A literatura é capaz de transformar o seu mundo?

Descubra em 2011

Não sou muito dada a inícios convencionais de ano. Recomeço tantas vezes num ano só e sempre em datas imprevistas que não vejo muito sentido em festejar um dia específico do calendário. E o fato de não encontrar sentido na comemoração da data não me torna nem melhor nem pior do que ninguém. Mas como de algum modo a maioria das pessoas para – ou é parada – nessa época para pensar na vida e promover um recomeço simbólico, quero dar uma sugestão. Além das metas de sempre – parar de fumar, perder uns quilos, se matricular na academia de ginástica etc etc –, minha proposta é que cada um de nós se arrisque a descobrir a literatura. Tenha a coragem de chutar para o ano que passou a surrada desculpa do “não tenho tempo para ler” e se carregar para o futuro com espaço para o novo que vem das letras. Por quê? Por nada de útil. Por tudo o que importa.

No Paiol Literário, um evento que leva a Curitiba escritores para uma entrevista pública, há uma pergunta clássica e recorrente: “A literatura é capaz de transformar o mundo?” Ela vem entrelaçada a uma outra: “Qual é a importância da literatura na vida cotidiana de cada um?”. Quem criou essas duas perguntas no início do projeto, em 2006, foi José Castello – jornalista, crítico literário, escritor e uma das pessoas mais gentis que andam por esse mundo. Depois, Luís Henrique Pellanda, também jornalista e escritor, seguiu com elas ao substituí-lo no posto de entrevistador.

Perguntei a Pellanda se ele poderia emprestar algumas respostas colecionadas ao longo dos anos para publicar aqui nesta coluna. E ele, que também é um homem muito gentil, me enviou sete. Eu escolhi as três que mais me cutucaram com um dedo delicado, mas incisivo, para compartilhar com vocês nessa conversa de virada de ano. Acho que são respostas que dão coceira na alma. E coceiras da alma, na minha opinião, só se resolvem com arte. Com literatura.

Sérgio Sant’Anna, autor, entre outros, de Um Crime Delicado e O Voo da Madrugada, ambos publicados pela Companhia das Letras, respondeu que a literatura dá ao leitor uma possibilidade imperdível: “Ler não é só adquirir conhecimento ou experiência de vida. É também a possibilidade de ter outra vida, de viver o imaginário. E não é só o escritor que tem isso. O leitor também tem. Ele é um cara que vive dupla ou triplamente”.

E, em seguida: “A literatura é um ato de prazer, que não deve ter segundas intenções. Ela dá aos leitores um espaço muito maior. Se você está lendo um livro, se vê obrigado a criar junto com ele — algo que, na televisão, não existe. Na TV, você pega as coisas mais mastigadas, uma torrente de anúncios e de segundos interesses. É muito ruído.”

Silviano Santiago, autor, entre outros, de O Falso Mentiroso e Anônimos, ambos editados pela Rocco, diz que todo leitor é também escritor. Ele afirma: “É inegável que a literatura tem uma função, assim como todas as artes têm. O primeiro cuidado a ser tomado, se a gente fala da função da literatura, é não fazer uma divisão entre produtor e consumidor. Ou seja, não fazer distinção entre escritor e leitor. Acho que a literatura tem a mesma função para ambos. Não existe um escritor que não seja leitor. Todo leitor é, por sua vez, um produtor de texto. Nós, escritores, escrevemos em uma folha de papel ou na máquina ou no computador, enquanto o leitor escreve naquilo a que os jesuítas chamavam de ‘folha de papel em branco da mente’”.

Santiago diz também que, ao ler, o leitor se apropria daquele mundo e o torna seu. Não apenas seu por estar dentro dele, mas seu como ele mesmo. “O processo de leitura é um exercício de alteridade. É você entrar em um determinado mundo que não é o seu, no qual se entra muitas vezes por um processo de surpresa. Você não esperava aquilo de maneira alguma e, de repente, entra e se encanta com aquele mundo. Quanto mais se entra naquele mundo, mais se apropria dele, mais torna aquele mundo você mesmo. O leitor sensível, inteligente, sempre conseguirá ver as relações estreitas entre aquilo que está lendo e a possibilidade de transformação, seja da realidade imediata, a realidade do mundo, seja ainda e, sobretudo, de si próprio.”

A literatura nos dá muito. Mas não promete nada. É o que disse Luís Henrique Pellanda, autor de O Macaco Ornamental (Bertrand Brasil), ao trocar de lado e responder a uma pequena entrevista para esta coluna. “A literatura não promete felicidade alguma — pelo menos não do tipo clássico, ou seja, o tipo imaginário — e não nos oferece garantias de finais felizes, nada disso. Ela nos amplia a vista de casa, nos mostra o outro — igual e diferente de nós — e exige que nos comparemos a ele, que nos analisemos e, de alguma forma, promovamos reformas internas”.

Ao responder à sua própria pergunta sobre o poder de transformação da literatura numa crônica recente, Pellanda disse lindamente: “Literatura, para mim, pode ser simplesmente a maneira como reordenamos, há milênios, as mesmas histórias, fabulação sobre fabulação, mentira sobre mentira, verdade sobre verdade, e o uso pessoal — íntimo, social, político, intelectual, espiritual — que fazemos delas. Se a literatura é capaz de mudar o mundo? Eu diria que o mundo em que vivemos, bom ou ruim, já é o mundo da literatura. Só ela dá conta das nossas histórias de amor”.

Beatriz Bracher, autora, entre outros, de Antonio e Azul E Dura, ambos publicados pela Editora 34, respondeu à mesma pergunta em duas etapas. Na primeira, no Paiol Literário, ela disse: “A arte pode transformar o mundo ou não, como muitas outras coisas, como as ideias e a política. Mas não acho que ela tenha uma proeminência nesse aspecto. Ela pode transformar o mundo simplesmente por fazer parte dele. Ela está aí. Agora, essa crença de que a arte transformaria radicalmente o mundo, que criaria um novo homem, que nos traria uma espécie de iluminação — não acredito nisso”.

“Por que é importante ler?” – ela pergunta a si mesma. “Não sei. Acho que ler um livro é importante para você não estar aqui nem agora. Para você não ser você por um tempo. Para você ser os outros e habitar outros lugares durante o tempo em que estiver lendo. E, quando você voltar ao aqui e ao agora, a você mesmo, voltará com os olhos muito mais aguçados. Eu saio de um livro sempre muito comovida, ou tocada, ou agressiva. Sempre me transformo de alguma maneira. Fala-se muito que temos uma grande afeição ao caos, que o mundo é informe e que a arte daria forma às coisas. Na verdade, temos pânico do caos. Nós não conseguiríamos viver sem alguma ordem na nossa história. E o que a literatura faz é desordenar um pouco isso, mostrar outras maneiras de organizar nossa vida”.

Beatriz foi para casa e continuou provocada pela pergunta. Enviou então um email a Pellanda. E um bem bonito: “Por que é importante ler? No nono e último círculo do Inferno, de A Divina Comédia, estão os traidores de seus hóspedes. Dante conta que eles estão perpetuamente imersos no gelo apenas com a cabeça de fora e os rostos voltados para cima, impedidos de continuarem a chorar, pois as lágrimas do ‘primeiro pranto, qual viseira de cristal’, congelam-se depois de inundar ‘do olho a cava inteira’. Fiquei pensando se a literatura também não é a possibilidade de abaixar o rosto e chorar de olhos fechados. Desprender-se de uma só dor e poder chorar, inclusive, a dor de muitos outros”.

Como se pode abrir mão de algo assim? Viver sem essa possibilidade? É Pellanda quem nos sacode: “Não ler, em muitos casos, é sintoma de preguiça e falta de condicionamento. Um mal prosaico. Muita gente não lê por levar uma espécie de vida mental sedentária. Aceitam que sua fome tão humana de fabulação seja alimentada pela TV ou pelos blockbusters e, com isso, apenas engordam sua passividade. Digo, de cara, que quem não lê perde a chance de se mostrar ativo em relação ao seu mundo e ao seu tempo. Perde vitalidade. Perde uma ótima oportunidade de se treinar para uma vida mais rica e, quem sabe, feliz”.

No Brasil, um país onde se lê tão pouco e onde metade dos adolescentes tem dificuldades para interpretar um texto, acredito que é preciso profanar a literatura. Aprendi isso com o poeta Sérgio Vaz, criador da Cooperifa, o maior sarau de poesias do país. Os livros precisam deixar de ser sagrados e virar matérias das ruas, tocados por muitas mãos, marcados por lágrimas, suor e gordura. Antes de iniciar a leitura, é preciso apalpar, cheirar, bolinar o objeto que contém a história – ainda que isso seja feito virtualmente. É importante perder o medo dos livros, um excessivo respeito. Incinerar para todo o sempre a ideia de que a literatura é território restrito dos que supostamente sabem mais e torná-la matéria permanente das nossas vidas. Espécie de feijão e arroz da alma.

Não importa o que você lê nesse primeiro movimento, importa que você comece a ler. Leia por prazer. Leia por temor. Leia por coragem e por inocência, fingindo desconhecer que não será o mesmo depois do ponto final. Ninguém precisa começar lendo Proust – nem mesmo precisa ler Proust alguma vez na vida, embora eu ache que vale a pena. Leia aquilo que lhe dá prazer – ainda que seja um prazer vindo do incômodo – e crie uma história só sua com os livros, movida pela sua própria busca. Vá à livraria ou à biblioteca como se fosse a uma festa de gente desconhecida – e até esquisita – e veja com quem tem afinidade, quem lhe sorri, mostra a língua ou um naco da coxa.

O melhor da literatura é que ela não nos dá nenhuma resposta. Nos dá algo muito melhor: nos dá novas perguntas. Perguntei a Pellanda de onde veio a indagação que motivou este texto. Ele respondeu: “De onde vem uma pergunta? De nossa compulsão por saber das coisas, uma compulsão imortal, que nunca será saciada, pois jamais saberemos de nada. E não é ela, essa incerteza sedutora, que nos leva a escrever e a ler? Já se tornou um clichê dizer que a boa literatura não nos responde coisa alguma, e que somente nos faz mais perguntas, apenas perguntas, e irrespondíveis. É um lugar-comum, ok, mas está correto. A última frase de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, é uma pergunta e a usei como epígrafe de meu primeiro livro de ficção. Depois de mais de oitocentas páginas, não se conclui nada, e o narrador de Mann se pergunta: ‘Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?’. Será? Não sabemos. Não há resposta possível, nunca houve. E a literatura é isso, fazer as perguntas difíceis, às vezes as constrangedoras. Como aquelas que as crianças nos fazem”.

Para mim não há vida sem literatura. E mais tarde, num outro dia, darei minha própria resposta à pergunta maior do Paiol Literário. Por enquanto, desejo a você que, em 2011, se arrisque mais. Leia. Se já tem intimidade com os livros, aprofunde-a. Tente um território novo. Fale sobre livros em vez de falar mal do chefe, do vizinho, do colega. Faça um favor a si mesmo: prometa que, no novo ano, jamais dirá que não tem tempo para ler.

Talvez a gente nunca saiba se a literatura é capaz de transformar o vasto mundo de fora. Mas podemos nos arriscar a descobrir – e esta é uma tarefa pessoal e intransferível – se a literatura é capaz de transformar o nosso mundo. O meu, o seu. Acredito profundamente que sim. Se tivermos a coragem de tentar, o mundo de dentro vai se alargar. E andaremos por aí carregando nosso próprio horizonte.

Termino com mais algumas ótimas frases de Luís Henrique Pellanda. E as pego emprestadas como meus votos de Ano-Novo:

– Quer dizer, você sabe ler e não lê? Onde é que você está com a cabeça? Achou seu espírito no lixo? Leia. Aproveite.

(Publicado na Revista Época em 27/12/2010)

Mau humor natalino

Cadê??? Alguém roubou meu espírito de Natal!

Eu não tenho espírito natalino. Hoje mesmo acordei, enfiei a cara dentro de mim, botei até os óculos para enxergar melhor, e não, decididamente não. Não encontrei nem mesmo uma meia furada que o Papai Noel pudesse ter esquecido em algum Natal anterior. Vasculhei cantos remotos, zonas obscuras, e não topei nem com uma guirlandinha. Me sinto uma pária por causa disso. Eu deveria estar feliz, saltitante até, abraçando pessoas na rua, mas não consigo fingir. Só a palavra Natal já me dá vontade de grunhir. Grrrrrhuuuuuunft. Lembram do Clint Eastwood em “Gran Torino”? Sou eu no Natal.

Vocês pensam que minha família se comove com a minha situação? Nada. Me ignoram solenemente. Vão ler esta coluna e revirar os olhos antes de pregar uma bola de Natal na minha testa. Há anos tento convencê-los a marcar o Natal para janeiro, quando os aeroviários não ameaçam greve, as lojas já estão liquidando pela metade do preço e não há vizinhos rompendo com todos os paradigmas musicais ao cantar Noite Feliz em ritmo de pagode. Ainda que exista gente na minha família que realmente celebra o nascimento de Cristo, não há nenhuma garantia de que Jesus tenha nascido nesta data. E, convenção por convenção, podemos criar a nossa.

Neste ano, foi por pouco. Estavam motivados pela coluna que escrevi aqui no Natal passado. E talvez, é uma possibilidade, o fato de eu ter chamado a polícia na semana do Ano-Novo possa ter influenciado. Quase os convenci. Mas depois, algo aconteceu, algum complô secreto, e retrocederam. Liguei para saber se estava tudo bem lá para os lados de Ijuí e minha mãe me deu a notícia à queima-roupa. “Mudamos de ideia! Decidimos passar o Natal na tua casa em São Paulo!”. Demorei uns cinco minutos para recuperar a capacidade da fala, minha mãe preocupada do outro lado que eu pudesse estar sofrendo um ataque epiléptico.

Deixa eu explicar melhor. Eu assumo que não tenho espírito natalino, mas filha, mãe, irmã desnaturada não sou. Vivo tentando sequestrar meus pais para uma temporada na minha casa. E sempre esbarro na resistência do meu pai, cuja viagem mais longa que admite empreender é até a cancha de bocha nos finais de semana. Gasto horas tentando convencer minha filha que o trânsito de Porto Alegre se tornou insuportável e o melhor a fazer é se mudar já para São Paulo. Ninguém sequer me escuta.

Meu problema é com o Natal. Desde o telefonema da minha mãe, toda vez que ouço a palavra Natal eu bebo. Virou uma piada entre os amigos. Eles falam, só para me sacanear: Natal! E eu saio correndo atrás de uma dose de cachaça. Depois de um tempo, meu marido ficou com medo que eu me tornasse alcoólatra e inverteu o processo. Eu levanto para ir ao banheiro do restaurante e ele avisa que não devem tocar no assunto para eu não me exceder na bebida. Volto e está todo mundo com cara de culpado. Sim, sim

Desenvolvi uma fobia natalina. E a cada ano ela piora, até porque o Natal começa cada vez mais cedo. Mal acaba o Dia das Crianças e já começa o Natal. Em outubro! Tenho enjôo quando vejo decoração natalina e calafrios quando ouço músicas natalinas. Eu, que sou uma militante do desarmamento e nunca tive nenhuma arma mais letal que uma faca de cortar pão, quando vejo um Papai Noel tenho vontade de metralhá-lo. E não, não estou criticando o comércio. Eu acredito no livre arbítrio. Se enquadra quem quer. Se eu fosse comerciante e existisse um monte de gente com dinheiro no bolso disposta a pagar o dobro pelo que vendo, eu encontraria um sentido para o Natal. Possivelmente estaria sorrindo.

A esta altura já devo ter chateado alguns leitores. Sim, porque quando digo que não gosto de Natal, que odeio Natal, que tenho horror ao Natal, a primeira pergunta é se fico deprimida. Os deprimidos de fim de ano recebem toda a compreensão. E até um olhar compungido. Mas não, me recuso a mentir. Eu não fico deprimida no Natal. Nem dou a mínima para o Ano-Novo. Eu apenas não consigo encontrar nenhum sentido. Nem um bem pequenininho.

Para não cometer o pecado do etnocentrismo, empenhei parte deste mês de dezembro na tentativa de compreender o espírito natalino dos outros. Descobri que, em geral, o espírito natalino é o que há de pior! Pode ser que na sua cidade seja diferente, mas em São Paulo é o mês mais antissocial do ano. A maior parte das pessoas está à beira de um ataque de nervos. E algumas têm um ataque de nervos. Você esbarra sem querer em alguém, pede desculpas e a criatura xinga gerações da sua família que ainda nem nasceram.

Os ônibus estão lotados em horários novos, é preciso se humilhar para conseguir um táxi, o trânsito para a qualquer hora do dia e há gente quase se estapeando nos shoppings. Ontem mesmo um taxista me xingou de “maldosa” porque a corrida custou R$ 30 reais e eu dei duas notas de R$ 20. “Você acha que eu tenho obrigação de ter troco?”, reclamou bem desaforado. Sim, eu achava que ele tinha de ter R$ 10 de troco. E quase rolamos na sarjeta. Depois, perdoei o motorista maluco. Coitado, ele não sabe o que faz nem o que diz. É só mais uma vítima do espírito natalino.

A verdade é que a maioria de nós está exausto, gostaria de ir para casa botar os pés para cima e assistir a algo bem idiota na TV. Mas não: está lá, comprando. Gastando todo o décimo-terceiro, comprometendo os próximos meses de salário e pegando fila para pagar. Se duvida, sente-se num banco de shopping se encontrar lugar em algum e apenas assista: casais falam coisas cruéis um para o outro, crianças choram e batem pé (ai que vontade de torcer o pezinho!), é um desfile de gente com olheiras no umbigo e dentes trincando, loucas para arrumar uma confusão e desabafar seu fel em algum incauto.

Por que, então? Não sei. Perguntei a vários desconhecidos com que topei nas últimas semanas em situações diferentes. Boa parte deles disse a mesma frase, com uma ou outra variação: “Se eu pudesse dormiria no final de novembro e acordaria em janeiro, quando este pesadelo tivesse passado”. Outro taxista, ao adivinhar em mim uma alma irmã, chorou ao volante enquanto subia comigo a Teodoro Sampaio em primeira. Aos soluços, disse que além de passar um mês dirigindo no pior trânsito do mundo, ouvindo desaforo de clientes estressados, chegaria à ceia do Natal e encontraria uma sogra que o odiava e um cunhado folgado. “E meus filhos vão reclamar que não ganharam o tal do Playstation 3!” Dei batidinhas nas suas costas. “Tap, tap. Pronto, pronto. Coragem, irmão! Tamo junto misturado!”

Se você me lê há mais de um ano, pode estar se perguntando: “Mas de novo ela vai falar mal do Natal?” Sim, no ano passado eu já disse que tinha medo de chester. Depois, destilei ódio contra meus vizinhos de praia nas festas de fim de ano. Mas é o seguinte. Eu poderia estar roubando Papais Noéis de loja, poderia estar matando renas na Paulista, poderia estar arrancando línguas de canarinhos de corais natalinos ou empalando duendes. Mas não. Estou aqui, civilizadamente, apresentando meu ponto de vista. Para mim, falar mal do Natal é um ato político.

Até porque sou uma vergonha. Peco pela incoerência. Falho miseravelmente em minha própria casa. Assim que colocar o ponto final aqui, vou correr para disputar um chester no supermercado. Sim, sim, minha família recusou minha proposta de fazer uma ceia natalina de feijoada e exigiu tradição. Desde quando chester, esta coisa inventada em laboratório, se tornou uma tradição eu não sei. Mas joguei a toalha. Nem mesma sou eu. Quem escreve aqui é um clone. Eu mesma estou de pés para cima, balançando na rede de uma ilha deserta. Sim, ho ho ho. Feliz grrrrrrunfthzt@%$ para você também!

(Publicado na Revista Época em 20/12/2010)

Tapas e beijos

Podemos chamar de amor uma relação violenta?

O novo filme de João Jardim, “Amor?” (Prêmio do Júri Popular no Festival de Brasília), narra histórias reais de violência nas relações de casal. Depois de ouvir 60 depoimentos de homens e mulheres anônimos que cometeram ou foram vítimas de agressões, o diretor escolheu oito para serem interpretadas por atores famosos. Quando assisti à “Amor?”, numa sessão especial promovida pelo Instituto Avon e Copacabana Filmes, em São Paulo, deixei a sala pensando ter visto um filme bom com alguns momentos excepcionais, como as interpretações de Lilia Cabral e Julia Lemmertz. Depois, o filme colou em mim. Passei dias me interrogando a partir de questões suscitadas por ele. A força de “Amor?” está em fugir da simplificação tão mais fácil para todos nós: a da pobre mulher submissa espancada por um homem mau.

Os depoimentos nos envolvem e falam com partes mais ou menos invisíveis de nós. Os papéis de vítima e algoz têm contornos menos definidos do que gostaríamos. É nos detalhes que vamos pressentindo a aproximação da violência. Acho difícil que em algum momento, diferente para cada um, quem assiste não se identifique com alguma frase, algum ato, deste laço entre amor e violência que prende duas pessoas adultas.

É aí que o filme acerta mais. Ao fugir dos casos que viram manchete de jornal, aqueles com os quais podemos nos horrorizar e respirar aliviados porque jamais seríamos os protagonistas, ele fala de algo mais insidioso, de uma violência que também é nossa. Com isso, não permite que, ao assisti-lo, permaneçamos descolados, achando que aquilo é de um outro e acontece a um outro que nada tem a ver com a gente ainda bem.

Como disse a atriz Silvia Lourenço, durante o debate: “O filme mexe com o nosso lado sombrio. Me fez pensar sobre o quanto eu me submeto nos meus relacionamentos. Todo mundo tem o lado A e o lado B. Quem assiste ao filme se identifica com ele. Por isso é poderoso e transformador”. Silvia vive uma mulher numa relação homossexual em que o amor vai se tornando violento. Como o depoimento é longo, é dividido com outra atriz. Mas ambas vivem a mesma personagem.

Quando um homem agride uma mulher está cometendo um crime. A Lei Maria da Penha, que criou mecanismos mais eficientes e penas mais rigorosas para reprimir a violência doméstica contra a mulher, é uma grande conquista. Disso todos sabemos. O que é pouco discutido, me parece, é a contribuição da vítima para a violência. Aqui não me refiro a psicopatas que perseguem ou colocam suas vítimas em cárcere privado nem a casos extremos como o da própria Maria da Penha. Me refiro a histórias muito mais frequentes do que costumamos admitir e que permeiam a vida de amigos próximos, quando não a nossa.

Em um casal não existe agressor sem que exista uma vítima. Sabemos disso, mas nem sempre lembramos. Em algum momento agressor e vítima tiveram um encontro – e os encontros só acontecem quando um tem o que o outro busca. Entender o que permitiu este encontro – e, principalmente, o que faz com que ambos permaneçam numa relação destrutiva – é essencial para poder quebrar o ciclo de violência ou criar uma outra identidade na relação que não seja a de vítima nem de agressor.

Ao me referir à contribuição da vítima não estou dizendo que a mulher é culpada, “pediu”, como dizem tantos cretinos por aí. Estou falando sobre algo mais importante que a culpa. O que de meu engatou no que é do outro e permitiu que uma relação amorosa se tornasse também uma relação violenta. E o que me fez permanecer apesar da violência já desvelada.

É ruim para a mulher se ela só for vista como vítima – e só se enxergar como vítima. É verdade, ela foi vítima. Mas ser vítima não é tudo o que ela é. Me parece fundamental que cada mulher metida numa relação violenta consiga buscar dentro de si – e tenha ajuda para buscar dentro de si – qual é ou foi a sua parte nessa arapuca. Acho difícil conseguir romper com a violência se não encontrarmos o que há de ativo mesmo na nossa passividade. Ao se apropriar do que é nosso é possível nos tornarmos mais inteiras – mulheres melhores para nós mesmas. É possível também criarmos enredos mais interessantes para a nossa vida afetiva.

No filme, em pelo menos dois depoimentos de homens, aparece o que poderia ser chamado de “violência da vítima”. Em um deles, um dentista que hoje espanca as mulheres e namoradas, conta que sua mãe era espancada pelo seu pai. Mas que antes de o pai levantar a mão pela primeira vez, a mãe o humilhava diariamente. Este filho – entre o pai e a mãe possivelmente até hoje – justifica a violência física do pai com uma violência anterior da mãe, psíquica e verbal. Em outro depoimento, o homem que tinha esfaqueado uma namorada, fala de sua humilhação. Diz que gostaria de criar uma lei com o nome dele para proteger os homens da violência da mulher.

Nos casos denunciados é comum este tipo de justificativa. Não serve como atenuante. Nada justifica um espancamento ou qualquer outra agressão física. Quem pratica a violência tem de ser impedido, denunciado, julgado e punido. Mas acredito que seja importante escutar o que dizem os agressores – e escutar para além do pensamento que descarta narrativas como esta como mera canalhice.

Existe uma violência que se não se expressa fisicamente. E ela também é destruidora. Algumas mulheres costumam manipular com maestria esta arma subjetiva que não deixa hematomas visíveis. Raramente um homem espanca uma mulher no primeiro dia. Em geral há um longo balé protagonizado por ambos até a primeira vez. E aí as seguintes ficam mais fáceis e, em geral, mais frequentes e violentas.

O primeiro depoimento do filme é interpretado por Lilia Cabral – extraordinária. Ela conta como o casamento se transformou e recomeçou a partir de um rompimento provocado por uma agressão física. Ao contar a história, ela enxerga a violência que é do marido, mas também assume a violência que é sua. E talvez por isso tenha se tornado possível, depois de algum tempo, reinventar a relação. A anterior tinha acabado no momento em que ela foi jogada contra a parede pelo marido. A nova, depois de muita reflexão e namoro, só se tornou viável porque ambos criaram um casamento onde era possível mudar identidades cristalizadas que sufocavam a ambos. Mas, para que isso pudesse acontecer, foi preciso primeiro romper, separar.

Ao abrir com um depoimento fora do padrão da vítima tradicional e do desfecho mais ainda, o filme já inquieta e mostra que não veio para repetir clichês ou apontar culpados. São vários os méritos neste sentido. Um deles é o de retratar histórias de classe média, contrariando a falsa crença de que a violência doméstica é coisa de pobre. Pode ser que ela seja mais visível nas periferias e favelas, até pelo tipo de moradia e a proximidade dos vizinhos. Mas a violência doméstica está em toda parte. E também nos palácios, de onde às vezes é mais difícil escapar e onde os gritos são abafados pelos muros e pelas convenções. Outro mérito é contar a trajetória de agressões em uma relação entre duas mulheres, embaralhando a crença de que a violência pertence aos homens. Poucas coisas são tão perniciosas para a vida das mulheres, aliás, do que a crença de que não somos violentas. Esta é uma das grandes mentiras que, incrivelmente, se sustentam até hoje.

Amor?” é uma boa pergunta em forma de filme. A primeira manifestação da plateia, assim que as luzes se acenderam, foi de uma mulher, uma psicanalista, afirmando que aquelas histórias não tratavam de amor, mas da “patologia da paixão”. Achei muito significativo. É muito reveladora a necessidade de definir se é amor ou não é. E deixar claro que não é. Desqualificando assim o discurso de homens e mulheres envolvidos em relações violentas quando dizem que, mesmo ao bater ou apanhar, ainda amam. Ou que permanecem na relação “por amor”.

Minha opinião é que amor é como arte. É muito difícil definir o que é. E o senso comum ou mesmo o dos “especialistas” vai mudando ao longo do tempo. Dizer que uma relação não é amorosa porque contém violência ou que quem ama não bate é querer tornar o amor algo da esfera do sagrado, limpinho e imune às contradições humanas. Este discurso, pelo avesso, legitima a violência. Se fosse amor, então, a violência estaria justificada, porque o amor é maior do que tudo ou vence tudo, por ele valeria qualquer sacrifício, até apanhar. É colocar o amor, de novo, no âmbito do sagrado, que nos eleva mesmo quando é ruim. E por isso teríamos de suportar qualquer coisa, inclusive agressões.

Não. Sendo amor ou não, pouco importa. Caia fora o mais rápido possível. A violência aniquila a vida. Quando não acaba, literalmente, com ela.

(Publicado na Revista Época em 13/12/2010)

Tropa de Elite em 3D

Há influência do Capitão Nascimento no apoio da opinião pública às operações no Rio?

As operações policiais na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão têm sido chamadas de “Tropa de Elite em 3D” no twitter. Como se Tropa de Elite, o filme, tivesse passado das telas para a vida real, na menção de mais de um repórter ao relatar o que via. O público previsto para assistir à Tropa de Elite 2, que deverá se tornar o filme mais visto da história do cinema nacional, foi menor do que o esperado no último final de semana de novembro. Segundo alguns sites especializados, teria sofrido a concorrência de seu homônimo em 3D, na transmissão ao vivo das operações no Rio pelas equipes de TV. É apenas uma alegoria ou há algo mais profundo nesta relação entre realidade e ficção?

Acho que vale a pena pensar sobre o efeito de Tropa de Elite 1 e 2 na apreensão dos acontecimentos do Rio pela opinião pública. Não apenas pelos cariocas, mas pela população brasileira, boa parte dela sem nenhuma familiaridade com a realidade do tráfico nas favelas do Rio nem com os policiais do Bope. É possível supor que um dos maiores fenômenos de público da história do cinema nacional possa ter tido um efeito significativo na aprovação massiva (e quase sem ressalvas) à ação policial – no Rio, 88% da população, segundo o Ibope. Minha pergunta aqui, que talvez só possa ser respondida daqui a alguns anos, é em que medida o Capitão Nascimento está presente na decodificação dos fatos da vida real.

Amigos de diferentes Estados e regiões do Brasil, que costumavam assistir ao noticiário do Rio, incluindo operações anteriores, com uma curiosidade distraída, agora acompanham e discorrem sobre o Complexo do Alemão e o Bope como se tudo estivesse acontecendo no bairro vizinho ao seu. O que os “engatou” na realidade e os aproximou de algo que antes soava distante parece ter sido o tanto que gostaram do filme e o tanto que admiram o Capitão Nascimento, a quem enxergavam no rosto anônimo de cada policial nas imagens de TV. Ao buscar dentro de si instrumentos, memória, para compreender a realidade exibida no noticiário, é Tropa de Elite que aparece primeiro.

Nunca ouvi tão poucas críticas aos já comprovados abusos policiais na ocupação dos morros ou tão poucos questionamentos sobre a eficácia e o resultado efetivo deste tipo de operação. Existem, claro. Mas num volume bem menor. Conhecidos que eram os primeiros a levantar a voz para falar da violação dos direitos humanos confessam que estão acuados. Toda vez que abrem a boca para fazer uma ressalva no seu local de trabalho ou na mesa do bar são tratados como “defensores de bandidos”. Outros, que sempre olharam qualquer operação policial – ainda por cima com Exército a tiracolo – com desconfiança máxima, ensaiam discursos maniqueístas. Há não muito tempo me enviavam emails coletivos de campanhas contra o Caveirão. Agora, chegam a repetir o discurso fácil da luta do bem contra o mal. O que mudou?

Desde sempre há gente, muita gente, favorável ao pega e arrebenta. Assim como defensores do uso do Exército no combate ao tráfico, como havia sido tentado no passado. A diferença que percebo é a perda do pudor. Era complicado defender a polícia sabidamente corrupta em sua maioria e intimamente ligada à criminalidade que fingia combater. Era espinhoso falar do Exército na favela com poder de polícia depois dos 21 anos de ditadura militar. Quem compartilhava estas ideias, fora os motoristas de táxi, não saía por aí as bradando em qualquer meio. Agora, parece que inverteu. Criticar, duvidar, questionar, verbos que fazem parte do exercício da cidadania, têm sido rechaçados com alguma – ou até muita – violência. “Ah, lá vem você defender os pobres e oprimidos…”. Ou pior: “Lá vem você e a sua culpa…”. Como se querer que a lei seja cumprida dentro da lei fosse um defeito de caráter. E o autor do comentário já estivesse, a priori, desqualificado.

Vale a pena perguntar se há, nesta espécie de autorização para disparar ideias até então tachadas como “reacionárias”, um dedo engatilhado do Capitão Nascimento. Não o Capitão Nascimento contraditório, atuando em zonas cinzentas na maioria do tempo, aquele dos realizadores do filme. Mas o de cada um, aquele que virou uma espécie de herói no imaginário nacional.

Estamos vivendo dias em que mesmo um reacionário folclórico como o deputado federal Jair Bolsonaro vai ter tantos competidores que precisará mudar de tática se quiser garantir ao menos uma nota de rodapé nos jornais para suas frases bombásticas. Vejam só o que disse o ex-capitão do Bope e atual comentarista de TV, Rodrigo Pimentel, em debate sobre as operações no Rio promovido na quinta-feira (2/12) pela Folha de S.Paulo. “Muita gente se perguntou por que a polícia não deu tiro em todo mundo e matou aqueles 200. Confesso que era o meu desejo. Não tenho a menor vergonha de dizer que gostaria que eles morressem. Era uma situação de beligerância, de guerra”.

Pois é, ele não tem “a menor vergonha de dizer”. Ninguém mais parece ter. Posso ser meio antiquada, mas acho importante ter vergonha. Assim como pudor. Especialmente quando se tem uma expressão pública, o que sempre aumenta a responsabilidade. Capitão Pimentel, como é conhecido o autor do comentário, é tido como a versão encarnada do personagem da ficção Capitão Nascimento. É também um dos autores dos dois volumes do “Elite da Tropa”, livros nos quais se basearam os filmes. Ele costuma explicar que Nascimento é um personagem totalmente fictício, construído a partir de histórias vividas por ele e por outros colegas do Bope.

Aqui há outro capítulo dos mais interessantes sobre a intersecção entre ficção e vida real. Neste mesmo debate, participaram também o cineasta José Padilha, diretor de Tropa de Elite 1 e 2, o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-coordenador de Segurança do Estado do Rio e coautor dos livros “Elite da Tropa”, e Marcelo Freixo, segundo deputado mais votado do Rio no qual foi inspirado o personagem do parlamentar Diogo Fraga, central no segundo filme. Os três estão entre as principais vozes críticas às operações no Rio e ao que Soares chegou a chamar em seu blog de “pastiche da mídia”.

Não perdem a oportunidade de lembrar que aquilo a que assistimos pela tela das TVs não é uma mera luta de mocinhos contra bandidos nem vai resolver o problema da criminalidade no Rio. E que, sim, a maioria dos policiais continua sendo corrupta e a situação só chegou a esse ponto por causa disso. E que não, não é o tráfico o maior problema hoje, mas as milícias compostas por policiais, bombeiros e militares, pelo Estado portanto, que criaram hoje um modelo de negócio mais eficiente, variado e adaptado ao momento histórico. E que não, as Forças Armadas não devem continuar nas favelas. E sim fazer o seu trabalho determinado pela Constituição, como impedir que as armas sejam contrabandeadas para dentro das fronteiras do Brasil e alcancem os morros.

Entre os méritos de Tropa de Elite 1 e 2 está o de mostrar o que muita gente parecia ter esquecido: a existência de policiais bons e honestos que arriscam a sua vida por um péssimo salário. Mostrou também que estes policiais bons e honestos constituem uma minoria no conjunto da força policial do Rio. A maioria está implicada, por parceria ou por omissão, como não se cansa de dizer Soares, em todas as modalidades de crime. Tropa 1 e 2 mostrou, portanto, que o mal está nos dois lados, na polícia e no tráfico. E apontou a necessidade urgente de distinguir a polícia do crime – hoje indistinguíveis.

Mas, quando Tropa de Elite vira Tropa de Elite em 3 D, a história é outra: a polícia é o bem, os bandidos são o mal e, como bem e mal, mocinhos e bandidos, estão em lados opostos e bem delimitados. Ao anular as diferenças entre o bom policial, uma minoria que precisa ser identificada e reconhecida, e o mau policial, a maioria que também precisa ser identificada e reconhecida, a opinião pública passa a tratar todos como mocinhos. Depois há de sair explicando como boa parte dos traficantes conseguiu fugir ou por que é necessário proibir os heróis de subir os morros com mochilas para evitar que saqueiem as casas e os bolsos dos moradores. Efeitos colaterais da simplificação grosseira da realidade.

A vida real não cabe no preto e no branco. Algo de cinza sempre vaza pelas margens. Neste sentido é que acho importante, além de todas as outras perguntas, tentar entender como Tropa de Elite – o duplo fenômeno cinematográfico – acabou emprestando um suporte simbólico às operações do Rio. Não exatamente por aquilo que disse, mas pela forma como foi decodificado e reelaborado pela população. Ou, dito de outra forma, sempre vale a pena pensar sobre a verdade da ficção e a falsificação do real.

É bem significativo que os criadores do espetáculo mais importante da década – e talvez da história do cinema brasileiro – sejam aqueles que tentam lembrar a toda hora em debates, entrevistas e artigos que o que assistimos na vida real não é espetáculo. Mas os criadores não têm mais domínio da criatura, que na boca do povo, dos políticos e de parte da imprensa vira o que cada um quer ou precisa. Uma pena que as zonas cinzentas de Tropa de Elite 1 e 2 – muitas e ricas – tenham sido deixadas de lado em favor do preto e do branco, sempre mais fácil. E também mais longe das verdades todas.

Por coincidência, enquanto escrevo esta coluna há um aniversário de criança no salão de festas do prédio que dá fundos para o meu. Da janela do meu quarto vejo meninos e meninas, acompanhadas por suas mães e babás, pulando loucamente ao som de: “Tropa de Elite, osso duro de roer/ Pega um, pega geral, e também vai pegar você/ Tropa de Elite, osso duro de roer/ Pega um, pega geral, e também vai pegar você”.
Pegou?

(Publicado na Revista Época em 06/12/2010)

A vingança de Rogério Pereira

Ou como fazer um jornal literário com um barril

Inventamos uma vida para preencher um buraco. E seguimos vivendo porque nunca conseguimos cobri-lo por completo. Algo sempre nos falta. E esta falta nos move pelo tempo, nos impele a criar um enredo que faça sentido. No caso de Rogério Pereira foi um barril.

Zulma, a mãe de Rogério, não pôde estudar. Como a maioria das crianças pobres da sua infância no interior de Santa Catarina, ela trabalhava na roça. Quando se rebelava, e às vezes acontecia, a avó a enfiava dentro de um barril e sentava-se sobre ele. Zulma ficava lá, confinada até que a vontade de brincar passasse. Por cima dela, o corpo da avó e toda uma tradição de gente parida só para a enxada.

Esta história contada por uma mãe que escreve pouco além do nome e jamais leu um livro talvez seja a mais importante da vida de Rogério. Assombrado pelo barril, ele acreditou que só escaparia desta sina se fosse capaz de preencher o vazio com palavras. Se o barril estivesse repleto de histórias, não haveria espaço para a escuridão – nem para crianças na escuridão. É por isso que, quando lhe perguntam por que criou um jornal literário num país onde ainda tão poucos leem, Rogério responde que é a sua vingança contra o barril. Agora, o barril é fábula. Como fábula é possível conviver com ele.

O Rascunho, jornal literário criado por Rogério Pereira, completou uma década de persistência. Baseado em Curitiba, tornou-se “o” jornal literário do Brasil. Nele há espaço para autores de todos os cantos do país, há espaço mesmo para quem está fora do mercado e longe da consagração. Tem assinantes mesmo em cidades pequenas como Pau dos Ferros, no Rio Grande do Norte, Bom Despacho, em Minas Gerais, ou Parobé, no Rio Grande do Sul. O Rascunho resiste pela colaboração não remunerada de dezenas de pessoas, escritores, tradutores e jornalistas, que também têm lá seus próprios barris, prontos para encaçapá-los numa esquina em caso de distração.

O jornal é moldado, porém, à imagem turrona de Rogério Pereira. E chega aos dez anos porque ele é teimoso. Bem teimoso. Às vezes até difícil. Para alguns, “sincero demais”. Fazendo dívida ano após ano, ele vai terminar este com um rombo de R$ 90 mil. Rogério vai empurrando, pagando velhos empréstimos, fazendo novos. Encantado porque ele, que só entrava em banco como office-boy, hoje tem crédito. E todo mês, quando imprime os 5 mil exemplares do Rascunho, Rogério ganha do barril. Em dezembro ele botará nas ruas a edição de número 128, com 32 páginas e 40 colaboradores.

Conheci Rogério há pouco mais de um ano, em Curitiba. Desde então, espero uma chance para contar sua história aqui. Na semana passada, ele e o escritor Luís Henrique Pellanda lançaram o primeiro volume de As melhores entrevistas do Rascunho (Arquipélago), em São Paulo. O livro reúne boas e longas conversas com 15 escritores brasileiros. Foram escolhidas entre as 171 entrevistas publicadas na primeira década do jornal. Estão ali Luiz Ruffato, José Castello, Bernardo Carvalho, Milton Hatoum, Cristovão Tezza, João Ubaldo Ribeiro, entre outros. Conversas de gente que ama a literatura e é transformada (e perturbada) por ela – para gente que ama a literatura e é transformada (e perturbada) por ela.

Algumas horas antes do lançamento, eu e Rogério terminamos nossa própria boa conversa no café da Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Eu queria saber como um garoto que trabalha duro desde os 10 anos, filho de pais sem acesso à palavra escrita, criou um jornal de literatura que já faz parte da história da cultura brasileira. Queria saber como a literatura transformou Rogério Pereira. Ou como ele criou um enredo para sua existência e assim escapou do barril que mastigou sua mãe.

Ela sempre disse a Rogério: “Se eu tivesse estudado, tudo seria diferente”. Enquanto vendia flores, moldava móveis em bambu, entregava medicamentos para dentista, fazia todos os bicos que conseguia, Rogério acreditava nisso. Ele acreditava na mãe. E como todas as vidas, a dele também foi povoada de “e se”. E se a mãe não tivesse trabalhado na casa do diretor da sucursal da Gazeta Mercantil quando ele era adolescente? Se em vez disso tivesse sido empregada doméstica na casa de um dentista, de um médico, de um comerciante, que jeito ele teria encontrado? Seria ele outro?

O que importa é que, aos 14 anos, o patrão da mãe, Claudio Lachini, perguntou se ela não tinha um filho que pudesse empregar no jornal como office-boy. E Rogério se tornou o office-boy “diferente” da Gazeta. Diferente porque quando terminava o trabalho de banco, em vez de jogar fliperama como os colegas, ficava estudando na cozinha do jornal. À noite, cursava a escola pública. Os jornalistas o apoiavam, aliviavam o trabalho. Ele começou a ganhar livros, a comprar. Iniciou-se com Rubem Fonseca, Dalton Trevisan e João Antônio. Ficou no jornal por oito anos e até chegou a ser promovido a “renovador de assinaturas por telefone”. Segundo ele, o trabalho mais chato que fez na vida, ainda pior do que vender flores em dia de finados. Mais tarde, Rogério fez faculdade e se tornou jornalista. Fez ainda uma pós-graduação na Universidade Complutense de Madri.

Rogério ainda era office-boy quando o diretor do jornal lançou um livro de poesias chamado O que se viveu. Em casa, a mãe contou que havia “uma montanha de livros na casa do seu Lachini”. Rogério queria muito ler algo escrito por alguém que conhecia, “para quem pagava as contas, comprava pastel e cigarros no meio da tarde”. Rogério implorou que a mãe pegasse um emprestado. Ela, muito católica, resistiu. O amor materno acabou vencendo o medo do inferno e Zulma retirou um livro da pilha. Anos mais tarde, Rogério fez o acerto de contas. Encontrou-se com Lachini para um café num hotel chique de Curitiba. O jornalista queria entregar a ele seu primeiro romance para ser resenhado pelo Rascunho. Rogério levou o livro furtado, confessou o crime e ganhou a obra de presente, agora autografada. Algo ali se fechava.

O Rascunho começou sua história em 8 de abril de 2000, encartado no Jornal do Estado, de Curitiba. Era feito nas madrugadas e finais de semana e muitas vezes era preciso sacar dinheiro do bolso para que pudesse seguir adiante. Nestes primeiros anos, o jornal cavou uma fama de brigão, “iconoclasta e meio irresponsável”. Em suas páginas, Rogério e outros injetaram ironia e algumas vezes também crueldade, como no massacre do poeta pernambucano Sebastião Uchoa Leite. A seu favor é preciso dizer que sempre abriu o mesmo espaço para réplicas e tréplicas. Pergunto a Rogério se hoje se arrepende de episódios como este. Rogério responde: “Não me arrependo da história do Rascunho. Hoje, obviamente, o texto teria outro viés, outra forma. Mas possivelmente a mesma contundência”.

No quarto ano, a parceria com o Jornal do Estado acabou. Rogério tinha de decidir se acabava ali, como em geral acontece com a maioria dos projetos, ou se seguia adiante. Como é teimoso, turrão e às vezes difícil, seguiu. No sexto ano, tomou a decisão de abandonar a estabilidade da vida de emprego com carteira assinada para se dedicar só ao Rascunho e à literatura. Não perdia pouco, já que ganhava um salário bem razoável e tinha um lugar de reconhecimento como chefe de redação da Gazeta do Povo. É hoje um dos poucos brasileiros que vive da – e para a – literatura no Brasil.

Rogério brinca que criou uma holding. Além do Rascunho, existe o Paiol Literário, projeto que já levou 47 dos principais escritores brasileiros a Curitiba para um encontro com o público que depois é editado e publicado no jornal. Há ainda o vidabreve.com, um site com sete cronistas e sete ilustradores, uma dupla a cada dia da semana (eu e Ramon Muniz formamos a dupla da terça-feira); o Quintana Café & Restaurante, espaço dedicado à cultura e à gastronomia; e ele ainda faz curadorias de bienais e outros eventos literários pelo país afora.

O último dia do horário de verão, 20 de fevereiro de 2011, será também o dia em que Rogério vai botar o ponto final no seu primeiro romance – “Na escuridão, amanhã”. Coisas de Rogério, que adora um ritual. Faz questão, por exemplo, de abrir suas contas bancárias nas mesmas agências em que pegava fila como office-boy. Compra flores para a mulher, Cris, e para a filha, Sofia, de quatro anos, no mesmo lugar em que vendia flores na infância. Para ter certeza. “Eu passei por aqui de uma maneira e hoje passo de outra.”

Como não costumo botar fotos nesta coluna, preciso descrever Rogério. Ele está bem longe da imagem do jornalista desmantelado, dentes e dedos manchados de nicotina, uma ou duas doses de cachaça na mão, barriga de cerveja e torresmo de boteco. Pelo que tenho visto por aí, acho mesmo que esta figura clássica já pertence ao passado. Aos 37 anos, Rogério mantém o corpo em forma com três sessões de academia e dois jogos de futebol por semana. Usa uma argola em cada orelha, corte de cabelo milimetricamente despenteado, camisa branca de bom corte ou em cores sóbrias, capazes de manter um daltônico em segurança. Para ele, que alcançou Curitiba aos 6 anos com a família, a cidade será sempre “cinza, borrada pela neblina da infância”, como escreveu em uma de suas crônicas.

Rogério já foi descrito como um Dom Quixote, mas, pelo menos na aparência, se usasse uma echarpe poderia ser confundido com um dos italianos despojados das ruas de Milão. Não fuma há 15 anos, não bebe há 10. Casado, dois filhos pequenos em boas escolas, bom apartamento, boa qualidade de vida. É importante para ele que seja assim. Para tocar sua holding literária, usa o aprendizado forçado da infância e adolescência, onde desenvolveu a vocação empreendedora negociando redações e trabalhos escolares em troca de lanches e vale-transporte.

Pergunto a ele por que escreve. Ele diz, alertando que para esta resposta não há como evitar os clichês: “Escrevo porque preciso, porque guiei a minha vida para a escrita, a literatura. Fiz da leitura um projeto para a vida toda. Não estou aqui à toa. Estou aqui porque construí o que sou – com toda a sorte pelo meio do caminho. Escrevo também por vingança àquele barril, escrevo para enchê-lo. Escrevo para me humanizar. Escrevo por vaidade, escrevo por vingança – sentimentos nada nobres, sei bem. Escrevo também porque talvez seja uma boa maneira de esperar a morte”. E mais adiante: “Os livros me salvaram. Eu sou o que li. O que busquei. Cada livro que li, cada livro que pensei em ler, cada livro que li pela metade, é o que sou”.

O primeiro livro seu foi comprado numa feira da infância. Avisaram na escola, e ele pediu dinheiro à mãe. Ela deu a ele o que hoje equivaleria a dois reais. Rogério só conseguiu comprar um de balaio. Era um livro sobre um homem em uma ilha. À espera. E não era a história de Robinson Crusoé. Rogério acredita que está lendo este livro até hoje. Quando era bem pequeno, sua mãe não viu que havia um “ninho de formiga” no lugar onde o deixou. E passou horas trabalhando sem poder voltar. Rogério foi flagelado pelas formigas. Hoje não consegue evitar. Ao deixar seu filho Lorenzo no berço sempre confere alarmado se não há formigas prontas a devorá-lo. Como disse o escritor catalão Enrique Vila-Matas, “a infância é uma batalha perdida”.

Rogério sabe que a vingança completa é impossível. O barril continua lá. Lembrando nos espaços vazios que a vida é frágil. E em geral dói. Zulma, a mãe de Rogério, é quem hoje envelopa os exemplares do Rascunho para assinantes, mas nunca leu o jornal nem qualquer dos escritos de Rogério. Continua trabalhando como diarista e é na casa de um dos patrões que passará este Natal servindo. José, o pai, é motorista de jornal. O irmão é funileiro. A irmã morreu de repente aos 27 anos. Alguns amigos perguntam a Rogério por que não ajudou os pais a melhorar seu nível de escolaridade. Ele responde: “É simples: a vida nos engoliu, nos mastigou feito bala de goma”. E, em outro momento: “Somos uma família distante e silenciosa. Como passamos boa parte da vida tentando sobreviver, cada um se virava da maneira que era possível. Não somos amorosos um com o outro. Nunca nos reunimos no Natal, no Ano-Novo ou nos aniversários. Mas isso não tem nada a ver com amor. Somos poucos que nos amamos em silêncio”.

O pai fez um quadro da primeira matéria de Rogério publicada em um jornal. Deu a ele de presente. O tema era uma cadeira que não provocava dor nas costas em quem passava o dia sentado diante de um computador. Mais tarde o pai pediu um livro emprestado. Rogério lhe deu uma obra de Autran Dourado, não lembra o título nem sabe o porquê da escolha. Tempos depois o pai devolveu o livro em silêncio. “Eu não lhe perguntei nada. Acho que tentou ler e não conseguiu. Envergonhado, devolveu o livro. Eu respeitei o seu silêncio. Ele respeitou o meu.” Quando o filho mais novo nasceu, Rogério reservou um caderno para que as visitas deixassem uma mensagem. Descobriu ali, na letra sofrida do pai, que ele escrevia seu nome – Rogério – com “j”.

Quando propus a Rogério Pereira contar sua história nesta coluna, ele teve receio. Que alguns pudessem achar que usava sua vida como autopromoção. “O Rascunho não tem reconhecimento porque foi fundado pelo filho da empregada doméstica, mas porque tem qualidade”, disse. Rogério só aceitou porque sua história prova algo que tanto eu quanto ele acreditamos profundamente: que a literatura é capaz de transformar a vida. Se há uma história que vale a pena ser contada é esta – a de como cada um dá sentido à sua existência, pega à unha o pouco que tem e se lança de cabeça no território das possibilidades.

Todos nós temos o nosso barril, com mais ou menos dor, mais ou menos peso, com outro nome. O que nos difere é o que fazemos com ele. A literatura, seja como leitor ou como escritor, nos permite transformar nosso barril em metáfora.

(Publicado na Revista Época em 29/11/2010)

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