desapareceram queriam desaparecer. Realizaram uma fantasia, que passa pela cabeça de muitos, de renascer em outras bases, ser um outro numa outra vida, sem ter de responder pela existência anterior. Tinham mulher ou marido, filhos, pai ou mãe doente, dívidas, prestações intermináveis da casa própria, um trabalho menos emocionante do que gostariam. Queriam se livrar de um passado que determinava o presente e assombrava o futuro.

O problema, como descobriu o jornalista, é que não é possível deixar as marcas para trás. Muito menos a si mesmo. O problema, talvez, é que nos carregamos em nossa fuga, com tudo o que somos, incluindo nossas cicatrizes e nossas neuroses. Na tentativa de desaparecer de uma vida para reaparecer em outra, que soava mais atraente e adequada a suas grandes expectativas, esses fugitivos fracassaram. A reportagem mostrava que aqueles que tentaram se reinventar na literalidade de uma fuga, morrendo para o mundo que os conhecia para renascer no desconhecido, supostamente sem passado e sem dívidas simbólicas e reais, acabavam por criar uma vida muito semelhante àquela que deixaram. O repórter os encontrou presos a uma existência em quase tudo igual à anterior. E já sem a ilusão de que haveria uma fuga possível. Ainda não tinham compreendido que, se quisessem viver várias vidas numa só, era preciso enfrentar a tarefa trabalhosa, constante e jamais terminada de criar e recriar sentidos para o seu estar no mundo.

Com a internet, como talvez descobrirá Mario Costeja, apagar o passado tornou-se uma ilusão ainda maior. Sites de busca como o Google hierarquizam nossas marcas por caminhos que nos são estranhos e a importância de nossos atos e dizeres se dá pelo que aparece em primeiro lugar, como tanto apavorou Costeja. Alguns de nós, que, como a maioria, sempre quis viver “para sempre”, viver para além da vida, começa a se preocupar em morrer para o mundo, ainda em vida. Mas, depois da internet, é possível morrer?

Esta é a pergunta que move uma peça de teatro muito original, concebida pelos libaneses Rabih Mroué e Lina Saneh. Assisti a “33 rpm and a few seconds” (33 rpm e alguns segundos) no Pen World Voices Festival deste ano, em Nova York, evento literário criado pelo escritor Salman Rushdie (que recentemente andou pelo Brasil), do qual participei como autora convidada. Não há previsão de o espetáculo ser exibido no Brasil, o que é uma pena. Os autores, Rabih e Lina, conseguiram realizar algo de enorme impacto sobre a plateia, sem colocar um único ator no palco, o que também é muito revelador dessa época em que encenamos nossa vida como realidade – e seguidamente acreditamos que realidade é.

No palco, não há nenhuma pessoa. Só objetos. Não há nenhuma pessoa porque a pessoa que havia naquele escritório dentro de uma casa acabou de se suicidar. Somos informados de que o morto que habitava aquele lugar, Diyaa Yamout, era um jovem ativista de direitos humanos que filmou a sua morte. Mas somos informados pelos objetos que continuam se movendo – “vivendo” e o mantendo vivo – depois de sua extinção física. A TV continua ligada, assim como o aparelho de som e o de fax. A tela do computador projeta a repercussão de sua morte no Facebook. Uma amiga (ou amante?) vai gravando recados na sua secretária eletrônica. Outra amiga (ou namorada?), que está viajando para encontrá-lo, deixa torpedos no seu celular. As narrativas sobre a sua vida e a sua morte vão sendo construídas, sobrepostas umas as outras, mas ele já não está. Ou está?

Nas redes sociais desenrola-se o que qualquer um que acompanha o Facebook ou o Twitter já está acostumado a testemunhar – e a participar. Ora o morto é um herói, ora um vilão. Ora é um covarde, ora um corajoso. Ora uma vítima, ora um algoz. Frases, ideais e intenções são atribuídos a ele por diferentes personagens. A partir dessas inferências se desenha um país que seria o Líbano, mas com clichês que costumam ser atribuídos ao Brasil e, imagino, também a outros países, como “república de bananas” ou “este país não tem jeito”. Logo há uma disputa nas redes sociais, violenta e ofensiva, pela memória do morto. Na tela, sentidos para sua morte e para sua vida são criados e recriados, em encarniçada contenda política, cultural e religiosa. Há os furiosos, há os líricos, há os que tentam transcender e os que tentam pacificar. Há uma enorme banalidade instantânea, previsível e repetitiva como só a banalidade pode ser.

Na tela da TV assistimos às costumeiras reportagens, sempre repetidas em casos como este. Entrevista-se os pais que choram, entrevista-se colegas e supostos amigos, ao final há sempre o “especialista”, na figura do psiquiatra ou psicanalista, que daria a interpretação final para o suicídio e para o legado do suicida. Conhecemos esse enredo, até o esperamos, como se não houvesse outra possibilidade, mais profunda e menos redutora, de olhar para uma vida – e para uma morte.

Enquanto isso, a mulher que tenta desesperadamente desembarcar no país do morto para encontrá-lo, sem saber que ele morreu, vai contando suas desventuras em lugar nenhum. Primeiro o avião tem problemas, depois as autoridades a retêm, são inúmeros os percalços e ela, uma palestina, encarna a própria terra ao nunca conseguir alcançar seu destino. Na busca por ele e por chão, ela permanecerá em trânsito. Nessa narrativa, ela radicaliza nossa condição de estrangeiros na própria vida, passageiros de uma existência em que o destino está sempre além, inalcançável, mesmo quando parece logo ali.

E o morto-vivo? Ou o vivo-morto?

O jovem ativista que escolhe se matar (é o que ele diz, foi uma escolha), escreve em sua carta-testamento: “A vida é uma prisão. A única liberdade possível é a não existência”. É nas mensagens da secretária-eletrônica, deixadas pela mesma voz feminina, por alguém que o conhece, no sentido profundo de conhecer, não no superficial que desfila na tela do Facebook ou nas matérias de TV, que o paradoxo dessa época se desvela. A certa altura, ela diz: “É possível estar fora do corpo, mas não fora da linguagem. Meu amigo, a única forma de morrer é estar fora da linguagem – ou nunca ter falado. Você falou muito, palavras demais. Para sempre estará preso na linguagem”.

Ele morreu, seu corpo não está lá. Mas, como nós, ele está vivo numa multiplicidade de narrativas em movimento que, com a internet e a tecnologia, tornou-se a eternidade que buscamos com tanto afinco – e finalmente alcançamos. Apenas para descobrir que a tragédia era outra.

Esta é a armadilha. Já não é possível morrer.

(Publicado no El País em 26/05/2016)

Denunciados pela linguagem

Fabiane era inocente. Nós, ao exaltarmos a sua inocência como principal razão para que ela não fosse assassinada, somos culpados

 

O linchamento de Fabiane Maria de Jesus nos denuncia pela palavra. Há um horror, o linchamento. E há o horror por trás do horror, que é a exacerbação da inocência da vítima. É preciso que este também nos espante, porque ainda mais entranhado, suas unhas cravadas fundo numa forma de pensar como indivíduos e de funcionar como sociedade. Nem todos são capazes de pegar um pedaço de pau para bater na cabeça de uma mulher até a morte por considerá-la culpada de um crime, mas é grande o número daqueles que, ao contarem o caso na última semana, enfatizaram: “Ela era inocente”. Não como uma informação a mais no horror, mas como a mais importante. Essa também foi a frase escolhida para ilustrar as camisetas dos que protestavam contra a sua morte: “A dor da inocência”. Mas talvez seja na exaltação da inocência que nossa violência se revele em sua face mais odiosa. O que pensamos ser luz, prova de nossa boa índole, é feito da matéria de nossas trevas mais íntimas. É a exacerbação da inocência que mostra o quanto nós – mesmo os que não lincham pessoas na rua – somos perigosos.

E se ela fosse culpada?, como provoca o título da matéria de Marina Rossi, aqui no El País Brasil. E se ela fosse uma mulher que praticasse magia negra com crianças? Seu assassinato por um bando de pessoas na rua estaria justificado? Então alguém poderia agarrá-la, outro arrastá-la e um terceiro passar com a roda da bicicleta sobre a sua cabeça? É isso o que estamos dizendo quando nos espantamos mais com a inocência de Fabiane do que com o seu assassinato?

O linchamento de Fabiane produziu uma narrativa fragmentada, que revela mais sobre os autores do discurso do que sobre a vítima. O suspeito V. B., eletricista, 48 anos, justificou-se, ao ser preso: teria golpeado Fabiane com um pedaço de madeira porque achou que o boato era “verdade”. O suspeito L.L., ajudante de pedreiro, 19 anos, que teria passado com a bicicleta sobre a cabeça de Fabiane, explicou: “Diante da gritaria das pessoas que tinham reconhecido a mulher, não tive dúvidas de participar do tumulto”. O suspeito C.J., pintor de paredes, 22 anos, teria puxado Fabiane pelos cabelos para se certificar de que era ela mesma, antes de ajudar a matá-la.

Em nenhum momento apareceu o choque por ter espancado uma pessoa com um pedaço de pau, passado sobre a cabeça de alguém com a bicicleta, agarrado uma mulher pelos cabelos. Passada a explosão da hora, a questão que motivou até um pedido de desculpas à família, por parte de um dos suspeitos, era o erro. Mas o erro não seria assassinar – e sim assassinar a pessoa errada. Se havia razões para o arrependimento era a inocência de Fabiane – não o ato de matar. “Não é ela, não é ela”, teria avisado alguém em um dos vídeos de sua morte. Não arrebente porque não é ela. E se fosse?

Se a exaltação da inocência estivesse restrita aos assassinos – e a quem assistiu ao assassinato sem nada fazer para impedi-lo – seria mais fácil. Mas foi a inocência de Fabiane que motivou, nos mais variados espaços, perguntas retóricas como: “onde estamos?” ou “que país é este?”. Entre os tantos comentários sobre o caso, lamentando a morte de Fabiane, talvez o do governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), seja o mais revelador.

Fabiane foi linchada no sábado (3/5), no bairro de Morrinhos, na periferia do Guarujá, no litoral paulista, e morreu, no hospital, na segunda-feira (5/5). Tinha 33 anos. Na quarta-feira (7/5), o governador, que pretende tentar a reeleição, foi ao Guarujá para, entre outros compromissos, reinaugurar a maternidade do Hospital Santo Amaro – o mesmo onde, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Fabiane teve de esperar um dia para conseguir vaga na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Durante a cerimônia, Alckmin manifestou-se sobre a morte de Fabiane, nos seguintes termos: “É inadmissível um ato de barbaridade como esse, tirando a vida de uma pessoa que não tinha nada a ver com a desconfiança da população, até porque tudo não passou de um boato”.

Uma boa questão de interpretação para a prova de língua portuguesa do próximo vestibular. O que, exatamente, o governador está dizendo ao povo do estado que governa? Qual é, para ele, a questão central no linchamento? O que é inadmissível, segundo Alckmin? Linchar uma pessoa, qualquer pessoa, ou linchar uma pessoa inocente?

A exaltação da inocência de Fabiane revela a não inocência da sociedade brasileira na série de linchamentos que vem atravessando o país. As palavras revelam o que também alimenta o espancamento e a morte de pessoas por cidadãos nas ruas. É no discurso, às vezes subliminar, às vezes explícito, que é reeditado cotidianamente o pacto histórico de que há uma categoria de brasileiros que podem ser mortos – ou que ao menos seu assassinato seria justificável. É esta mesma lógica que tolera – quando não deseja – a tortura e a morte de presos nas delegacias e nos presídios do Brasil. Encarar os linchamentos como algo que só pertence ao bárbaro, que é sempre o outro, é ocultar a nossa responsabilidade, a de cada um, com uma máscara de inocência. Fabiane era inocente. Nós, ao exaltarmos a sua inocência como principal razão para que ela não fosse assassinada, somos culpados.

A barbárie não deveria nos surpreender, como se fosse nova entre nós. A sociedade brasileira historicamente a tolera, quando não a estimula. Como já foi dito mais de uma vez, também aqui, ela está nas raízes da formação do Brasil. A barbárie chegou junto com os que se anunciavam como civilizados diante dos povos indígenas que aqui estavam – os bárbaros. E foram também os chamados civilizados que promoveram uma força de trabalho escravo, alimentada por negros trazidos da África (e também por índios). Nem a escravidão nem o extermínio indígena foram superados no Brasil – e as marcas de uma e a reedição do outro fazem parte do cotidiano do país, hoje.

Fingir que a barbárie é surpreendente não vai nos ajudar a combatê-la. No Brasil atual, indígenas, ribeirinhos e quilombolas têm sido expulsos de suas terras por atos do próprio governo federal – e muitos deles têm sido mortos por pistoleiros, a mando de fazendeiros. É assustador o número de moradores de rua assassinados no Brasil nos últimos tempos, assim como o de crimes por homofobia. A retirada de pessoas de suas casas para a construção de estádios da Copa do Mundo é conhecida – ou deveria ser – por todos. A violência nos presídios e as execuções nas favelas e periferias tornaram-se uma banalidade só interrompida por espasmos. Mesmo os linchamentos estão longe de nos ser estranhos, o que em nada diminui o seu horror e a necessidade de combatê-los.

Se há algo de novo é talvez a forma como as palavras encarnaram para tornar Fabiane uma pessoa para o linchamento. A internet não criou – nem piorou – o humano. Ela apenas o revelou como nunca antes. Ela deu-nos a conhecer. Antes não sabíamos o que pensava o vizinho ou o caixa do banco ou o sujeito que nos cumprimentava na padaria. Agora, ele grita na internet – e, mais do que grita, exibe todo o seu inferno. Passeia o time completo, com titulares e reservas, de seus ódios e preconceitos. Na internet, o humano perdeu o pudor de suas vísceras. Ao contrário, em vez de ocultá-las, passou a exibi-las como um troféu de autenticidade.

É nesse contexto que o dono do perfil no Facebook “Guarujá Alerta” postou, em 25 de abril, a seguinte “notícia” – que jamais poderia ser chamada de notícia porque sequer foi apurada antes de ser publicada: “Boatos rolam na região da praia do Pernambuco, Maré Mansa, Vila Rã e Areião, que uma mulher está raptando crianças para realizar magia negra… Se é boato ou não devemos ficar alertas”. Nenhum pudor de postar um boato. Zero pudor. Ao contrário, a internet nos mostra que há um orgulho no despudor, no “assumir” a falta de princípios, confundindo-a com o que é apresentado como “coragem de denunciar”.

Alguns dos comentários de homens e mulheres, postados na sequência, mostra a disseminação do ódio, travestida como defesa do bem: “Mata essa filha da puta. Quem achar, sem dó”/ “Se vir pro Morrinhos vai tomar só rajada essa cachorra”/ “Vamos fazer uma magia de revolta com ela, ‘botando fogo nela’”. Logo surgiu um retrato falado, que seria descrito pela imprensa como o de uma mulher “negra e gorda”, em seguida a foto de uma loira.

Dias depois da publicação do boato, Fabiane, com pouca ou nenhuma semelhança com qualquer uma das imagens, foi linchada. Inclusive crianças participaram do seu espancamento. O retrato falado tinha sido feito em 2012 pela polícia carioca e referia-se a uma suspeita de ter sequestrado uma criança na zona norte do Rio. Nenhum menino ou menina desaparecera na região do Guarujá nos últimos tempos, o crime não existia. Mas as “bruxas” começaram a ser vistas em toda parte – e também em outras regiões do país, na qual o boato foi reproduzido. Fabiane foi a única morta, mas várias mulheres podem ter corrido o risco de ser assassinadas. De novo, as mulheres e a bruxaria, como nas fogueiras da Inquisição.

(Só um parêntese. Vale pensar sobre o peso da palavra escrita nessa tragédia. Sobre o quanto a palavra escrita, agora na internet, é decodificada ainda por muitos, em especial por aqueles que ao longo da história tão pouco tiveram acesso a ela, como “verdade”. A frase “está no jornal” ou “li no jornal”, usada para assegurar a veracidade de algo diante de outros, é agora também “está (ou li) na internet”. É o que mostra a quantidade de spams com boatos os mais estapafúrdios que atravancam todos os dias as caixas de e-mail e também as redes sociais, porque muitos os replicam, sem apurar a fonte ou sequer duvidar, para alertar seu circuito de conhecidos, familiares e amigos sobre ameaças terríveis. Falta muito para que a leitura crítica, tanto da imprensa tradicional quanto da mídia alternativa, como de qualquer outra produção narrativa, se estabeleça para a maioria, tão carente de educação no país.)

Quando Fabiane foi agarrada naquele sábado, carregava um livro de capa preta. Quem passava por ela, viu nele uma obra de magia negra. Quando ela ofereceu uma fruta a uma criança na rua, o gesto foi interpretado como uma tentativa de sedução. Foi só alguém gritar “é ela, é ela”, para o linchamento começar. É importante compreender como Fabiane tornou-se bruxa. Mas também é fundamental entender como ela deixou de ser bruxa.

O feitiço ao contrário é revelador. O livro de magia negra era uma Bíblia. A fruta oferecida era um gesto de generosidade. Fabiane era branca, era religiosa, era mãe de duas filhas, era dona de casa e gostava de crianças. Sua única “mácula”, para o senso comum, seria um diagnóstico de “transtorno bipolar”, relacionado nos relatos “ao parto da primeira filha”. Mas, mesmo neste caso, ela foi poupada do preconceito costumeiro, associado às doenças mentais, por depoimentos como este, de uma amiga: “(Nas crises) ela saía abraçando as pessoas, falando que amava todo mundo, nunca fez mal a ninguém”.

Fabiane, portanto, não só era inocente, como era a imagem da inocência. Era o retrato idealizado do feminino ligado à maternidade. Não tenho como aferir o quanto essa imagem, desfeito o feitiço, colaborou para a comoção do país. Mas suspeito que bastante. E isso também revela o quanto nós não somos inocentes.

E se Fabiane fosse “negra e gorda”, como descrita no retrato falado? E se Fabiane exibisse piercings e tatuagens pelo corpo? E se Fabiane fosse lésbica? E se Fabiane fosse agressiva? E se Fabiane fosse do candomblé ou do batuque ou de outra religião afro-brasileira, as quais os pastores evangélicos neopentecostais tanto relacionam nos templos e nos programas da TV com satanismo, uma atitude criminosa pouco ou nada combatida? E se Fabiane fosse bruxa? E se Fabiane fosse o oposto da idealização feminina? Será que tantos hoje chorariam por ela?

E Fabiane seria, por isso, menos inocente?

Talvez, se sua imagem não correspondesse ao estereótipo da mãe de família, ouviríamos coisas como: “Também, com aquela aparência, era fácil confundi-la”. Ou: “Essa história está mal contada, boa coisa ela não era”. Talvez então o feitiço jamais fosse desfeito e Fabiane continuasse na lista não escrita das pessoas “lincháveis”. É possível? Ou estou exagerando? Gostaria de estar exagerando, mas me arrisco a suspeitar que não.

Vale a pena prestar atenção ao comentário de L., ao ser preso e pedir desculpas à família de Fabiane. “Peço desculpas à família, estou muito arrependido. Desculpa mesmo. A gente vê a nossa mãe em casa, nossa tia, e imagina que poderia ter sido com elas”. De repente, o algoz percebe que sua vítima não é mais uma “bruxa”, uma diferente, uma outra, mas sim semelhante às mulheres da sua família que ocupam um lugar materno. E, como filho, sobrinho, dessas mulheres, semelhante a ele mesmo. Pela lógica imediata, se a conversão em bruxa pela turba enlouquecida, da qual ele fez parte, aconteceu com Fabiane, por que não aconteceria com sua mãe, com sua tia? Com ele, com cada um de nós? Será também um medo novo que faz aumentar a comoção por Fabiane? E agora, que a barreira dos “lincháveis” foi rompida e uma mãe de família, uma devota, morreu a pauladas?

Um dos suspeitos disse à polícia que dois outros autores do linchamento de Fabiane foram executados pelo tráfico. A informação foi publicada na imprensa. Se queremos de fato enfrentar a barbárie, precisamos saber se essa afirmação é verídica. E, se for verídica, precisamos exigir que os assassinos dos assassinos sejam investigados, julgados e punidos, no rito da lei. Do contrário, somos só bárbaros que acreditam que linchadores devem ser mortos, no olho por olho, dente por dente. Como aqueles bárbaros que salivam em suas casas quando assistem à notícia de que estupradores foram violados na cadeia, onde estão sob proteção do Estado.

Chorar pelos inocentes é fácil. O que nos define como indivíduos e como sociedade é a nossa capacidade de exigir dignidade e legalidade no tratamento dos culpados. O compromisso com o processo civilizatório é árduo e exige o melhor de nós: respeitar a vida dos assassinos. Fora isso, é só demagogia.

Há vários apelos circulando na internet sobre as palavras “justiceiro” e “justiçamento”. Quero trazer a reflexão para cá, porque já descobrimos há muito – e também agora – que as palavras são poderosas. E andam. E encarnam. E revelam. E autorizam. Linchamento não é “justiçamento”. É crime. Linchador não é “justiceiro”. É criminoso. Seja uma pessoa ou uma turba, quem mata é assassino. Quem lincha e mata não quer justiça, quer vingança – às vezes sem nem mesmo saber do quê. Se queremos superar a barbárie, talvez seja necessário jamais confundir “justiça” e “vingança” – também nas palavras.

(Publicado no El País em 12/05/2014)

O aborto na fogueira eleitoral

Todos os perigos parecem ainda morar no corpo da mulher, inclusive, de várias maneiras, para os políticos brasileiros em campanha

Aconteceu de novo. E logo cedo. Depois de assistir à missa de Páscoa no Santuário Nacional de Aparecida, no interior de São Paulo, Eduardo Campos, pré-candidato à presidência da República pelo PSB, foi confrontado com a pergunta do aborto. Contra ou favor? Era o colarinho do cardeal Dom Raymundo Damasceno, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ao seu lado, que estava justo, mas foi Campos que espremeu a seguinte resposta: “Acho que a legislação brasileira é adequada e, como cidadão, minha posição é a de todos. Não conheço ninguém que seja a favor do aborto”. E acrescentou: “Como cristão, cidadão e pai de cinco filhos, minha vida já responde à pergunta”. Dias depois, Campos afirmou, durante uma coletiva de imprensa, que seu “ponto de vista é muito claro”, mas que “respeita o ponto de vista dos outros”. Disse ainda que sua posição sobre o aborto é “pública”, porque já foi candidato outras vezes, e sugeriu aos jornalistas que dessem “um Google” para buscar a resposta, o que é um tanto extraordinário.

Nos últimos anos, o tema se tornou uma moeda de barganha eleitoral. Todos os dias mulheres de todas as religiões fazem abortos no Brasil. Aos 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já fez aborto. A cada dois dias uma mulher morre por aborto ilegal. Muitas deixam crianças órfãs, num ciclo de dor e miséria que mereceria a atenção de qualquer cidadão, mais ainda de alguém que pleiteia governar o país. Mas a questão do aborto, de fato, nenhum candidato parece querer discutir com a seriedade e a honestidade exigidas para algo com tanto impacto sobre o país. O assunto só aparece como instrumento de chantagem na busca inescrupulosa por todo o apoio possível, nesse caso o voto religioso. O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, pré-candidato do PT ao governo de São Paulo, foi outro que assistiu à missa de Páscoa em Aparecida.

Está aberta a temporada de beija-anel de bispo e cardeal. Logo, será a vez dos grandes pastores midiáticos. O Estado é laico, mas as últimas campanhas mostraram que parte dos candidatos impõe as mãos, rala os joelhos e rasga princípios no maior número de altares que conseguir. A transformação de vidas humanas em moeda eleitoral mostra o quanto o debate político é rebaixado no Brasil. Revela também o quanto o Estado brasileiro ainda é frágil diante da pressão das religiões. As igrejas podem defender comportamentos morais para os seus fiéis, mas não impor suas prescrições ao conjunto dos cidadãos brasileiros. Cabe ao Estado laico zelar para que os limites não sejam ultrapassados, o que se perde quando direitos fundamentais viram instrumento de chantagem.

A declaração de Campos – “não conheço ninguém que seja a favor do aborto” – provocou protestos nas redes sociais. Páginas foram criadas no Facebook nas quais pessoas se apresentam, ironicamente: “Prazer, Eduardo Campos, eu sou a favor da descriminalização do aborto e existo”. A frase usada por Campos é um conhecido truque retórico, como bem aponta a jornalista Carla Rodrigues em seu blog. Evoca a ideia de que ninguém seria a favor de eliminar embriões como método contraceptivo. Mas a questão, como Campos sabe muito bem, é ser a favor das mulheres que fazem aborto, assegurando seu direito de decidir sobre a própria maternidade e protegendo a sua saúde, para que não morram em procedimentos clandestinos. O tema que precisa ser enfrentado, como Campos sabe muito bem, é de como amparar as mulheres que têm morrido por não serem amparadas – mesmo nos casos em que o aborto já é permitido no país: risco de morte da mãe, gravidez por estupro, gestação de feto anencefálico.

A decisão sobre se pode ou não levar adiante uma gravidez é privada, pertence à cada mulher. É uma escolha íntima, em geral difícil. Essa decisão individual só assume uma dimensão pública na medida em que o Estado deixa de assegurar às mulheres os meios para ter sua escolha respeitada. Assim, a questão do aborto no Brasil, se não diz respeito apenas à saúde pública, é também de saúde pública. E uma das mais sérias, já que atinge as brasileiras mais pobres, que arriscam a vida no banheiro de casa, enquanto as mais ricas interrompem a gestação com razoável segurança em clínicas privadas. O direito ou não ao aborto no Brasil, como qualquer um que não é cínico sabe, tanto quanto o direito a sobreviver ou não a ele, é uma questão de ter ou não dinheiro para fazê-lo em condições seguras. Só é assim porque barganhar com a vida das mulheres pobres, que dependem do SUS, continua sendo um esporte lucrativo, tanto nas eleições quanto nos corredores do Congresso.

Em 2013, grupos evangélicos e também católicos, como o Pró-Vida e Pró-Família, ameaçaram Dilma Rousseff com a retirada de apoio na reeleição, alegando que ela estaria, “na prática, legalizando o aborto no Brasil”. A presidente havia acabado de sancionar sem vetos a lei, aprovada pela Câmara e pelo Senado, que obriga os hospitais a prestarem atendimento integral e multidisciplinar às vítimas de violência sexual. Entre outros direitos, a mulher que sofre estupro pode obter na rede pública a chamada pílula do dia seguinte, para não correr o risco de engravidar do estuprador. Era sobre isso que grupos religiosos radicais protestavam.

Na época, escrevi um artigo intitulado “O aborto e a má fé”, em que apontava para a possibilidade de que o nível da campanha de 2014 pudesse ser ainda mais baixo que o de 2010. É curioso, mas também triste, que a largada tenha sido dada por quem se apresenta como protagonista de uma “nova política”, e também como “socialista”. Novo, de fato, seria enfrentar a questão do aborto com a profundidade que o tema exige. E bem longe da simplificação de plebiscito, defendida na campanha anterior por Marina Silva (Rede), a anunciada vice de Eduardo Campos nas eleições presidenciais desse ano, que é evangélica.

Propor que o aborto seja matéria para um plebiscito é usar de má fé, ao tentar dar uma aparência democrática a um pensamento autoritário. Cabe à democracia respeitar a vontade da maioria, ao, por exemplo, eleger um presidente da República, governadores e legisladores, mas também cabe à democracia assegurar os direitos das minorias. Questões de ética privada, como o aborto e a união de pessoas do mesmo sexo, não são matérias de plebiscito. Referem-se à garantia dos direitos fundamentais de cada cidadão. Num debate político é menos importante saber o que cada candidato fará diante de uma escolha de ordem moral e privada em suas próprias vidas, do que saber claramente como vão cuidar das brasileiras que morrem porque o aborto é criminalizado no Brasil. A crença ou não crença religiosa de cada candidato só diz respeito ao eleitor se essa crença ou não crença interferir na garantia dos direitos fundamentais de quem fará escolhas diferentes no âmbito da sua vida privada. Homens ou mulheres públicos governam para assegurar os direitos fundamentais de todos – os que fariam a mesma escolha moral que eles e também os que não fariam. Ao transformar o aborto em moeda eleitoral para faturar o voto religioso, a democracia escorre para o esgoto.

Nas primeiras campanhas eleitorais após a ditadura, os candidatos costumavam evitar abordar o tema do aborto. Aos poucos, ao perceber o potencial eleitoral do crescimento dos evangélicos no Brasil, alguns oportunistas começaram a perceber que jogar o aborto na mídia e no palanque poderia ser conveniente. Tanto para conquistar o voto religioso quanto para derrubar opositores (cada vez mais raros) com escrúpulos de se tornar coroinhas de última hora. No período recente, ninguém fez isso com maior truculência do que José Serra (PSDB), na campanha eleitoral de 2010.

Para lembrar, porque é importante manter a memória viva. No final do primeiro turno de 2010, a internet e as ruas foram tomadas por uma campanha anônima, na qual se afirmava que Dilma era “abortista” e “assassina de fetos”. Dilma começou a perder votos entre os evangélicos e parte dos bispos e padres católicos exortou os fiéis a não votar nela. Serra empenhou-se em tirar proveito do ataque vindo das catacumbas, determinando o rumo da campanha dali em diante. E Dilma correu a buscar o apoio de religiosos, acabando por escrever uma carta declarando-se “pessoalmente contra o aborto”. Nela, comprometia-se, em caso de vencer a eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema. Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até então desconhecido de quem acompanhava a sua trajetória. Serra apregoou que tinha “Deus no peito”. Dilma agradeceu “a Deus pela dupla graça” e, usando o mote dos grupos mais radicais do catolicismo, afirmou que fazia “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”.

Nesse sentido, talvez a campanha de 2010 tenha sido o momento mais baixo desde a redemocratização do país. O que nela se passou escancarou as portas para todas as leviandades e recuos que vieram depois, nos temas relativos à saúde da mulher e ao respeito à diversidade sexual. Basta lembrar, entre outros, do cancelamento do kit anti-homofobia, que seria usado nas escolas públicas, e a retirada do ar do vídeo de uma campanha de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, na qual uma prostituta dizia ser “feliz”. O fato de uma mulher ser feliz e ser prostituta parece ter ferido mais a sensibilidade dos hipócritas de ocasião (e do governo) do que pessoas adoecerem ou mesmo perderem a vida por doenças evitáveis.

Os protagonistas desse rebaixamento do debate político jamais devem ser esquecidos. A coerência dos candidatos, assim como seu comportamento diante de temas espinhosos, mas de extrema importância, revelam como cada um deles vai atuar quando tiver o poder. Se a campanha eleitoral de 2014 superar a de 2010, na chantagem com temas que dizem respeito a vidas humanas – e isso num momento em que os brasileiros nas ruas exigem maior participação na política e maior responsabilidade daqueles que foram eleitos para cargos públicos – será assombroso. Quando Eduardo Campos afirma que não conhece “ninguém que seja a favor do aborto”, apenas reforça a suposição de que, em vez de uma alternativa à “velha política”, como seus marqueteiros se esforçam para difundir, ele seria mais um representante da política viciada e permeável às chantagens de ocasião.

É importante pensar por que o aborto, mais uma vez, ameaça despontar numa eleição presidencial como instrumento de barganha para o apoio e o voto religioso – e não outro dos temas morais. Por que, de novo, é do corpo da mulher que se trata. Por que, outra vez, a disputa rasteira se dá sobre a topografia feminina. O que isso oculta? O que revela? A questão talvez seja menos o aborto, mas sim em que medida a religião pode controlar, via Estado, a reprodução das mulheres – e, especialmente, a sexualidade das mulheres. A pergunta é por que, ainda hoje, no século 21, é tão crucial manter o controle sobre o corpo feminino.

Parece que a visão medieval que localiza no corpo das mulheres a morada de todos os perigos continua atual. Inclusive para políticos em campanha. Enquanto isso, mulheres reais morrem porque, quem tem o dever de debater e promover políticas públicas para assegurar seus direitos fundamentais, chantageia com suas vidas. Cabe a cada cidadão impedir que a eleição de 2014 se torne uma trágica repetição da indignidade testemunhada em 2010, na qual votos foram negociados sobre cadáveres femininos.

(Publicado no El País em 28/04/2014)

 

A potência de Adelir

Que dogmas tão profundos a gestante de Torres feriu para ter seu corpo violado pelo Estado na calada da noite

 

Na madrugada de 1º de abril, dois poderes, a Medicina e a Justiça, produziram uma cena histórica no Brasil. Nela, uma mulher em trabalho de parto, Adelir Lemos de Goes, 29 anos, foi arrancada de sua casa, na zona rural do município gaúcho de Torres, por um oficial de justiça e policiais armados. Em seguida, ela foi obrigada a entrar numa ambulância. Se não entrasse, prenderiam seu marido, Emerson Guimarães, 41 anos, técnico em manutenção industrial. Apavorada, com contrações a cada cinco minutos, preocupada com o susto dos filhos pequenos, Adelir foi escoltada até o Hospital Nossa Senhora dos Navegantes. Lá, mais uma vez, foi obrigada por ordem judicial a deixar-se cortar. Contra a sua vontade, tiraram do seu útero, por cesariana, seu terceiro filho, uma menina. Naquela madrugada, Adelir descobriu que dois espaços que considerava privados, invioláveis, tinham sido invadidos no meio da noite: sua casa, seu corpo. Ao amanhecer, Adelir não pertencia sequer a si mesma.

Antes de se perfilar de um lado ou outro desse campo, a favor ou contra Adelir, é preciso tentar alcançar o que essa mulher sentiu, já que também nós costumamos nos sentir seguros em casa. Mesmo que a casa seja um barraco numa zona de risco, é pela certeza de um lugar no mundo que se luta, às vezes arriscando a própria vida. No meio da noite, uma casa torna-se ainda mais importante, como garantia de refúgio diante do temor atávico da escuridão. No caso de Adelir, era uma casa de madeira, parcialmente coberta por uma lona, porque ainda em construção. Quando sua filha, chamada de Yuja Kali, foi arrancada do seu útero, também foi uma invasão na madrugada. Quem já assistiu a uma cesariana sabe que é como arrombar uma porta e tirar de repente um bebê do único lar que conhece, jogando-o na luz e na temperatura de um mundo desconhecido e inóspito, em que ele fica longe do corpo da mãe que se recupera de uma cirurgia, submetido a uma série de procedimentos bruscos. Para Adelir e a pequena mulher que gerou, ambas arrancadas à força de suas casas, foi uma longa noite de horrores.

Naquela madrugada, Adelir apagou as luzes e acendeu velas enquanto vivia as contrações do trabalho de parto. E então o barulho de pneus e motor de carros quebra a calmaria da zona rural. E então alguém se anuncia oficial de justiça e ostenta um papel tão poderoso que ela pode ser carregada de sua casa. Adelir espia e vê nove policiais. O que, com aquele barrigão, ela poderia ter feito de tão errado para ser alvo de uma força de repressão daquele tamanho, tão rara nas ruas de Torres, mais ainda no interiorzão? Para que tantos homens armados diante de uma mulher barriguda?

Essa é uma pergunta interessante: o que tornou Adelir tão perigosa, de repente? Que poder tão nevrálgico ela desafiou para mover tantas autoridades durante a noite? O que, de fato, ela estava ameaçando, para mobilizar uma demonstração de força dessa ordem?

É preciso voltar ao dia anterior. Em torno das 15h de 31 de março, Adelir foi ao hospital com a doula Stephany Hendz, assistente treinada de parto, que acompanhava a sua gestação e a acompanharia no nascimento do bebê. Adelir tinha feito o pré-Natal no sistema público de saúde. Ela vinha de duas cesarianas, que considerava desnecessárias, e tinha buscado informações, leituras e grupos de apoio para ajudá-la a, dessa vez, ter um parto normal. Depois de examiná-la, a médica disse-lhe que, como a criança estava em posição pélvica (sentada) e ela já tinha feito duas cesarianas, precisava se submeter, de imediato, a mais um procedimento cirúrgico. Se não o fizesse, haveria risco de romper a cicatriz, causando a morte dela e do bebê.

Adelir não aceitou. Ela sabia que, nessas mesmas condições, muitas mulheres no Brasil e fora dele tiveram seus filhos por parto normal. Seu bebê estava bem, ela estava bem. Assinou um termo de responsabilidade e deixou o hospital. Tentaria um outro, em Santa Catarina, já que Torres está próxima do município catarinense de Araranguá. Adelir esperava encontrar uma equipe de saúde que respeitasse a sua escolha de ter um parto humanizado.

Ao dizer “não”, Adelir tornou-se perigosa. Como uma mulher, usuária do SUS, moradora da zona rural, recusa-se a cumprir a ordem de uma doutora? Como ela ousa escolher o que considera melhor para ela e para seu bebê? Não como uma inconsequente, mas como alguém que se preparou para o parto, informou-se, contratou uma doula para ajudá-la? Nem mesmo quando botam um termo de responsabilidade diante dela, sempre assustador para todos e mais ainda para os pobres, Adelir recua. Ela assina. E vai para casa continuar a se preparar para dar à luz sua filha.

Porque é uma irresponsável, como teria dito uma das médicas? Não é o que parece. O que se torna claro no comportamento de Adelir é que ela tem a coragem de se responsabilizar. E se responsabilizar é ser mãe. Adelir, nesse momento, já é mãe da sua filha. Ao decidir só aceitar a cesariana se a equipe de saúde comprovar que é de fato necessária, ela está decidindo o que é melhor para ela e para a filha que há nove meses acolhe, alimenta e cuida, com quem há nove meses convive dentro da sua barriga. Do seu corpo. Ao dizer “não” à médica, Adelir está protegendo sua filha.

Quem já ousou enfrentar um diagnóstico médico, seja na rede pública ou na privada, sabe como essa é uma batalha penosa. Pode, inclusive, apalpar o tamanho da coragem de Adelir. Os médicos – em geral, mas sem esquecer de uma minoria que luta bravamente por relações mais horizontais e respeitosas – consideram-se os donos dos corpos. Não só do deles, mas do meu e do seu. A medicina como um poder capaz de normatizar os corpos é uma construção social e histórica, com capítulos fascinantes. Para quem se interessar, há uma vasta bibliografia a respeito. Aqui, o que vale assinalar é que o gesto de Adelir não é banal. O significado de sua recusa é enorme. Na tentativa de preservar a escolha que considerava melhor para ela e para a filha, sem saber, Adelir, essa extraordinária mulher comum, moveu placas tectônicas.

É fundamental lembrar que Adelir tinha todo o direito de questionar a decisão médica. Tinha porque essa é uma prerrogativa legal de qualquer pessoa. E tinha porque o Brasil é um dos líderes mundiais de cesarianas, um dos títulos que envergonha o sistema de saúde brasileiro. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que a cesariana é necessária em no máximo 15% dos casos. No Brasil, as cesarianas representam mais da metade dos nascimentos. Na rede privada, ultrapassam os 80%. Esse dado é sempre repetido, pouco enfrentado, porque serve a vários interesses mercadológicos. Também porque a cultura da cesariana está entranhada nos profissionais da medicina, a começar pelas universidades em que são formados. Considerada mais prática e rápida, mais adequada à sociedade de consumo, a cesariana é a primeira opção, quando deveria ser a última – sem que os riscos de uma cirurgia e desse nascer com hora marcada, antes que o bebê esteja de fato pronto, seja sequer avaliado como prioridade.

Adelir sabia disso. Ela mesma se considerava vítima de duas cesarianas desnecessárias. Basta conversar com mulheres grávidas para perceber que o medo de serem enganadas por seus médicos é um fator de estresse presente durante toda a gestação, que se aprofunda no momento em que a hora do nascimento se aproxima. Qualquer um que se dispuser a escutar mulheres que sonhavam com um parto normal e tiveram uma cesariana ouvirá que, perto do fim da gravidez, os médicos deram uma justificativa supostamente científica para determinar a cirurgia. Por medo de confrontarem-nos e colocarem seu bebê em risco; ou mesmo serem abandonadas, como alguns médicos ameaçam; por sentirem-se frágeis num momento tão delicado; porque é muito difícil se contrapor a um doutor que diz que seu bebê “poderá entrar em sofrimento se não fizer uma cesariana”, elas aceitaram a cirurgia e tiveram seu parto roubado. Se todas as desculpas usadas para fazer cesarianas no Brasil fossem de fato justificativas embasadas e escolhas corretas, o Brasil não exibiria as estatísticas que nos envergonham. Ou seria preciso fazer uma investigação sobre o que haveria de errado com o corpo das brasileiras, que já não conseguiriam parir seus bebês pelo método natural.

É possível questionar se, no caso de Adelir, a cesariana não era mesmo necessária. Se o que aconteceu com ela não teria sido dificuldade de aceitar seus limites, incapaz de abrir mão do seu desejo por um parto normal. Se Adelir não teria tido um surto de onipotência, tão comum no nosso tempo em que supostamente tudo pode. Mas não parece ser esse o caso. Mais tarde, Adelir diria ao jornal Zero Hora: “Não era uma questão de vaidade. Era uma questão de saúde. Eu nunca descartei a cesariana, mas queria que essa fosse a última alternativa”.

Não sou favorável a demonizações, elas costumam empobrecer o debate. As médicas que deram início ao processo de sujeitação de Adelir estão inscritas numa tradição da medicina que dá ao médico o poder de controlar os corpos. Talvez sequer tenham questionado as relações produzidas por essa ideologia algum dia – ou mesmo tenham suspeitado de que precisassem questionar. Mas, ainda assim, podemos supor que também para elas tenha sido uma decisão angustiante, que também para elas não foi e não tem sido fácil ter obrigado uma mulher a se submeter a uma cirurgia, com todos os riscos de uma cirurgia, contra a sua vontade, e arrancar um bebê do seu corpo. Talvez elas tenham ficado com medo de serem responsabilizadas se algo acontecesse com Adelir e seu bebê. Talvez não tenham sido ensinadas a conduzir um parto normal nessas circunstâncias. Talvez, nesse quadro, só soubessem fazer uma cesariana.

Acho difícil acreditar que quisessem o mal de Adelir e sua filha. Obviamente, essas ponderações não as eximem da responsabilidade por seus atos. Mas, se quisermos avançar nesse debate, é preciso olhar pessoas como pessoas. Nem Adelir é uma heroína, nem as médicas, o promotor e a juíza são vilões. Nem as médicas, a juíza e o promotor são heróis, nem Adelir é uma vilã. Duas narrativas opostas que se digladiam nas redes sociais como se a vida fosse fácil assim.

O fato, aqui, é que as médicas Andreia Castro e Joana de Araújo mostraram-se incapazes de aceitar a escolha de Adelir. Buscaram na justiça os meios para impor sua decisão de fazer uma cesariana. Pediram ajuda para restaurar seu poder que, com uma recusa, Adelir tinha esvaziado. A justificativa: preservar a vida da mãe e do bebê, em risco iminente. No início da noite de 31 de março, o promotor de Justiça Octavio Noronha foi contatado pela Secretaria de Saúde de Torres. Por volta das 23 horas, entrou com a ação. Meia hora depois, a juíza Liniane Maria Mog da Silva deu a liminar.

A sequência de atos produziu a cena brutal: Adelir, em trabalho de parto, arrancada de sua casa e, em seguida, alijada do seu corpo. Medicina e Justiça se uniram para submetê-la, tornando público aquilo que é privado. Não fosse nossos olhos viciados em aceitar procedimentos invasivos com naturalidade, quando se inscrevem no âmbito da medicina, ter a barriga cortada e a filha tirada do útero, contra a vontade, seria uma cena de tortura forte até para o cinema. Que isso tenha se passado no aniversário de 50 anos do golpe que instaurou a ditadura civil-militar no Brasil é uma coincidência que pode provocar questões interessantes sobre as relações entre o Estado e os cidadãos na democracia.

A partir desse momento, esses dois poderes – a Medicina e a Justiça – constroem uma narrativa para Adelir, que pretendem impor como história única. Ela seria a mulher ignorante e irresponsável que botou em risco a vida da própria filha por conta de um capricho. Dessa construção mais elaborada para uma outra, a da “louca que tentou matar o próprio bebê”, foi só um clique nas redes sociais. É essa a mensagem de uma decisão – e de uma ação – como essa. Sabemos bem o que significa uma mãe supostamente não proteger o filho numa cultura como a nossa, que coloca a infância no pedestal do futuro. Precisamos entender, portanto, o tamanho do rótulo que tentaram – e talvez consigam – colar em Adelir, assinalando ela e todos os seus filhos, especialmente essa, que acabou de nascer, para toda a vida. Se conseguirem impor esse estigma, a perversão é quase sem nome.

No passado bem recente teria sido fácil impor essa história única sobre Adelir. No passado bem recente talvez Adelir não tivesse ousado discordar de um médico. Essa é uma mudança gigantesca. Nos últimos anos, milhares de mulheres no Brasil inteiro criaram fóruns de discussão, escreveram livros, fizeram filmes, produziram blogs, organizaram-se também institucionalmente para retomar a posse do próprio corpo na gestação e tirar o parto normal da marginalidade a que foi condenado pelo sistema de saúde brasileiro. Reabilitar o parto como ato natural e potente da mulher – e não como doença na qual os corpos são sujeitados a um outro. São mulheres de todas as profissões, e também médicas, cientistas, enfermeiras, parteiras e doulas. Nesses espaços, mulheres de todos os cantos do país e do mundo trocam informações como, num passado mais distante, antes que esse conhecimento fosse destituído pelo saber médico, consultavam mães, tias e avós. Quando necessário, promovem manifestações e atos públicos em favor do parto humanizado – e contra a violência obstétrica.

Renata Penna/Divulgação

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Essa rede tem sustentado simbolicamente Adelir e difundido uma narrativa que se contrapõe à outra, a da mãe desnaturada que precisou ser levada pela polícia ao hospital para fazer uma cesariana para salvar o bebê. A hashtag “SomosTodasAdelir” ganhou representação nas redes sociais.

Na sexta-feira (11/4), foram promovidos atos públicos em várias cidades brasileiras, denunciando o que aconteceu com Adelir como violação de direitos, violação concreta do corpo. Nessa narrativa construída nas redes sociais e nas ruas, Adelir é uma mulher violada pelo Estado.

Em São Paulo, dezenas de mulheres, muitas delas com bebês de colo, outras com barrigão de grávida, passaram a noite em vigília diante da universidade de direito mais tradicional do estado, no Largo São Francisco. Mulheres com diagnóstico semelhante ao de Adelir revezavam-se no microfone, na manhã de sábado, enquanto bandejas com pedaços de bolo passavam, como se estivessem numa visita de tia. Com a filha de 5 anos pela mão, Luka Franca, 28 anos, contou como, depois de três horas e meia de trabalho de parto, conheceu a menina pelo bumbum, já que ela estava sentada. “Vi aquele bumbumzinho roxo em formato de coração, parecia um picolé de desenho animado”, comparou, toda emocionada. “Esta é a Rosa. Mesmo estando sentada, ela nasceu com cabeça”, brincou. Tatiana Ubinha anunciou: “Depois de três cesáreas desnecessárias, eu rompi com o sistema”. Teve o quarto bebê, que carregava no colo, de parto normal, e está grávida do quinto. Natalia Tribeck contou que fez parto normal depois de duas cesáreas: “Descobri que meu corpo não era falho, o que era falho era o sistema”.

Na tentativa de desqualificá-las, muitos chamam essas mulheres de “as loucas do parto normal”. Poderia ser um elogio, não fosse o fato de que a tarja de “louca” sempre serve, a quem a coloca num outro, como uma desculpa para não escutar o que este tem a dizer. Sempre que as mulheres reivindicam a posse do seu corpo, ou são “loucas” ou são “vagabundas”. Seguidamente, os dois. Quando lutam por protagonismo e autonomia, em especial na gravidez, a estratégia é transformá-las em “exageradas”, “fanáticas”, “histéricas”. E, assim, tentar esvaziar seu discurso. Nesse embate, de novo essa tática ficou clara.

Renata Penna/Divulgação

Renata Penna/Divulgação

Adelir não é uma ativista dessa causa. Apenas uma mulher que ousou sonhar com um parto normal – aspiração ambiciosa no Brasil das cesarianas.

Desde que o caso se tornou público, visões se digladiam em artigos que defendem a necessidade ou não da cesariana de Adelir, ora com argumentos médicos e científicos, ora com argumentos jurídicos. Essa discussão é importante. Mas apenas se as causas que fizeram do Brasil um dos líderes mundiais de cesarianas forem de fato enfrentadas pelo poder público e pela sociedade, para além das intenções e do marketing eleitoreiro. Esse debate é tão acirrado porque, além dos poderosos interesses de mercado, o que está em disputa é algo muito mais profundo: o controle sobre o corpo das mulheres.

De qualquer modo, seja qual for a posição de cada um nesse debate, é preciso pactuar que há algo muito errado com os sistemas de saúde e de justiça de um país quando a única solução encontrada é arrancar uma grávida de sua casa no meio da noite e forçá-la a fazer uma cesariana. Há algo muito grave acontecendo com os representantes desses poderes quando defendem que uma violência como essa é legítima.

Nesse sentido, vale reproduzir aqui a frase estarrecedora do obstetra Corintio Mariani Neto, secretário da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (Sogesp), em entrevista à Folha de S. Paulo:

– Ainda bem que alguém com bom senso entrou na justiça para resguardar a vida dela e do bebê. Se mais (juízes) agissem assim, o médico estaria mais protegido para trabalhar com gestantes.

O grifo é meu. Quando um obstetra e representante de uma entidade de obstetrícia defende que é preciso a intervenção da justiça (e por consequência da polícia), para que médicos trabalhem com mulheres grávidas durante o parto, é hora de parar tudo e rever os princípios. Inclusive os nossos, já que a declaração não causou nem um décimo da estranheza que deveria.

Adelir Lemos de Goes foi violada pelo Estado. Nos seus direitos, no seu corpo. Arrancaram-lhe não só a filha do útero, mas também a esvaziaram de poder em um dos momentos mais radicais da vida de uma mulher. Submeteram-na, coagiram-na. Por ser sujeito e reivindicar seus direitos, ela foi reduzida pela força a um objeto de intervenção médica e jurídica. Mas, Adelir, eu gostaria de dizer a você: que enorme potência teve o seu “não”.

(Publicado no El País em 14/04/2014)

A ditadura que não diz seu nome

O imaginário sobre a Amazônia e os povos indígenas, forjado pelo regime de exceção, é possivelmente a herança autoritária mais persistente na mente dos brasileiros de hoje, incluindo parte dos que estão no poder. E a que mais faz estragos na democracia

 

“Quando se quer fazer alguma coisa na Amazônia, não se deve pedir licença: faz-se.”

A declaração é do gaúcho Carlos Aloysio Weber, ex-comandante do 5º Batalhão de Engenharia e Construção, um dos primeiros a instalar-se na Amazônia na ditadura civil-militar. Em 1971, ele foi entrevistado para um projeto especial da revista Realidade sobre a Amazônia. O repórter fez ao coronel, apresentado como “lendário” em Rondônia, a seguinte pergunta: “Como é possível fazer as coisas na Amazônia e transformar a região?”. O coronel respondeu:

– Como você pensa que nós fizemos 800 quilômetros de estrada? Pedindo licença, chê? Usamos a mesma tática dos portugueses, que não pediam licença aos espanhóis para cruzar a linha de Tordesilhas. Se tudo o que fizemos não tivesse dado certo, eu estaria na cadeia, velho.

É uma declaração de sentidos explícitos – pelo tom em que foi dita, pela certeza da impunidade, pelo orgulho da falta de limites. Pela forma como o coronel vê a Amazônia como território a ser invadido e dominado pela força. O que a ditadura fez na Amazônia, tão longe dos centros de poder e das vozes de resistência, e o que fez com os povos indígenas, ainda precisa ser investigado com muito mais profundidade. Os horrores que já foram descobertos podem ser só a superfície. Mas, se o passado pede luz, o presente precisa ser iluminado com urgência.

Há vários entulhos autoritários corroendo nossos dias, como a Polícia Militar (que, se tem uma história anterior ao golpe de 1964, ganhou mais poderes na ditadura e os mantêm na democracia) e o “auto de resistência” (que serve para a polícia justificar a execução de suspeitos ou desafetos). Mas é no olhar tanto sobre a Amazônia quanto sobre os povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas que o Estado autoritário persiste com mais força e menos resistência na mente da maioria dos brasileiros. Persiste da forma mais perigosa, porque traveste como verdade aquilo que é apenas uma imagem a serviço de interesses políticos e econômicos específicos. Talvez em nenhum outro campo o regime de exceção tenha conquistado tanto êxito ao impor seu ideário. E o mantê-lo na democracia.

A ditadura civil-militar enraizou no imaginário dos brasileiros a visão de que a floresta amazônica é um território-corpo para exploração. Se a lógica do explorador/colonizador norteou historicamente a “interiorização” do país, é na ditadura que ela ganha um pacote ideológico mais ambicioso. As peças de propaganda que o regime produziu continuam vivas, mesmo para aqueles que nasceram depois dela, como os slogans “Integrar para não entregar” e “Terra sem homens para homens sem terra”. É na ditadura que é cimentada a ideia da Amazônia como “deserto verde”, ignorando toda a riqueza humana, a diversidade cultural e biológica que lá existia, ignorando a vida. A disseminação dessa fantasia é tão bem sucedida que se torna verdade. E se torna uma verdade que continua verdade após a redemocratização. Tão verdade que cria uma realidade paradoxal: uma ex-guerrilheira, presa e torturada pelo regime, é quem, na democracia, leva adiante o modelo de desenvolvimento da ditadura para a Amazônia.

É primeiro no governo Lula, e com mais força e empenho a partir da posse de Dilma Rousseff, que grandes obras previstas pelos militares, como a hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu – a mais polêmica, mas não a única – são impostas aos povos da floresta. O conturbado processo que forçou a construção de Belo Monte, entre outras arbitrariedades violou tanto a Constituição quanto tratados internacionais. A Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assegura aos indígenas o direito de serem ouvidos em empreendimentos que vão afetar seu modo tradicional de vida – e não foram. Outras hidrelétricas estão em curso, com grande resistência de povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, como as usinas previstas para o rio Tapajós, no Pará.

É nesse governo eleito que a Força Nacional baixa sobre as comunidades tradicionais que vivem há séculos na área dos megaprojetos com a justificativa, entre outras, de garantir a segurança dos pesquisadores que farão o inventário socioambiental. Na prática, é usada para reprimir a resistência legítima desses povos, cujos direitos são amparados pela Constituição. É na democracia que grandes empresas financiadas pelo dinheiro público do BNDES executam obras que alteram o ecossistema regional sem cumprir suas obrigações, na forma de condicionantes, causando estragos irreversíveis e aniquilando vidas, como se viu agora na enchente histórica do rio Madeira.

É também nesse período democrático que um instrumento criado na ditadura, a “Suspensão de Segurança”, tem sido usado para garantir a continuidade dos megaempreendimentos, como foi denunciado no último 28 de março na Organização dos Estados Americanos (OEA). O instrumento permite a tribunais superiores anular decisões judiciais de instâncias inferiores, independentemente do mérito, se as cortes entenderem que as sentenças representam risco de “ocorrência de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas”. O mecanismo controverso tem sido usado para derrubar decisões favoráveis a comunidades afetadas por grandes obras, como Belo Monte e a estrada de ferro de Carajás.

E a maioria dos brasileiros não estranha – ou estranha muito pouco – essa versão do “Brasil Grande” da ditadura que se consolida com outros nomes na democracia. Não decodifica essa violência como violência, não decodifica o autoritarismo como autoritarismo. O mais perigoso é sempre aquilo que não detectamos como perigoso, aquilo que se naturaliza como inevitável – e na Amazônia a violência de Estado tornou-se natureza.

Poderia ser uma surpresa o fato de o mito amazônico forjado na ditadura persistir na democracia. Mas não chega a ser, porque é esse mito, convertido em verdade única, que permite que a Amazônia siga sendo tratada como objeto de espoliação, seja pelo Estado, seja pela iniciativa privada. Um corpo a ser violado, à disposição de exploradores de passagem, sejam eles técnicos do governo, políticos de amplo espectro partidário, grileiros, madeireiros, mineradores e empreiteiros. Quem nesse território permanece, nele nasce, tem raízes e constrói memória torna-se um obstáculo, como os povos indígenas. Um não-ser, como os ribeirinhos e quilombolas, os invisíveis entre os invisíveis. Um obstáculo não ao desenvolvimento, como se repete à exaustão, mas à manutenção desse mito – à continuidade do ideário que legitima, há décadas, a destruição da floresta e dos povos da floresta para acomodar os interesses dos centros de poder.

Esta é uma entre várias razões para que a afirmação de pertencimento dessas populações seja vista como ilegítima, já que a floresta não seria terra para a vida, mas para a exploração e o uso. Como reivindicar a construção de sentidos naquela que é objeto de passagem e de dilapidação? A Amazônia serve ao centro, numa lógica que ainda obedece, na segunda década do século 21, aos preceitos do sistema colonial, na qual a periferia serve à matriz.

Para muitos, incluindo burocratas do governo instalados em ministérios como o de Minas e Energia, a Amazônia é apenas uma fonte de matérias-primas e de energia para as grandes indústrias que produzem para exportação. Tem sido, também, uma fonte de pagamento de compromissos não pronunciados de campanha, na forma de grandes obras financiadas pelo BNDES. A floresta é também aquela que pode ser derrubada para expandir a fronteira agropecuária, num momento em que os ruralistas constituem a maior bancada suprapartidária, em um Congresso que se pauta pela chantagem, e alcançam níveis inéditos de influência em um governo que assegura apoio pela barganha. É ainda uma reserva simbólica para unir o Brasil que a desconhece num ufanismo tortuoso contra “os gringos que querem tomar a Amazônia”. Nada parece mais eficaz do que criar uma ameaça externa para engordar nacionalismos de ocasião, que só favorecem aos mesmos de sempre. Se é disso que se trata, convém perceber que há um tipo de “gringo” que há muito está lá, em megaprojetos de multinacionais que expulsaram as populações locais com o apoio de sucessivos governos. Na ditadura, mas também na democracia.

A Amazônia é devastada em nome de várias manipulações, concretas e simbólicas. Para que continue a servir aos interesses dos centros de poder, é preciso que o modelo de exploração persista. E, para que persista, quando o aquecimento global e a destruição do meio ambiente se tornam temas vitais no mundo, quando a questão da água ascende ao topo da pauta, é preciso forjar novos inimigos. É nesse contexto que os povos indígenas passam a ser vendidos à população, predominantemente urbana do país, como “entraves ao desenvolvimento”. Isso no discurso tanto de setores conservadores da sociedade quanto em falas oficiais de setores do atual governo.

Aqueles que pertencem à terra são convertidos em despertencidos, o sentido mais profundo de “entrave”, para que a Amazônia se mantenha no mesmo lugar de corpo para violação. Em nome de “interesses nacionais”, quando, de fato, o que se mascara como nacional são, historicamente, projetos de poder de grupos políticos específicos e projetos de lucro de grupos econômicos privados. Estes, fazem alianças circunstanciais ou permanentes para manter a lógica de espoliação intacta. Fizeram na ditadura, fazem na democracia. Sem que se estranhe o suficiente, porque a distância da Amazônia não é apenas geográfica. Para compreendê-la é preciso se arriscar à alteridade – e nada mais perigoso para quem quer manter seus privilégios do que experimentar outras possibilidades de estar no mundo.

Os povos indígenas resistem desde 1500, mas nesse século ampliaram sua voz, pelas possibilidades abertas pela internet, e passaram a divulgar suas narrativas múltiplas. Em comum, a resistência ao genocídio que segue em curso e ganhou roupagens mais sofisticadas. É também por isso que os ataques contra esses povos se acirraram, não apenas na forma de agressões físicas e destruição de aldeias, mas nos vários projetos que tramitam no Congresso e que significam, na prática, sua aniquilação física e cultural. Como não é mais possível silenciar a sua voz, é preciso transformá-los em inimigos. O inimigo não se escuta, diga o que disser, porque não lhe é reconhecida a legitimidade para dizer. Esse é o objetivo da bem sucedida propaganda em curso, que coloca os mais de 200 povos indígenas, habitantes também de outros ecossistemas além da Amazônia, como “entraves ao desenvolvimento” do Brasil. Por estarem no caminho das grandes obras, por estarem coletivamente sobre as terras cobiçadas para lucros privados.

Nada é mais autoritário do que dizer ao outro que ele não é o que é. Essa também é parte da ofensiva de aniquilação, ao invocar a falaciosa questão do “índio verdadeiro” e do “índio falso”, como se existisse uma espécie de “certificado de autenticidade”. Essa estratégia é ainda mais vil porque pretende convencer o país de que os povos indígenas nem mesmo teriam o direito de reivindicar pertencer à terra que reivindicam, porque sequer pertenceriam a si mesmos. Na lógica do explorador, o ideal seria transformar todos em pobres, moradores das periferias das cidades, dependentes de programas de governo. Nesse lugar, geográfico e simbólico, nenhum privilégio seria colocado em risco. E não haveria nada entre os grandes interesses sem nenhuma grandeza e o território de cobiça.

Quando alguém, mesmo em círculos letrados, afirma que “sem Belo Monte não vai dar para assistir à novela das oito ou entrar no Facebook”, ou brada que “índio tem terra demais”, está cometendo muitas impropriedades. Mas está também mantendo vivo o ideário da ditadura sobre a Amazônia e os povos da floresta. No momento em que o Brasil disseca o golpe que completou 50 anos, tão importante quanto jogar luz sobre o passado é compreender o que dele permanece entre nós – com a nossa estreita colaboração.

(Publicado no El País em 31/03/2014)

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